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Uma nota sobre a refutação lógica da macroeconomia neoclássica

A note on the logical refutation of neoclassical macroeconomics

RESUMO

As teorias neoclássicas são frequentemente criticadas de um ponto de vista externalista (político, sociológico, histórico, etc.). Inconsistências internas são consideradas impossíveis, pois dadas algumas premissas “a análise neoclássica é logicamente coerente”. Bernard Schmitt, um economista suíço conhecido como keynesiano tardio, escreveu sobre o assunto. Seu argumento começa com uma discussão sobre o tempo na teoria econômica e sua relação com a contabilidade nacional padrão. A conclusão é que a macroeconomia neoclássica está enraizada em alguma metáfora ilegítima entre ajustes de preços e quantidades.

PALAVRAS-CHAVE:
TEORIA NEOCLÁSSICA; METODOLOGIA DA ECONOMIA

ABSTRACT

Neoclassical theories are often criticized from an externalist point of view (political, sociological, historical, etc.). Internal inconsistencies are said to be impossible, for given some premises “neoclassical analysis is logically coherent “, This note stands against this generally held conception by reviewing one of the possible logical criticisms of neoclassical macroeconomics. Bernard Schmitt, a Swiss economist known as a late Keynesian, has written on the subject. His argument starts out with a discussion of time in economic theory and its relation to standard national accounting. The conclusion is that neoclassical macroeconomics is rooted in some illegitimate metaphor between prices and quantities adjustments.

KEYWORDS:
Neoclassical theory; methodology of economy

Há várias formas consagradas de criticar os modelos e teorias que, grosso modo, podem ser classificadas como neoclássicas. Mais à esquerda, é frequente a acusação de a-historicidade, numa contraposição entre as abstrações do conceito de equilíbrio e as determinações concretas da realidade especificamente capitalista. Seja pelas hipóteses de que depende, seja pelo cenário que acabam produzindo para retratar a realidade capitalista, as vertentes neoclássicas podem ser rejeitadas em nome do estudo de processos econômicos historicamente relevantes.

Uma crítica não menos radical procura contrapor à lógica dos modelos de equilíbrio outras lógicas. Por exemplo, contrapondo à noção de equilíbrio o princípio da determinação da renda pelo gasto, substituindo assim a simultaneidade matricial do equilíbrio geral por uma análise causal. Mesmo nas variações do que se poderia chamar de “macroeconomia da instabilidade financeira” (Davidson, Minsky, Shackle etc.) pode-se encontrar esse mesmo afã por identificar outras lógicas, mecanismos e princípios explicativos capazes de substituírem a referência ao equilíbrio.

Mais raro, entretanto, é encontrar quem denuncie a inconsistência lógica da teoria neoclássica, especialmente de sua macroeconomia. Aliás, já se tornou lugar-comum afirmar que, uma vez aceitas as premissas, o modelo de equilíbrio é irrefutável “internamente”. Ou seja, seria possível ou rejeitar as hipóteses e cenários de equilíbrio em nome da metodologia histórica (historicismo, institucionalismo) ou buscar lógicas alternativas (capazes, também, de explicitar a natureza geral do capitalismo e seus mecanismos econômicos fundamentais).

Por mais radicais que sejam, estas duas modalidades de crítica pecam pelo que se costuma denominar “externalismo”. Ou seja, e sem entrar no mérito das várias teorias e interpretações alternativas, há entre elas o fato comum de rejeitarem a teoria neoclássica a partir de um ponto de vista privilegiado, externo ao objetivo de crítica.

