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Recursos ociosos e ciclo econômico: alternativas para a crise brasileira

Idle resources and economic cycle: alternatives for the Brazilian crisis

RESUMO

Este artigo mostra que as condições específicas para mudanças revolucionárias na sociedade brasileira estão amadurecendo. A aliança de classes que comanda o Estado não pode mais governar porque o corpo social não quer ser governado como antes. A violação geral da ordem social é uma manifestação dessa situação e tem sua origem na contradição entre o latifúndio e a industrialização que se caracterizava pelo grande excesso de oferta de mão de obra. A atual fase recessiva do ciclo econômico é caracterizada tanto pela forte ociosidade da indústria pesada quanto pelo grande gargalo no setor de serviços públicos. A privatização dos serviços públicos bem como a reformulação da intermediação financeira é a solução que se apresenta porque a crise financeira do Estado é o elo fraco do sistema econômico.

PALAVRAS-CHAVE:
Ciclo econômico; privatização; reforma do estado

ABSTRACT

This article shows that the specific conditions for revolutionary changes in the Brazilian society are reaching maturity. The alliance of classes which commands the State cannot govern anymore because the social body does not want to be governed as it was before. The general violation of social order is a manifestation of this situation and have its origins in the contradiction between the latifundio and the industrialization which was characterized by large excess supply of labor. The current recessive phase of the business cycle is characterized both by the strong idle capacity in the heavy industry and the large bottleneck in the public services sector. The privatization of public services as well the reformulation of financial intermediation is the solution which is coming out because the financial crisis of the State is the weak link of the economic system.

KEYWORDS:
Business cycle; privatization; state reform

As sociedades humanas desenvolvem-se através de dois tipos de mudanças:

  1. mudanças evolutivas, em que a feição estrutural se mantém, mas se acumulam alterações basicamente quantitativas;

  2. mudanças revolucionárias, quando, após a sedimentação de mudanças quantitativas, sobrevêm mudanças qualitativas, definindo-se nova feição estrutural para a economia e para a sociedade.

Não está em nossas mãos optar livremente por um ou outro tipos de mudanças. Embora estas resultem da ação dos homens que compõem as sociedades, as revoluções somente ocorrem quando se acumulam certas condições específicas. Não há duas sociedades rigorosamente iguais, o que quer dizer que tanto as mudanças quantitativas como as qualitativas devem ser estudadas com muita atenção e pragmatismo.

Entretanto, não obstante a diversidade das sociedades nacionais - e também a diversidade de cada uma delas, em relação a si mesma, ao longo do seu evolver - há certos fatos que permitem distinguir as condições revolucionárias das não revolucionárias. Esquematicamente podemos dizer que, quando se define uma situação revolucionária, a classe ou aliança de classes que comanda o Estado já não pode mais governar como dantes e, ao mesmo tempo, o corpo social já não quer mais ser governado como dantes.

Ora, vista sob este ângulo, a sociedade brasileira ingressou francamente numa situação revolucionária. O Estado torna-se cada vez mais impotente para o exercício de suas funções, e a ordem pública, no sentido usual de ordem judiciário-policial, para começar, revela-se francamente intolerável. O simples trânsito, nas palavras do ministro da Justiça, converteu-se numa verdadeira guerra civil, que mata anualmente mais de 50 mil pessoas e fere mais de 300 mil. Tanto quanto os Estados Unidos perderam, de soldados, entre mortos e feridos, nos sete anos de Guerra do Vietnã.

E este é apenas o aspecto mais prosaico do problema. Por muito grave que seja o fato de que, no Brasil, com uma população 37 vezes menor e uma frota de veículos seguramente menor ainda, a violência voluntária é incomensuravelmente mais grave. Como nos conciliarmos com o fato de que, diuturnamente, ocorrem doze assaltos a bancos e são roubados 600 veículos em todo o país, sem falarmos em outros assaltos, que, por exemplo, converteram o simples comparecimento a uma sessão noturna do Teatro Municipal, do Rio de Janeiro, num ato de temeridade?

