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Avaliação etiológico-sociodemográfica e comparação das modalidades de diálise em migrantes sírios pediátricos com doença renal crônica

Resumo

Histórico:

Doença renal crônica (DRC) e doença renal em estágio terminal (DRET) estão entre as causas importantes de mortalidade e morbidade na infância. Diagnóstico precoce e tratamento da doença primária subjacente podem evitar que a maioria dos pacientes com DRC progrida para DRET. Não há estudos examinando doenças renais crônicas e modalidades de diálise em crianças imigrantes sírias. Visamos pesquisar retrospectivamente fatores etiológicos, sociodemográficos e clínicos na DRC entre crianças refugiadas sírias e, ao mesmo tempo, comparar características clínicas de pacientes com DRET em diálise peritoneal e hemodiálise.

Métodos:

Nosso estudo incluiu 79 pacientes pediátricos sírios com idades entre 2-16 anos monitorados na clínica de nefrologia pediátrica, Hospital Estadual de Hatay, com diagnóstico de vários estágios de DRC e com DRET. Características físico-demográficas e informações clínico-laboratoriais foram examinadas retrospectivamente.

Resultados:

A causa mais comum de DRC foram anomalias congênitas dos rins e trato urinário (CAKUT) (37,9%). Outras causas foram urolitíase (15,1%), síndrome nefrótica (10,1%), espinha bífida (8,8%), síndrome hemolítico-urêmica (7,5%), e glomerulonefrite (7,5%). 25 pacientes fizeram hemodiálise devido às más condições de vida. Apenas 2 dos pacientes em diálise peritoneal estavam usando diálise peritoneal automatizada (DPA), com 5 em diálise peritoneal ambulatorial contínua (DPAC). Complicações em longo prazo, como hipertrofia do ventrículo esquerdo e retinopatia, foram significativamente maiores entre pacientes em hemodiálise. Não identificou-se diferença entre grupos em termos de hipertensão e sexo.

Conclusão:

Progressão para DRET devido a razões evitáveis é muito frequente entre pacientes com DRC. Para utilização mais eficaz de diálise peritoneal em pacientes pediátricos, a responsabilidade dos estados deve ser aprimorada.

Descritores:
Insuficiência Renal Crônica; Diálise; Criança; Migrantes; Síria

Abstract

Background:

Chronic kidney disease (CKD) and end-stage renal disease (ESRD) are among the important causes of mortality and morbidity in childhood. Early diagnosis and treatment of the underlying primary disease may prevent most of CKD patients from progressing to ESRD. There is no study examining chronic kidney diseases and dialysis modalities in Syrian immigrant children. We aimed to retrospectively research the etiologic, sociodemographic, and clinical factors in CKD among Syrian refugee children, and at the same time, to compare the clinical characteristics of patients with ESRD on peritoneal dialysis and hemodialysis.

Methods:

Our study included a total of 79 pediatric Syrian patients aged from 2-16 years monitored at Hatay State Hospital pediatric nephrology clinic with diagnosis of various stages of CKD and with ESRD. Physical-demographic features and clinical-laboratory information were retrospectively screened.

Results:

The most common cause of CKD was congenital anomalies of the kidneys and urinary tracts (CAKUT) (37.9%). Other causes were urolitiasis (15.1%), nephrotic syndrome (10.1%), spina bifida (8.8%), hemolytic uremic syndrome (7.5%), and glomerulonephritis (7.5%). Twenty-five patients used hemodialysis due to bad living conditions. Only 2 of the patients with peritoneal dialysis were using automatic peritoneal dialysis (APD), with 5 using continuous ambulatory peritoneal dialysis (CAPD). Long-term complications like left ventricle hypertrophy and retinopathy were significantly higher among hemodialysis patients. There was no difference identified between the groups in terms of hypertension and sex.

Conclusion:

Progression to ESRD due to preventable reasons is very frequent among CKD patients. For more effective use of peritoneal dialysis in pediatric patients, the responsibility of states must be improved.

