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O Estado e o desenvolvimento econômico de Formosa* * Traduzido por Jalmar Nordin Carlson.

The State and economic development of Formosa

RESUMO

Este é um estudo sobre o papel do Estado no desenvolvimento da República da China após a Segunda Guerra Mundial. Visa compreender como o Estado acelerou a taxa de acumulação de capital, o papel das exportações e a própria natureza do Estado sob a ditadura que governou o país por décadas.

PALAVRAS-CHAVE:
História econômica de Taiwan; Formosa; Repúblcia da China; papel do Estado

ABSTRACT

This is a study of the role of the State in the development of the Republic of China after Second World War. It aims to understand how the State accelerated the rate of capital accumulation, the role of exports and the nature of the State itself under the dictatorship that ruled the country for decades.

KEYWORDS:
Economic history of Taiwan; Formosa; Republic of China; role of the State

Há dois aspectos marcantes na história de Formosa após a II Guerra Mundial. Primeiro, trata-se de uma das poucas economias não socialistas além do Japão que saíram de uma pobreza absoluta para entrar no mundo dos desenvolvidos. Por desenvolvida entende-se uma economia à plena capacidade onde a produção cresce não apenas porque crescem os insumos básicos de terra, trabalho e capital, mas também porque a produtividade aumenta.1 1 Ainda que reconhecendo as limitações estatísticas e analíticas da “contabilidade do crescimento”, é interessante que mais da metade do crescimento em Formosa da renda nacional real entre 1955-1970 pode ser atribuída ao crescimento total da produtividade dos fatores (Chem, 1977). Segundo, o Estado em Formosa desempenhou um papel de liderança no processo de acumulação do capital. A força do governo do Kuomintang passa facilmente por qualquer teste genérico de poder estatal (por exemplo, percentagem da produção industrial sob propriedade pública; consumo estatal como percentagem do PNB; a razão de pública para privada na formação do capital interno bruto). Ela prima, porém, quando a força é percebida em termos da capacidade do Estado em controlar parâmetros-chave no desenvolvimento econômico, tais como a extração de um excedente da agricultura e a taxa de lucro da indústria. Para melhor compreender o rápido crescimento econômico de Formosa é conveniente, portanto, investigar seu poderoso governo. Este estudo examina a seguinte questão: será o milagre econômico de Formosa um caso de concepção milagrosa ou antes um caso de paternidade planejada? Formosa tinha muitas coisas a seu favor que faltavam a outros países menos desenvolvidos. Pode uma parte importante do milagre econômico de Formosa ser explicada por estas circunstâncias ou é necessário, além disto, atribuir boa parcela do seu êxito a algo do próprio Estado?

Se não se atribuir qualquer papel independente ao Estado no processo de acumulação do capital, então o desenvolvimento econômico será visto como inexorável, sujeito à presença das condições iniciais necessárias, culturais e outras, para o crescimento do capitalismo, isto é, um livre mercado de terra, trabalho e capital, e espírito empreendedor. A inexorabilidade é comum tanto à teoria neoclássica quanto à marxista. A primeira coloca o mercado como o prestidigitador da acumulação do capital. Em contraposição, a segunda faz da acumulação de capital uma função de forças sociais que competem por um excedente que cresce à medida que as próprias forças sociais ganham maior controle sobre o ambiente físico e que uma classe social ganha maior controle sobre a outra. A teoria social da acumulação do capital também dá sua contribuição, e antes de considerar dadas condições iniciais, investiga como evoluem historicamente, para melhor ou para pior, em diferentes sociedades. Além disto, a visão social é mais liberal nos graus de liberdade que concede ao Estado: a intervenção no mercado ao lado do capital é vista como sendo capaz de acelerar em vez de inevitavelmente frustrar o crescimento econômico; embora por mais que o Estado colabore com o capital, as tendências em direção a um colapso econômico não podem ser impedidas por intervenção social por parte do homem (por isso, afinal de contas, é que se fala de “tendências” ou “leis” no regime capitalista). Uma vez que estamos preocupados com o Estado em Formosa, não precisamos nos preocupar ainda com as tendências de declínio econômico. Estamos, entretanto, interessados na teoria marxista da inexorabilidade da acumulação capitalista e o papel que o Estado desempenha nesse processo. Para tanto, citaremos Engels:

“Agora está claro o papel desempenhado na história pela força, em contraste com o desenvolvimento econômico. Em primeiro lugar, todo poder político baseia-se originalmente numa função econômica, social. .. Em segundo lugar, depois que se tiver tornado independente com relação à sociedade ... a força política poderá operar em duas direções diferentes. Ou opera no sentido e na direção do desenvolvimento econômico regular, em cujo caso não surge conflito algum, e o desenvolvimento econômico é acelerado. Ou então, a força trabalha contra o desenvolvimento econômico; neste caso, geralmente, mas com algumas exceções, a força sucumbe a ele ... Onde - exceção feita aos casos de conquista - a força pública interna de um país contrapõe-se ao seu desenvolvimento econômico, como em certo estágio ocorreu com quase todas as forças políticas do passado, a conquista sempre terminou com a queda do poder econômico. Inexoravelmente e sem exceção a evolução tem se imposto ... “ (grifo meu) (Engels, 1939Engels, Frederick, (1939), Anti-Duhring, Nova Iorque, International Publ.. ).

Há uma grande parcela de determinismo econômico neste trecho, e também falta de clareza sobre a dimensão tempo (décadas, séculos?) em que se poderia esperar que a força sucumbisse à compulsão do desenvolvimento econômico. Mesmo assim, o trecho resume razoavelmente bem o que aconteceu em Formosa a partir da II Guerra Mundial, especialmente tendo em vista que estamos falando a respeito de um Estado que foi, ele próprio, uma força de ocupação.

Quando Formosa foi devolvida à China, com a derrota do Japão em 1945, e ocupada pelo vencido Governo Nacionalista em 1949, o Kuomintang estava obcecado com um objetivo: a reconstrução militar com o fim de retomar o Continente. Em pronunciamentos não publicados de um sociólogo (E. Winckler): “As forças de Chiang Kai-Shek, se tivessem agido de acordo com a própria vontade, não teriam gasto centavo algum no desenvolvimento econômico”. Todavia, segundo um economista cujas opiniões aparecem numa coleção de ensaios de grande importância para o lobby de Formosa, esse país tem bons motivos para exigir que seja classificado como o mais próspero entre os países em desenvolvimento. (grifo meu) (Little, 1979). A primeira afirmação sugere que a força em Formosa tem se contraposto ao desenvolvimento econômico; a segunda, que o desenvolvimento econômico triunfou.

