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Crescimento e Distribuição: Um modelo estilizado da Riqueza das Nações

Growth and distribution: a stylized model of the Wealth of Nations

RESUMO

Neste artigo, um modelo simplificado é desenvolvido para analisar as principais características do processo de acumulação com base na visão de Adam Smith. O modelo é construído com base em um único produto e enfatiza a relação entre a produtividade, determinada pela divisão do trabalho, a proporção do excedente econômico investido no trabalho produtivo, o salário natural e a taxa de lucro, durante a fase de progresso e no estado estacionário das economias. Além disso, sugere-se um processo de determinação do salário natural com base nos elementos destacados pelos economistas clássicos.

PALAVRAS-CHAVE:
Modelos de crescimento econômico; Smith

ABSTRACT

In this paper, a simplified model is developed to analyze the main characteristics of the accumulation process based on Adam Smith’s view. The model is constructed on the basis of a single product and emphasizes the relation between productivity, determined by the division of labor, the proportion of the economic surplus invested in productive labor, the natural wage and the profit rate, during the phase of progress and in the stationary state of the economies. Additionally, a process is suggested for determining the natural wage based on the elements stressed by the classical economists.

KEYWORDS:
Models of economic growth; Smith

O objetivo de oferecer uma explicação para o processo de acumulação é apontado quase unanimemente, pelos historiadores do pensamento econômico, como a preocupação central de Smith ao escrever a Riqueza das Nações. No livro, e particularmente no capítulo “Acumulação de Capital ou o Trabalho Produtivo e o Improdutivo’1 1 Há pouca dúvida que Smith pretendia que este capítulo fosse considerado a peça central de todo seu trabalho. Capítulos anteriores levam a ele e muitos dos que se seguem são aplicações dele”. (Hicks, 1985, p. 30) , Smith apresenta o progresso econômico como resultado do círculo virtuoso alimentado basicamente pelo aprofundamento da divisão do trabalho - originariamente atribuído a uma “inclinação natural do homem” - e pela expansão do emprego produtivo. Trabalhadores produtivos são aqueles que geram um excedente sobre seu custo de reprodução. A divisão do trabalho, ao reduzir o tempo gasto na troca de tarefas, aumentar a habilidade dos trabalhadores e induzir o progresso técnico, leva ao aumento da produtividade do trabalho que, aplicado a um dado estoque de capital, produz o excedente econômico. Dada a propensão a acumular dos capitalistas, quanto maior o excedente econômico, maior a acumulação de capital. A expansão do capital gera maior absorção de emprego produtivo, crescimento dos salários e da população, permitindo, assim, a ampliação dos mercados. A extensão destes, por seu turno, define os limites da divisão social do trabalho. Este mecanismo opera na fase de prosperidade das nações que, entretanto, tem um limite. Em diversas passagens, Smith refere-se ao estado estacionário, uma fase na qual, tendo a economia atingido sua riqueza máxima, não haveria mais acumulação líquida de capital2 2 Ver a apresentação de W. Fritsch (p. XII) à edição da Riqueza das Nações na coleção Os Economistas. . Conforme veremos, a tendência ao estado estacionário pode ser explicada através da redução da participação dos lucros no produto gerado, à medida em que este se expande, e pela diminuição da propensão a acumular dos capitalistas.

Procuramos desenvolver da forma mais simplificada possível um modelo que coloque em evidência os traços característicos do processo de crescimento na visão de Smith. O modelo estilizado supõe a existência de apenas uma mercadoria e envolve apenas capital circulante, formado por insumos em termos da mercadoria e trabalho produtivo. Este tipo de modelo é o que Hicks denomina “modelo puro” em Smith:

“...o modelo puro é consistentemente desenvolvido sobre a hipótese de que a única forma de capital (a única forma que importa) é o capital circulante ... Não há capital fixo no modelo (formal) de Smith”. (Hicks, 1985, pp. 30/31).

