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Entre reconstruções contemporâneas do fascismo e do antissemitismo: resenha de Como funciona o fascismo, de Jason Stanley

STANLEY, Jason. . Como funciona o Fascismo: a política do “nós” e “eles”. Porto Alegre: L&PM, 2018, 208pp.

Embora não seja o ponto focal do Como funciona o fascismo, livro de Jason Stanley, o antissemitismo é um elemento essencial para a conceitualização do fascismo. Não que todo fascismo seja antissemita, na prática o que ocorre é que esses movimentos não podem passar sem a criação de um imaginário sobre um inimigo desumanizado. O inimigo pode ser o judeu e o judaísmo, mas não necessariamente. Pode ser o islã, o comunismo, os LGBTQ+. O essencial é a existência de um grupo específico a servir ao propósito de mobilizar a base de massas, seja ele qual for. Dito isso, também é inegável a associação histórica e mesmo contemporânea entre fascismos e antissemitismo.

Adiantando logo de início: um dos pontos positivos do trabalho de Jason Stanley é não renegar o conceito de fascismo. Um conceito maltratado desde a Terceira Internacional, no infame epíteto de sociais-fascistas (Bray2018BRAY, Mark. (2018), Antifa: o manual antifascista. São Paulo: Autonomia Literária.:74-75). Stanley apresenta sua tese já no título: o fascismo não morreu em 1945, é uma virtualidade presente nas democracias de massa contemporânea e, indo além, talvez possa ser compreendido como um método de política, não como uma ideologia. Um método que propõe uma divisão binária e maniqueísta entre segmentos sociais específicos, desumanizando um grupo em função de um passado idealizado supostamente deturpado por eles.

Para sua discussão, Stanley classifica parte de seus capítulos de acordo com características que identifica como essenciais dos fascismos. Por exemplo, o primeiro trata do resgate ao passado mítico, um traço típico não apenas do fascismo como conceito genérico, mas também do reacionarismo em geral. Um passado idealizado, que teve sua glória deturpada por um grupo específico, que deve ser demonizado por meio de outro elemento-chave que o autor aponta como título de seu segundo capítulo: a propaganda. São características que se interligam entre si, incluindo o anti-intelectualismo e a irrealidade do conspiracionismo paranoico, aspectos analisados em profundidade no terceiro e quarto capítulos, como uma cadeia de causae efeito. Pois é o passado idealizado que gera a necessidade de culpabilizar um grupo outsider pela suposta degeneração, dado o conspiracionismo paranoico, o que é feito por meio da propaganda com profundo viés anti-intelectual.

Além do papel da hierarquia, tema do quinto capítulo, outra essência que Stanley identifica nos fascismos é a teoria da conspiração, tópico do quarto. Um ponto que de fato é difícil de discordar, conforme temos exemplos históricos como a importância que os Protocolos dos sábios do Sião desempenharam para o nazifascismo e o Holocausto. Mas as teorias da conspiração evoluem, adquirem novos traços, embora mantenham pontos em comum. A narrativa, geralmente, é a mesma: um grupo específico, com forças muito superiores a que possuem de fato, está ameaçando a estabilidade da nação ou do grupo escolhido. E quanto mais estapafúrdia, mais absurda, mais inverossímil, mais eficaz. Pois o conspiracionismo não joga com a razão, mas com a paranoia. Uma paranoia que precisa do irreal para ter sua razão de ser. Uma narrativa que afirma que o Partido Democrata tem uma rede de tráfico sexual infantil embaixo de uma pizzaria é tão irracional quanto eficiente, pois serve como catalisador para virtualmente tudo o que o receptor enxerga de deturpado. No auge do maniqueísmo, o adversário passa a encarnar os males do mundo, elevados exponencialmente a um nível que beira o satírico. Como Stanley (2018:70) percebe, esse jogo coloca a grande mídia de refém, já que, incapaz de cobrir as teorias estrambólicas, é tratada pelo discurso conspiracionista como cúmplice. Teorias que absorvem diretamente outro ponto que Stanley identifica como essencial, tema de seu sexto capítulo: a vitimização. Os adeptos das teorias tendem a acreditar que são vítimas de uma conspiração que retira seu poder (econômico, político, social) em função de um outro grupo minoritário.