Keywords:
Renal Insufficiency, Chronic; Dialysis; Child; Transients and Migrants; Syria

Introdução

A doença renal crônica (DRC) está entre os problemas com alta mortalidade na infância nos dias de hoje. De acordo com o Estudo Colaborativo de Transplantes Renais Pediátricos Norte-Americano (NAPRTCS, do inglês North American Pediatric Renal Trials and Collaborative Studies) e estudos europeus, as causas mais comuns de DRC pediátrica são anomalias congênitas do rim e trato urinário (CAKUT) (48-58%) e nefropatia hereditária (10-19%)11 Kaspar CDW, Bholah R, Bunchman TE. A review of pediatric chronic kidney disease. Blood Purif. 2016;41(1-3):211-7.,22 Ardissino G, Dacco V, Testa S, Bonaudo R, Claris-Appiani A, Taioli E, et al. Epidemiology of chronic renal failure in children: data from the italkid project. Pediatrics. 2003 Apr;111(4 Pt 1):e382-7.. Da mesma forma, em países asiáticos, após CAKUT (47-62%) e doenças hereditárias, a uropatia obstrutiva está entre as causas mais comuns (17-30%)33 Shahdadi H, Sheyback M, Rafiemanesh H, Balouchi A, Bouya S, Mahmoudirad G. Causes of chronic kidney disease in Iranian children: a meta-analysis and systematic review. Ann Glob Health. 2019;85(1):34.,44 North American Pediatric Renal Trials and Collaborative Studies (NAPRTCS). 2011 Annual dialysis report. Rockville: NAPRTCS; 2011.. A DRC é definida como anormalidades da estrutura ou função renal, presentes por >3 meses, com implicações para a saúde. A DRC é classificada com base na causa, taxa de filtração glomerular e categoria de albuminúria55 Inker LA, Astor BC, Fox CH, Isakova T, Lash JP, Peralta CA, et al. KDOQI US commentary on the 2012 KDIGO clinical practice guideline for the evaluation and management of CKD. Am J Kidney Dis. 2014 May;63(5):713-35.,66 Uwaezuoke SN, Ayuk AC, Muoneke VU, Mbanefo NR. Chronic kidney disease in children: using novel biomarkers as predictors of disease. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2018 Aug;29(4):775-84.. Como as causas frequentes da doença são tratáveis e evitáveis, o diagnóstico precoce e o tratamento adequado são muito importantes em termos de prognóstico do paciente e redução da carga financeira sobre o estado. Isto é possível com fácil acesso às organizações e instituições de saúde. Na Turquia, o número de pacientes pediátricos que são refugiados sírios está aumentando a cada ano desde o início da guerra civil na Síria em 2011. Devido ao frequente casamento entre a população, observam-se mais doenças renais hereditárias e congênitas77 Akbalik Kara M, Kilic BD, Col N, Ozcelik AA, Buyukcelik M, Balat A. Kidney disease profile of syrian refugee children. Iran J Kidney Dis. 2017 Mar;11(2):109-14.,88 Levey AS, Jong PE, Coresh J, El Nahas M, Astor BC, Matsushita K, et al. The definition, classification, and prognosis of chronic kidney disease: a KDIGO Controversies Conference report. Kidney Int. 2011 Jul;80(1):17-28..

As necessidades básicas, como abrigo, alimentação e assistência médica, e também educação, atividades sociais e oportunidades de emprego são fornecidas pelo governo turco. Há tradutores juramentados oficiais em todos os hospitais afiliados ao estado para problemas de idioma. Assim, os problemas relacionados ao idioma na comunicação médico-paciente são eliminados. Todas as necessidades de saúde, incluindo diagnóstico e tratamento, são encontradas gratuitamente em todos os hospitais estaduais e universitários de nosso país para todos os pacientes imigrantes sírios. Apesar do livre acesso aos serviços de saúde em nosso país, o atendimento tardio nos centros de saúde devido a uma variedade de fatores sócioeconômicos e psicológicos causa atrasos no diagnóstico e tratamento desses pacientes.