Na primeira parte deste estudo, discutiremos brevemente a natureza do Estado de Formosa, no período inicial do pós-guerra, e como seu objetivo militarista (não necessariamente antagônico ao desenvolvimento econômico) influenciou o curso do crescimento econômico. Afirmamos que a busca dos objetivos militares do Estado não foi o que tornou possível o milagre de Formosa. Isto é, não há, no caso, nenhuma associação clara entre militarismo e industrialização. No final do estudo, esperamos mostrar que o próprio militarismo declinou, na medida em que crescia o desenvolvimento econômico e mudavam as condições internacionais, sendo que esta última mudança, condicionou o curso da acumulação capitalista em Formosa do começo ao fim (as forças externas que açoitaram Formosa vão desde os Ming, portugueses, espanhóis e holandeses até os japoneses, americanos e comunistas chineses”. Na segunda parte deste estudo observaremos a influência de um estado mais tecnocrático e menos militarista sobre o crescimento econômico. Defendemos o ponto de vista de que não é à excelência da tecnocracia ou do planejamento que se deve atribuir o crédito pelo milagre de Formosa. Ao contrário, o Estado acelerou a acumulação capitalista: a) estabelecendo parâmetros macroeconômicos básicos que resultaram em altos lucros para o capital privado e b) investindo em setores-chave que proporcionaram ao capital estatal uma alavanca importante para os empreendimentos econômicos. Esse Estado pôde realizar isto em virtude de seu poder absoluto; quase não houve desafio algum por parte da massa popular, nem contestação ao poder do Estado.

Antes de continuarmos, entretanto, um ponto merece ser enfatizado. Embora o Estado tenha inventado uma receita bem-sucedida para a empresa privada, boas receitas não são garantia de boas tortas. No que se segue, não será discutida a reação dos empresários formosinos às oportunidades lucrativas, por exemplo, a maneira pela qual adquiriram e adaptaram a tecnologia estrangeira, serviram-se das redes chinesas ultramarinas de comércio, modificaram os costumes e a cultura local no avanço da industrialização etc. Mesmo que o comércio livre (ou mais livre) seja aceito como algo crucial ao sucesso de Formosa, a adoção de comércio livre em qualquer outro lugar pode falhar, embora tenha tido êxito em Formosa, porque, no mínimo os modelos de Formosa (e os japoneses e os sul-coreanos) talvez tenham uma especificidade cultural.

A NATUREZA DO ESTADO

É difícil conceituar o Estado de Formosa, ou mesmo qualquer Estado, abstraindo-o de um conjunto de problemas concretos; se o fizermos, ficaremos em um país fantástico de estruturas formais. Além do mais, empiricamente sabe-se pouco a respeito do Estado em Formosa:

“A natureza básica do sistema político permanece indefinida. A ilha tem sido um cliente militar e político dos Estados Unidos, mas conhecemos pouco a respeito dos mecanismos internacionais e inter-burocráticos das relações (veja Montgomery, 1962, 1964). A ilha tem sido uma ditadura governada por Chiang Kai-Shek e seu filho Chiam Ching-Kuo; mas não dispomos de biografias políticas de nenhum dos dois em seu período formosino (veja Durdin, 1975). A ilha tem sido um Estado policial dominado por interesses militares; mas faltam-nos descrições das instituições e histórias políticas de suas agências de segurança interna e externa (para um esboço antigo, veja Riggs, 1952). A ilha tem sido bem-sucedida na condução de seu desenvolvimento econômico; mas não temos um relato político sobre pessoas, agências e interesses envolvidos. A ilha tem sido governada pelo Kuomintang; mas, a respeito da administração e política do partido sabemos apenas pouco mais do que nos contam suas próprias brochuras maquiadas (veja Tai, 1970; Shieh, 1970; Jacobs, 1971). Finalmente, precisaríamos saber a importância relativa de elementos tais como ambiente, personalidade, segurança, economia e ideologia, e como eles se encaixam”. (Winckler, 1981Winckler, Edwin A. “National, Regional and Local Politics”, in. Emily Ahern e Hill Gates (eds.) The Anthropology of Chinese Society on Taiwan, Stanford, SUP. ).

No momento, estamos interessados em explorar o problema do relacionamento entre a convergência e a divergência entre militarismo e desenvolvimento econômico. Isto é, interessa-nos a dimensão militar e tecnocrática do Estado de Formosa. No que diz respeito à dimensão tecnocrática, há um ponto de vista que o retrata como competente e acima de qualquer suspeita. Uma outra visão, enraizada num período histórico mais primitivo, apresenta uma imagem bem menos satisfatória. Uma citação de Simon Kuznets (1979Kuznets, Simon, (1979), “Growth and Structural Shifts”, in Galenson, 1979. ) fornece um bom resumo sobre o primeiro ponto de vista:

“ ... a maioria do grupo governamental era recém-chegada e não tinha nenhum interesse substancial enraizado na ilha, nenhuma afiliação clara com qualquer dos vários grupos de interesse de Formosa ... Eles podiam, portanto, agir como árbitros independentes esforçando-se por alcançar um acordo a longo prazo e demandar sacrifícios de alguns grupos para o benefício de outros, para o bem de todos a longo prazo. Se admitirmos que houve um acordo real entre os grupos que tomavam decisões e os grupos maiores para quem os primeiros trabalhavam, tanto os da ilha e os do continente; que a comunhão histórica e cultural entre todos os grupos era uma base adequada para um consenso; e que o grupo que tomava decisões tinha experiência e capital humano suficientes para gerar decisões necessárias, pronta e eficientemente; podemos afirmar que essa combinação entre os da ilha e os do continente foi favorável a um pais pobre e em desenvolvimento como Formosa ... “. (grifo nosso)

Joe Stilwell, general norte-americano do cenário do Pacífico, teve uma impressão mais amarga da “experiência e capital humano” do KMT, pois teve a infelicidade de lidar com Chiang Kai-Shek durante a guerra e os anos turbulentos que a precederam:

“Mantendo os rivais fora de equilíbrio através de técnicas de ‘medo e favor’, na frase de Stilwell, (Chiang Kai-Shek) mostrava-se forte e indispensável, mas não sabia como governar. Embora tivesse muita experiência, sua mente era estreita e seu nível de instrução limitado. Sua mais séria dificuldade era a falta de empregados governamentais competentes. Nunca admitiu que uma pessoa realmente capaz atingisse um posto importante, com receio de que se tornasse forte demais. Como o critério de serviço que adotava era o de lealdade em vez de competência, estava rodeado por mediocridades. Seu cunhado ... que, como vice-presidente do Yuan Executivo, liderava o governo civil e habitualmente servia como Ministro das Finanças, foi descrito pelo representante do Banco da Inglaterra na China como tendo a mentalidade de uma criança de 12 anos. Se eu gravasse as conversas que tinha comigo sobre negócios bancários, e depois tocasse a fita, ninguém iria levar a sério novamente o governo de Chiang” ... (Tuchman, 1972).