1. UM MODELO ESTILIZADO

Tomamos como ponto de partida a identidade que define o produto X gerado em um período de produção em termos do capital avançado K e do excedente gerado E:3 3 Assim, da produção da terra, uma parte repõe o capital investido pelo arrendatário, e a outra paga seu lucro e a renda da terra ao dono desta ... “, (Smith, 1776, p. 286). Não contemplaremos a divisão do excedente entre lucros e renda da terra por não ser necessária para os resultados fundamentais de Smith e por simplificar consideravelmente a análise. .

(I) X = K + E

O capital avançado divide-se em uma parte destinada à manutenção dos trabalhadores produtivos e em outra que representa os insumos gastos no processo de produção. Podemos então escrever:

(II) K = w + j · L = f · L

onde w é o salário real, j a quantidade de insumos por trabalhador e L é o número de trabalhadores produtivos empregados. A soma (w + j) corresponde ao que os autores pós-ricardianos de meados do século XIX chamavam “fundo de salários” (f) por trabalhador empregado.

Segundo Smith, o crescimento do produto depende diretamente da parcela do excedente destinada à acumulação de capital. Designaremos por ‘a’ a parte do excedente assim empregada.4 4 “A parte que se destina imediatamente a constituir uma renda, como lucro ou como renda da terra, pode ser empregada para manter, indiferentemente, pessoas produtivas ou pessoas improdutivas”. (Smith, 1776, p. 287) Por definição, a variação no estoque de capital entre dois períodos é igual a aE, e por esta razão, ‘a’ representa a propensão a acumular dos capitalistas, sendo q < a < 15 5 “Tudo aquilo que uma pessoa economiza de sua renda, ela o acrescenta a seu capital: quer empregando-a ela mesma para manter um contingente adicional de mão-de-obra produtiva, quer dando a possibilidade de outra pessoa fazê-lo ... “. (Smith, 1776, p. 290) . Raciocinando por enquanto em termos de dois períodos (t = q e t = 1), temos as seguintes expressões para o capital, o emprego e o produto no período t = 1:

(III) K 1 = K 11 + a E 11 = X 11 f / b · 1 - a + a

(IV) L 1 = K / f = X 11 1 - a / b + a / f

(V) X 1 = b / f · K 1 = X 11 1 - a + a b / f

onde b = X / L, representa a produtividade do trabalho. Com as relações estabelecidas acima, observa-se que K1, Li e X1 são determinados a partir do produto gerado pela economia no período anterior, conhecendo-se a produtividade do trabalho, a propensão a acumular dos capitalistas e o fundo de salários. A Figura 1 representa graficamente a relação entre o nível de produção no período q e os diferentes níveis de capital, trabalho produtivo e produto no período 1.

Figura 1

Com base no modelo, é possível exprimir o efeito de um aprofundamento na divisão do trabalho sobre os níveis de capital, produto e emprego. Este efeito manifesta-se através de um aumento em b. Obtemos então:

K 1 / b = - X θ f 1 - a / b 2 < θ L 1 / b = - X θ 1 - a / b 2 < θ X 1 / b > X θ a / f > θ

ou seja, o efeito é positivo (ou nulo) sobre o nível de produto, e negativo (ou nulo) sobre os níveis de capital e emprego, basicamente porque o aumento de produtividade permite, ceteris paribus, que um mesmo nível de produto seja produzido com menor quantidade de trabalho. Os efeitos descritos podem ser apreciados em três situações alternativas: quando θ < a < 1 (caso intermediário), quando a = θ (caso em que todo excedente é gasto improdutivamente) e por último para a = 1 (caso em que todo excedente se destina à contratação de trabalhadores produtivos). O quadro abaixo resume estes resultados:

Quadro 1:
Efeitos da Variação na Produtividade do Trabalho (mb > θ)

É interessante notar que apenas no caso em que a = 1 os níveis de K1 e L1 não sofrem efeito negativo. Isto ocorre porque todo o produto do período t = θ é destinado à acumulação (K 1 = Xθ ) no período seguinte. Nesta situação não importa que a participação do excedente no produto tenha aumentado, pois a parte que é redistribuída do capital para o excedente volta integralmente a ser capital no período seguinte.