Em nosso estudo, objetivamos pesquisar retrospectivamente os fatores etiológicos, sociodemográficos e clínicos na DRC entre crianças refugiadas sírias e, ao mesmo tempo, comparar as características clínicas de pacientes com doença renal em estágio terminal (DRET) em diálise peritoneal e hemodiálise.

Materiais e Métodos

Nosso estudo incluiu um total de 98 pacientes pediátricos sírios com idades entre 2-16 anos monitorados de Setembro de 2019 a Setembro de 2020 na clínica de nefrologia pediátrica do Hospital Estadual de Hatay com diagnóstico de vários estágios de DRC (estágios 1-4) em hemodiálise contínua ou tratamento de diálise peritoneal para DRET. Características físicas como idade, sexo, altura e peso do paciente; características demográficas como consanguinidade, histórico familiar de doenças renais, número de irmãos e nível socioeconômico; e informações clínico-laboratoriais (ureia, creatinina, valores eletrolíticos, bioquímica do sangue, exames de urina, ultrassonografia das vias urinárias, uretrocistografia miccional (VCUG, do inglês voiding cystoureterography), resultados de DMSA, resultados de biópsia renal) foram examinados retrospectivamente. Dezenove pacientes sem acompanhamento ou com dados ausentes nos arquivos foram removidos do estudo. O estudo incluiu 47 pacientes com DRC estágios 1-4, 25 pacientes em hemodiálise e 7 pacientes em diálise peritoneal para DRET (total de 79 casos). A DRC foi definida com base na Kidney Disease Outcomes Qualitative Initiative e na diretriz do Estudo Internacional de Doenças Renais em Crianças. Foram registradas as doenças primárias subjacentes à DRC e os resultados de biópsia, em pacientes que realizaram biópsia renal.

Análise Estatística

A análise estatística foi feita com o programa IBM SPSS 20.0 (IBM Corp., Armonk, NY, EUA). O teste de Kolmogorov-Smirnov foi usado para avaliar o ajuste à distribuição normal. Como os dados não seguiram uma distribuição normal, as variáveis numéricas são apresentadas como mediana (25º-75º percentis). As variáveis categóricas são expressas como frequência (porcentagem). As diferenças entre os grupos foram determinadas com o teste U de Mann Whitney, uma vez que a suposição de distribuição normal não foi atendida. As correlações entre as variáveis categóricas foram avaliadas com a análise do Qui-quadrado. Para testar hipóteses bidirecionais, p<0,05 foi aceito como suficiente para significância estatística.

Resultados

Dos 79 pacientes incluídos no estudo, 45 eram homens (56,9%) e 34 eram mulheres (43,1%). Trinta e dois pacientes apresentaram insuficiência renal em estágio terminal com 25 em hemodiálise e 7 em diálise peritoneal. A idade média no diagnóstico foi de 8,4 anos (mínimo 2, máximo 16 anos). A proporção homem/mulher foi de 48/31 (1,54). Havia histórico de consanguinidade em 51 pacientes (64,5%). Havia 36 pacientes (45,5%) com histórico de doença renal em pelo menos um irmão. O número de pacientes que receberam diagnóstico no período pré-natal foi de apenas 2 (2,5%). A distribuição de doenças causadoras de DRC é apresentada na Tabela 1. Assim, a causa mais comum foi CAKUT (37,9%). A doença mais comum em CAKUT foi a estenose da junção ureteropélvica (JUP) (Tabela 2). A taxa de pacientes do sexo masculino foi maior no grupo CAKUT (M: 21, F: 9), com o número de meninas com urolitíase (F: 8, M: 4) significativamente mais alto (P<0,05). Não houve diferença significativa em termos de sexo nos outros pacientes. Todos os 8 pacientes com diagnóstico de síndrome nefrótica tinham um irmão com o mesmo diagnóstico e histórico de consanguinidade dos pais. Entre os 8 pacientes com síndrome nefrótica, 3 realizaram biópsia renal e esta foi consistente com glomerulosclerose segmentar focal (GESF). Em 5 pacientes, o diagnóstico de DRC foi síndrome nefrótica córtico-resistente (SNCR). Para 12 pacientes com urolitíase, 4 realizaram nefrectomia unilateral devido a cálculo de estruvita. Oito pacientes tinham histórico de cálculos recorrentes e todos esses pacientes não compareceram aos exames médicos regulares até o desenvolvimento de DRC. Todos os 7 pacientes com diagnóstico de espinha bífida eram paraplégicos e não haviam comparecido aos exames médicos após a conclusão de malformação pós-natal até o desenvolvimento da DRC. Cinco pacientes com diagnóstico de síndrome hemolítico-urêmica (SHU) receberam o diagnóstico na Síria e foram monitorados no hospital por um período. Eles foram encaminhados ao nosso hospital devido à anúria prolongada e à falta de um médico nefrologista no hospital sírio e foram diagnosticados com DRC na chegada. Entre esses pacientes, 3 iniciaram hemodiálise de emergência e 1 iniciou diálise peritoneal em nosso hospital. Um paciente com diagnóstico de SHU desenvolveu DRC no 2º ano após a doença aguda. Dois pacientes com diagnóstico de SHU ainda são monitorados para DRC estágio 3. A distribuição de 30 pacientes com insuficiência renal em estágio terminal em diálise contínua de acordo com o diagnóstico é apresentada na Tabela 3. Durante o acompanhamento, 2 pacientes em hemodiálise foram a óbito devido à infecção por COVID-19.