Entretanto, a história não se repete necessariamente; também se diz que cachorros velhos aprendem novos truques:

“ ... a autoridade de Chiang como um líder derivava não apenas de sua habilidade em manobras políticas, mas também de sua seleção de oficiais capacitados para posições-chave. Ele era bem mais eficiente a este respeito em Formosa do que tinha sido no Continente, onde uma patente fraqueza do governo nacionalista era sua tendência a valorizar mais a lealdade do que a competência. Em Formosa, a lealdade também era importante ... Seus oficiais militares e civis em Formosa, portanto, tinham que ser leais, mas muitos também eram capazes. Ch’en Ch’eng, que por muitos anos serviu como vice-presidente e primeiro-ministro, foi uma figura chave. Embora fosse um militar, sem uma educação moderna, desempenhou papel importante em levar a cabo a reforma agrária e era forte apoio para o brilhante grupo de altos funcionários da economia, tais como K.Y. Yin, C.K. Yen e K. T. Li, os quais deram forma ao programa de desenvolvimento econômico de Formosa” (Clough, 1978Clough, Ralph N., (1978), Island China, Cambridge, Mass., HUP. ).

Significativamente, pelo menos um dos homens que formularam o programa de desenvolvimento econômico de Formosa, K.T. Li, embora brilhante e charmoso, não era um economista - o que pode, de alguma forma, explicar porque o desenvolvimento econômico em Formosa foi tão bem sucedido.2 2 A formação educacional de Li era em ciências (Li, 1980). Além do mais, a Missão de Ajuda norte-americana a Formosa precisava de um grupo de tecnocratas competentes com quem trabalhar; a Missão usou sua influência para proteger a tecnocracia e ajudá-la a competir nas lutas políticas internas (Jacoby, 1966Jacoby, Neil H., (1966), US Aid to Taiwan, Nova Iorque, Praeger. ).

Assim podemos falar da existência, desde muito cedo, de uma tecnocracia econômica em Formosa, e não nos iludirmos, pois não é necessário equiparar essa tecnocracia com o bando de trapaceiros que era a tecnocracia na China Continental no período pré-guerra.

Contudo, a tecnocracia desenvolvimentista em Formosa enfrentou rivais poderosos na forma do aparelho militar. A maioria das camarilhas nacionalistas do período anterior à guerra havia se desintegrado com a vitória comunista, exceto uma - os cadetes militares de Whampoa. Estudos sobre o Estado de Formosa do começo e fim de 1960 discutem a rivalidade centrada em torno do então administrador de segurança, Chiang Ching-Kuo (filho de Chiang Kai-Shek).3 3 Veja, por exemplo, John Israel (1964) e Jacobs (1971). Entretanto, com a finalidade de entender a orientação política do Estado de Formosa no período inicial do pós-guerra, é suficiente observar que há um consenso na bibliografia sobre a não contestada supremacia política de Chiang Kai-Shek e o fato de que ele, “mais do que qualquer outra pessoa ... , foi responsável por afirmar e perpetuar o conceito da retomada do Continente ... Ele insistia em controles autoritários mais rígidos e em uma maior aplicação de recursos para propósitos militares e de segurança” (Clough, 1978Clough, Ralph N., (1978), Island China, Cambridge, Mass., HUP. ).

Dado o progresso econômico de Formosa, mesmo em 1950, será que isto indicaria uma correlação positiva entre militarismo e desenvolvimento econômico, como querem os teóricos da modernização, e até mesmo aqueles que não simpatizam com a teoria da modernização?4 4 Para uma visão contrária à modernização, que não obstante postula uma forte associação entre militarismo e industrialização, veja Kaldor (1976) e sua discussão com Amsden (1977). Será que os sucessos econômicos, não apenas de Formosa, mas também do Japão de Meiji e da Coréia do Sul de pós-II Guerra Mundial, poderiam ser atribuídos aos impulsos militaristas de seus Estados?

Para responder a essas perguntas, primeiramente esboçamos as políticas econômicas que um Estado militarista puro hipoteticamente adotaria. Observamos, de passagem, as realidades da mudança econômica em Formosa.

Afirmaríamos que o homo militaris, se tivesse o poder de comandar, implementaria um programa econômico que pareceria algo como o que se segue:

  1. uma política de estabilização econômica;

  2. projetos de infraestrutura de valor civil duvidoso;

  3. autarquia - isto é, autossuficiência tanto em alimentos como também em bens industriais;

  4. uma orientação da manufatura visando indústrias pesadas e químicas;

  5. controle dos recursos econômicos tanto em relação aos estrangeiros, como, no caso de Formosa, em relação aos formosinos.

Antes de discutirmos o programa econômico que realmente foi realizado em Formosa, após a guerra, apresentamos primeiramente uma forma esquemática, o que os chineses do Continente herdaram dos colonialistas japoneses, e em seguida ressaltamos o grau de poder estatal que era particular aos continentais. O legado japonês pode ser resumido do seguinte modo:

  1. Apesar de gasta pela guerra, uma infraestrutura relativamente bem desenvolvida; um sistema bancário altamente desenvolvido; e uma base industrial embrionária. Ainda que pequeno, o setor industrial de Formosa no seu conjunto tinha uma parte bem maior de bens intermediários do que era típico, na época, em outros países asiáticos, exceto o próprio Japão (Ranis, 1979Ranis, Gustav, (1979), “Industrial Development”, in Galenson, 1979. ; Ho, 1978Ho, Samuel P. S., (1978), Economic Development of Taiwan, 1860-1970, New Haven, Yale. ).

  2. Um sistema de monopólios estatais que proporcionava uma estrutura para empresas estatais adicionais. Em 1952, aproximadamente 56% da produção industrial estava sob o domínio público (CEPO, 1981CEPO (Council for Economic Planning and Development), vários anos, Taiwan Statistical Data Book. ).

  3. Uma estrutura agrária que, em razão da reforma agrária, afastou-a mais de uma agricultura feudal, aproximando-a da agricultura capitalista. De certo modo, a reforma agrária posteriormente realizada pelo KMT pode ser vista como uma continuação do processo, iniciado pelos japoneses, no sentido de liberar a zona rural do câncer das formações agrárias pré-capitalistas. Além disso, os japoneses familiarizaram os camponeses de Formosa com as tecnologias da agricultura científica.

