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Dolarização crônica: Argentina e Brasil

Chronic dollarization: Argentina and Brazil

RESUMO

A dolarização é geralmente um fenômeno monetário agudo. Acompanha processos inflacionários de curta duração. Na América Latina, é comum ouvir-se uma ameaça de dolarização, mas a dolarização efetiva ocorre apenas com a hiperinflação. Uma exceção é a Argentina, onde há um fenômeno historicamente novo: uma dolarização crônica e duradoura. Se a inflação crônica (inercial) é particularmente difícil de controlar, a dolarização crônica é ainda mais difícil.

PALAVRAS-CHAVE:
Dolarização; inflação; estabilização

ABSTRACT

Dollarization is usually an acute monetary phenomenon. It accompanies short-lived inflationary processes. In Latin America, it is usual to hear of a threat of dollarization, but effective dollarization only takes place with hyperinflation. An exception is Argentina, where there is a historically new phenomenon: a chronic, long-lived dollarization. If chronic (inertial) inflation is particularly difficult to control, chronic dollarization is still more difficult.

KEYWORDS:
Dollarization; inflation; stabilization

INTRODUÇÃO

Os economistas latino-americanos desenvolveram durante a primeira metade dos anos 80 a teoria da inflação inercial ou da inflação crônica. As características desse tipo de inflação tornam extremamente difícil seu controle. Enquanto as inflações moderadas, geralmente inferiores a um dígito anual, e as hiperinflações clássicas são controláveis com relativa facilidade através de rígidas políticas fiscais e monetárias, as inflações crônicas só podem ser controladas através de uma combinação de políticas de renda (congelamento de preços) com rígidas políticas fiscais e monetárias. Este foi o caso das duas experiências bem-sucedidas de controle de uma inflação crônica: Israel (1985) e México (1987). É certo que houve também o caso do Chile, onde não se utilizou a política de rendas; porém ali existia um regime autoritário capaz de impor uma severa disciplina ao setor assalariado e regular o comportamento do setor privado. De qualquer forma, o custo social da estabilização nesse país foi extremamente alto.1 1 Ver FOXLEY, Alejandro 1983; GATICA e MIZALA, 1990; KIGUEL e LIVIATAN, 1988.

No Brasil e na Argentina, as tentativas de controlar a inflação crônica fracassaram. Referimo-nos às experiências anteriores a março de 1990, quando foram lançados novos programas de estabilização pelos presidentes Collor e Menem, que não serão objeto de nossa reflexão. Nos dois países, em determinados momentos, a inflação crônica não apenas não foi controlada, mas se transformou em hiperinflação. Em março de 1990 o índice de preços ao consumidor alcançou cerca de cinco mil por cento anuais no Brasil e vinte mil por cento anuais na Argentina.

No Brasil, a hiperinflação ocorreu em fevereiro-março de 1990; na Argentina, em duas oportunidades (maio-julho 1989 e dezembro 1989-março 1990). No caso do Brasil está claro que a principal causa do fracasso dos planos de estabilização foi sua incapacidade de levar até o fim (até alcançar o superávit) o ajuste fiscal necessário. Na Argentina, porém, além dessa mesma causa, há um segundo motivo para o fracasso das políticas de estabilização: a “dolarização crônica”.

A tese deste artigo é a de que a dolarização crônica é um fenômeno específico da economia argentina. É um processo que deve ser distinguido: 1. seja dos processos de “dolarização aguda”, que ocorreram nas hiperinflações clássicas (Áustria, 1922; Hungria, 1922 e 1946; Polônia, 1922; Alemanha, 1923); 2. seja da permanente “ameaça de dolarização”, que ronda a economia brasileira e todas as demais economias cuja inflação tende a se transformar em hiperinflação. A dolarização crônica tem evidente relação com a inflação crônica, mas dela se distingue. A primeira é uma manifestação particularmente perversa da segunda, que se registra em um único país: a Argentina. Estabilizar uma economia a partir da inflação crônica é uma empresa difícil. Se, além disso, como sucede com a Argentina, a inflação crônica se expressa em termos de dolarização crônica, a política de estabilização enfrenta desafios ainda maiores. Nessas condições, estabilizar a taxa de câmbio e modificar o comportamento dos agentes econômicos é tarefa que até agora não teve outra sorte senão a de Sísifo.

