Nefropatia por IgA crescêntica e associação com anticorpo anticitoplasma de neutrófilo: o que sabemos?

A Nefropatia por IgA (NIgA) é a principal causa de glomerulopatia primária no mundo, e sua forma de apresentação é muito variada, incluindo achado assintomático de hematúria e/ou proteinúria, hematúria macroscópica recorrente ou, mais raramente, síndrome nefrítica, nefrótica ou mesmo glomerulopatia rapidamente progressiva (GNRP)¹. A biópsia renal com o achado predominante de IgA na microscopia de imunofluorescência é fundamental para o seu diagnóstico.

Nos casos de apresentação como GNRP, pode-se ter a presença de crescentes, mas geralmente não acometem mais de 50% dos glomérulos e estão associadas com pior prognóstico se não tratadas. O achado de crescentes é mais frequente na Púrpura de Henoch-Schönlein. Cerca de 25% a 30% dos pacientes com NIgA evoluem progressivamente para doença renal crônica até seu curso final e necessidade de terapia renal substitutiva¹. O achado de proteinúria acima de 1,0g/24h, elevação da creatinina sérica, presença de hipertensão arterial, e o escore MEST-C são reconhecidos como fatores prognósticos na NIgA e foram organizados numa ferramenta internacionalmente reconhecida que pode auxiliar os médicos e pacientes a calcularem o prognóstico e a decidirem em relação a tratamento². Mas a presença de crescentes não foi incorporada a esta ferramenta, sendo ainda um fator que extrapola as manifestações mais habituais na NIgA.

O entendimento da patogenia da NIgA vem crescendo ao longo das últimas décadas, já sendo consenso se tratar de uma glomerulopatia por deposição de imunocomplexos, em que a IgA1 deficiente em galactose forma complexos imunes com outras IgAs, IgGs, CD89 solúvel ou antígenos alimentares³. Esses complexos imunes se depositam preferencialmente no mesângio, após ligação com receptores com alta especificidade, ativando as células mesangiais e também o sistema complemento localmente, levando à proliferação mesangial. As crescentes são achados raros, e denotam agressão maior ao endotélio da alça capilar glomerular.

As vasculites pauci imunes de pequenos vasos, com anticorpo anticitoplasma de neutrófilos (ANCA) positivo, geralmente apresentam o acometimento renal concomitante com lesões em vias aéreas superiores e/ou inferiores e mais raramente lesão neurológica e lesão de pele e olhos. Nesses casos, não há presença significativa de imunoglobulinas em glomérulo na microscopia de imunofluorescência e é comum o achado de necrose fibrinoide em alças capilares glomerulares, sendo o papel patogênico do ANCA já reconhecido. Acredita-se que haja uma predisposição genética ligada ao HLA classe II que, somado a fatores ambientais, como infecções por S. aureus, uso de drogas (propiltiouracil, hidralazina, cocaína) e exposição a sílica, pode desencadear a formação de anticorpos anticitoplasma de neutrófilos e iniciar o processo de agressão glomerular e sistêmica⁴.

A associação entre NIgA e vasculite ANCA relacionada ainda é incerta, com prevalência variando entre 1,2 a 5,8%⁵,⁶, e pouco se compreende sobre a importância clínica e prognóstica dessa combinação. A presença do ANCA poderia amplificar a reação inflamatória⁵, sendo descrito um pior prognóstico dos pacientes que apresentam essa associação, se não tratados com imunossupressão⁶,⁷.

O estudo de Dias et al.⁸, apresentou pela primeira vez uma série brasileira de pacientes com NIgA e presença de marcador ANCA positivo, despertando o interesse no entendimento dessa associação entre IgA e ANCA, desde características clínicas ou histológicas de apresentação, fisiopatologia e patogenia até o prognóstico renal, acompanhando a evolução desses pacientes ao longo do seguimento. A maior parte dos pacientes do estudo apresentaram um percentual de crescentes e alteração de função renal desde o diagnóstico, destacando a maior gravidade dos pacientes quando a NIgA está associada à presença do ANCA. Permanece incerto se a associação de nefropatia por IgA e positividade de ANCA seria uma coincidência ou se de fato seria uma nova entidade, e estudos como este de Dias et al. podem ajudar a esclarecer pontos ainda indefinidos.

Outro ponto de reflexão é o esquema de tratamento, e algumas perguntas ainda instigam os nefrologistas: Deve-se tratar os pacientes com qual esquema de imunossupressão? Quando estaria indicado? Estudos anteriores mostram melhor resposta ao tratamento quando há presença de crescentes na NIgA e ANCA comparada às nefropatias por IgA com crescentes ANCA negativas⁹,¹⁰. Na maioria dos estudos, os pacientes tinham algum sinal sistêmico de vasculite, e cabe ressaltar que os pacientes do estudo de Dias et al.⁸ não apresentavam sinais de acometimento de vias aéreas superiores ou inferiores, neurológico ou de trato gastrintestinal.

Além das contribuições no melhor entendimento dessa associação entre NIgA e vasculite ANCA relacionada em nosso meio, o estudo nos desperta para a necessidade de pesquisar sistematicamente a presença de ANCA nos pacientes com NIgA⁹.

References

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  23 Fev 2022
• Data do Fascículo
  Jan-Mar 2022

Histórico

• Recebido
  30 Nov 2021
• Aceito
  02 Dez 2021