Por melhores que sejam as penitenciárias que construamos, as fugas em massa de criminosos de maior periculosidade acontecem cada vez mais frequentemente. Ora, entre a ordem pública, no sentido judiciário-policial, e a ordem pública, no sentido político-social, não existe uma linha nitidamente traçada. Há muita coisa de comum nas etiologias das duas espécies de desordem. A certa altura, portanto, podemos confrontar-nos com um salto qualitativo, isto é, a sociedade poderá, desordenadamente, exigir que seja posto cobro a um estado de coisas como o exemplificado. O fato é que essas manifestações de violação da ordem pública, desde os assaltos a bancos, os massacres do trânsito, as fugas das penitenciárias, os golpes de mão nos distritos policiais e a corrupção mais franca nos altos escalões do Estado, passando pelas greves dos serviços públicos essenciais, tudo isso não passa da ponta do iceberg de um estado de coisas que se resume na definição de uma situação revolucionária.

Nos albores da industrialização do Brasil, nós, os revolucionários dos anos 30, nos levantamos com um duplo programa que assumiu sua expressão mais acabada e radical com a Aliança Nacional Libertadora, mas que estava presente, pervasivamente, em toda a consciência progressista nacional. Queríamos a revolução anti-imperialista ou, mais precisamente, queríamos industrializar o país; e queríamos, também, a revolução antifeudal e democrática, consubstanciada numa reforma agrária. Como os países capitalistas desenvolvidos o haviam feito antes.

Era um programa de reformas, mas já Enrico Ferri nos havia ensinado que somente os revolucionários praticam reformas verdadeiras, e que os reformistas conservam o status quo. Era razoável, portanto, que nos fizéssemos comunistas, pois estes eram, àquela altura do século, os únicos verdadeiros revolucionários do mundo. Mas havia muita coisa errada em nossa posição, e esses erros explicam a relativa facilidade com a qual fomos esmagados. Alguns, dentre nós, pagaram o preço desses erros com a vida. Outros, com a privação da liberdade por longos períodos, como foi o meu caso.

Não havíamos percebido - e muitos não o perceberam ainda, passado mais de meio século - que a industrialização, fazendo-se como substituição de importações, era perfeitamente possível sem reforma agrária. Mais ainda, que o latifúndio feudal, que - como noutros países havia acontecido - supúnhamos ser uma força irredutivelmente anti-industrialista, não apenas podia conciliar-se com a industrialização brasileira, como podia mesmo patrociná-la. Concretamente, não havíamos percebido que o mesmo Getúlio Vargas, um opositor intransigente da reforma agrária, poderia passar à história como o patrono da indústria nacional.

O latifúndio da época, a classe de cujo serviço saíam os generais, os bispos, os juízes, era a única classe amadurecida para o exercício do comando sobre o Estado e da hegemonia sobre toda a sociedade. Embora ainda sob a influência ideológica da burguesia mercantil, sua antiga aliada e líder no Pacto Fundamental de Poder desmantelado pela Revolução de 30, podia conciliar-se com a industrialização e até apoiá-la ativamente, como vimos. Mas não podia admitir que se pusesse em causa o monopólio de classe sobre a terra, a base estratégica de sua hegemonia.

Era necessário, portanto, que, a certa altura, compreendêssemos que nosso programa de Revolução Anti-imperialista e Agrária era parcialmente utópico: na parte que pedia a reforma agrária. Nossa revolução, portanto, teria que ser uma revolução a meias, como o haviam sido a Independência e a Abolição República, mas isso não queria dizer que não fosse uma revolução verdadeira. O país prosperou, a ponto de tornar-se irreconhecível. Por certo, uma prosperidade pontilhada de recessões, mas isso não queria dizer que não fosse uma verdadeira prosperidade. Os ciclos são inerentes ao desenvolvimento do capitalismo industrial.