O objetivo desta comunicação é recuperar a possibilidade da crítica interna, ou seja, da refutação lógica· da macroeconomia neoclássica. Em vez de reverenciar o lugar-comum de que os modelos neoclássicos são, dadas as premissas, irrefutáveis, é necessário retomar o esforço da crítica interna que, se bem-sucedida, contribui para a própria elaboração de teorias alternativas. Não se pretende, nesta breve nota, discutir os méritos da crítica “internalista”, nem a comparar com as duas outras modalidades de crítica citadas há pouco. Pretende-se tão-somente apresentar os passos elementares de uma refutação lógica da macroeconomia neoclássica. A referência crucial para essa crítica é a obra do economista suíço Bernard Schmitt. Entretanto, cumpre ressaltar que não se pretende aqui resenhar a obra de Schmitt como um todo, mas apenas extrair dela essa refutação lógica elementar, deixando em aberto as possíveis consequências a tirar, no sentido de se optar por outras “lógicas macroeconômicas”.

TEMPO, PREÇOS E QUANTIDADES

Talvez o problema lógico mais inquietante para a teoria econômica seja o problema do tempo. Há inúmeras possibilidades de interpretação econômica do tempo: das teorias dos ciclos às distinções marshallianas entre períodos de mercado, passando pelo diagnóstico interpretativo da temporalidade capitalista. No terreno mais estritamente neoclássico, o problema do tempo tem recebido atenção considerável, de tal sorte que um dos principais desafios dos modelos de equilíbrio é a transição para uma abordagem dinâmica.

A crítica de Bernard Schmitt à lógica da macroeconomia neoclássica inicia-se com uma descrição essencial da temporalidade do equilíbrio.1 1 Cf. Schmitt (1972), (1984) e também Cencini (1984). Quando se fala em “preço”, subentende-se a efetivação de um ato de troca. Uma sucessão de atos de troca define uma sequência de instantes em que ocorrem as trocas. A cada ato de troca corresponde a igualdade entre a oferta e a demanda da mercadoria. Uma mesma transação pode ser chamada de oferta ou demanda. Mas nos outros instantes, quando não ocorrem trocas, não se observa qualquer transação. Nesses outros instantes, oferta e demanda são dois fatores distintos.

Assim, o eixo temporal pode ser dividido em duas categorias de pontos. Nos instantes ti, tz, ... tu as forças de oferta e demanda confundem-se numa mesma entidade, uma transação de dupla face. Em qualquer outro instante, entretanto, a oferta e a demanda permanecem como fatores distintos. O número de instantes ti é finito, a outra família de instantes é infinita. Há uma infinidade de instantes em que oferta e demanda permanecem como fatores separados, iguais ou não, mas não idênticos.

Nos instantes complementares à família ti (digamos ti) oferta e demanda podem ou não ser iguais, mas no instante em que ocorre uma transação concreta não há sentido para a expressão “excesso de demanda”. O verdadeiro excesso de demanda corresponde à variação do nível de preços necessária para igualar oferta e demanda da mercadoria. Para bens normais, o excesso de demanda é positivo quando os preços sobem. Graficamente, temos que os segmentos KB, LC e MD representam o excesso de demanda nos instantes ti ta, ... tn, tomando-se o preço Po, no instante to, como base. Assim, em ti haveria um excesso de demanda equivalente a KB, positivo, se o nível de preços tivesse permanecido constante em Pe-. O mesmo raciocínio pode ser aplicado a qualquer instante em que ocorra uma transação. Essa construção gráfica, entretanto, depende de uma hipótese importante quanto à natureza do tempo.

A hipótese sobre o tempo traduz-se graficamente na necessidade de optar pelo caráter contínuo ou descontínuo da curva s = d. Supondo-se a continuidade, o excesso de demanda com base em p, seria conhecido em cada instante subsequente a to. No gráfico, percebe-se que o excesso de demanda aumenta ao longo do tempo contínuo. Entretanto, a natureza do problema exige que se considere um eixo temporal descontínuo.