Outro exercício de interesse refere-se a uma modificação do fundo de salários, que pode advir da variação do salário real ou da intensidade de capital, medida em nosso modelo pela relação insumos por trabalhador. Suponhamos que o fundo de salários tenha aumentado, sem nos ocuparmos por enquanto com qual tenha sido o determinante desta mudança. O efeito sobre as variáveis endógenas X1, K1 e L1 é dado por:

K 1 / f = X θ f 1 - a ˙ / b < θ L 1 / f = X θ a / f 2 < θ X 1 / f = - X θ a · b / f 2 < θ

O capital no período 1 é positivamente afetado, enquanto os níveis de emprego e de produto devem cair. O efeito depressivo sobre o emprego é o que advogava a “doutrina do fundo de salários” como resultado de uma elevação dos salários reais. :É interessante notar que este efeito depende, em primeiro lugar, de que o fundo de salários tenha se elevado devido ao salário real, e, em segundo lugar, de que o excedente não esteja sendo integralmente destinado ao consumo improdutivo.

Novamente podemos qualificar estes resultados com respeito aos valores de a:

Quadro II:
Efeitos de Variação do Fundo de Salários (mf > θ)

Os Quadros I e II revelam as duas forças que, na trajetória de uma economia ao longo do tempo, explicam a variação de sua riqueza através das variações do estoque de capital: as mudanças na produtividade do trabalho e no fundo de salários.

A taxa de crescimento do produto entre dois períodos, g, é expressa por:

(VI) g = X 1 - X θ X θ = a b / f - 1

onde a expressão entre colchetes representa a taxa de lucro líquida, r. já que:

(VII) r = E f · L = b / f - 1

Logo, a expressão VI pode ser escrita como:

(VIH) g = a · r

indicando que a taxa de crescimento do produto depende da propensão a acumular dos capitalistas e da taxa de lucro, que, por sua vez, depende positivamente da produtividade do trabalho e negativamente do fundo de salários.

Retomemos a ideia smithiana de que as nações atravessam uma fase de progresso, que vai se esmorecendo até dar lugar ao estado estacionário. Analiticamente podemos conceber três situações distintas ao longo da fase de progresso: uma na qual o produto cresce a taxas crescentes (dg/ dt = g’ > θ), outra na qual ele cresce a uma taxa constante (g’ = θ), caracterizando uma situação de steady-state, e outra na qual ele cresce a taxas decrescentes (g’ < θ). O “estado estacionário” é caracterizado por g = θ. O gráfico abaixo ilustra estas situações.

Figura 2

Em termos esquemáticos, não há problema em interpretarmos a trajetória que vai de A até D como representativa do processo que uma nação atravessa até atingir o estado estacionário. Dois mecanismos básicos podem explicar esta sucessão de etapas: por um lado, um progressivo declínio da propensão a acumular ‘a’ até o ponto em que a = θ. Este declínio pode ser atribuído a um crescente esgotamento das possibilidades de investimento, que em última instância decorre da suposta impossibilidade de os mercados expandirem-se indefinidamente. Por outro lado, decorre de uma tendência à redução da taxa de lucros advinda fundamentalmente de um crescimento do fundo de salários a taxas superiores as do aumento da produtividade. Esta tendência resulta da crescente limitação ao processo de divisão do trabalho ditada pela extensão dos mercados e pelo aumento da intensidade de capital por trabalhador, que acompanha o processo de divisão do trabalho:

“... as forças produtivas do mesmo número de trabalhadores só podem ser aumentadas em decorrência quer de algum acréscimo e aperfeiçoamento das máquinas e instrumentos que facilitam e abreviam o trabalho, quer de uma divisão e distribuição mais apropriada do emprego. Em ambos os casos quase sempre se requer um capital adicional ... Quando o serviço a ser feito comporta operações diversificadas, manter cada empregado constantemente ocupado em uma função exige capital muito maior do que quando cada empregado é sucessivamente utilizado em cada uma das operações ... “. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 294)

