Acessibilidade / Reportar erro

Evidência local sobre o limite de carga viral do citomegalovírus para tratamento preventivo é bem-vinda, e um comentário sobre os efeitos indiretos

A infecção por citomegalovírus (CMV) é um dos eventos mais comuns após o transplante renal, com implicações para o manejo clínico, morbidade e possivelmente mortalidade11 Kotton CN. CMV: prevention, diagnosis and therapy. Am J Transplant. 2013 Feb;13(Suppl 3):24-40.,22 Stern M, Hirsch H, Cusini A, Van Delden C, Manuel O, Meylan P, et al. Cytomegalovirus serology and replication remain associated with solid organ graft rejection and graft loss in the era of prophylactic treatment. Transplantation. 2014 Nov;98(9):1013-8.. Na infecção primária, que ocorre em 10% dos pacientes, a transmissão ocorre através do enxerto, de um doador soropositivo para um receptor soronegativo. Por outro lado, a maioria dos receptores teve o primeiro contato com o vírus na infância, e a reativação ocorre após a imunossupressão, quando os eventos relacionados ao CMV são divididos em efeitos diretos e indiretos44 Kotton CN, Kumar D, Caliendo AM, Huprikar S, Chou S, Danziger-Isakov L, et al. The third international consensus guidelines on the management of cytomegalovirus in solid-organ transplantation. Transplantation. 2018 Jun;102(6):900-31.,55 Requião-Moura LR, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Cytomegalovirus infection in renal transplantation: clinical aspects, management and the perspectives. Einstein (São Paulo). 2015 Mar;13(1):142-8.. Os efeitos diretos são infecção, quando há evidência de replicação do CMV independente dos sintomas, e doença, quando a infecção é seguida por sintomas relacionados ao CMV ou alterações laboratoriais44 Kotton CN, Kumar D, Caliendo AM, Huprikar S, Chou S, Danziger-Isakov L, et al. The third international consensus guidelines on the management of cytomegalovirus in solid-organ transplantation. Transplantation. 2018 Jun;102(6):900-31.. Os efeitos indiretos observados são um risco aumentado de infecções secundárias (pneumocystis e outros herpesvírus) e um risco aumentado de rejeição aguda e disfunção renal crônica55 Requião-Moura LR, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Cytomegalovirus infection in renal transplantation: clinical aspects, management and the perspectives. Einstein (São Paulo). 2015 Mar;13(1):142-8..

Neste cenário, é imperativo adotar uma das duas seguintes estrategias para reduzir o risco de eventos relacionados ao CMV, especialmente os efeitos diretos: profilaxia universal ou tratamento preemptivo44 Kotton CN, Kumar D, Caliendo AM, Huprikar S, Chou S, Danziger-Isakov L, et al. The third international consensus guidelines on the management of cytomegalovirus in solid-organ transplantation. Transplantation. 2018 Jun;102(6):900-31.. A primeira estratégia é baseada no uso de valganciclovir por 3 ou 6 meses após o transplante, o que parece estar associado a menos eventos relacionados ao CMV, apesar de algumas desvantagens como toxicidade, doença por CMV de início tardio, risco de resistência e alto custo66 Humar A, Lebranchu Y, Vincenti F, Blumberg EA, Punch JD, Limaye AP, et al. The efficacy and safety of 200 days valganciclovir cytomegalovirus prophylaxis in high-risk kidney transplant recipients. Am J Transplant. 2010 May;10(5):1228-37.. O tratamento preemptivo, por outro lado, é o monitoramento sequencial e intensivo da replicação do CMV para detectar a carga viral precoce, seguido pelo tratamento antiviral quando uma carga viral limite é atingida antes do aparecimento dos sintomas44 Kotton CN, Kumar D, Caliendo AM, Huprikar S, Chou S, Danziger-Isakov L, et al. The third international consensus guidelines on the management of cytomegalovirus in solid-organ transplantation. Transplantation. 2018 Jun;102(6):900-31.. Como o sistema público de saúde em nosso país não fornece valganciclovir, a maioria dos centros de transplante realiza a redução do risco de CMV com tratamento preemptivo. Entretanto, até o momento, não temos claramente definido o melhor limite de carga viral para iniciar o tratamento com esta estratégia.