  4. Uma população altamente instruída em relação aos padrões asiáticos.

  5. Uma população que, por muito tempo, esteve submetida à propaganda anticomunista e anti­continentais. Peng Ming-Min (1972), um professor de direito e líder do movimento pela independência de Formosa, que fugiu de Formosa após sua prisão em 1964, escreve sobre o interlúdio japonês em sua autobiografia da seguinte forma:

“Dominados pelos japoneses (os formosinos), desfrutaram os benefícios de um regime jurídico. A polícia era rigorosa, frequentemente severa, e a administração colonial japonesa tratava os formosinos como cidadãos de segunda classe. Entretanto, sob a reorganização e direção japonesa, a economia de nossa ilha alcançou ganhos espetaculares, e nosso padrão de vida aumentou constantemente até que, entre os países asiáticos, estávamos em segundo lugar, perdendo apenas para o Japão, em tecnologia agrícola e industrial, em comunicações, em saúde pública e em recursos para o bem-estar geral da população. Nossos avós testemunharam essa transformação de uma ilha anteriormente mal-governada, retrógrada e desorganizada, que era apenas nominalmente dependente dos chineses. Nossos antepassados não gostavam dos japoneses, mas apreciavam os benefícios econômicos e sociais de 50 anos de paz que desfrutaram, enquanto os chineses do Continente sofriam 50 anos de revolução, domínio militar e guerra civil”.

Em resumo, os japoneses legaram às forças de Chiang Kai-Shek uma estrutura administrativa e um capital humano e material que eram relativamente avançados pelos padrões de países menos desenvolvidos. A respeito do modo como o KMT lidou com o sentimento anticontinente dos formosinos, o qual de modo crescente passou a dirigir-se contra o próprio KMT, não há dúvida de que foi inteiramente reprimido. Apesar de numerosas, as diferentes opiniões encontradas na bibliografia sobre o funcionamento interno do Estado Nacionalista, há um consenso sobre o poder absoluto que oprimia os formosinos. Os próprios formosinos estavam enfraquecidos pois encontravam-se divididos - em termos de classe, mas também entre as elites que permaneceram na ilha durante a guerra e aquelas que fugiram para a China para lutarem contra os japoneses. Os formosinos pró-comunistas nunca retomaram á ilha. Os inimigos mais eloquentes dos continentais tinham sido massacrados em 1947, quando Chiang Kai-Shek estava ainda no processo de perder o poder para os comunistas e Formosa estava sob o jugo dos políticos corruptos do KMT (Kerr, 1965Kerr, G. H., (1965), Formosa Betrayed, Boston, Houghton Mifflin. ; Mendel, 1970Mendel, D. (1970), The Politics of Formosan Nationalism, Berkeley, UCP. ).

Assim, tanto em termos de riqueza herdada como de poder acumulado, o Governo Nacionalista tem mais a seu favor do que os governos de outros países pobres quando são revelados seus dramas de desenvolvimento econômico. Naturalmente, isto acaba por significar que o Estado em Formosa, japonês ou continental, desempenhou um papel crítico na história econômica de Formosa. Os acontecimentos econômicos em Formosa não foram inteiramente inexoráveis, nem sob o colonialismo japonês, nem sob a ocupação dos continentais.

MUDANÇAS ECONÔMICAS INICIAIS APÓS A GUERRA

Os fatos e números do desenvolvimento econômico de Formosa têm sido extensamente publicados (veja, por exemplo, Hsing, 1971Hsing, Mo-Huan, (1971), Taiwan and the Philippines: Industrialization and Trade Relations, Londres, Oxford. ; Lin, 1973Lin, Cheng-Yuan, (1973), Industrialization in Taiwan, 1946-72, Nova Iorque Praeger. ; Ho, 1978Ho, Samuel P. S., (1978), Economic Development of Taiwan, 1860-1970, New Haven, Yale. ; Amsden, 1979Amsden, Alice H. (1979), “Taiwan’s Economic History: A Case of Etatisme and a Challenge to Dependency theory”, Modern China, julho. ; Galenson, 1979Galenson, Walter (ed.), (1979), Economic Growth and Structural Change in Taiwam: The Post-war Experience of the ROC, lthaca e Londres, CUP. ). Nossa intenção, portanto, não é narrá-los em detalhes, mas apenas examinar seus pontos mais importantes.

A reforma agrária executada pelas forças de Chiang Kai-Shek, logo após sua chegada em Formosa, não apenas permitiu que os militares atingissem seus objetivos de autossuficiência com relação aos gêneros alimentícios. Ela também proporcionou uma base extraordinariamente salutar para todas as mudanças econômicas subsequentes na ilha. Ao longo da década de 1950, a agricultura tanto poupou como também obteve a moeda estrangeira que se tornou tão preciosa em razão da carga dos pesados gastos militares. A agricultura proporcionou à indústria um excedente na forma de reservas e bens de baixo valor e serviu como mercado para a produção industrial. Assim que a produtividade aumentava, a agricultura também proporcionava uma “acumulação primitiva” na forma de trabalho de operários de fábricas que as exploravam e também de trabalhos de montagem que logo surgiram. A estabilidade de preços devido a um crescente suprimento de alimentos também foi bem maior em Formosa do que em outros países menos desenvolvidos, onde as reformas agrárias ou não têm acontecido totalmente ou não têm ido tão longe como em Formosa, como é o caso da Coréia do Sul. É preciso lembrar que a reforma agrária foi tão abrangente em Formosa porque a autoridade dos continentais não dependia dos proprietários rurais, como acontecia na China antes da Guerra.

A estabilização econômica, que também aparece no programa militar, foi uma outra estratégia política fundamental implementada com sucesso no período inicial após a guerra. Em 1949, calcula-se que a inflação descontrolada em Formosa tenha sido de 3.400% (Ranis, 1979Ranis, Gustav, (1979), “Industrial Development”, in Galenson, 1979. ). Isto foi um resultado da destruição do período de guerra, da pilhagem de Formosa pelo KMT antes da vitória comunista em 1949, do influxo de continentais e do pesado encargo militar imposto sobre Formosa depois disso. Em 1953, a inflação foi reduzida em torno de 9%. Isto foi atingido através de altas taxas de juros; da imposição de controle sobre o câmbio, as importações e a relação preço/custo e, mais importante de tudo, através da chegada de ajuda dos Estados Unidos (Lundberg, 1979Lundberg, Erik, (1979), “Fiscal and Monetary Policies”, in Galenson, 1979. ).