Para analisarmos o mecanismo derivado do comportamento da taxa de lucros admitiremos por um momento que a propensão a acumular seja constante. O aumento, a diminuição ou a estabilidade da taxa de crescimento depende então do comportamento da taxa de lucros ao longo do tempo. Analiticamente, a taxa de lucro bruta R é dada por:

(X) R = b / f

Assim, temos que (dR / dt)/R > q se (db / dt) / b > (df / dt)/f. Vale dizer, a taxa de lucro aumenta enquanto a elevação da produtividade mais que compensar o aumento do fundo de salários. O mesmo se aplica, portanto, à taxa de crescimento g, dada uma certa propensão a acumular a.

Cabe notar que, como f = w + j, a relação entre b e f depende tanto do salário real quanto da relação capital/trabalho. Como o efeito depressivo sobre a taxa de lucro provém também da relação capital por trabalhador, é preciso, antes de prosseguirmos, examinar o papel do salário real neste processo.

2. A DETERMINAÇÃO DO SALÁRIO REAL

A partir da leitura do capítulo “Os Salários do Trabalho”, é possível identificarmos quatro elementos que interagem na determinação do salário real, segundo a concepção de Smith: 1) os fatores institucionais e convencionais, 2) o poder de barganha de trabalhadores e capitalistas, 3) a velocidade da acumulação de capital e 4) a velocidade de crescimento da população. (Cf. Garegnani 1985Garegnani, P. (1985) “Sraffa: Classical Versus Marginalist Analysis”, apresentado no seminário: Sraffa’s Production of Commodities after 25 Years, Florença, agosto de 1985. ). Os fatores institucionais e convencionais determinam o patamar mínimo que o salário real pode atingir, o chamado “salário de subsistência” (ws). Este salário é a remuneração mínima requerida para que o trabalhador possa sobreviver e garantir sua reprodução, dentro dos padrões definidos pelo contexto histórico. Logo, ao nível do salário de subsistência, a oferta de trabalhadores permanece inalterada ao longo do tempo.

O poder de barganha de trabalhadores e capitalistas é o elemento que em última instância determina o nível do salário real w, pois os efeitos de variações na velocidade da acumulação de capital, que determina o ritmo da demanda por trabalho, e da velocidade de crescimento da população, que define o ritmo da oferta de trabalho, se fazem presentes na medida em que provocam alterações no poder de barganha das partes. A ideia é que as condições de competição no mercado de trabalho participam da determinação do salário, atuando através do fortalecimento ou do enfraquecimento da posição relativa de capitalistas e trabalhadores. Daí conclui-se que, na visão de Smith, o valor do salário real não é independente do processo de concorrência no mercado de trabalho, mas que esta não opera, como na teoria neoclássica, desvinculada de qualquer contexto político, histórico e institucional e, principalmente, não implica, conforme veremos, pleno emprego da força de trabalho.