Li com grande interesse o artigo de Caurio et al. (2021)77 Caurio CF, Allende OS, Kist R, Santos KL, Vasconcellos IC, Rozales FP, et al. Validação clínica de um ensaio de PCR in house quantitativo em tempo real para infecção por citomegalovírus usando o 1º Padrão Internacional da OMS em pacientes com transplantados renais. Braz J Nephrol. 2021 May 10; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0214
https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-20...
publicado no Jornal Brasileiro de Nefrologia. Eles incluíram 30 receptores de transplante renal que foram transplantados em dois centros diferentes e coletaram prospectivamente 232 amostras de plasma para identificar viremia por CMV usando dois métodos pareados: antigenemia pp65 e PCR quantitativo in-house em tempo real. Para o PCR, eles calibraram os resultados de acordo com o 1° Padrão Internacional da OMS (WHOIS, por sua sigla em inglês) para o Citomegalovírus Humano. Os pacientes incluídos apresentavam baixo ou alto risco para eventos relacionados ao CMV após o transplante, já que 40% deles tinham recebido indução imunológica com anticorpos depletores de linfócitos (globulina antitimócitos). Além disso, todos receberam tacrolimo e micofenolato como imunossupressão de manutenção e 86,6% tinham IgG positivo para CMV antes do transplante.

O marco dos resultados foi o desempenho do PCR in-house para prever eventos relacionados ao CMV, definido como a decisão de iniciar o tratamento antiviral em uma estratégia de tratamento preemptivo, com base no resultado da antigenemia pp65 (10 células positivas) ou na decisão do médico. Foram avaliadas três cargas virais diferentes, 2.750 IU/mL, 3.430 IU/mL e 3.650 IU/mL, que alcançaram sensibilidade para o tratamento antiviral de 100%, 97,1%, e 91,2%, respectivamente. Para o valor de 3.430 UI/mL (log 3,54), a curva ROC para iniciar a terapia foi de 0,93. Como bem salientado pelos autores na discussão do artigo, após quase dez anos do lançamento do WHOIS, ainda não foi definido um limite consensual para o tratamento do CMV. É bem sabido que a carga viral se correlaciona com o risco de eventos relacionados ao CMV, particularmente doenças e doenças invasivas. No entanto, dada a grande variação entre populações, fatores de risco e aspectos laboratoriais, como tipos de amostras (seja plasma ou sangue total) e ensaios, o terceiro consenso internacional recomenda que os centros estabeleçam limites de carga viral para parâmetros de terapia ou desfechos do tratamento. Para este objetivo, o estudo parece ser bem-sucedido44 Kotton CN, Kumar D, Caliendo AM, Huprikar S, Chou S, Danziger-Isakov L, et al. The third international consensus guidelines on the management of cytomegalovirus in solid-organ transplantation. Transplantation. 2018 Jun;102(6):900-31..

No estudo, de 30 pacientes, 25 tiveram um teste positivo, 11 eram sintomáticos, mas apenas 3 preencheram os critérios para a doença por CMV. É importante notar que a carga viral nos pacientes assintomáticos foi de 3.490 IU/mL (vs. 15.539 nos sintomáticos, P<0,001), o que esteve mais próximo do valor encontrado com melhor desempenho para prever o tratamento (3.430 IU/mL), quando 10 células positivas na antigenemia pp65 e na decisão médica foram usadas como o padrão ouro. Devemos reconhecer os esforços dos autores e a boa qualidade desta evidência. Entretanto, este valor de corte não pode ser extrapolado a outros centros usando PCR comercial ou outros in-house. Por exemplo, em um estudo anterior, David-Neto et al. (2014)88 David-Neto E, Triboni AHK, Paula FJ, Vilas-Boas LS, Machado CM, Agena F, et al. A double-blinded, prospective study to define antigenemia and quantitative real-time polymerase chain reaction cutoffs to start preemptive therapy in low-risk, seropositive, renal transplanted recipients. Transplantation. 2014 Nov;98(10):1077-81. investigaram pontos de corte para antigenemia pp65 e um PCR in-house, e os melhores resultados para prever a doença por CMV foram 4 células positivas e 2.000 cópias/mL, respectivamente.

Independentemente do limite para o tratamento preemptivo (2.000, 3.500 ou 5.000 IU/mL), esta estratégia expõe os pacientes a alguns níveis de replicação do CMV que podem estar associados aos efeitos indiretos do CMV. Em um elegante estudo prospectivo, Reischig et al. (2009)99 Reischig T, Jindra P, Hes O, Bouda M, Kormunda S, Treška V. Effect of cytomegalovirus viremia on subclinical rejection or interstitial fibrosis and tubular atrophy in protocol biopsy at 3 months in renal allograft recipients managed by preemptive therapy or antiviral prophylaxis. Transplantation. 2009 Feb;87(3):436-44. demonstraram que a viremia por CMV ≥ 2.000 cópias/mL aumentou a probabilidade de fibrose intersticial e atrofia tubular em biópsias de aloenxerto renal (OR=3,83, P=0,023). Nós observamos que a viremia por CMV estava associada a altos níveis urinários de proteína ligadora de retinol (OR = 4,62; P = 0,001), um marcador precoce de dano tubular proximal, resultando em menor função do enxerto em 5 anos (OR = 0,95; P = 0,01)1010 Requião-Moura LR, Matos ACC, Ozaki KS, Câmara NOS, Pacheco-Silva A. A high level of urinary retinol-binding protein is associated with cytomegalovirus infection in kidney transplantation. Clin Sci (Lond). 2018 Sep;132(18):2059-69.. Por outro lado, uma publicação recente indicou que o manejo clínico atual não deve mais considerar o impacto da infecção por CMV nos resultados de longo prazo1111 Bischof N, Wehmeier C, Dickenmann M, Hirt-Minkowski P, Amico P, Steiger J, et al. Revisiting cytomegalovirus serostatus and replication as risk factors for inferior long-term outcomes in the current era of renal transplantation. Nephrol Dial Transplant. 2020 Feb;35(2):346-56.. No momento, não há evidências suficientes para rejeitar a hipótese de efeitos indiretos, pelo menos enquanto são necessárias mais investigações para abordar nossas preocupações quanto aos receptores de transplantes renal.