Tabela 1
C ausas de doença renal crônica
Tabela 2
Distribuição de pacientes com diagnóstico de cakut
Tabela 3
Distribuição e modalidades de diálise de acordo com o diagnóstico de pacientes em diálise

Quando examinados em termos da modalidade de diálise escolhida, o número de pacientes que receberam hemodiálise foi significativamente maior (25 em hemodiálise, 7 em diálise peritoneal). Entre os 7 pacientes em diálise peritoneal, 5 iniciaram a diálise peritoneal em nosso hospital e 2 faziam uso da mesma no momento da admissão. A maioria dos pacientes fazia hemodiálise devido às más condições de vida. Apenas 2 dos pacientes em diálise peritoneal tiveram diálise peritoneal automatizada (DPA) aplicada, com 5 em diálise peritoneal ambulatorial contínua (DPAC). A maioria dos 32 pacientes em diálise não tomou medicamentos além do tratamento de diálise desde o momento em que os medicamentos administrados na clínica acabaram até o próximo exame, devido à impossibilidade de acesso regular a medicamentos. Entre os 25 pacientes que continuaram com hemodiálise, 2 eram irmãos com DRET devido a refluxo vesicoureteral (RVU) e 2 irmãos na família tinham vindo a óbito em diálise devido a DRET. A mãe estava grávida de seu 11º filho e apresentava diagnóstico de hidronefrose pré-natal. O 11º irmão ainda é acompanhado por nossa clínica devido ao diagnóstico de válvula de uretra posterior (VUP). Dos 47 pacientes com DRC estágios 1-4, 30 não compareceram aos exames clínicos regularmente devido a razões sócioeconômicas e socioculturais. Trinta e dois pacientes em diálise foram recomendados para transplante renal, mas os pais de 25 não apreciaram a ideia de transplante. Quinze pais se preocuparam com quem cuidaria das outras crianças se eles fossem doadores, enquanto 10 pensaram que seria difícil completar os procedimentos de transplante em um país estrangeiro. Quatro pacientes que aceitaram o transplante renal ainda aguardam por doadores. Embora houvesse 8 pacientes em hemodiálise quando admitidos em nossa clínica, dos outros 24 pacientes que iniciaram a diálise em nosso hospital, apenas 7 consentiram a diálise peritoneal. Os pais de 9 desses 17 pacientes declararam que viviam em campos de refugiados em tendas e não podiam proporcionar a higiene e o ambiente social para a administração de diálise peritoneal e optaram pela hemodiálise, enquanto 8 pais declararam que não queriam um tubo no abdômen do paciente e optaram pela hemodiálise. A comparação de achados clínicos e complicações em pacientes em hemodiálise e diálise peritoneal é apresentada na Tabela 4. Assim, a idade média dos pacientes em diálise peritoneal foi mais baixa. Complicações em longo prazo, como hipertrofia do ventrículo esquerdo e retinopatia, foram significativamente maiores entre os pacientes em hemodiálise. Não houve diferença entre os grupos em termos de hipertensão e sexo. Entre 13 pacientes em hemodiálise com hipertensão, 8 usavam um único, 3 usavam dois, e 2 usavam três anti-hipertensivos. Os 3 pacientes em diálise peritoneal identificados com hipertensão estavam usando um único anti-hipertensivo. Entre os 3 pacientes com hemodiálise e retinopatia, 2 apresentavam retinopatia estágio 2, enquanto 1 apresentava retinopatia estágio 1. Durante o acompanhamento, 3 dos 7 pacientes em diálise peritoneal (42,8%) desenvolveram pelo menos 1 ataque de peritonite, enquanto 18 dos 25 pacientes em hemodiálise (72%) desenvolveram infecção por cateter pelo menos uma vez (P<0,05). Tanto em pacientes de hemodiálise com infecção por cateter quanto em pacientes com peritonite, as bactérias gram positivas foram mais comumente identificadas, sendo o Staphylococcus aureus resistente à meticilina (MRSA, do inglês methicillin-resistant Staphylococcus aureus) a bactéria mais frequentemente isolada. As infecções por cateteres foram as complicações mais frequentes em ambos os grupos.