É óbvio, porém, que não é preciso necessariamente um fascismo à disseminaçãode teorias da conspiração e ataques a um grupo específico. Da mesma forma, não é sequer preciso o contato direto com o grupo minoritário para se empreender um processo de desumanização. O imaginário pode ser construído em um processo secular, se enraizando de tal forma que permanece mesmo que o grupo específico inexista. Tomemos como exemplo O mercador de Veneza, de William ShakespeareSHAKESPEARE, William. (2006), The merchant of Venice. New Haven: Yale University Press.. Shylock, o agiota que exige o pagamento do nobre mercador em carne, personificaos elementos mais clássicos do estereótipo judeu, mesmo que esse grupo étnico-religioso tenha sido expulso da Inglaterra em 1290 pelo Rei Eduardo (Pszczol & Vaitsman 2020PSZCZOL, Eliane; VAITSMAN, Heliete (org.). (2020), Antissemitismo, uma obsessão: argumentos e narrativas. Rio de Janeiro: Numa Editora.:26). Cerca de três séculos antes de Shakespeare, portanto.

Como lembram Carlos Reiss e Michel Ehrlich, em artigo em Antissemitismo, uma obsessão, livro de Eliane Pszczol e HelieteVaitsman (2020PSZCZOL, Eliane; VAITSMAN, Heliete (org.). (2020), Antissemitismo, uma obsessão: argumentos e narrativas. Rio de Janeiro: Numa Editora.:26), o clássico de Shakespeare trabalha na dualidade de um antissemitismo primitivo. Primitivo por ser mais pautado por intolerância religiosa do que pelas teorias raciais e ultranacionalistas que fomentariam suas novas formas no século XIX. Não sendo cristão, o Shylock de Shakespeare é identificado como a personificação do demônio. E está longe de ser o único personagem de uma peça do inglês a receber o rótulo de monstruoso, basta nos lembrarmos de Calibã em A tempestadeSHAKESPEARE, William. (2006), The tempest. New Haven: Yale University Press .. Antissemitismo primitivo, mas que apresenta elementos que são retrabalhados até hoje, como o clichê da associação do judaísmo com a avareza.

No contemporâneo, o antissemitismo se reconstrói sob novas vestes, ao mesmo tempo que mantém elementos em comum com sua tradição autoritária. Por exemplo, se a extrema-esquerda acusa o bilionário judeu George Soros de fortalecer o capitalismo em nações periféricas, o ataque da extrema-direita é mais virulento. Jason Stanley (2018:136) sugere que parte desse ataque ocorre não apenas por uma alteração nos formatos contemporâneos de antissemitismo, tanto mais por uma ansiedade sexual característica de um fascismo. Sem entrar na discussão sobre qual conceito utilizar para classificar esses movimentos da extrema-direita contemporânea, é importante perceber como a desumanização de Soros se alia a um discurso reacionário de resgate de uma família patriarcal supostamente degenerada e destroçada por grupos minoritários específicos. Um discurso que encontra eco no Nazismo, com uma mudança apenas de foco sobre o grupo minoritário. Se para Hitler e seus correligionários os judeus eram culpados pela degeneração, para esses movimentos de hoje, um judeu, George Soros, financia a degeneração ao dar suporte a imigrantes muçulmanos (Stanley 2018:136). O principal alvo passa a ser, assim, os muçulmanos, mas sem perder de vista a contribuição judaica. Antes o judeu era o portador da degeneração, da doença, hoje ele apenas financia o bacilo.

Johanna Laakso, por exemplo, linguista húngara, coloca George Soros no mesmo patamar de outros culpados clássicos pela extrema-direita, como muçulmanos, a esquerda e o cosmopolitismo liberal (Stanley 2018:136). Com exceção da adesão enfática dos muçulmanos, e da retórica disfarçada sobre Soros, o imaginário sobre os inimigos é reciclado do nazifascismo. O amalgama entre anticomunismo e antiliberalismo, a visão de uma elite liberal e cosmopolita corrupta e apática (com vínculos judaicos) que permite a entrada do câncer do comunismo, nunca desapareceu por completo da retórica da extrema-direita, principalmente europeia. Como se vê com Soros, apenas há um deslocamento da figura explícita do judeu internacional, para um subterfúgio. Não se fala mais no povo judaico como culpado pela destruição, mas de um indivíduo específico que pode ser utilizado para mascarar a ojeriza à comunidade judaica. Em outras palavras, o imaginário mobilizado é semelhante, mas evoluiu e aprendeu a se maquiar.