Nossa industrialização - como todas as industrializações capitalistas - vem-se fazendo através de ciclos breves, aproximadamente decenais, da família dos Ciclos de Juglar. Ora, nas fases ascendentes desses ciclos, as cidades absorvem, a princípio razoavelmente, os excedentes de mão-de-obra que a crise agrária subjacente despejava sobre elas. Pontualmente, porém, cada vez que o processo de industrialização entrava em recesso, a questão agrária se agudizava e voltávamos a falar de reforma agrária. Disso, porém, nos esquecíamos quando o processo de industrialização era retomado, tirando-nos da recessão.

O latifúndio feudal, nos primeiros estágios da industrialização, ainda oferecia à esmagadora maioria da população camponesa - a maioria da população do país - um lugar na economia rural. Por outro lado, o processo de formação de capital, fora da economia agrícola, era altamente insumidor de mão-de-obra, isto é, trabalho-intensivo. Criava-se, assim, uma simbiose: a uma economia agrícola pré-capitalista, altamente carecedora de mão-de-obra, juntava-se uma economia urbana também trabalho-intensiva. As crises agrárias eram, portanto, acidentes de percurso que, antes que tivessem tempo de radicalizar-se, entravam a regredir, por efeito da reativação da demanda de mão-de-obra nas atividades não agrícolas.

Em suma, a contradição entre as relações de produção vigentes, semifeudais e semicapitalistas, e as forças produtivas já criadas não assumiria ainda a feição antagônica que tomou em nossos dias. Nossas cidades haviam, gradativamente, assumido o papel que antes cabia aos países do “centro” capitalista mundial, como mercado para a nossa produção agro primária e como supridora de bens antes importados. Era, portanto, uma combinação muito feliz.

Nossa industrialização começara pelo Departamento II - isto é, pela produção de bens manufaturados de consumo. Nisso, diferia da industrialização socialista, que tinha lugar na mesma época, e que havia principiado pelo Departamento I, com a indústria pesada ao centro. Mas, do mesmo modo como era inevitável que a industrialização socialista - também substitutiva de importações - a certa altura começasse a desviar a ênfase para a indústria leve e os serviços de consumo, isto é, para o Departamento II, o que parece estar sendo feito, nos quadros da Perestroica, a nossa indústria foi passando gradativamente para a indústria pesada e para o Departamento 1.

O surgimento de um Departamento I moderno, isto é, industrial, viria modificar radicalmente a função de produção do processo de formação de capital fora do setor agrícola, no mesmo passo que possibilitava a industrialização da própria agricultura. A simbiose a que me referi há pouco foi quebrada. Não apenas a industrialização da agricultura produzia excedentes de mão-de-obra cada vez maiores, como, mesmo nos períodos de alta conjuntura, diminuía consideravelmente, para o mesmo esforço de formação de capital, a demanda de mão-de-obra.

No lapso de apenas uma geração, assistimos a duas revoluções tecnológicas na agricultura e ao começo da terceira. Com efeito, a agricultura mecanizou-se e quimificou-se, com o emprego intensivo, não raro imprudente, de máquinas, de adubos e de agrotóxicos. Começa agora a revolução genética, que nos deverá dar espécies animais e vegetais mais econômicas e mais adaptadas às condições do nosso clima. O primeiro efeito dessa tríplice revolução tecnológica já foi indicado, isto é, a liberação de massas humanas que, não correspondendo à demanda das cidades, são, pura e simplesmente, lançadas sobre elas como rejeito imprestável.

Por outras palavras, o velho latifúndio que, com Getúlio Vargas, tomou o timão do Estado em 1930, assegurava às massas camponesas um lugar, humilde, por certo, mas estável e confiável, na antiga economia agrícola. Impunha a esses camponeses - agregados seus - certas obrigações, em troca do uso de um pedacinho de terra para os seus próprios fins, mas não discutia o seu direito a usar esse pedacinho de terra, onde implantar a casa e organizar sua produção para autoconsumo, agrícola e não agrícola. O novo latifúndio, surgido como uma dissidência progressiva do velho,·comporta-se muito diferentemente.