Tabela 4
Comparação de pacientes com hemodiálise e diálise peritoneal

Discussão

Na Turquia, a incidência de DRC em crianças aumentou com o acréscimo de pacientes pediátricos refugiados sírios desde 201177 Akbalik Kara M, Kilic BD, Col N, Ozcelik AA, Buyukcelik M, Balat A. Kidney disease profile of syrian refugee children. Iran J Kidney Dis. 2017 Mar;11(2):109-14.. Em nosso estudo, as uropatias obstrutivas e as doenças renais congênitas foram as mais comuns99 Kari JA. Chronic renal failure in children in the Western Area of Saudi Arabia Saudi. J Kidney Dis Transplant. 2006 Mar;17(1):19-24.,1010 Saeed MB. The major causes of chronic renal insufficiency in Syrian children: a one-year, single-center experience. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2005 Jan/Mar;16(1):84-8.. Quando a frequência foi examinada, embora semelhante à literatura, observamos um valor muito alto (37,9%). Esta taxa variou de acordo com a região de assentamento e diferenças socioculturais, mas foi semelhante a estudos em regiões onde os pacientes sírios vivem densamente1010 Saeed MB. The major causes of chronic renal insufficiency in Syrian children: a one-year, single-center experience. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2005 Jan/Mar;16(1):84-8.,1111 Al-Ghwery S, Al-Asmari A. Chronic renal failure among children in Riyadh Military Hospital. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2004 Jan/Mar;15(1):75-8. Enquanto a estenose da JUP foi a uropatia obstrutiva mais frequentemente observada, a segunda causa mais comum de DRC foi a urolitíase. Entre 12 pacientes com diagnóstico de urolitíase, 8 apresentavam histórico de uso de alimentos para bebês feitos com leite de vaca e farinha de arroz, além de leite materno até 1 ano de idade. Dois pacientes desenvolveram DRC após a operação devido a cálculos de estruvita. Como pode ser visto, as causas tratáveis e evitáveis com progressão para insuficiência renal em estágio final foram mais frequentes. Entretanto, as condições de vida neste grupo de pacientes e os baixos níveis socioeconômicos causaram sérios contratempos aos médicos assistentes e resultaram em atrasos no diagnóstico. Neste cenário, as doenças deixam o estágio tratável e causam problemas renais estruturais e funcionais permanentes aos pacientes e agravam o progresso para a insuficiência renal em estágio final, levando a necessidade de diálise. Esta situação é extremamente preocupante neste século, quando os direitos das crianças estão em pauta.

