Injúria renal aguda associada à infecção pelo vírus da dengue: uma revisão

Resumo

A injúria renal aguda (IRA) é uma das complicações da dengue menos estudadas, mas que acarreta altas taxas de mortalidade e prolongamento do tempo de internação. Devido à gravidade dessa complicação, ao risco de desenvolvimento de doença renal crônica (DRC) e ao número crescente de casos de dengue relatados no mundo, particularmente nas regiões tropicais e subtropicais da África, Sudeste Asiático e América do Sul, incluindo o Brasil, foi proposta esta revisão narrativa que objetivou atualizar a epidemiologia da IRA associada à dengue, elucidar os principais mecanismos fisiopatológicos da IRA causada pela infecção do vírus da dengue, assim como discutir informações úteis sobre a prevenção e o manejo da IRA em pacientes com dengue.

Descritores:
Dengue; Infecções Por Arbovírus; Injúria Renal Aguda; Vírus Da Dengue

Abstract

Acute kidney injury (AKI) is one of the least studied complications of dengue, but it carries high mortality rates and prolonged hospital stay. Due to the severity of this complication, the risk of developing chronic kidney disease (CKD) and the increasing number of dengue cases reported worldwide, particularly in the tropical and subtropical regions of Africa, Southeast Asia and South America, including Brazil, we embarked on this narrative review, aimed to update the epidemiology of AKI associated with dengue, elucidate the main pathophysiological mechanisms of AKI caused by the dengue virus infection, as well as discuss useful information on the prevention and management of AKI in patients with dengue.

Keywords:
Dengue; Arbovirus infections; Acute kidney injury; Dengue virus

Introdução

A dengue é a doença transmitida por vetor mais disseminada e em rápido crescimento¹. Estima-se que 2,5 bilhões de pessoas em 129 países vivam em regiões tropicais e subtropicais endêmicas e em risco de contrair dengue, com 105 milhões de pessoas infectadas a cada ano¹-⁴.

No Brasil, maior país da América Latina, a dengue é uma doença infecciosa endêmica, com importantes taxas de morbimortalidade, trazendo sérias consequências aos serviços de saúde. Em 2018, o Brasil, registrou 265.934 casos de dengue, contra 1.544.987 casos em 2019. Em 2020, foram registrados mais 987.173 casos, com 554 mortes confirmadas⁵-⁷.

A dengue é uma infecção viral transmitida por artrópodes, tendo por vetor a fêmea do mosquito do gênero Aedes, principalmente o Aedes aegypt⁸. Essa infecção é causada por um vírus de RNA da família Flaviviridae, que apresenta diferentes sorotipos: DENV-1, DENV-2, DENV-3 e DENV-4⁹-¹¹. Recentemente, foi postulada a existência de um quinto sorotipo (DENV-5) de isolados na Malásia durante surto em 2007¹²,¹³. Entretanto, a comunidade científica ainda aguarda a documentação de novos isolados desse sorotipo 5 para ser possível confirmar se se trata ou não de um novo sorotipo da dengue ou outro arbovírus ainda não identificado¹⁴.

Essa doença pode variar desde doença subclínica a sintomas gripais e, embora menos comum, alguns pacientes desenvolvem a forma grave da doença, apresentando sangramento grave, comprometimento de órgãos e/ou extravasamento de plasma com redução da volemia. Pode ser classificada em: dengue sem sinal de alerta, dengue com sinal de alerta e dengue grave¹⁵,¹⁶. Uma das complicações da dengue, associada a altas taxas de morbimortalidade, é a injúria renal aguda (IRA)¹⁷.

Os mecanismos fisiopatológicos da injúria renal pelo vírus da dengue ainda não estão totalmente esclarecidos, existindo lacunas sobre o entendimento, e consequentemente na prevenção e o manejo adequado dessa complicação grave em pacientes com dengue. Dessa forma, o objetivo desta revisão narrativa é atualizar a epidemiologia da IRA associada a dengue, bem como revisar os possíveis mecanismos fisiopatológicos dessa lesão e discutir as recomendações de manejo e prevenção da IRA em pacientes com dengue.

