Insuficiência renal de causa desconhecida: um apelo por seu reconhecimento

Desde 2010, a Sociedade Brasileira de Nefrologia vem coletando e publicando dados sobre insuficiência renal crônica (IRC) tratada por diálise no Brasil. A nefrosclerose hipertensiva tem sido relatada pelas unidades de diálise como a doença renal primária mais prevalente¹.

Relatórios do United States Renal Data System também descrevem, por vários anos, a hipertensão como a segunda causa mais frequente de IRC². O Relatório Anual de 2019 do Registro ERA-EDTA, entretanto, atribuiu apenas 10% dos casos de terapia renal substitutiva (TRS) na Europa à hipertensão³, uma redução em relação aos 17% relatados em 2014⁴, com um aumento proporcional de 19% para 26% no diagnóstico de doença renal primária desconhecida³,⁴. (Figura 1)

Figura 1
Diagnóstico renal primário de pacientes em TRS na Europa, 2014 (Registro ERA-EDTA 2014); Diagnóstico renal primário de pacientes em TRS na Europa, 2019 (Registro ERA-EDTA 2019).

Em 2020, realizamos uma revisão aprofundada dos prontuários de 210 pacientes com IRC tratados por diálise ou transplante renal em um hospital universitário no sul do Brasil. Os pacientes haviam sido acompanhados desde os estágios iniciais da doença renal crônica no ambulatório da universidade, tendo sido submetidos a investigação detalhada, incluindo biópsia renal, quando indicado. A investigação genética, entretanto, não estava disponível.

A maioria dos pacientes apresentava doença renal diabética (29%), 24% da amostra com doença renal primária desconhecida (a maioria com rins atróficos na apresentação), 20% com doença glomerular não diabética e 15% dos casos de insuficiência renal eram atribuídas a anormalidades urológicas. Apenas um paciente com histórico clínico de hipertensão refratária e achados histológicos de microangiopatia trombótica glomerular (sem evidência de doenças mediadas por complemento, imunomediadas ou ligadas ao ADAMTS13) e outro paciente com histologia sugestiva de glomeruloesclerose foram classificados como apresentando doença renal hipertensiva.

A comunidade científica nefrológica reconhece de longa data que a nefrosclerose hipertensiva é uma causa menos frequente de IRC do que se considerava anteriormente⁵. Este diagnóstico é geralmente estabelecido com base apenas em critérios clínicos em pacientes com hipertensão, doença renal crônica e albuminúria leve a moderada. No entanto, diversas outras doenças renais primárias podem cursar com essa mesma apresentação, incluindo glomerulopatias inflamatórias potencialmente tratáveis ou distúrbios genéticos. Como exemplo, a glomeruloesclerose associada a variantes do gene APOL1 (agora incluída na categoria de podocitopatias, subtipo de glomeruloesclerose segmentar e focal) foi considerada, antes da descrição dos alelos de risco, como uma apresentação mais agressiva da nefrosclerose hipertensiva, afetando pacientes com ancestralidade africana⁵.

Em conclusão, relatar uma doença renal primária desconhecida como nefrosclerose hipertensiva mascara a realidade de que muitas vezes desconhecemos a causa da insuficiência renal crônica. Ocultar esta lacuna dificulta a obtenção de financiamento público para a investigação completa e o subsequente tratamento de doenças que poderiam ser diagnosticadas por biópsia e exame histológico, ou mesmo por avaliação genética, e retarda o progresso em direção à desejável medicina de precisão. Com esta carta, pretendemos convocar uma ação conjunta para que os centros de diálise admitam as doenças renais primárias desconhecidas ao Censo Brasileiro de Diálise. Reconhecer a incerteza é o primeiro passo na busca do saber.

REFERENCES

• ^1.
  Neves PDMM, Sesso RCC, Thomé FS, Lugon JR, Nascimento MM. Brazilian Dialysis Census: analysis of data from the 2009-2018 decade. J Bras Nefrol. 2020;42(2):191–200. doi: http://dx.doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0234. PubMed PMID: 32459279.
  » https://doi.org/10.1590/2175-8239-jbn-2019-0234
• ^2.
  United States Renal Data System. 2020 USRDS Annual Data Report: epidemiology of kidney disease in the United States. Bethesda (MD): National Institutes of Health, National Institute of Diabetes and Digestive and Kidney Diseases; 2020.
• ^3.
  ERA-EDTA Registry. ERA-EDTA Registry Annual Report 2019. Amsterdam: Department of Medical Informatics; 2021.
• ^4.
  ERA-EDTA Registry. ERA-EDTA Registry Annual Report 2014. Amsterdam: Academic Medical Center, Department of Medical Informatics; 2016.
• ^5.
  Carriazo S, Perez-Gomez MV, Ortiz A. Hypertensive nephropathy: a major roadblock hindering the advance of precision nephrology. Clin Kidney J. 2020;13(4):504–9. doi: http://dx.doi.org/10.1093/ckj/sfaa162. PubMed PMID: PMid:32897275.
  » https://doi.org/10.1093/ckj/sfaa162

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  28 Abr 2023
• Data do Fascículo
  Jul-Sep 2023

Histórico

• Recebido
  27 Set 2022
• Aceito
  02 Mar 2023