Para começar, esse novo latifúndio, armado com os modernos recursos da presente tecnologia agrícola. - humanos e materiais - está habilitado a aumentar consideravelmente a produtividade de cada dia de trabalho, de modo que, não apenas da maior parte da mão-de-obra que assalaria, utiliza somente parte do tempo que esta oferece, por ano, como se desinteressa pelo tempo total dos chamados membros inativos da família camponesa. Assim, sobram braços, e a família camponesa, tradicionalmente tão estável, se desagrega. São, basicamente, os destroços dela que nutrem o imenso exército industrial de reserva que, através da oferta excessiva de mão-de-obra, deprime o salário em todos os níveis e, consequentemente, responde pelo fato de ser o Brasil uma das sociedades de renda mais desigualmente distribuída do mundo.

Os fenômenos de desordem, a que me referi no início deste artigo, são apenas parte do preço que nossa sociedade está sendo chamada a pagar por essas mudanças, ao primeiro exame tão propícias, em nossa tecnologia agrícola e extra-agrícola. Mudanças fadadas a ter inúmeras repercussões sobre todos os aspectos de nossa vida social.

Ora, sendo inconcebível que, para resolver esses problemas promovêssemos meia-volta no processo de industrialização, inclusive de nossa agricultura, a sociedade terá que preparar-se para fazer face aos efeitos indesejáveis desse processo, inclusive às agressões à natureza, que ele não pode deixar de causar. A defesa da natureza e da ecologia deverá resultar de uma tecnologia mais avançada, não do retorno à antiga tecnologia.

Em suma, o que acontece é que as relações de produção herdadas não mais se conciliam com as novas forças produtivas da sociedade. Nossa adesão à nova tecnologia não poderá ser posta em dúvida simplesmente porque as novas forças produtivas suscitam problemas antes desconhecidos. O saldo é altamente positivo, e, assim como devemos, pelo emprego de uma tecnologia ainda mais avançada, proteger a natureza, devemos suscitar novas relações de produção que se ajustem às forças produtivas que estivemos criando.

O novo latifúndio, surgido como dissidência progressista do velho latifúndio - o qual, em aliança com o nascente capitalismo industrial, governou o Brasil neste passado meio século -, tem, do seu próprio papel, uma noção muito equivocada. Por um lado, passará à história como um redescobridor do Brasil, visto como está organizada a utilização de terras que aparentemente não serviam para nada - como a hiléia, o cerrado, a caatinga e o pampa. Embora explorando apenas parte da mão-de-obra antes utilizada pelo velho latifúndio, promove a expansão da produção agropecuária. Não esqueçamos de que, não obstante a crise que vivemos, nossa produção agropecuária está quebrando todos os seus recordes.

Na verdade, portanto, o novo latifúndio é uma classe nova, muito dinâmica, mas que forma de si mesmo uma visão equivocada, identificando-se com o latifúndio tradicional, supondo-se mera parte da classe da qual se destacou por um processo histórico. A exemplo dos fazendeiros que substituíram os senhores de escravos, os quais, por muito tempo, pensavam e procuravam agir como os antigos senhores; ou dos industriais que, neste passado meio século, estiveram industrializando e reconstruindo o Brasil, mas que se imaginavam meros comerciantes, como os que foram apeados do poder em 1930, isto é, supunham-se mera variante da burguesia comerciante.

Esses equívocos são frequentes, e não se limitam às classes dirigentes. Também as classes dirigidas e exploradas, como os trabalhadores agrícolas, que se engajam nessa nova epopeia que está redescobrindo o Brasil, na condição de “boias-frias” ou “volantes” - assim como “os peões, filhos da rude mata”, na frase colorida do poeta, que se engajaram na primeira epopeia bandeirante, seguindo os Fernão Dias Paes Leme -, esses semiproletários se supõem meros agregados ou servos de gleba do velho latifúndio, mais infelizes que seus pais, que eram verdadeiros agregados e que, como tais, ocupavam glebas familiares pertencentes ao latifúndio, mas de maneira estável. Tão estável, que os levava a esquecer que essas glebas não lhes pertenciam, mas aos senhores.

