Acessibilidade / Reportar erro

Contra a funilaria econômica

Against the funnel of economic process

RESUMO

Resposta a “Uma crítica à refutação lógica da macroeconomia neoclássica”, de Schwartsmann, Lopes e Pessôa, publicado nessa edição da Revista de Economia Política.

PALAVRAS-CHAVE:
Teoria neoclássica; metodologia da economia

ABSTRACT

Rejoinder to “A critique of the logical refutation of neoclassical macroeconomics”, by Schwartsmann, Lopes and Pessôa, published in this edition of the Brazilian Journal of Political Economy.

KEYWORDS:
Neoclassic theory; methodology of economy

“Seu modo de colocar a questão indica quanto são verdadeiros e significativos aqueles pontos de vista.

Assim, eu diria, estaria mesmo inclinado a usá-lo para fins de exposição. Entretanto, quando se trata de demonstrar algo verdadeiramente lógico e apropriadamente irrefutável, então creio haver vantagens em meu método e que o artfício ex-post e ex-ante não pode ser enunciado precisamente sem artifícios muito obscuros.

Eu costumava falar do período entre as expectativas e o resultado, mas o fato de que os funis são todos de extensões diferentes sobrepondo-se uns aos outros significava que a qualquer tempo dado não haveria resultado agregado realizado que se pudesse comparar com alguma expectativa agregada de uma data anterior.”

J. M. Keynes, carta a B. Ohlin, 27.1.19371 1 The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XIV, The General Theory and After, Part II, Defence and Development, The MacMillan Press, 1973, p. 185.

INTRODUÇÃO

Todo duelo começava com a escolha das armas, ou seja, das regras para duelar. Hoje em dia ós duelos e desafios são outros, mas assim mesmo o hábito da “escolha das armas” deve ser preservado. Assim, antes de responder às criticas dirigidas à refutação lógica da macroeconomia neoclássica. prefiro deixar clara uma regra.

Os meus três críticos procuram apontar “equívocos teóricos básicos”, “confusões conceituais de grandes proporções”. Minha resposta parte de outra perspectiva, a de que na realidade adotamos distintos pressupostos metodológicos (valha o pleonasmo). Boa parte das polêmicas entre economistas acaba no vazio porque os interlocutores acham que falam da mesma coisa, por usarem palavras iguais. Aos críticos e aos leitores sugiro, portanto, esse recuo fundamental em direção ao método, para que se veja com clareza onde e como ocorrem as opções metodológicas estratégicas e não meros equívocos teóricos - e, evidentemente. para que se reconheçam os erros efetivos.

REVISÃO DAS CRÍTICAS

A primeira confusão a mim imputada seria entre preço e efetivação de um ato de troca. Preço e troca estariam “vinculados” ou “ligados” necessariamente. Mas logo os críticos passam a enunciar o problema como sendo o da possibilidade de “associação” entre “relações numéricas” e “bens”. Fora do ato de troca, oferta e demanda seriam incomensuráveis e daí, concluiria Bernard Schmitt,2 2 “The Identity of Aggregate Supply and Demand in Time”, in A. Barrére, (ed.), Foundations of Keynesian Analysis, MacMillan Press, Londres, 1988. a impossibilidade daquela associação em geral.

Há nessa breve resenha feita pelos críticos uma descontextualização do argumento de Schmitt que oculta a questão crucial colocada pelo economista suíço. Porque Schmitt não está simplesmente discutindo se é possível associar números a bens dentro ou fora dos atos de troca. A questão crucial, que meus críticos ocultaram, é a do conceito de Tempo subjacente à “associação” entre números e bens. Schmitt examina os atos de troca para saber se há antes, durante e depois de cada ato da troca possível um Tempo Social. Ou seja, e nisso há ressonâncias da teoria marxista do valor, a troca é examinada na sua capacidade de fundar um processo de integração social. Já em Marx essa impossibilidade apareceria como uma dialética das formas de troca. Em outras palavras, a busca do valor não se resolvia em Marx no ato de troca, mas exigia a própria negação da troca, uma viagem progressiva através de· suas formas rumo ao capital. Entre a troca e o capital, já em Marx, surgia o “tempo socialmente necessário” como substância do valor que a troca, na sua instantaneidade, sugeria, mas não assegurava.

Schmitt, por outros caminhos, está alertando para o mesmo problema, ou a mesma limitação dos atos de troca: neles não há como identificar com segurança o “tempo real”, ou seja, o tempo da produção social. Por isso, a cada troca, surge uma “relação numérica” que não pode existir fora da troca. Isto porque, fora da troca, nada há que assegure a estabilidade no tempo de qualquer associação entre números e bens.

Nem por isso se deve excluir a possibilidade de outras “associações numéricas”. Em particular, um economista que nunca saísse de seu gabinete poderia encomendar livros por infinitos preços imaginados e até mesmo chamar essa atitude de “previsão de valores possíveis de zero ao infinito”. Resta saber se essa ousadia tem alguma validade social, se o economista continuar no gabinete.