Nas duas seções deste artigo analisaremos, primeiro, o conceito de dolarização crônica e, segundo, as dificuldades adicionais que emergem para a estabilização quando a dolarização se torna crônica.

DOLARIZAÇÃO AGUDA E CRÔNICA

Entende-se por dolarização da economia o processo através do qual a moeda nacional é, na prática, substituída pelo dólar (ou por alguma outra divisa forte). O processo de substituição de moeda, que nunca é completo, fica bem caracterizado quando se conjugam dois fenômenos: primeiro, as principais transações passam a ser indexadas pela taxa de câmbio entre a moeda nacional e o dólar; segundo, tais transações passam a ser diretamente realizadas em dólares.

Ambos os fenômenos tendem a ser subsequentes. A taxa de inflação, p, passa a ser determinada pela taxa de variação nominal da taxa de câmbio, e:

p = e (1)

A taxa de aceleração ou desaceleração da taxa de inflação, p’, decorre da taxa de aceleração da desvalorização nominal da moeda, e’.

p = e (2)

O indexador básico da economia torna-se, portanto, a taxa. de câmbio. Os agentes econômicos elevam seus preços na moeda local na medida em que esta se desvaloriza nominalmente em relação ao dólar. Não há valorização ou desvalorização real porque a inflação acompanha exatamente a taxa de câmbio nominal.

Em um segundo momento, as transações passam a ser realizadas diretamente em dólares. Se o Banco Central autorizou depósitos de residentes no país em dólares, os pagamentos podem ser feitos com cheques. Se essa autorização ainda não foi dada, os pagamentos se fazem ou em papel-moeda, ou através da transferência de fundos depositados em bancos no exterior.

No auge das hiperinflações um terceiro fenômeno tende a ocorrer, completando o processo de dolarização: o estoque de dólares para transações domésticas (dólares existentes dentro das fronteiras do país e depósitos no exterior utilizados como meio de pagamento para as transações domésticas), Mx, excede o estoque de ativos monetários denominados em moeda nacional, MN, que pode ser identificado com M4.2 2 M4 inclui, além dos depósitos à vista e do dinheiro em poder do público (MI), os depósitos no overnight, os depósitos a prazo e os depósitos de poupança. Quando isto acontece, a moeda nacional perde grande parte de sua importância: embora continue a existir e a desempenhar um papel - os salários e os impostos continuam a ser pagos em moeda nacional - a dolarização torna-se quase total.

M x > M N (3)

Este fenômeno ocorreu nas hiperinflações clássicas. Bresciani-Turroni, por exemplo, nos fala da dolarização na Alemanha em 1923, mostrando a transformação da taxa de câmbio no indexador básico da economia:

Na fase inicial o valor externo do marco era dominado principalmente, no seu movimento geral, pela queda do poder de compra do marco no mercado doméstico. Em uma fase mais avançada os movimentos do valor interno e do poder de compra externo do marco alemão parecem determinados principalmente pela taxa do dólar expressa em marcos. (1931BRESCIANI-TURRONI, Constantino (1937). The Economics of lnflation. Londres, George Allen and Unwin.: 143-4)

Mas é importante assinalar que essa foi uma dolarização aguda. Ocorreu em período relativamente curto. Tão curto quanto foi pouco demorada a hiperinflação na Alemanha dos anos 20. Na verdade, as hiperinflações sempre foram acompanhadas por dolarização. Como, entretanto, sempre tenderam a ter curta duração, o mesmo ocorreu com a dolarização.