A uns e outros - aos novos latifundiários e aos semiproletários agrícolas - estaríamos prestando péssimo serviço, contribuindo para que se fixem em seus equívocos históricos. Afinal, como ensinava Marx, não se pode julgar um homem ou uma classe social pela ideia que façam de si mesmos. Devemos julgá-los pelo que realmente são, e essas novas classes são, de fato, respectivamente, uma semiburguesia agrícola e um semiproletariado rural. Não são, consequentemente, classes cujo desempenho histórico esteja em processo de deperecimento, mas classes cujo desempenho apenas começa.

Entrementes, é importante que os ajudemos a fazer de si mesmos uma ideia que corresponda ao seu papel histórico real. Ora, não os estaremos ajudando se, como vimos fazendo, os chamamos a tomar posição frente a uma reforma agrária que responda à sua problemática passada, não à presente problemática. Isto seria um erro trágico, porque a reforma que nós, os revolucionários dos anos 30, não fizemos, nunca será feita, porque os parâmetros históricos mudaram. Em vez de uma agricultura em que o homem arranhava o chão com uma enxada, da qual, muitas vezes, apenas sobrava o “olho”, temos uma agricultura mecanizada, quimificada e em processo de genetizar-se. Uma reforma, por certo, terá que ser feita, mas não aquela.

A nova reforma agrária deverá resolver o problema que está historicamente posto, a saber: assegurar pleno emprego ao potencial laboral da família camponesa - tanto dos seus membros ativos como dos não ativos - e, no processo de recompor a dita família, fortalecer seus laços internos e retirar do mercado parte do excedente de mão-de-obra que, ao ser despejado como lixo sobre as cidades, está na origem do trágico esquema de distribuição de renda que temos, e da não menos trágica violência urbana a que me referi.

Vimos que a antiga família camponesa, agregada do latifúndio, recebia deste uma gleba que, no fundamental, devia ser usada para a produção dos senhores, através dos quais essa produção chegava geralmente ao mercado. Essa parte da antiga gleba perdeu sua razão de ser, porque, nas novas condições, a produção para o mercado é feita - e muito bem-feita - centralizadamente, pela fazenda capitalista, assegurando ao trabalho produtividade incomensuravelmente maior, graças ao trator, aos adubos e defensivos químicos e à ciência agronômica. Mas a parcela - muito menor - que o agregado usava para a implantação da própria casa. e para organizar a produção para auto-consumo familiar, essa a família camponesa perdeu. Ora, o papel dessa pequena gleba não desapareceu, nem para a família camponesa, nem para a economia nacional e, por isso, trata-se de devolvê-la ao trabalhador agrícola.

A nova “reforma agrária” deverá assegurar à “família boia-fria” um lote pequeno, correspondente a um quintal grande, por venda ou por comodato, onde ela poderá instalar-se, utilizando o trabalho dos membros não ativos - velhos, adolescentes, mulheres - e o tempo sazonalmente livre dos membros ativos, engajados como trabalhadores assalariados das fazendas capitalistas. O poder público deverá assistir as novas aldeias assim constituídas, fornecendo-lhes o transporte, o abastecimento de água, o posto de saúde, a escola etc. Aldeias desse novo tipo deverão ser criadas, não raro em simbiose com as cidades próximas, para serem habitadas pela população trabalhadora semiproletária. O novo latifúndio não terá por que opor-se a isso, e é confrontando-o com esse desafio que o ajudaremos a tomar consciência de sua nova realidade histórica.