Entre os 79 pacientes renais crônicos em nosso estudo, 32 apresentavam insuficiência renal em estágio terminal e estavam em tratamento dialítico contínuo. A causa de DRET foi CAKUT para 15 pacientes (60%) recebendo tratamento de hemodiálise e para 5 pacientes (71,4%) recebendo diálise peritoneal. Entre os 15 pacientes com CAKUT em hemodiálise, 8 receberam o diagnóstico nos primeiros 3 anos de vida; no entanto, como não puderam comparecer aos exames, eles apresentaram-se com sintomas agudos e iniciaram a hemodiálise de emergência. Dos 5 pacientes em diálise peritoneal com CAKUT, a diálise peritoneal planejada foi iniciada com o diagnóstico de IRET durante a admissão em nosso hospital. Entretanto, a maioria desses pacientes poderia ter sido salva da DRC com um diagnóstico precoce e tratamento adequado. O maior fator desse atraso é o baixo nível socioeconômico e as más condições de vida. Quando a escolha da diálise foi examinada para pacientes que continuaram o tratamento, o número de pacientes em hemodiálise foi excessivamente alto (P<0,001). Entre 7 pacientes iniciando a diálise peritoneal, 5 começaram em nosso hospital enquanto apenas 2 pacientes estavam em diálise peritoneal contínua na chegada. Entre os 25 pacientes em hemodiálise, 8 (32%) estavam em hemodiálise na chegada ao hospital. Entre os 17 pacientes que iniciaram hemodiálise em nosso hospital, 3 foram encaminhados ao nosso hospital com diagnóstico de SHU e iniciaram hemodiálise de emergência. Todos os 14 pacientes desenvolveram IRET durante o acompanhamento e estavam aptos para diálise peritoneal. Todos os 14 pacientes foram recomendados para diálise peritoneal, mas iniciaram a hemodiálise porque as famílias não consentiram a outra modalidade. Entre os pais que rejeitaram a diálise peritoneal, 9 viviam em tendas em campos de refugiados e declararam não poder proporcionar a higiene e o ambiente social para a aplicação da diálise peritoneal e assim optaram pela hemodiálise, enquanto 8 pais afirmaram não querer um tubo no abdômen da criança e optaram pela hemodiálise.

Há muitas pesquisas investigando as características epidemiológicas e clínicas de crianças migrantes sírias submetidas a tratamento de hemodiálise devido a DRET. No entanto, o número de estudos comparando desfechos e modalidades de diálise é muito baixo. As causas mais recorrentes podem ser que os pais sírios frequentemente rejeitam a diálise peritoneal devido a razões socioculturais e à impossibilidade de acesso a especialistas em nefrologia pediátrica na região geográfica em que vivem1212 Yilmaz M, Aydin N, Dogan C, Turan F, Yilmaz E, Vardar Y, et al. Comparison of the socio-economic situation and living conditions of Syrian and underprivileged Turkish patients receiving hemodialysis. Turk J Nephrol. 2019;28(4):269-74.. Além disso, estudos ao longo de muitos anos mostraram que, para pacientes pediátricos com DRET, a diálise peritoneal é um método mais eficaz em comparação com a hemodiálise, com menos efeitos colaterais1313 Alhusaini O, Wayyani AL, Dafterdar H, Gamlo M, Alkhayat ZA, Alghamdi AS, et al. Comparison of quality of life in children undergoing peritoneal dialysis versus hemodialysis. Saudi Med J. 2019 Aug;40(8):840-3.,1414 Woodrow G, Fan S, Reid C, Denning J, Pyrah AN. Renal association clinical practice guideline on peritoneal dialysis in adults and children. BMC Nephrol. 2017 Nov;18(1):333.. A diálise peritoneal, inclusive para pacientes que requerem diálise aguda, é um método muito eficaz especialmente para pacientes pediátricos e é a diálise de escolha com efeitos mínimos na qualidade de vida1515 Passadakis PS, Oreopoulos DG. Peritoneal dialysis in patients with acute renal failure. Adv Perit Dial. 2007;23:7-16.,1616 Zaritsky J , Warady AB. Peritoneal dialysis in infants and young children. Semin Nephrol. 2011 Mar;31(2):213-24.. Da mesma forma, a diálise peritoneal é uma opção de tratamento muito confiável para pacientes pediátricos em terapia intensiva1717 Bonilla-Félix M. Peritoneal dialysis in the pediatric intensive care unit setting: techniques, quantitations and outcomes. Blood Purif. 2013;35(1-3):77-80.. O número de pacientes de hemodiálise em nosso estudo foi significativamente maior em comparação com aqueles que receberam diálise peritoneal. Estudos com pacientes sírios têm taxas semelhantes, embora não se deva ignorar que quase todos esses estudos foram realizados por especialistas em nefrologia pediátrica99 Kari JA. Chronic renal failure in children in the Western Area of Saudi Arabia Saudi. J Kidney Dis Transplant. 2006 Mar;17(1):19-24.