A dolarização crônica é aquela que compreende os três elementos do conceito de dolarização, mas não se esgota rapidamente através da hiperinflação. Os preços são indexados em dólares. Uma quantidade crescente de transações é realizada em dólares. A quantidade de dólares usada para transações supera a quantidade de moeda nacional, mas nem por isso se tem uma hiperinflação rápida seguida de estabilização. Da mesma forma que a inflação se torna crônica, a dolarização assume o mesmo caráter. A inflação estende-se no tempo e pode em alguns momentos chegar à hiperinflação; em seguida os preços são parcialmente controlados, e se volta, cronicamente, para taxas de inflação elevadas - mas que não caracterizam hiperinflação - e para a dolarização: a dolarização crônica.

AMEAÇA DE DOLARIZAÇÃO E VERDADEIRA DOLARIZAÇÃO

Nos países da América Latina há muito se fala em dolarização. Pierre Salama (1989SALAMA, Pierre (1989). La Dollarisation. Paris, La Découverte. Publicado em português pela Editora Nobel, São Paulo.) escreveu, inclusive, um livro com esse título: La Dolarízation. Na verdade, entretanto, o que se teve na maioria dos países latino-americanos, com exceção da Argentina, foi uma ameaça de dolarização, e não dolarização propriamente dita.3 3 Excluído também, naturalmente, o Panamá, onde a dolarização é total: a moeda oficial do país é o dólar. Conforme sublinha o autor, a dolarização ocorre quando a moeda nacional deixa de ser reserva de valor, não serve mais como unidade de conta e perde o caráter de intermediária entre as trocas (1989: 16-9). Ora, excluída a Argentina, em nenhum outro país latino-americano a taxa de câmbio se transformou no indexador fundamental da economia, a não ser em momentos agudos, como foi o caso da hiperinflação boliviana.

No Brasil, em que há tradicionalmente duas taxas de câmbio (a oficial e a paralela), a taxa de câmbio oficial era, desde 1968 até o Plano Collor (março 1990), determinada pela taxa de inflação, através da política de minidesvalorizações, e não o contrário. As minidesvalorizações nunca seguiram uma fórmula perfeita, de forma que houve valorizações e desvalorizações reais de cruzeiro, mas de um modo geral procurou-se manter uma taxa de câmbio estável. Já o dólar paralelo tem variado amplamente em relação à inflação (e ao dólar oficial), demonstrando que a taxa de câmbio paralela não é o principal indexador da economia. Na verdade, jamais chegou a ser um indexador decisivo dos preços no Brasil, a não ser para imóveis.

A não-dolarização da economia brasileira implica no fato de que a demanda por moeda nacional se manteve sempre relativamente alta, mesmo em épocas de alta inflação. Caiu a demanda por M1, ou seja, pelo conceito tradicional de moeda, que de dezessete por cento do PIB no início dos anos 70 reduziu-se para dois por cento em 1989. Mas a moeda em seu conceito amplo, M4, manteve-se relativamente estável.4 4 No início de março de 1990, às vésperas do lançamento do Plano Collor, o estoque de ativos financeiros denominados em moeda nacional (M4) equivalia a US$ 110.000 milhões, correspondentes a vinte e nove por cento de um PIB estimado em US$ 365.000 milhões. Isto foi possível dada a existência de uma moeda indexada - a OTN (Obrigações do Tesourei Nacional) e, mais recentemente, o BTN (Bônus do Tesouro Nacional) - que corrigia a diferença entre M1 e M4. É conveniente, porém, lembrar que em outras economias latino-americanas (excluída a Argentina), houve inflação crônica ou inercial embora inexistisse moeda indexada formalmente. Nesses países, embora - da mesma forma que na Argentina - não houvesse indexação informal, a dolarização manteve-se apenas como ameaça; não se transformou em dolarização crônica.

O caso de dolarização crônica é específico da Argentina, apesar de, obviamente, nenhum país estar isento desta possibilidade. Na Argentina pode-se afirmar que as três características definidoras da dolarização (dólar como indexador, moeda de transação e moeda dominante) estão basicamente presentes.