Epidemiologia da injúria renal na dengue

A IRA, diminuição abrupta da taxa de filtração glomerular, é uma das complicações graves observadas na dengue. Nas últimas décadas, a incidência de IRA relacionada à infecção pelo vírus da dengue aumentou significativamente¹⁰.

A dengue grave acomete cerca de 6,0 a 6,7% dos pacientes com diagnóstico de dengue¹⁷,¹⁸. Entre os pacientes internados com dengue grave 3,3 a 4,8% desenvolvem IRA, dos quais 14,1% necessitam de diálise¹⁷,¹⁹-²⁴. A necessidade de diálise pode chegar a 70% nos pacientes com dengue internados em unidades de terapia intensiva (UTI)²³. A IRA está associada ao aumento do tempo de hospitalização e aos casos fatais da dengue¹⁷,¹⁹. A Figura 1 mostra a incidência estimada de IRA em pacientes com dengue.

Figura 1
Estimativa de Incidência de IRA em pacientes com dengue. DP: diálise peritoneal; HD: hemodiálise; IRA: Injúria Renal Aguda.

Os fatores de risco independentes para o desenvolvimento de IRA em pacientes com dengue são: idade avançada, sexo masculino, obesidade, febre hemorrágica, rabdomiólise, disfunção de múltiplos órgãos, diabetes mellitus, infeção bacteriana concomitante, atraso na consulta hospitalar e uso de drogas nefrotóxicas¹⁷,²³,²⁵,²⁶.

Thomas et al. (2019)²⁷ estudaram o impacto na função renal de pacientes hospitalizados com dengue. O estudo mostrou que 73% dos pacientes com doença renal crônica (DRC) não dialítica necessitaram de hemodiálise, contra 8% no grupo de transplantados renais e nenhum no grupo controle, formado por paciente com função renal normal. Após 2 semanas, 32% dos pacientes no grupo com DRC ainda estavam dependentes da hemodiálise contra nenhum nos outros dois grupos, mostrando o papel da dengue no comprometimento renal e a alta percentagem de DRC agudizada, sinalizando para a possibilidade de agravamento renal definitivo em um certo número de acometidos.

Fisiopatologia da ira associada à dengue

Os mecanismos fisiopatológicos da injúria renal pelo vírus da dengue ainda não são totalmente claros, porém várias hipóteses podem ser consideradas, incluindo mecanismos de choque resultante de hipotensão, lesão direta provocada pelo vírus, mecanismo indireto via sistema imunológico e rabdomiólise. Ainda há de se considerar a combinação de dois ou mais desses mecanismos. A Figura 2 mostra os fatores de risco associados e possíveis mecanismos envolvidos no desenvolvimento da IRA induzida pela dengue.

Figura 2
Fatores de risco e mecanismos fisiopatológicos envolvidos no desenvolvimento de IRA induzida pela dengue.

A injúria renal na dengue provavelmente é decorrente da flutuação hemodinâmica que pode ocorrer ao longo do curso clínico da doença. Uma série de citocinas estão associadas à severidade da dengue, incluindo TNFα, interleucina-6 (IL-6), interleucina-8 (IL-8), interleucina-10 (IL-10), interleucina-12 (IL-12), interleucina-17 (IL-17), fator de inibição da migração de macrófagos, proteína do grupo 1 de mobilidade alta (HMGB1), proteína quimioatrativa de monócitos 1 (MCP-1) e metaloproteinases de matriz¹⁰,²⁸-³¹. Essa tempestade de citocinas, além da ativação do sistema de complemento e lesão endotelial, resulta em aumento da permeabilidade vascular com consequente hemoconcentração²⁸,³². Esse processo pode resultar em choque, levando à redução da perfusão renal e injúria renal²⁸,³³. O choque ou hipotensão está presente em 16% a 100% dos pacientes que desenvolvem IRA induzida pela infecção pelo vírus da dengue³⁴,³⁵. A lesão endotelial causada diretamente pelo vírus também pode alterar a permeabilidade vascular, agravando a instabilidade hemodinâmica³⁶.