10 Saeed MB. The major causes of chronic renal insufficiency in Syrian children: a one-year, single-center experience. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2005 Jan/Mar;16(1):84-8.
-1111 Al-Ghwery S, Al-Asmari A. Chronic renal failure among children in Riyadh Military Hospital. Saudi J Kidney Dis Transpl. 2004 Jan/Mar;15(1):75-8. Deve ser considerado que a população dominante em nosso estudo eram pacientes migrantes com dificuldades de acesso a especialistas em nefrologia pediátrica devido aos efeitos da guerra. O aspecto mais perturbador desta situação é que o grupo de pacientes mais afetado pela guerra são as crianças. Durante o acompanhamento, 3 dos 7 pacientes em diálise peritoneal desenvolveram pelo menos 1 ataque de peritonite (42,8%). Esta taxa é semelhante a outros estudos1818 Alharthi A. Peritonitis in children with automated peritoneal dialysis. Clin Nephrol. 2015 Nov;84(5):289-94..

Quatro pacientes continuaram a diálise peritoneal sem problemas. Não houve nenhum paciente com transplante renal, embora a maioria dos pacientes em hemodiálise tenha sido recomendada para transplante. Apenas 4 dos 25 pacientes em hemodiálise candidataram-se ao transplante; no entanto, os procedimentos não continuaram. Quando se examina a literatura, não há estudo de grupo de pacientes pediátricos especificamente. Conforme concluído em estudos com adultos, os desfechos para migrantes sírios com transplante são similares aos de outros pacientes1919 Sevinc M , Hasbal NB, Ozcelik G, Akinci N, Basturk T, Koc Y, et al. Kidney transplantation outcomes in temporarily protected syrian patients with end-stage renal failure in Turkey. Transplant Proc. 2019 Sep;51(7):2279-82.,2020 Verrina E, Cappelli V, Perfumo F. Selection of modalities, prescription, and technical issues in children on peritoneal dialysis. Pediatr Nephrol. 2009 Aug;24(8):1453-64.. A idade média de pacientes em hemodiálise e diálise peritoneal foi significativamente menor para os pacientes em diálise peritoneal (P<0,05). As durações de diálise foram similares (P>0,05). Enquanto as complicações clínicas de hipertrofia ventricular esquerda (P<0,001) e retinopatia (P<0,05) foram significativamente maiores para pacientes em hemodiálise, as taxas de hipertensão foram semelhantes (P>0,05). Isto mostra que complicações de longo prazo da DRET são observadas com maior frequência na hemodiálise. Embora as complicações estejam relacionadas à duração da doença, o efeito do mau acompanhamento clínico e das condições de vida socioculturais em pacientes pediátricos migrantes sírios não deve ser ignorado. As durações semelhantes de acompanhamento e diálise em pacientes em diálise peritoneal e hemodiálise em nosso grupo de estudo sustentam esta visão. É sabido que a diálise peritoneal é mais eficaz do que a hemodiálise na proteção das funções renais residuais e da quantidade de urina residual2020 Verrina E, Cappelli V, Perfumo F. Selection of modalities, prescription, and technical issues in children on peritoneal dialysis. Pediatr Nephrol. 2009 Aug;24(8):1453-64.. Outra razão para a maior prevalência das complicações mencionadas nos pacientes submetidos à hemodiálise é a rápida diminuição dessas funções residuais. Embora não houvesse diferença significativa entre os dois grupos em termos de hipertensão, as taxas de hipertensão em ambos os grupos foram bastante elevadas. Este resultado nos fez pensar que a adesão ao tratamento foi ruim em ambos os grupos. Em nosso estudo, 24 dos 32 pacientes que foram acompanhados em diálise iniciaram a mesma em nosso hospital. Outra razão para complicações frequentes de longo prazo, como hipertrofia ventricular esquerda e retinopatia, é que elas não foram acompanhadas antes da entrada dos pacientes em nosso hospital e não puderam receber tratamento. No entanto, ainda há necessidade de estudos sobre este tema com maior número de pacientes. Em ambos os grupos, a complicação de diálise mais frequente foi a infecção por cateter. Há taxas semelhantes na literatura, sendo MRSA o vetor mais frequentemente isolado em ambos os grupos (65% em hemodiálise, 35% em diálise peritoneal)2121 Kim JE, Park SJ, Oh JY, Kim JH, Lee JS, Kim PK, et al. Noninfectious complications of peritoneal dialysis in korean children: a 26-year single-center study. Yonsei Med J. 2015 Sep;56(5):1359-64.. Este é um vetor mais resistente em comparação com outros vetores2222 Sahli F, Feidjel R, Laalaoui R. Hemodialysis catheter-related infection: rates, risk factors and pathogens. J Infect Public Health. 2017 Jul/Aug;10(4):403-8.,2323 Paglialonga F, Esposito S, Edefonti A, Principi N. Catheter related infections in children treated with hemodialysis. Pediatr Nephrol. 2004 Dec;19(12):1324-33.. Devido à infecção recorrente por cateter resistente, 16 dos 25 pacientes em hemodiálise (64%) tinham histórico de pelo menos uma troca de cateter. Embora 3 pacientes submetidos à diálise peritoneal apresentassem peritonite, eles continuaram a diálise peritoneal após completarem o tratamento com sucesso.