No Quadro l, a evolução semanal do dólar paralelo e a inflação no Brasil e na Argentina, demonstra como a inflação acompanha de perto e geralmente com pequena defasagem a taxa de câmbio na Argentina, deixando claro o caráter indexador do dólar neste país, enquanto no Brasil o comportamento das duas variáveis é independente no curto prazo. Escolhemos o período março 1989 - março 1990 porque ele inclui os momentos hiperinflacionários nos dois países.

Quadro 1
Inflação e Taxa de Câmbio na Argentina e no Brasil (evolução semanal - março 1989-março 1990)

O CASO ARGENTINO

Até o salto brusco (1975) da taxa de inflação para cima de sua média histórica do período 1945-75 (de vinte e cinco a trinta por cento anuais), a monetização da economia argentina era relativamente elevada. O M4 representava cerca de vinte e cinco por cento do PIB. Desde então, a demanda por dinheiro em moeda nacional tendeu a declinar, alcançando seus pontos mais baixos nos picos hiperinflacionários. No último, em fevereiro de 1990 (antes da conversão dos depósitos a prazo fixo e dos títulos da dívida pública interna em bônus externos denominados em dólares a longo prazo), M1 era inferior a três por cento do PIB e M4, inferior a cinco por cento. A formação de portfólios de ativos financeiros se deslocou para o dólar e outras divisas. A fuga de capitais é um problema de longo prazo na economia argentina que se tornou mais agudo nos últimos anos com as expectativas negativas sobre a situação e perspectivas do país. Não existem estimativas seguras sobre os ativos financeiros em divisas estrangeiras de residentes argentinos. Existe um certo consenso entre os analistas que o total desses ativos no exterior é da ordem de US$ 30.000 milhões e que, dentro das fronteiras do país, sobe a cerca de US$ 5.000 milhões. Se estas estimativas forem corretas, o total de ativos denominados em divisas estrangeiras representaria cerca de dez vezes o total dos denominados em austrais, e o estoque de dólares em bilhetes dentro das fronteiras argentinas cerca de 1,5 vez o M4. Sugere-se aqui que este predomínio dos ativos financeiros denominados em divisas estrangeiras em relação aos investidos em austrais é um fator que define com clareza a dolarização da economia argentina. Dada a sua duração, o processo assume caráter crônico ou endêmico.

As causas que levaram a Argentina a essa situação excedem os limites das variáveis estritamente fiscais e monetárias. A crise política de longo prazo; a queda da renda por habitante em trinta por cento ao longo dos anos 80; a forte redução da taxa de investimento de seus níveis históricos superiores a vinte por cento do PIB a seus níveis recentes da ordem de onze por cento; a inflação crônica que é a mais elevada e prolongada da história, não só da América Latina mas também do resto do mundo; o extraordinário processo de contração do setor industrial; o endividamente externo e suas perversas consequências sobre a situação fiscal e o balanço de pagamentos são todos fatores convergentes que contribuem para a formação de expectativas fortemente negativas e profundamente arraigadas. Esses fatores deprimem a demanda por dinheiro em moeda nacional e fomentam a formação de ativos financeiros em divisas estrangeiras. Em relação ao Brasil e a alguns outros países da América Latina, a Argentina possui também maior tradição de inserção nas correntes financeiras e no mercado mundial. Em outras palavras, a transnacionalização das decisões financeiras dos agentes econômicos é consistente com a tradição histórica. Foi, além disso, fortalecida com a liberação do mercado monetário e de câmbio de 1977 e a presença crescente de filiais de bancos internacionais na praça argentina. Muitos desses fatores estão presentes em outros países da América Latina. Mas todos juntos e nessa escala somente são observáveis na Argentina.