A política de substituição de importações aplicada em Formosa na década de 1950 pode ser interpretada como uma outra vitória militar, pois, aproximou muito Formosa de uma autarquia. O esquema de política econômica empregada para alcançar isto era semelhante a de outros países menos desenvolvidos: uma crescente supervalorização da taxa de câmbio, taxas de câmbio múltiplas, controles sobre o câmbio, licenciamento de importações, tarifas protecionistas e restrições quantitativas, além de algum financiamento de déficits (Lin, 1973Lin, Cheng-Yuan, (1973), Industrialization in Taiwan, 1946-72, Nova Iorque Praeger. ).

E por fim, na década de 1950, houve uma mudança em direção à expansão da produção de bens intermediários e ao início da produção de bens de capital pesados. O veículo para isto foi a empresa estatal. O controle governamental do sistema bancário, que também foi realizável pelos continentais devido ao seu afastamento dos antigos banqueiros de Formosa, significava que as empresas públicas recebiam empréstimos preferenciais a taxas de juros subsidiadas (além de outros subsídios). Assim, desde o início, os “altos comandos” da indústria de Formosa estavam sob o controle estatal. Parece também que, se dependesse de sua vontade, o Estado teria controlado não apenas os apogeus, mas também as recessões da economia formosina. De acordo com a maioria das informações, isso não aconteceu devido às pressões do AID norte-americano que permitiram aos empresários formosinos participarem da acumulação de capital. Consequentemente, enquanto o ator principal da economia de Formosa é a empresa pública, a maioria esmagadora do elenco é a empresa privada. Como resultado, o setor fabril de Formosa nas décadas de 50 e 60 foi de trabalho intensivo. As taxas de acréscimo de produção de capital eram baixas, de acordo com os padrões internacionais, e aumentaram apenas gradualmente (Kuznets, 1979Kuznets, Simon, (1979), “Growth and Structural Shifts”, in Galenson, 1979. ). Como consequência, o problema de desemprego diminuiu em vez de aumentar.

Até meados de 1960, quase não houve investimento estrangeiro em Formosa; em seguida concentrou-se em algumas indústrias orientadas para a exportação. Isto poderia ser interpretado como um resultado da política do Estado baseado nos estímulos dos militares e na filosofia de Sum Yat-Sen, a qual era muito nacionalista (Linebarger, 1937Linebarger, P. M. A. (1937), The Political Doctrines of Sun Yat-Sen, Baltimore, Johns Hopkins. ). Entretanto, esse fato deveria ser interpretado como uma relutância por parte do capital estrangeiro em investir em um mercado pequeno, politicamente instável. Contudo quando a economia de Formosa se tornou mais lucrativa e menos arriscada, o governo já tinha assegurado para si o alto comando, e a participação do capital estrangeiro sempre se dava em parceria com o Estado.

Desta forma, se compararmos a lista hipotética de políticas econômicas que um governo militar implementaria com as políticas econômicas que realmente foram implantadas em Formosa em fins de 1940 e na década de 1950, as duas convergeriam em muitos aspectos. Com certeza, as indústrias pesadas e as químicas não eram os principais setores, como o foram em outros Estados militaristas como por exemplo, o Japão na era pós-Meiji, e havia mais empresas privadas em Formosa do que o KMT teria preferido. Mas no conjunto, o desenvolvimento econômico inicial em Formosa poderia ser interpretado como aquele que traz em si a marca militar. Assim, poderia se dizer que o desenvolvimento militar e econômico andam lado a lado, e que o Estado criou uma economia a partir de sua própria imagem militarista, e não o contrário, que é a maneira comum de se conceituar o Estado.

Não obstante, esta interpretação da história econômica de Formosa no período inicial após a guerra é enganadora. É reducionismo analisar o pacote econômico de fins de 1940 e da década de 1950 como um resultado dos projetos militares. Ele foi em grande parte o resultado desordenado de exigências econômicas e políticas caóticas. Não havia um plano coerente e abrangente. Além do mais, o mesmo pacote econômico (exceto a reforma da agricultura, que certamente não pode ser atribuída apenas ao militarismo, a extensão da empresa estatal e do controle governamental sobre o sistema bancário) foi implementado em outros países menos desenvolvidos com um peso militar menor sobre o equilíbrio de poder. O crescimento foi mais rápido em Formosa do que nesses outros países não porque ela estivesse sob o domínio militar, mas sim apesar dele. O crescimento foi mais favorecido em Formosa porque as condições iniciais também eram mais favoráveis, e porque o Estado pode reformar a agricultura, não, contudo, por meio do expansionismo militar, mas baseado no poder originado a partir da ocupação de um território estranho. Os dois tipos de força são bem distintos. O crescimento teria sido ainda mais rápido se uma percentagem tão grande de recursos não tivesse sido destinada à “defesa”. Jacoby (1966Jacoby, Neil H., (1966), US Aid to Taiwan, Nova Iorque, Praeger. ) fornece-nos uma ideia rudimentar da ordem de magnitude deste fato. Sem a ajuda norte-americana, a busca de qualquer objetivo militarista teria sido inteiramente desastrosa.

Por fim, a relação entre militarismo e desenvolvimento não pode ser avaliada baseando-se no crescimento que Formosa experimentou na década de 1950. Tal crescimento, em grande parte, representou a consolidação de conquistas passadas e o fortalecimento dos fundamentos de um futuro progresso. A causa imediata que fez disparar o milagre de Formosa ainda estava por vir. Essa causa foi o direcionamento para o mercado internacional como saída para o excedente que seria acumulado internamente sob a proteção do Estado. No tópico a seguir se discutirá como e por que os militares reagiram de tal forma a uma reviravolta econômica que tornou a economia de Formosa altamente vulnerável à demanda e ao abastecimento estrangeiros.

CRESCIMENTO ORIENTADO PARA A EXPORTAÇÃO

Sabe-se que a orientação da economia de Formosa mudou de uma industrialização de substituição de importações para um Crescimento Orientado para a Exportação (ELG) em fins de 1950 e início de 1960. Essa nova orientação para um mercado livre ou mais livre é tipicamente enfatizado por economistas neoliberais como sendo a causa do milagre de Formosa. Contudo, o mercado livre ou mais livre não deve ser compreendido no sentido clássico do termo. É verdade que com a mudança para o Crescimento Orientado para a Exportação (ELG), os exportadores formosinos puderam obter seus insumos de importação por preços mais próximos dos existentes no mercado internacional. A economia de Formosa, entretanto, nunca deixou de ser protegida e a industrialização por substituição de importações persistiu. O ponto principal para os propósitos de nosso argumento é que um mercado mais livre em Formosa não deve ser equiparado com o laissez-faire: o Estado em Formosa continuou a usar seus poderes para realizar a transformação das forças produtivas. O fato de o papel dos militares no controle do poder estatal sobre a economia ter diminuído cada vez mais é melhor compreendido ao se perguntar por que os militares permitiram um afastamento daquilo que parecia ser uma forte preferência de sua parte pela autarquia.