O imaginário do judeu internacional colhe diretamente de uma tradição de rejeição radical ao que a extrema-direita identifica como cosmopolitismo. Em Mein Kampf, por exemplo, isso aparece elevado ao extremo: o judaísmo é responsável pela contaminação entre raças, de onde encontra tanto espaço em grandes capitais degeneradas como Viena (Stanley 2018:140). Cidades menores, como Hitler descreve a em que nasceu, são menos contaminadas pelo bacilo do cosmopolitismo, e nutrem um sentimento nacional puro. A imigração, a mistura entre etnias e nacionalidades, se coloca como antro de degeneração nacional, e o judeu internacional é o responsável por trazê-la. Uma vez mais, é revelador como Soros encarna esse mesmo papel, dando nome e endereço ao imaginário de um personagem. Não é mais um judeu internacional, mas o judeu. O que facilita na maquiagem, voltando o alvo para um objeto em específico culpado pela contaminação. Tema de seu nono capítulo, Sodoma e Gomorra, Stanley coloca o anticosmopolitismo como elemento do fascismo. Esses elementos evidenciam como o antissemitismo é uma ferramenta útil para os fascismos, ainda que esteja longe de ser exclusivo ― outros inimigos imaginários podem suprir a mesma lacuna.

Stanley (2018:71) também aponta que as teorias da conspiração trabalham com os principais medos de uma nação. Isto é, em um país no qual a relação com a comunidade muçulmana é baixa, como é o caso do Brasil, as teorias da conspiração não lidam com esse medo. Por outro lado, tendo o país uma relação histórica de anticomunismo de um século de paranoia, as conspirações tendem a envolver o medo do perigo vermelho, como tem sido desde o Plano Cohen. As teorias da conspiração, portanto, evoluem, absorvem novos medos e se espalham conforme o tempo e o espaço. Na Europa da primeira metade do século XX, o imaginário sobre o judeu despertava o medo que foi explorado pelo nazifascismo. Mas na Europa contemporânea, esse imaginário cedeu espaço para o medo em relação à comunidade muçulmana.

No geral, Stanley oferece um bom panorama da noção de fascismo como conceito político, não o limitando apenas a sua versão de Mussolini ou a equivalentes europeus. O livro traz ideias interessantes, colocando o fascismo mais como um método de poder ― similar, nesse sentido, a outros como a própria democracia e o autoritarismo ― do que como uma ideologia, algo que vai ao encontro do que é feito por outros teóricos contemporâneos como Madeleine Albright (2018ALBRIGHT, Madeleine. (2018),Fascismo: um alerta. São Paulo: Planeta.) e Ernesto Laclau (2005LACLAU, Ernesto. (2005), On populist reason. Londres: Verso.). Por mais que essa interpretação não falhe em evocar alguns perigos ― permite um excessivo alargamento do conceito, por exemplo ―, por outro lado também retira o fascismo da roupagem quase sobrenatural que recebeu, tomado como uma raridade, e o mostra como uma virtualidade comum às democracias de massa contemporâneas, como pontuado por Mark Bray. Pois essa é por exato a sensação do leitor ao terminar Como funciona o fascismo: uma faca de dois gumes, para usar a expressão clássica. Um livro que fornece alguns elementos-chave do conceito, mas que talvez o amplie em excesso. De toda forma, é uma adição interessante, ainda que não imprescindível, ao estado da arte de um debate que já remonta cem anos. Há obras mais importantes para tratar do fascismo, como Anatomia do fascismo, mas o livro de Stanley tem o seu espaço e mérito por trazer o debate para o contemporâneo. Ainda mais, por mostrar como os discursos fascistas, antissemitas e autoritários se atualizam para o contemporâneo por meio de subterfúgios e pequenas alterações retóricas, como o caso do judeu internacional e George Soros.

Referências

  • ALBRIGHT, Madeleine. (2018),Fascismo: um alerta São Paulo: Planeta.
  • BRAY, Mark. (2018), Antifa: o manual antifascista São Paulo: Autonomia Literária.
  • DORIA, Pedro. (2020), Fascismo à brasileira - como o integralismo, maior movimento de extrema-direita da história do país, se formou e o que ele ilumina sobre o bolsonarismo São Paulo: Planeta , 2020.
  • LACLAU, Ernesto. (2005), On populist reason Londres: Verso.
  • PAXTON, Robert. (2007), A anatomia do Fascismo São Paulo: Paz e Terra.
  • PSZCZOL, Eliane; VAITSMAN, Heliete (org.). (2020), Antissemitismo, uma obsessão: argumentos e narrativas Rio de Janeiro: Numa Editora.
  • ROTH, Philip. (2015), Complô contra a América Tradução por Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia de Bolso.
  • SHAKESPEARE, William. (2006), The merchant of Venice New Haven: Yale University Press.
  • SHAKESPEARE, William. (2006), The tempest New Haven: Yale University Press .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jul 2022
  • Aceito
    03 Fev 2023
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