References

  • 1
    Kotton CN. CMV: prevention, diagnosis and therapy. Am J Transplant. 2013 Feb;13(Suppl 3):24-40.
  • 2
    Stern M, Hirsch H, Cusini A, Van Delden C, Manuel O, Meylan P, et al. Cytomegalovirus serology and replication remain associated with solid organ graft rejection and graft loss in the era of prophylactic treatment. Transplantation. 2014 Nov;98(9):1013-8.
  • 3
    Kuo HT, Ye X, Sampaio MS, Reddy P, Bunnapradist S. Cytomegalovirus serostatus pairing and deceased donor kidney transplant outcomes in adult recipients with antiviral prophylaxis. Transplantation. 2010 Nov;90(10):1091-8.
  • 4
    Kotton CN, Kumar D, Caliendo AM, Huprikar S, Chou S, Danziger-Isakov L, et al. The third international consensus guidelines on the management of cytomegalovirus in solid-organ transplantation. Transplantation. 2018 Jun;102(6):900-31.
  • 5
    Requião-Moura LR, Matos ACC, Pacheco-Silva A. Cytomegalovirus infection in renal transplantation: clinical aspects, management and the perspectives. Einstein (São Paulo). 2015 Mar;13(1):142-8.
  • 6
    Humar A, Lebranchu Y, Vincenti F, Blumberg EA, Punch JD, Limaye AP, et al. The efficacy and safety of 200 days valganciclovir cytomegalovirus prophylaxis in high-risk kidney transplant recipients. Am J Transplant. 2010 May;10(5):1228-37.
  • 7
    Caurio CF, Allende OS, Kist R, Santos KL, Vasconcellos IC, Rozales FP, et al. Validação clínica de um ensaio de PCR in house quantitativo em tempo real para infecção por citomegalovírus usando o 1º Padrão Internacional da OMS em pacientes com transplantados renais. Braz J Nephrol. 2021 May 10; [Epub ahead of print]. DOI: https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0214
    » https://doi.org/10.1590/2175-8239-JBN-2020-0214
  • 8
    David-Neto E, Triboni AHK, Paula FJ, Vilas-Boas LS, Machado CM, Agena F, et al. A double-blinded, prospective study to define antigenemia and quantitative real-time polymerase chain reaction cutoffs to start preemptive therapy in low-risk, seropositive, renal transplanted recipients. Transplantation. 2014 Nov;98(10):1077-81.
  • 9
    Reischig T, Jindra P, Hes O, Bouda M, Kormunda S, Treška V. Effect of cytomegalovirus viremia on subclinical rejection or interstitial fibrosis and tubular atrophy in protocol biopsy at 3 months in renal allograft recipients managed by preemptive therapy or antiviral prophylaxis. Transplantation. 2009 Feb;87(3):436-44.
  • 10
    Requião-Moura LR, Matos ACC, Ozaki KS, Câmara NOS, Pacheco-Silva A. A high level of urinary retinol-binding protein is associated with cytomegalovirus infection in kidney transplantation. Clin Sci (Lond). 2018 Sep;132(18):2059-69.
  • 11
    Bischof N, Wehmeier C, Dickenmann M, Hirt-Minkowski P, Amico P, Steiger J, et al. Revisiting cytomegalovirus serostatus and replication as risk factors for inferior long-term outcomes in the current era of renal transplantation. Nephrol Dial Transplant. 2020 Feb;35(2):346-56.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2021

Histórico

  • Recebido
    31 Ago 2021
  • Aceito
    02 Set 2021
Sociedade Brasileira de Nefrologia Rua Machado Bittencourt, 205 - 5ºandar - conj. 53 - Vila Clementino - CEP:04044-000 - São Paulo SP, Telefones: (11) 5579-1242/5579-6937, Fax (11) 5573-6000 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: bjnephrology@gmail.com