Poderia encerrar-se a questão afirmando-se que os militares não tiveram escolha. Aproximadamente ao final da década de 1950, a substituição de importações no setor primário (de bens de consumo não duráveis) estava esgotando-se no pequeno mercado interno de Formosa. Isso foi evidenciado pelo nivelamento inferior da percentagem do abastecimento total de bens de consumo não duráveis que ainda eram importados, por um declínio na taxa de crescimento da produção industrial, por pressões para a formação de cartéis, pela queda de preços (especialmente em têxteis) e por falências (Ranis, 1979Ranis, Gustav, (1979), “Industrial Development”, in Galenson, 1979. ). Num estágio mais avançado, a substituição de importações no setor secundário (de bens intermediários e de capital), embora não impossível, foi problemática, em razão do baixo nível doméstico da demanda agregada baseada nas existentes indústrias de substituição de importações no setor primário. Teria sido, portanto, irracional se os militares ainda valorizassem a continuação da autarquia como estratégia econômica. A história, no entanto, está repleta de irracionalidades.

Seria possível, entretanto, criar uma virtude da necessidade, e afirmar que os militares positivamente preferiram o Crescimento Orientado para a Exportação (ELG) baseado em investimento estrangeiro, pois isso tornaria mais difícil, para os governos locais dos investidores estrangeiros em questão, entregar Formosa para os lobos chineses (Simon faz algum comentário nesse sentido). Os investidores estrangeiros, entretanto, não estavam presentes quando o governo de Chiang Kai-Shek adotou o pacote de reformas econômicas que tornou a exportação possível.

Parece bastante razoável afirmar que os militares aceitaram uma política de Crescimento Orientado para a Exportação (ELG) não por falta de outra escolha, e nem porque entendessem que tal política fosse politicamente superior. Pelo contrário, essa política não obstruiu um afastamento da ideia de autarquia, pois ela gradualmente tornou-se fiel a um desenvolvimento econômico e não a um expansionismo estrangeiro como seu principio condutor. Essa acomodação da força às pressões da acumulação capitalista foi influenciada por um conjunto de condições tanto internacionais quanto internas que se alteravam.

No plano internacional, os americanos deixaram cada vez mais claro a Chiang Kai-Shek que não apoiariam uma invasão da China:

“Procurando opor-se às críticas da política norte-americana em casa e no estrangeiro, Dulles expressou, numa entrevista à imprensa, a opinião de que a República da China (Formosa) fora um tanto quanto tola em manter tantas forças nas ilhas adjacentes (Quemoy e Matsu), acrescentando que os Estados Unidos favoreceriam uma redução daquelas forças após um cessar-fogo. Ele também enfatizou que os Estados Unidos não tinham compromisso algum em ajudar a República da China a retornar ao Continente. Numa reação indignada, Chiang Kai-Shek rejeitou qualquer redução nas guarnições das ilhas da costa. Eventualmente, entretanto, como resultado de uma visita a Formosa (em 1958), Dulles obteve a aprovação de Chiang para uma redução de 15000 nas forças das ilhas da costa em troca de um aumento do poder de fogo naquele local. Em um comunicado conjunto emitido na época da visita, a República da China declarou que os “meios principais” de atingir seus objetivos de recuperação do Continente seriam pela implementação dos “três princípios do povo”, de acordo com Sun Yat-Sen (nacionalismo, democracia e subsistência da população), e “não pelo uso da força” (Clough, 1978Clough, Ralph N., (1978), Island China, Cambridge, Mass., HUP. ). O sonho de retomar o Continente pela força também foi se ofuscando à medida que o regime comunista ali implantado provava sua durabilidade. Desta forma, o restabelecimento da posse sobre a China ... começou como uma determinação feroz, tornou-se uma aspiração, depois um mito, e em seguida uma liturgia” (Crozier, 1976Crozier, Brian, (1976) The Man Who Lost China, Nova Iorque, Charles Scribners’ Sons. )

Não foram, entretanto, apenas as condições internacionais em mudança que transformaram os militares. Formosa, assim como a China Comunista, estava provando ser ela própria uma entidade econômica viável: isto é, controle sobre a inflação, o avanço da indústria e um rápido crescimento. Penso ser isto o que marcou a aceitação militar do Crescimento Orientado para a Exportação (ELG) e sua saída do centro do palco da política econômica de Formosa. Uma Formosa economicamente viável significava que a população de continentais da ilha, como uma coletividade social, não mais precisaria retornar a China para se enriquecer. Isto é ainda mais verdade à medida que, na década de 1960, tornava-se mais claro que os ganhos econômicos em Formosa se realizavam não através das bases efêmeras da pilhagem, como aconteceu entre 1945-49, nem comprando barato para vender caro, como tinha ocorrido, até certo ponto, durante os anos iniciais da industrialização por substituição de importações. Ao contrário, os ganhos econômicos passaram a ser conseguidos através do processo sustentado de acumulação capitalista.

Desta forma, se a dinâmica inicial em Formosa após a II Guerra Mundial fora a criação de uma economia conforme a imagem militar, a força do próprio desenvolvimento econômico logo passou a predominar sobre o militarismo. É nesse sentido que a visão de Engels sobre a relação entre força e desenvolvimento econômico prova ser adequada para o caso de Formosa.

Há duas maneiras de entender que a força que estamos descrevendo em Formosa era uma força de ocupação, enquanto a força que Engels tinha em mente, no caso da Europa, era uma classe interna de uma ordem social anacrônica. Uma das maneiras é considerar a rapidez do desenvolvimento econômico em Formosa: como já discutido brevemente, o Estado de Chiang Kai-Shek foi tão bem sucedido como foi em acelerar o desenvolvimento econômico de Formosa porque, como força de ocupação, seu poder sobre a população local não tinha compromisso algum com alianças de classe. (O que não significa que a acumulação capitalista, uma vez a todo vapor, não era de interesse dos burgueses, tanto formosinos como continentais - veja Amsden, 1979Amsden, Alice H. (1979), “Taiwan’s Economic History: A Case of Etatisme and a Challenge to Dependency theory”, Modern China, julho. .) A outra maneira tem a ver com o fato de que os militares decaíram em Formosa não apenas porque foram seduzidos pelas perspectivas de desenvolvimento econômico, mas também porque, como força de ocupação, parecem ter tido problemas em sua própria reprodução. Um suprimento inadequado de soldados continentais e oficiais para satisfazer as crescentes pressões para retomar a China pode ter tido algum peso na alteração das políticas e posições dos militares. Mas, sendo ou não uma força de ocupação, as observações de Engels sobre as relações entre força e desenvolvimento econômico parecem relevantes para o caso de Formosa.