Se a curva s = d é descontínua, os únicos pontos conhecidos são A, B, C, D. Daí não se deve considerar que o excesso de demanda apareça instantaneamente em t1, t2, t3, pois nesses instantes não é possível definir qualquer excesso de demanda. Embora seja nos instantes ti que se conhecem os preços, o excesso de demanda não se define sobre eles. A inferência correta é que o excesso de demanda não pode ser medido ao longo de intervalos de tempo (to - t1), (t1 - t2) ..., pois a curva s = d não é contínua. O excesso de demanda aparece no tempo real nos instantes ti. O excesso de demanda aparece nos intervalos de tempo entre as transações sucessivas.

O segundo passo da crítica de Schmitt é examinar a suposta analogia entre a teoria dos preços e a teoria da determinação da renda. Assim, cumpre investigar quais os termos correspondentes à oferta, demanda e nível de preços na teoria da renda.

A demanda agregada corresponde à demanda por uma mercadoria no campo da teoria dos preços. A demanda agregada é formada pela soma de despesas de consumo e investimento (D= C + I). A oferta agregada (Y) corresponde ao valor dos bens de consumo e de investimento.

Se é possível estabelecer uma analogia entre a teoria dos preços e a teoria da determinação da renda, então é válido argumentar que, ao longo do tempo, a demanda agregada pode ser maior, menor ou igual à oferta agregada. Quando isso ocorrer, o nível da renda nacional deverá variar até que se restabeleça a igualdade entre Y e C + I. Assim, define-se um excesso de demanda, na teoria da renda, análogo ao da teoria dos preços.

Entretanto, se na análise dinâmica da determinação do nível de preços é possível falar de uma família infinita de instantes t;, o mesmo não acontece na análise dinâmica da determinação da renda nacional. Ou seja, o conceito de excesso de demanda, válido na teoria dinâmica dos preços, perde completamente o sentido na análise da renda nacional.

A análise da determinação da renda só faz sentido nos instantes t1. Em qualquer momento Y e C + I são idênticos. Os pontos da curva que exibe a relação entre a renda e o tempo não são o resultado de um ajuste entre oferta e demanda, pois a identidade básica da macroeconomia é irrefutável (Y = C+I). A produção requer tempo, duração, enquanto a realização de qualquer transação ocorre num instante. A produção da renda nacional é, portanto, um fluxo e, assim, somente pode ser medida durante um intervalo finito de tempo. Se é possível saber qual o nível das transações macroeconômicas (compras de bens de consumo mais investimento) nos instantes t1, t2, ... tn, de outro lado é impossível saber o montante de renda nacional produzido naqueles instantes.

REFUTAÇÃO LÓGICA

Na teoria dos preços, a identidade entre oferta e demanda é verificada nos instantes t., mas não durante o intervalo entre eles, pois a realização dos preços ocorre sempre instantaneamente, num tempo descontínuo. Na teoria da renda a identidade macroeconômica básica é verificada tanto nesses instantes quanto nos intervalos entre eles. Ou seja, e essa é a conclusão que Schmitt procura ressaltar, não há sentido em se falar de excesso de demanda dinâmico no contexto da teoria da renda. A mesma conclusão é válida para o caso de análise discreta, em que se define um período de referência (dias, por exemplo) nos quais a renda não varia. Ou seja, apenas de um período a outro se verificaria uma mudança no nível de renda, que se faz acompanhar de mudanças tanto na oferta quanto na demanda agregada. Num dado momento, pode-se ter uma demanda superior, igual ou inferior à demanda do período anterior, mas não uma demanda superior ou inferior à renda. O conceito de excesso de demanda, portanto, não pode ser adaptado, por analogia, à teoria da renda. O erro lógico fundamental dos modelos neoclássicos de determinação da renda está justamente na violação dessa identidade contábil básica, pois associam a variação na renda a variações na demanda (ou seja, um excesso de demanda poderia levar a um ajuste “por quantidades”, da renda nacional, isto é, “até que se atinja um novo ponto de equilíbrio entre oferta e demanda”). A analogia entre o ajuste “via preços” e “via quantidades” somente se sustentaria caso a análise da renda pudesse recorrer à mesma distinção entre t1 e ti. Mas não é possível encontrar, no processo de produção da renda, o momento correspondente à fase ex ante, pois S = D não pode ser refutada. Seja no curto ou no longo prazo, a teoria da renda associa-se à fase ex post, enquanto na teoria dos preços a fase ex post cobre um número finito de instantes. Assim, é logicamente insustentável dizer que a oferta cria demanda ou vice-versa, pois ambas são o mesmo processo. Por isso “a determinação da renda nacional não se presta à análise dinâmica”.