Uma das manifestações mais perversas do processo de dolarização crônica e de redução da demanda por dinheiro em moeda nacional é o forte conteúdo especulativo das operações financeiras e a arbitragem permanente entre as taxas de juros das praças externas e local. Deste modo, desde meados da década de 1970 se registraram fortes movimentos especulativos de capital de curto prazo, que provocaram mudanças bruscas na paridade real da moeda nacional. Isto gerou distorções extraordinárias entre os preços relativos dos bens comercializáveis internacionais e os bens não-comercializáveis. Provocou, além disso, um fenômeno insólito. As fortes variações dos preços em dólares. Nas fases de atraso da paridade cambial (geralmente por influência da entrada de capitais especulativos e de curto prazo) os preços em dólares dos bens e serviços transacionais no mercado argentino sobem fortemente (temos, portanto, uma inflação em dólares) e o contrário sucede nos períodos de desvalorizações maciças. O fluxo turístico do Brasil para a Argentina é um bom indicador dessas mudanças de paridade real da moeda argentina. Ou seja, a Argentina registra cronicamente processos de inflação e de deflação em dólares.

CONSEQUÊNCIAS DA DOLARIZAÇÃO CRÔNICA

As dolarizações agudas acabam rapidamente, assim que acaba a hiperinflação (que nas hiperinflações clássicas não passam por um estágio de inflação crônica ou inercial), porque nem a inflação nem a dolarização se tornaram profundamente inseridas na mentalidade e nas práticas empresariais dos agentes econômicos. No caso da Argentina, não apenas a inflação, mas também a dolarização se tornaram crônicas porque, através do tempo, a memória coletiva da sociedade e o comportamento dos agentes econômicos e sociais se baseou no convencimento de que a alta inflação é irremediável e que o futuro do país é incerto. Daí derivam as decisões de proteger-se, através da dolarização, das consequências da inflação; de especular com o dólar ou de transformar parte substancial da poupança nacional em ativos em divisas localizadas fora do processo econômico argentino. Este comportamento, somado às consequências da dívida externa, explica a dramática queda da taxa de investimento argentina, a redução do sistema produtivo e o desmantelamento de atividades dinâmicas e de maior conteúdo tecnológico no setor manufatureiro.

A consequência fundamental deste fato é a de que se torna muito mais difícil estabilizar a economia. Estabilizar uma economia com inflação crônica ou inercial já é extremamente difícil.5 5 Ver BRESSER-PEREIRA e NAKANO, 1984; BRUNO, DI TELLA, DORNBUSCH e FISCHER (1988); KIGUEL e LIVIATAN (1988). Talvez mais até do que terminar com hiperinfla­ções que não foram antecedidas de inflação crônica. Muito mais complexa, porém, ciclópica mesmo, é a tarefa de estabilizar uma economia que, além da inflação crônica, apresenta uma dolarização crônica, na qual a demanda por moeda nacional entrou em colapso. Como, ao mesmo tempo, a Argentina perdeu as diretrizes de um projeto nacional de desenvolvimento e de inserção internacional viáveis, compreende-se que as expectativas e os comportamentos dos agentes econômicos sejam o que são.

A experiência revela que para estabilizar a economia é necessário ancorá-la em certas variáveis críticas. A quantidade de moeda em circulação pode ser utilizada como âncora nominal quando a inflação é ainda relativamente baixa. Entretanto, quando a inflação se torna crônica ou inercial, a queda brusca da taxa de inflação provoca um aumento imediato da demanda por dinheiro e dos coeficientes de liquidez. Dessa forma, só resta como âncora nominal a taxa de câmbio. É imprescindível que ela se mantenha praticamente estável se o objetivo é realmente acabar com a inflação. As experiências de estabilizações bem-sucedidas são muito claras a esse respeito.