Há muitas evidências do declínio da influência militar sobre os assuntos econômicos que começam desde a virada de Formosa para o crescimento direcionado à exportação: o governo começou a apoiar o planejamento familiar; anteriormente havia sido dissuadido de fazê-lo pela insistência de anciãos do partido de que o controle de nascimentos reduziria o número de soldados necessários para a recuperação do Continente (Clough, 1978Clough, Ralph N., (1978), Island China, Cambridge, Mass., HUP. ). Formosa não é mais autossuficiente em gêneros alimentícios, apenas porque é mais lucrativo aos fazendeiros formosinos especializarem-se em agricultura para exportação etc. Gastos em defesa como percentagem · do Produto Nacional Bruto (PNB) e como percentagem de despesas governamentais também declinaram (até recentemente), embora estes sejam indicadores muito genéricos e ambíguos do peso dos militares no poder estatal. Em 1960, quando o Crescimento Orientado para a Exportação (ELG) estava apenas começando, as despesas militares como percentagem do PNB eram de aproximadamente 13%; como percentagem das despesas públicas, eram de 65% (Ho, 1978Ho, Samuel P. S., (1978), Economic Development of Taiwan, 1860-1970, New Haven, Yale. ). Em 1978, estas cifras caíram para 8% e 34%, respectivamente (US, 1980US (United States Arms Control and Disarmament Agency), 1980, World Expenditures and Arms Transfers, 1969-78, Washington, USGPO. ).

Deve ser enfatizado, entretanto, que, quando os militares deixaram a economia formosina tornar-se internacional, isso não se deveu inteiramente a uma capitulação nem às forças da oferta e da demanda externas, nem à crescente tecnocracia econômica no país. Como anteriormente mencionado, o Estado de Formosa controlou os altos comandos através de sua rede de empresas públicas. Embora um comércio mais livre possa ter significado maior vulnerabilidade para a economia como um todo às condições do mercado externo· e à política protecionista, as indústrias-chave de Formosa foram protegidas contra tais forças tanto quanto possível. Além do mais, os militares controlaram o que pode ser descrito como uma crescente economia clandestina (abastecida de insumos básicos pelas empresas estatais). Em 1960, os arsenais militares produziram a maior parte dos equipamentos, dos armamentos menos sofisticados e da munição de que as forças armadas necessitavam. O material incluía maquinaria, produtos de borracha, roupas e sapatos militares, baterias secas, mapas etc. (Jacoby, 1966Jacoby, Neil H., (1966), US Aid to Taiwan, Nova Iorque, Praeger. ). Em 1969, foi feito um empréstimo a Formosa para construir urna fábrica com o objetivo de coproduzir helicópteros militares (com a Bell Helicopter Co.). Naquele ano, Formosa estava produzindo espingardas M-14, metralhadoras, granadas de artilharia, morteiros etc. (Clough, 1978Clough, Ralph N., (1978), Island China, Cambridge, Mass., HUP. ). Logo em seguida, avançou-se um pouco mais em direção à autossuficiência quando Formosa fez um contrato com a Corporação Northrop para a coprodução das aeronaves de combate F- 5E (SIPRI, vários anosSIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), vários anos, World Armaments and Disarmament Yearbook, Londres. ). Este crescimento rápido da economia subterrânea provavelmente fez com que os militares fossem menos predadores com relação à economia de mercado.

Finalmente, os militares nunca deixaram por menos quando se tratou de fortificar Formosa - tanto para defesa contra ataques externos, reais ou imaginários, quanto para ataques ofensivos contra a subversão interna. Poderíamos afirmar que a estrita segurança imposta pelo KMT à sociedade formosina é a explicação básica para a bem-sucedida aceleração do desenvolvimento econômico na ilha.

REPRESSÃO E CRESCIMENTO ECONÔMICO

O argumento poderia ser resumido até aqui. Em fins de 1940 e na década de 1950, Formosa desfrutou de uma das taxas de crescimento mais rápidas entre todos os países em desenvolvimento, e estava nas garras de ferro de um Estado motivado em primeiro lugar pelo expansionismo militar. Esta, entretanto, não constitui explicação suficiente do rápido crescimento. De fato, sem a ajuda norte-americana, o militarismo teria levado Formosa à ruína. Por outro lado, tanto as pressões internacionais quanto a evidência tangível do próprio desenvolvimento econômico inibiram a expansão militarista, o que então permitiu que a acumulação capitalista continuasse rapidamente. Porém, a rapidez da acumulação capitalista se deveu em grande parte ao controle absoluto que os habitantes estrangeiros do Continente exerceram sobre a população formosina.

Em primeiro lugar, o poder de que goza o Estado tem-lhe permitido manter uma taxa de câmbio relativamente flexível. A desvalorização da moeda pode acontecer em Formosa sem contestação alguma, enquanto na América Latina, por exemplo, seria bem mais provável que ela fosse questionada pelo movimento operário. As indústrias podem perder sua proteção em Formosa sem remédio enquanto na América Latina, tal perda seria contestada pelos industriais atingidos, sejam eles estrangeiros ou locais. O Estado de Formosa pode deflacionar com maior impunidade do que a maioria dos países latino-americanos. De qualquer modo, deflação e estabilização econômica, quando acontecem, seriam mais efetivas em Formosa do que na América Latina. Consequentemente, elas tornam-se necessárias com menor frequência. O motivo pelo qual elas seriam mais efetivas em Formosa é que ·não há uma oferta rígida de gêneros alimentícios - graças à reforma agrária - e, portanto, nenhuma tendência inflacionária estrutural. Nos anos críticos entre 1963 e 1972, Formosa tinha uma das taxas mais baixas de inflação no mundo (veja Tabela 3). A estabilidade econômica e um meio relativamente livre de inflação contribuíram ao investimento privado, e assim o círculo vicioso dá voltas cada vez mais amplas.