Apesar de desses mecanismos que provocam instabilidade hemodinâmica estarem bem estabelecidos no que se refere à indução de IRA na dengue, a ausência de choque e hipotensão em um subgrupo de pacientes que apresentam IRA na dengue grave aponta para o envolvimento de outros mecanismos de lesão, os quais são abordados a seguir.

Um estudo recente comparou os níveis de citocinas na fase aguda da dengue e da COVID-19, e encontrou níveis elevados de diversas citocinas ao longo do curso dessas doenças, entre elas altos níveis de citocinas imunossupressoras, como IL-10. Níveis de IL-10 elevados durante o início de infecções virais provavelmente podem resultar em resposta imune antiviral inadequada, o que pode levar à severidade da doença³³.

O vírus da dengue parece ter um amplo tropismo celular, replicando-se em hepatócitos, pneumócitos tipo II e fibras cardíacas, bem como em monócitos/ macrófagos residentes e circulantes e células endoteliais³⁶. Um estudo com análise histopatológica pós-morte por dengue demonstrou microabscessos no coração, pulmões, cérebro e rins³⁷.

Somado a isso, a presença de partículas virais no tecido renal após a morte de paciente com dengue revelada em estudo que aplicou técnica de imuno-histoquímica fortalece a hipótese de possível lesão renal direta³⁸. Mais recentemente, surgiram evidências de que o vírus da dengue, ao infectar o tecido renal, pode estar associado ao desenvolvimento de glomerulopatias, como, por exemplo, glomeruloesclerose segmentar e focal³⁹.

Outra hipótese de lesão renal induzida na dengue é o dano glomerular mediado por complexo imunológico. Foram encontrados depósitos glomerulares de IgG, IgM e C3 em pacientes com insuficiência renal induzida pela dengue⁴⁰. Boonpucknavig et al. (1981)⁴¹ encontraram, após injetarem o vírus da dengue em camundongos adultos, lesões glomerulares proliferativas na segunda semana, e complexos imunes foram observados na terceira semana.

Esta questão não está totalmente esclarecida. Por exemplo, Wiwanitkit comenta sobre estudos realizados por ele e outros pesquisadores a respeito das características dos complexos vírus da dengue-imunoglobulinas gerados a partir da infecção pelo vírus da dengue, descrevendo como improvável que estes imunocomplexos desempenhem um papel significativo na patogênese da IRA associada à infecção por dengue. Por isso, mais estudos neste campo são necessários⁴²,⁴³.

Por outro lado, alguns estudos envolvendo a IL-17 podem reforçar o papel da resposta autoimune na dengue grave como causa da IRA. Citocinas são necessárias para desencadear a resposta inflamatória na defesa do hospedeiro. A IL-17 parece ter um papel significativo nas doenças glomerulares imunomediadas⁴⁴. Adicionalmente, tem sido estudado o papel da IL-17 na patogênese da dengue. Jain et al. (2013)³¹ associaram altos níveis de IL-17 com a dengue grave. Recentemente, um estudo em camundongos com IRA induzida por isquemia demonstrou que a neutralização de alguns membros de citocinas da família da IL-17 atenuou lesão tubular, estresse oxidativo renal e a inflamação renal⁴⁵.