A “teoria keynesiana” básica pode ser resumida na equação Y = C(Y) + I. Essa é a forma elementar que assumiu nas mãos de Samuelson e Hansen, dois dos principais responsáveis pela “neoclassicização” de Keynes. Essa proposição constituiria, junto à equação de determinação do preço de mercado | D (p) - S(p) = O | e à fórmula de maximização dos lucros (RMg = CMg), um dos fundamentos da teoria econômica.

O uso feito por Samuelson, por exemplo, da relação Y = C + I, conduz à noção de uma renda de equilíbrio que seria, justamente, aquela conducente à igualdade entre Y e C + I. Mas se essa relação é uma identidade, ou seja, Y = C+ I, não há como imaginar que ela se verifique em certos instantes e em outros não. O uso de Y = C + I simultaneamente como identidade e condição de equilíbrio é um erro lógico.

Uma das conseqüências mais conhecidas desse arcabouço neoclássico é o “diagrama de 45º”. O consumo é plotado no eixo vertical como função da renda, e um investimento exógeno é superposto à função consumo. Assim, a função demanda agregada (C+I) aparece no gráfico, representando o lado direito de Y = C+I. O lado esquerdo, Y, é a própria renda plotada contra a renda, ou seja, uma linha com inclinação de 45º. A intersecção entre a função C(Y) + I com a reta de 45° fornece o ponto de equilíbrio da macroeconomia neoclássica, análogo ao equilíbrio oferta/demanda do esquema microeconômico marshalliano.

Na realidade, as curvas de oferta e demanda agregada coincidem sempre e seus pontos de “intersecção” constituem um conjunto infinito. Desse modo é impossível, portanto, determinar a renda nacional, pois qualquer nível de renda é uma renda de equilíbrio. Se a renda e a demanda são iguais por definição, sua igualdade não pode ser um critério de equilíbrio. Não é possível, também, associar o crescimento da renda nacional às discrepâncias supostas entre oferta e demanda. O “ajuste por quantidades” é uma falácia. O resultado dessa inconsistência neoclássica é, ao fim, a completa indeterminação da renda nacional. Assim, aquilo que ainda hoje se considera “boa teoria econômica”, sendo matéria de cursos de graduação e pós-graduação, é um ensinamento contraditório que afirma as duas proposições seguintes:

  • (1) Yé idêntico a C + I.

  • (2) Y é permanentemente igualado a C + I.

A reconstrução da teoria macroeconômica exige a aceitação da primeira proposição, mas a analogia entre o mecanismo de ajuste via preços e a determinação da renda deve ser abandonada, antes de tudo, por respeito à lógica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Cencini, A. (1984), Time and the Macroeconomic Analysis of Income, Frances Pinter, Londres.
  • Schmitt, B. (1972), Macroeconomic Theory, A Fundamental Revision, Castella, Albeuve, Suíça.
  • Schmitt, B. (1984), Inflation, Chômage et Malformations du Capital, Castella/Economica, Albeuve/París.
  • 1
    Cf. Schmitt (1972Schmitt, B. (1972), Macroeconomic Theory, A Fundamental Revision, Castella, Albeuve, Suíça. ), (1984Schmitt, B. (1984), Inflation, Chômage et Malformations du Capital, Castella/Economica, Albeuve/París. ) e também Cencini (1984Cencini, A. (1984), Time and the Macroeconomic Analysis of Income, Frances Pinter, Londres. ).
  • 2
    JEL Classification: B41; B21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1989
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