Dados os condicionantes institucionais e convencionais de um certo momento histórico, ws aparece como um dado do modelo. Se adicionalmente permitirmos que o poder de barganha dos trabalhadores aumente conforme a demanda por trabalho se acelere, ao mesmo tempo em que a “posição mais vantajosa” dos patrões se enfraquece6 6 “Não é difícil prever qual das duas partes normalmente leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra a concordar com suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com maior facilidade, além disso a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para os trabalhadores ela proíbe”, (Smith, 1776, p. 92). No entanto, “ ... quando em qualquer país a demanda por pessoas que vivem de salários. . . está em contínuo aumento. . . A escassez de mão-de-obra provoca uma concorrência entre os patrões, que disputam entre si para conseguir operários, e dessa forma voluntariamente violam o natural conluio patronal para que não se elevem os salários”. (Smith, 1776, p. 94) , teremos como resultado um salário real, endogenamente determinado, de modo a equilibrar o crescimento da oferta de força de trabalho com os requisitos da demanda.7 7 “ ... em uma sociedade civilizada é somente entre as camadas inferiores da população que a escassez de gêneros alimentícios pode estabelecer limites para a posterior multiplicação da espécie humana... A remuneração generosa do trabalho tende naturalmente a ampliar e estender esses limites. Além disso, cumpre observar que necessariamente faz isso tanto quanto possível, na proporção exigida pela demanda de mão-de-obra. ... O mercado acusará uma falta tão grande de mão-de-obra em um caso. e uma saturação tão grande em outro, que logo o preço da mão-de-obra será forçado a posicionar-se na taxa adequada exigida pelas circunstâncias da sociedade”. (Smith, 1776, p. 102)

O salário real pode ser determinado a partir da equação VI (supondo-se a, b e j como dados), uma vez que a taxa de crescimento da demanda por trabalho é neste modelo igual à taxa de crescimento do produto. E da equação abaixo que estabelece o crescimento da oferta de trabalho (n) como função da diferença entre o salário real e o de subsistência:

(XI) n = 1 w - w s , 1 > θ ,

De acordo com esta equação, a velocidade de crescimento da oferta de trabalho, derivada naturalmente do crescimento mais acelerado da população, será tanto maior quanto maior for a diferença entre o salário real e o de subsistência. Naturalmente quando w = ws, a oferta de trabalho não cresce, n = 8. A Figura 3 ilustra a determinação do salário.

FIGURA 3

O salário w*, endogenamente determinado, pode ser visto como sendo o salário natural de Smith. É nítido que o salário natural - aquele em torno do qual o salário real flutua ao longo do tempo, pois em condições de equilíbrio tendem a igualar-se - é diferente do salário de subsistência, em qualquer economia com taxa de crescimento positiva. Adicionalmente, podemos notar que dada a posição da curva n, quanto maior for a taxa g maior será o nível de salário natural da economia. Isto é compatível com a ideia de Smith de que os altos salários são provocados pelo crescimento e não pela extensão efetiva da riqueza nacional.8 8 “Não é, portanto, nos países ricos, mas nos países mais progressistas, ou seja, naqueles que estão se tornando ricos com maior rapidez, que os salários do trabalho são mais altos”. (Smith, 1776, p. 95) Entende-se, portanto, que, à medida que a riqueza da nação aumenta e esta se aproxima do estado estacionário onde g = 8, a diferença entre o salário natural e o de subsistência vai se estreitando. Portanto é apenas no estado estacionário que o salário natural é igual ao de subsistência.9 9 “Mesmo que a riqueza de um país seja muito grande, se ele estiver estagnado por muito tempo, não podemos esperar encontrar nele salários muito altos. ... Se em tal país os salários do trabalho alguma vez tivessem sido mais do que suficientes para a manutenção do trabalhador, além de capacitá-lo para criar uma família, a concorrência dos trabalhadores e o interesse dos patrões logo os reduziriam à taxa mínima consentânea com a humanidade em geral”. (Smith, 1776, p. 96)

É interessante destacar que mesmo considerando que exista competição no mercado de trabalho Smith não deriva daí a conclusão de que há uma tendência ao pleno emprego da força de trabalho. Para ilustrar este ponto, tomemos a seguinte situação: a economia aproxima-se do estado estacionário e o crescimento da demanda por mão-de-obra torna-se cada vez menor frente ao crescimento da oferta. O desemprego cresce gerando inequívoca pressão à queda do salário real. Suponhamos então que a economia eventualmente venha a atingir o estado estacionário: o salário real cairá até igualar-se ao de subsistência produzindo, finalmente, o equilíbrio definido por g = n = 8. Neste momento, mesmo com o equilíbrio reestabelecido, o desemprego gerado persiste:

“em um país em que estivessem diminuindo sensivelmente os fundos destinados à manutenção da mão-de-obra, ... a cada ano a demanda por trabalhadores seria menor que no ano anterior. Muitos dos que possuíam seu emprego próprio, não conseguindo emprego em sua própria atividade, seriam obrigados a procurá-lo em atividades do nível mais baixo. ... a concorrência por emprego nesta classe mais baixa seria tão grande a ponto de reduzir os salários à subsistência mais mísera e deficiente do trabalhador. Muitos não conseguiram encontrar emprego, mesmo nessas árduas condições, e teriam que morrer de fome, procurar sua subsistência na mendicância ou praticar atos os mais indignos”. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 97)

Desta forma ficam evidentes quatro diferenças marcantes entre a concepção clássica, aqui representada por Smith, e a concepção neoclássica, que frequentemente procura se fundamentar neste mesmo autor. Em primeiro lugar, em Smith oferta e demanda no mercado de trabalho interferem não mais que indiretamente na determinação do salário real, i.e., via efeito sobre o poder de barganha das partes envolvidas no processo de negociação. Em segundo lugar, de acordo com a versão clássica, as próprias forças de mercado dependem de fatores como a taxa de acumulação de capital e a taxa de crescimento da população. Em terceiro, mesmo havendo um processo de equilíbrio na determinação do salário real, este mecanismo não garante a plena ocupação da força de trabalho conforme esclarece a passagem anterior. Finalmente, o equilíbrio estacionário com excesso de oferta de trabalho não leva o sistema a uma situação em que o salário real é nulo.

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os referidos estágios de progresso, estacionariedade e declínio das nações referem-se, em um enfoque de longo prazo, às diferentes fases de desenvolvimento nas quais a economia pode ser situada. Estas fases resumem períodos históricos dentro dos quais os elementos convencionais e institucionais estão dados.

Assim, na Figura 3 caracteriza-se uma situação de equilíbrio de longo prazo e dentro da fase de progresso; já que o salário real ali determinado é maior que o de subsistência. Fica claro, então, que a trajetória entre “A” e “D” descrita na Figura 2, explica-se, para um salário de subsistência constante, pela relação entre os aumentos de produtividade e os aumentos da intensidade de capital por trabalhador, ou pelo comportamento da propensão a acumular dos capitalistas. Observa-se ainda que o movimento determinando taxas de crescimento menores pode ser descrito através da Figura 4, considerando-se os deslocamentos da curva g ao longo da curva n.

FIGURA 4

Este desenvolvimento analítico serve de base para a sugestão de que a economia aproxima-se do estado estacionário por efeito da queda da taxa de lucros derivada de aumentos na intensidade de capital (j) mais que proporcionais aos aumentos de produtividade (b): (db/dt)/b < (dj/dt)/j, e por efeito da diminuição na propensão a acumular dos capitalistas, como resultado do estreitamento das oportunidades de investimento e da própria queda da taxa de lucro. Observa-se, portanto, que, dada uma curva n, a curva g desloca-se para a esquerda por efeito de aumentos da intensidade de capital (j) e de diminuições da propensão a acumular (a).

Finalmente, a fim de definirmos o estado estacionário (situação D), há que supor uma mudança dos elementos convencionais e institucionais. Em nosso modelo, o efeito desta mudança é incorporado através da elevação do salário de subsistência, uma vez que a nação se torne mais rica. Sendo assim, teríamos que considerar dois movimentos para alcançar-se o estado estacionário: o deslocamento da curva n para cima, determinado por um ws maior que o da fase de progresso, e os referidos deslocamentos da curva g.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