A rabdomiólise, caracterizada pelo extravasamento de conteúdo muscular, incluindo eletrólitos, mioglobina e outras proteínas musculares, também tem sido descrita como um mecanismo para o desenvolvimento de IRA. Estima-se que 13-50% dos pacientes com rabdomiolólise por qualquer causa apresentem IRA⁴⁶. Biópsias musculares de pacientes com rabdomiólise revelam anormalidades musculares, como infiltrados inflamatórios e mionecrose. Na dengue, a rabdomiólise é mediada por invasão muscular viral direta e por citocinas miotóxicas, o que pode causar a IRA pela deposição de mioglobina ao longo dos túbulos renais e sua precipitação após interagirem com a proteína de Tamm-Horsfall na presença de urina ácida, levando à obstrução tubular. A mioglobina pode ainda levar a lesão tubular e vasoconstrição intra-renal⁴⁶,⁴⁷.

Foi descrito também em pacientes com dengue grave, IRA por síndrome hemolítica urêmica (SHU). Esse quadro clínico é composto por anemia hemolítica, trombocitopenia e IRA⁴⁸. Análises histopatológicas de pacientes com SHU revelaram a presença de microtrombos glomerulares, confirmando o comprometimento renal nesses indivíduos⁴⁹.

Manejo da ira induzida pela dengue

Os pacientes com dengue que desenvolvem IRA necessitam de mais tempo de internação (um acréscimo de, em média, 3 dias) e há maior mortalidade entre os pacientes com IRA induzida pela dengue grave²⁶. Isso mostra que a IRA tem um importante papel no prognóstico do paciente com dengue. Apesar de os aspectos de maior período de internação e mortalidade apontarem para um pior prognóstico do paciente, o tratamento específico para IRA induzida pela dengue ainda é limitado e não está muito bem estabelecido.

A avaliação do paciente no caso de sinais de alerta da dengue grave junto com a avaliação da volemia são importantes pontos de partida na prevenção de IRA nos pacientes com dengue. A administração de fluidos deve ser otimizada (preferencialmente cristaloides) com taxas de infusão e tonicidades controladas, para evitar distúrbios na osmolaridade, sobrecarga hídrica e piora no extravasamento de fluido intravascular⁵⁰.

A manutenção do balanço eletrolítico deve ser priorizada, devido à alta prevalência de hiponatremia nesses pacientes, sendo importante que a fluidoterapia seja de tonicidade mais elevada, se detectada essa anormalidade eletrolítica. O monitoramento dos níveis séricos de creatinofosfocinase (CK) é importante para detecção precoce de rabdomiólise⁴⁸,⁵⁰. O uso de corticoides nos pacientes com dengue ainda é controverso e não há indicação de seu uso em casos ou na prevenção de IRA nos pacientes com dengue⁴⁸,⁵¹,⁵².

Por fim, a terapia de substituição renal pode ser necessária em alguns pacientes com IRA, especialmente na presença de uremia e hipercatabolismo, acidose metabólica, hipercalemia e hipervolemia refratários. Em doentes instáveis com dengue hemorrágica e IRA em tratamento dialítico, a hemodiálise contínua tem sido recomendada naqueles serviços onde se encontra disponível, havendo sugestão de que a diálise peritoneal esteja associada a piores desfechos³⁵,⁵⁰,⁵³.

É muito importante a pronta avaliação médica criteriosa nos pacientes com dengue grave, com manutenção da volemia, evitando o uso de drogas nefrotóxicas, com monitoramento clínico e laboratorial para identificação precoce da presença de IRA para permitir o melhor manejo da condição e de suas complicações.

Ressaltamos a necessidade de acompanhamento pós-alta dos indivíduos que desenvolveram IRA na dengue. Sabe-se que pacientes com acometimento renal agudo, sem DRC prévia, podem evoluir para DRC. Nos casos de indivíduos com DRC agudizada associada à infecção pelo vírus da dengue, evolução para estágios mais avançados da doença pode ocorrer⁵⁴,⁵⁵.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  23 Fev 2022
• Data do Fascículo
  Apr-Jun 2022

Histórico

• Recebido
  12 Set 2021
• Aceito
  01 Dez 2021