Embora o baixo número de pacientes em diálise peritoneal seja uma limitação de nosso estudo, acreditamos que nossos resultados contribuirão para a literatura com boa manutenção de registros e um bom número de pacientes migrantes sírios com DRC. A falta de aceitação da diálise peritoneal, um método muito eficaz para a DRET, pelas famílias, é o achado mais importante. Por ser um problema passível de solução, as instituições governamentais deveriam realizar estudos a partir deste aspecto, melhorar as condições de vida dos pacientes refugiados e trazer os pacientes pediátricos, a luz do futuro, de volta à saúde e proporcionar indivíduos saudáveis para a sociedade. Passar tempo suficiente com esses pacientes para garantir que o acompanhamento e as escolhas de tratamento adequadas sejam realizados com precisão e regularmente minimizará as complicações de longo prazo tanto da DRC como da DRET.

Embora as possibilidades de exame e tratamento de pacientes imigrantes em nosso país não sejam diferentes de nossos próprios cidadãos, as diferenças socioeducacionais e as más condições de higiene causam atraso no diagnóstico e no tratamento. A distância de seu país e os traumas psicossociológicos causados por anos de guerra são as maiores razões para isso. Embora não esteja em nosso poder mudar a guerra atual e o que está acontecendo na Síria, deve ser nosso dever principal fornecer serviços iguais de saúde e vida a essas pessoas que se refugiam em nossos países para o direito à vida.

Em conclusão, a progressão para a DRET por razões evitáveis é muito frequente entre pacientes com DRC. As razões para isso incluem muitas causas que podem ser resolvidas, como a frequente miscigenação da população, baixa taxa de diagnóstico pré-natal (2,5%), restrições no acesso a organizações de saúde e baixo nível sociocultural e socioeconômico. Da mesma forma, a hemodiálise é preferida para pacientes com decisão de diálise devido à DRET. Para um uso mais eficaz da diálise peritoneal neste grupo de pacientes, o governo deve melhorar as oportunidades de acesso aos nefrologistas pediátricos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    08 Dez 2020
  • Aceito
    27 Jun 2021
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