Tabela 1:
Taxa média de crescimento do PIB para formosa, outros países em desenvolvimento, e países desenvolvidos (percentagem)
Tabela 2:
Encargos de defesa nacional, alguns países menos desenvolvidos
Tabela 3:
Taxa de inflação (índice de preços ao consumidor) para países selecionados (taxa média por ano):

Em segundo lugar, o poder do Estado tornou altamente lucrativas em Formosa as condições para a acumulação capitalista. Nas décadas de 1950 e 1960, os salários reais aumentaram muito lentamente. Entre 1961 e 1973, os custos por unidade de trabalho caíram um pouco (Lundeberg, 1979). A Tabela 4 apresenta dados sobre a taxa de crescimento dos salários reais e do PIB per capita nos países menos desenvolvidos, para os quais existem dados, embora nem sempre confiáveis. Webb (1977), que preparou a tabela, usa a taxa de crescimento do PIB per capita como um indicador para as condições de demanda no mercado de trabalho. Subtraindo-se a taxa de crescimento do PIB per capita da taxa de crescimento dos salários reais, de acordo com Webb, a diferença fornece um indicador grosseiro da política salarial do governo. Dado este procedimento, a política salarial de Formosa até mesmo pelos padrões dos países menos desenvolvidos, só pode ser descrita como de arrocho.

TABELA 4:
Tendências dos salários industriais e PIB per capita (mudanças médias anuais, em percentagens)

Além de uma política de “baixos salários”, a política tributária de Formosa também é altamente favorável à acumulação capitalista: os impostos representam uma percentagem do PIB que é pequena pelos padrões internacionais; por outro lado, os impostos indiretos constituem uma percentagem extremamente alta do total dos rendimentos tributários. De acordo com Lundberg (1979Lundberg, Erik, (1979), “Fiscal and Monetary Policies”, in Galenson, 1979. ):

“Existe um clima favorável para a formação de capital em Formosa, com uma preocupação mínima com a distribuição de renda e riqueza”. Desta forma, se a distribuição de renda em Formosa tem sido notória como mais equitativa do que na maioria dos outros países menos desenvolvidos, isto ocorre a despeito da política governamental e não por causa dela (exceto no que diz respeito à reforma agrária). Os dados sobre renda de propriedade em Formosa são reconhecidamente pouco confiáveis, de modo que mesmo a evidência sobre distribuição de renda é fraca (Kuznets, 1979Kuznets, Simon, (1979), “Growth and Structural Shifts”, in Galenson, 1979. ).

Em terceiro lugar, enquanto o Estado em Formosa tem favorecido as condições para a acumulação capitalista, não foi tão generoso com relação ao setor privado, como é típico em outros países menos desenvolvidos, onde os setores estatal e privado estão mais intimamente relacionados. Especificamente, através do controle do sistema bancário o governo tem-se esforçado para manter as taxas de juros reais relativamente altas. Aparentemente, isto tem contribuído para uma alta tendência para poupar e investir. Formosa possui uma das maiores percentagens da formação de capital fixo bruto, com relação ao PIB, de todos os países - tanto desenvolvidos como em desenvolvimento. O consumo, como uma percentagem do PNB, caiu dramaticamente: de 90% em 1952 passou a aproximadamente 65% em 1980 (CEPD, vários anos).

Tipicamente, a combinação entre uma política de salários baixos e uma propensão ao consumo declinante cria problemas de demanda inadequada. Esta não adequação foi superada em Formosa através da exportação - e as condições internacionais nos anos críticos do desenvolvimento em Formosa eram extremamente favoráveis ao comércio. Tem sido destacado frequentemente que, no momento, as condições internacionais são extremamente desfavoráveis ao comércio internacional; portanto, o modelo de Formosa não pode ser generalizado. Em vez de admitirmos este ponto, enfatizaremos que outros países menos desenvolvidos também encontraram as mesmas condições internacionais favoráveis anteriores a crise energética que Formosa enfrentou. Entretanto, a maioria desses países não se desenvolveu. Esperamos ter deixado claro porque Formosa obteve sucesso enquanto outros falharam: o Estado em Formosa, como uma força de ocupação, pode tirar vantagens das condições internacionais. Diferentemente de outros regimes autoritários em países menos desenvolvidos, o Estado em Formosa pode usar seus poderes não apenas contra a classe trabalhadora, mas também a favor da classe camponesa em confronto com os interesses dos grandes proprietários e, quando necessário, também contra uma burguesia alienígena. As empresas públicas e o controle do sistema bancário (assim como o pequeno tamanho do mercado doméstico de Formosa, e sua falta de matérias-primas) fortaleceram o Estado contra o capital estrangeiro. Desta forma, se o desenvolvimento econômico de Formosa foi um milagre, não foi um caso de concepção miraculosa.

O único outro país que teve uma história econômica (cultural etc.) semelhante à de Formosa, mas que não foi governado por uma força de ocupação, foi a Coréia do Sul. Os dois países merecem uma comparação detalhada, mas tal exercício está além do alcance deste trabalho. Podemos sugerir, entretanto, como uma forma de conclusão, que os regimes autoritários em ambos os países, apesar de suas diferenças, participam de uma coisa em comum: ambos reprimem as populações que foram doutrinadas, e parecem ter internalizado o anticomunismo. É recusada, portanto, a estas populações a única ideologia que poderia conseguir derrotar ou comprometer significativamente os regimes que as reprimem. Assim como não discutimos a contribuição da cultura de Formosa para seu desenvolvimento econômico, assim também não discutiremos a contribuição da ideologia. Mas tanto no caso de Formosa como na Coréia do Sul, ambos parecem ter sido de importância crítica.

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  • 1
    Ainda que reconhecendo as limitações estatísticas e analíticas da “contabilidade do crescimento”, é interessante que mais da metade do crescimento em Formosa da renda nacional real entre 1955-1970 pode ser atribuída ao crescimento total da produtividade dos fatores (Chem, 1977Chen, Edward K. Y., (1977) “Factor Inputs, Total Factor Productivity, and Economic Growth: the Asian Case”; The Developing Economies, junho. ).
  • 2
    A formação educacional de Li era em ciências (Li, 1980Li, K. T., (1980), My Views on Taiwan’s Economic Development: A Collection of Essays from 1975-1980. ).
  • 3
    Veja, por exemplo, John Israel (1964) e Jacobs (1971).
  • 4
    Para uma visão contrária à modernização, que não obstante postula uma forte associação entre militarismo e industrialização, veja Kaldor (1976Kaldor, Mary, (1976) “The Military in Development”, World Development, junho. ) e sua discussão com Amsden (1977Amsden, Alice H. (1977) “Kaldor’s ‘The Military in Development’ - A Comment”, World Development, agosto. ).
  • 5
    JEL Classification: N15.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1987
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