  • Dobb, M. (1973) Teorias do Valor e Distribuição desde Adam Smith, Editorial Presença, Lisboa.
  • Eltis, W. (1984) The Classical Theory of Economic Growth, The MacMillan Press Ltd.
  • Garegnani, P. (1985) “Sraffa: Classical Versus Marginalist Analysis”, apresentado no seminário: Sraffa’s Production of Commodities after 25 Years, Florença, agosto de 1985.
  • Ricks, J. (1985) Methods of Dinamic Economics, Claredon Press, Oxford.
  • Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo.
  • Sylos-Labini, P. (1984) “Competition and Economic Growth in Adam Smith”, in P. Sylos-Labini, The Forces of Economic Growth and Decline, The MIT Press.
  • 1
    Há pouca dúvida que Smith pretendia que este capítulo fosse considerado a peça central de todo seu trabalho. Capítulos anteriores levam a ele e muitos dos que se seguem são aplicações dele”. (Hicks, 1985Ricks, J. (1985) Methods of Dinamic Economics, Claredon Press, Oxford. , p. 30)
  • 2
    Ver a apresentação de W. Fritsch (p. XII) à edição da Riqueza das Nações na coleção Os Economistas.
  • 3
    Assim, da produção da terra, uma parte repõe o capital investido pelo arrendatário, e a outra paga seu lucro e a renda da terra ao dono desta ... “, (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 286). Não contemplaremos a divisão do excedente entre lucros e renda da terra por não ser necessária para os resultados fundamentais de Smith e por simplificar consideravelmente a análise.
  • 4
    “A parte que se destina imediatamente a constituir uma renda, como lucro ou como renda da terra, pode ser empregada para manter, indiferentemente, pessoas produtivas ou pessoas improdutivas”. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 287)
  • 5
    “Tudo aquilo que uma pessoa economiza de sua renda, ela o acrescenta a seu capital: quer empregando-a ela mesma para manter um contingente adicional de mão-de-obra produtiva, quer dando a possibilidade de outra pessoa fazê-lo ... “. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 290)
  • 6
    “Não é difícil prever qual das duas partes normalmente leva vantagem na disputa e no poder de forçar a outra a concordar com suas próprias cláusulas. Os patrões, por serem menos numerosos, podem associar-se com maior facilidade, além disso a lei autoriza ou pelo menos não os proíbe, ao passo que para os trabalhadores ela proíbe”, (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 92). No entanto, “ ... quando em qualquer país a demanda por pessoas que vivem de salários. . . está em contínuo aumento. . . A escassez de mão-de-obra provoca uma concorrência entre os patrões, que disputam entre si para conseguir operários, e dessa forma voluntariamente violam o natural conluio patronal para que não se elevem os salários”. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 94)
  • 7
    “ ... em uma sociedade civilizada é somente entre as camadas inferiores da população que a escassez de gêneros alimentícios pode estabelecer limites para a posterior multiplicação da espécie humana... A remuneração generosa do trabalho tende naturalmente a ampliar e estender esses limites. Além disso, cumpre observar que necessariamente faz isso tanto quanto possível, na proporção exigida pela demanda de mão-de-obra. ... O mercado acusará uma falta tão grande de mão-de-obra em um caso. e uma saturação tão grande em outro, que logo o preço da mão-de-obra será forçado a posicionar-se na taxa adequada exigida pelas circunstâncias da sociedade”. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 102)
  • 8
    “Não é, portanto, nos países ricos, mas nos países mais progressistas, ou seja, naqueles que estão se tornando ricos com maior rapidez, que os salários do trabalho são mais altos”. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 95)
  • 9
    “Mesmo que a riqueza de um país seja muito grande, se ele estiver estagnado por muito tempo, não podemos esperar encontrar nele salários muito altos. ... Se em tal país os salários do trabalho alguma vez tivessem sido mais do que suficientes para a manutenção do trabalhador, além de capacitá-lo para criar uma família, a concorrência dos trabalhadores e o interesse dos patrões logo os reduziriam à taxa mínima consentânea com a humanidade em geral”. (Smith, 1776Smith, A. (1776) “A Riqueza das Nações”, Coleção Os Economistas, Abril SA, São Paulo. , p. 96)
  • 10
    JEL Classification: B12; O41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1990
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