* * *

Mas não é a reforma agrária - esta ou outra - o problema que exige de imediato o melhor de nossas atenções. Para esse problema, podemos ir nos preparando com certa calma ... embora não muita, porque nosso tempo histórico voa. Vimos como, ao longo do processo de industrialização, o qual foi marcado por ciclos aproximadamente decenais, comportando fases “a” e “b”, isto é, de aceleração e desaceleração, a crise agrária desagudizava-se nas primeiras fases, voltando a agudizar-se, como agora, nas fases recessivas. Como estamos numa fase recessiva, não admira que a questão agrária, com todas as suas sequelas sobre o conjunto do sistema, inclusive sobre o quadro urbano, tenha voltado a agudizar-se. Cabe perguntar, portanto, se, pelo menos ainda uma vez, a questão agrária não se desagudizará quando superarmos a presente recessão cíclica.

Para responder a esta pergunta, é necessário lançar uma vista d’olhos sobre a presente conjuntura, isto é, saber por que a economia brasileira está presentemente em recessão. Para começar, devemos tomar consciência de que é comum a todas as recessões o fato de no quadro do sistema econômico surgirem duas áreas opostas: uma carregada de excesso de capacidade produtiva - em condições, portanto, de gerar um excedente social, ou poupança - e outra, ao contrário, insuficiente para atender a demanda específica atual e potencial. Essa área está, portanto, carecida de investimentos. A recessão terá passado quando se resolver o problema do carregamento do excedente social da primeira área para formar o capital destinado à liquidação do atraso da segunda área.

Vimos antes que: a) por efeito da modernização da agricultura, resultante do desenvolvimento do Departamento I do sistema, a massa de mão-de-obra sobrante no setor agrícola tornou-se excepcionalmente vultosa; b) por efeito do mesmo fato, isto é, da modernização do Departamento I, para a mesma formação de capital fará falta muito menos mão-de-obra do que nas fases iniciais do processo de industrialização. Donde se deve concluir que, a menos que o volume físico da formação de novo capital aumente consideravelmente, a crise agrária persistirá, inclusive na fase ascendente do ciclo, porque as necessidades de mão-de-obra para essa formação de capital permanecerão muito aquém do volume de mão-de-obra que vai sendo liberado, inclusive do setor agrícola.

Para começar, devemos considerar que, na presente recessão, a área de ociosidade do sistema comporta parte crítica do Departamento I do sistema, a saber, a indústria pesada e atividades exportadoras que, ad hoc, podem ser consideradas como integrantes do Departamento I, porque podem gerar excedentes do balanço de pagamentos que poderemos usar para importar bens de investimento. Além disso, quando fizermos prova de que podemos arcar com os compromissos da dívida externa, a oferta de capitais alienígenas se reativará. Tudo considerado, temos que nossa capacidade física de formar capital novo nunca foi tão considerável.

Por outro lado, a área dos estrangulamentos do sistema inclui os grandes serviços de utilidade pública, desde uma energética, em grande parte por criar, a um sistema ferroviário inteiramente novo, passando por serviços urbanos necessariamente caros, como meia dúzia de metropolitanos, envolvendo centenas de quilômetros de linhas, basicamente subterrâneas, além de serviços de água, esgotos etc. Como contrapartida de uma oferta sem precedentes de bens de capital, temos uma demanda também sem precedentes.

Claro está que essa oferta e essa demanda não são efetivas ainda, e efetivá-las deve ser nosso cuidado imediato. Pouco a pouco, a própria crise nos vai forçando a cuidar desse problema, o qual, sem perder sua unidade, desdobra-se em três subproblemas, a saber:

  1. preparar a mobilização das atividades chamadas a suprir a oferta incremental de bens de capital;

  2. reestruturar o mecanismo de intermediação financeira, porque é óbvio que não há de ser com o presente mecanismo, surgido para atender a outro tipo de serviço, que formaremos o capital financeiro necessário;

  3. criar novo enquadramento institucional para as indústrias e serviços de utilidade pública a desenvolver pela aplicação desse capital em via de formação.

Dado que os serviços de utilidade pública foram organizados, há coisa de um quartel de século, como serviços públicos concedidos a empresas públicas, a presente crise encontra sua culminação na crise das finanças do Estado. Este, principalmente via aval do Tesouro, comprometeu no passado seus recursos presentes e, em consequência, encontra-se seriamente alcançado, emergindo como o elo débil de todo o sistema econômico.