É ao processo de validação social que tanto Marx quanto Schmitt chamam a atenção e, não por acaso, através de pesquisas diretas sobre a temporalidade econômica. Deve, portanto, ficar clara essa opção metodológica, oposta drasticamente ao individualismo neoclássico, que num primeiro momento imagina que “os preços representam meramente proporções possíveis de troca entre dois bens, segundo as quais determinado agente estaria disposto a realizar a troca” (Schwartsman, Lopes, Pessôa). Estes preços não representam nada e esse agente é totalmente indeterminado. Mas, como se sabe, essa ficção é apenas o primeiro passo numa outra démarche que é a da fundamentação microeconômica da macroeconomia. Ora, Schmitt está justamente mostrando como a temporalidade da economia do mundo real impede a integração analítica entre “micro” e “macro”. A “noção” de preço pode ser independente de atos efetivos de troca. Mas isso é muito pouco quando se trata de discutir se as trocas podem ou não em si mesmas fundar um mecanismo de ajuste econômico. Os neoclássicos acreditam nessa fundação, mas não são obrigados a recuar a um individualismo metodológico onde as ficções “garantem” a consistência dos modelos.

Essas ficções existem na realidade, mas são os “funis” a que faz referência Keynes em sua resposta a Ohlin. Adaptando um pouco a imagem, poderíamos dizer que a metodologia neoclássica almeja um Funil Ideal que compatibilize todos os processos expectacionais da economia. Contra essa obra de funilaria é preciso não apenas “imaginar, mas sim procurar saber que processos sociais garantem a continuidade no tempo do sistema. As trocas são insuficientes justamente porque nunca se pode torná-las comensuráveis com os infinitos funis reais. O tempo da economia real não coincide com o das trocas, e daí a crítica interna de Schmitt à pretensão neoclássica de transformar os atos de troca em mecanismos de ajuste. Quer dizer, de transformar as volições dos “agentes” em elos entre as dimensões micro e macroeconômicas. Mas os meus críticos pretendem preservar esse programa metodológico, que em termos macroeconômicos aparece como a interpretação da demanda agregada, quanto à sua “natureza econômica”, como novamente uma “referência aos planos dos agentes econômicos” ou às suas “desejabilidades” (sic).

Uma outra qualificação diz respeito aos “equilíbrios não-walrasianos”, onde as trocas ocorrem, apesar da desigualdade entre oferta e demanda. Surge um racionamento, pelo exemplo. Mas cabem então duas questões não resolvidas pelos críticos e, de modo geral, pelos equilibristas não-walrasianos. Primeiro, nada assegura a estabilidade ou perenidade desse equilíbrio. Ou seja, a própria forma de resolver o problema significa criar outro, a que os críticos se referem dizendo que “é necessário algum mecanismo coordenador para que haja igualdade entre oferta e demanda” no sentido abordado por Schmitt. Mas aí já estão colocando a questão em outro terreno que não o de partida. Schmitt não investigava patologias de um equilíbrio geral, mas a lógica e a temporalidade de um ato de troca. Inserir a análise lógica da troca feita por Schmitt num modelo de racionamento é colocar subrepticiamente a questão em outro terreno. Um procedimento usual, mas discutível, no que se refere às regras de debate racional.

Quanto à distinção entre venda/compra e oferta/demanda, novamente há torção da problemática. Schmitt não está pensando num “sistema de trocas”, como se no cérebro do economista fosse automática a prefiguração de uma estrutura de mercado walrasiano. Oferta/demanda e venda/compra apenas coincidem na investigação do suíço na medida em que sua problemática é a do tempo real em que transcorrem os processos econômicos e não a mera definição de agregados abstratos que o mercado deveria de algum modo compatibilizar.

Como álibi para a “desejabilidade” dos agentes surge sempre, portanto, uma distinção entre o que ocorria antes do “real”, no plano dos planos, e depois, quando a contabilidade apreende apenas os dispêndios. Foi justamente contra essa domesticação de sua metodologia em variadas formas de distinção entre ex-ante e ex-post que se insurgiu Keynes, por exemplo, na polêmica com Ohlin com que abrimos esses breves comentários. Mas não se trata de dizer agora que os meus críticos fizeram “grandes confusões”. Há opções fundamentais que diferem. Schmitt retoma o tema clássico da temporalidade, mostrando a incompatibilidade do Tempo Social com a lógica da agregação neoclássica, exatamente como advertia Keynes há 52 anos. A comparação entre resultados e expectativas agregadas exige que se pressuponha uma racionalidade dos agentes cuja concretude na verdade caberia à teoria demonstrar.

  • 1
    The Collected Writings of John Maynard Keynes, vol. XIV, The General Theory and After, Part II, Defence and Development, The MacMillan Press, 1973, p. 185.
  • 2
    “The Identity of Aggregate Supply and Demand in Time”, in A. Barrére, (ed.), Foundations of Keynesian Analysis, MacMillan Press, Londres, 1988.
  • 3
    JEL Classification: B41; B21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1989
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br