Como síntese da presente crise, temos o fato de que todo o sistema entra em pane, em consequência de um fato ordinariamente alvissareiro, como seja o aparecimento de um superávit em nossa Balança Comercial igual a dois terços das exportações. À primeira vista, esse superávit deve ter uma destinação óbvia, a saber: o serviço da grande dívida externa que acumulamos. Entretanto, como a dívida foi paulatinamente estatizada, o Estado deveria dispor dos recursos, em moeda nacional, para adquirir dos exportadores as divisas correspondentes a esse superávit e, por falta dessa moeda nacional, não se pode dar aos recursos formalmente livres a destinação curial.

Em resumo, a economia é vigorosa, mas o Estado é débil. Nada mais desastroso do que supor que essa debilidade financeira do Estado pode ser contornada pelo expediente, à primeira vista tão óbvio, da emissão de moeda. Uma coisa é emitir dinheiro para compensar o aumento da oferta de bens e serviços ou a elevação dos preços engendrada no seio da economia. Outra, muito diferente, é emiti-la para cobrir as necessidades correntes do Tesouro. Ora, o fato de a isso termos sido impelidos significa que a presente crise chegou ao seu ápice, e que medidas sérias para resolvê-la não podem mais ser postergadas.

A privatização dos serviços de utilidade pública - isto é, a conversão dos serviços públicos concedidos a empresas públicas em serviços públicos concedidos a empresas privadas - entrou na ordem natural das coisas. Por essa via resolveremos todos os três subproblemas a que há pouco aludi, seguindo uma ordem inversa da que usei acima, a saber:

  1. a conversão do serviço público concedido a empresa pública em serviço público concedido a empresa privada tornará possível a substituição do aval do Tesouro pela garantia real - isto é, pela hipoteca - oferecida ao Estado, o único tomador possível;

  2. o Estado tomará essa hipoteca oferecida pelo concessionário privado e a substituirá por seu aval - um aval hipotecariamente garantido, isto é, não mais o presente aval coberto pelo comprometimento de receitas fiscais futuras, cujo desgaste está na raiz da presente crise - e sobre essa base entrará em processo de remodelação institucional todo o aparelho de intermediação financeira do sistema;

  3. sobre essa base será efetivada a demanda às atividades responsáveis pelo suprimento de bens de capital e, por essa via, a todo o sistema econômico.

Assim, não obstante a nova função social de produção altamente poupadora de mão-de-obra, estou confiante em que a economia sairá da recessão, nutridos contingentes do exército industrial de reserva serão engajados na produção e, como tem acontecido regularmente, a inflação também regredirá.

Nada mais equivocado do que pretender resolver nosso presente problema tomando-o por esta ponta, isto é, pela inflação. Esta é o reflexo da crise, não sua causa primária, como temos suposto. Um epifenômeno, não a causa eficiente da crise.

Para encerrar, quero sugerir que nos preparemos para abordar essa causa eficiente, que é o fato de havermos empreendido a industrialização sem reforma agrária. Nós, os revolucionários dos anos 30, como já disse, estávamos equivocados quando supúnhamos que a economia deveria ser preparada para a industrialização, obrigatoriamente pela reforma agrária. A experiência revelou que essa suposição era falsa e a razão nos mostra por que: a peculiar mecânica da industrialização baseada na substituição de importações.

Não obstante, esgotado esse processo de industrialização substituidora de importações, a questão agrária, embora posta em novos parâmetros, levanta novamente sua temerosa cabeça, como a Esfinge da fábula, bradando para Édipo: decifra-me ou te devoro!

Em suma, o Brasil se aproxima de nova revolução - assim como a Independência, a Abolição-República e a Revolução de 30 - que abrirá a porta para sua Quarta Dualidade.

  • 1
    JEL Classification: E32; H12; H11.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1989
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