Ora, estabilizar a taxa de câmbio e fazê-la funcionar como uma âncora nominal no caso da dolarização crônica é particularmente difícil. O governo não tem meios efetivos de controlar a taxa de câmbio. Não apenas por geralmente não ter reservas suficientes, mas também porque as variações especulativas na demanda e na oferta de dólares tendem a ser incontroláveis. Francisco Lopes, a partir do fracasso das experiências de estabilização no Brasil e na Argentina, tem afirmado que isto deriva do fato de que as condições iniciais necessárias para o êxito do congelamento de preços (equilíbrio fiscal, equilíbrio dos preços relativos inclusive a taxa de câmbio etc.) são inviáveis. Nessas circunstâncias, a melhor alternativa para tais países seria a hiperinflação e a dolarização da economia, que se completaria no momento em que o volume de moeda estrangeira superasse o de moeda nacional. Ao adotar a moeda estrangeira, a sociedade tornaria irrelevante a inflação em moeda local. Além disso, o governo seria forçado a realizar o ajuste fiscal (1989LOPES, Francisco L. (1989). O Desafio da Hiperinflação. Rio de Janeiro, Editora Campus.: 82). Esta análise tem levado a prever para até o final de 1990 a estabi­lização da inflação argentina. Segundo Lopes,

o que pode estar acontecendo na Argentina agora (maio de 1990) é o final da hiperinflação (historicamente elas costumam durar entre um ano e um ano e meio). A economia parece estar próxima de alcançar os três requisitos básicos que caracterizam o final desse processo: dolarização, equilíbrio fiscal e autossuficiência em moeda estrangeira do Banco Central. (1990LOPES, Francisco L. (1990). “Um milagre argentino?”. Macrométrica, Rio de Janeiro, maio 1990.: 7.1)

Gostaríamos de partilhar do otimismo de Francisco Lopes. Esse otimismo, entretanto, provavelmente deriva do fato de ele estabelecer uma analogia direta entre as hiperinflações clássicas, onde houve dolarização aguda e praticamente plena, e o caso argentino. Lopes não dispõe, e, portanto, não considera, do conceito de dolarização crônica. A dolarização, quando crônica, é muito avançada, não é plena. A moeda nacional continua a ser utilizada para o pagamento de salários, impostos. Não há garantia de que o ajuste fiscal seja completado, nem de que o Banco Central disponha de tantos dólares ao ponto de poder controlar a taxa de câmbio, que continua a flutuar. A inflação ocorre alternadamente na moeda nacional e em dólares.

O equilíbrio fiscal e a eliminação da demanda de financiamento para o setor público e/ou o aporte de recursos líquidos do exterior são indispensáveis para estabilizar a taxa de câmbio e, consequentemente, os preços. Por outro lado, as políticas de renda são um instrumento necessário para a divisão equitativa dos custos do ajuste e para induzir uma mudança rápida no comportamento dos agentes econômicos.

CONCLUSÃO

Neste artigo sustentamos a tese de que a dolarização crônica é um fenômeno especialmente argentino. E adicionamos que a política de estabilização em tais condições é ainda mais difícil do que no caso das inflações crônicas ou inerciais. Não é aqui o momento de explorar os conteúdos possíveis de uma estratégia de estabilização viável para a situação argentina. É possível, porém, identificar alguns de seus componentes básicos. Em primeiro lugar, o equilíbrio fiscal, a eliminação das necessidades de financiamento do setor público. Em segundo lugar, a existência de uma massa de reservas no Banco Central que dê respaldo à maior parte do dinheiro existente em moeda nacional.6 6 Esta última condição se cumpre parcialmente na atualidade. As reservas do Banco Central representam cerca de setenta por cento do M4. Entretanto, os compromissos em títulos de dívida pública denominados em divisas estrangeiras e o estoque da dívida externa inibem a capacidade de intervenção das autoridades monetárias no caso de uma nova corrida contra o austral. Esses são dois requisitos necessários para modificar as expectativas e o comportamento dos agentes econômicos, mas deveriam manter-se durante tempo prolongado para erradicar definitivamente a inflação e a dolarização crônicas. Enquanto isso, subsiste o dilema argentino de como retomar o crescimento da economia. A médio e longo prazos, é provavelmente impossível estabilizar os preços, aumentar a demanda por dinheiro em moeda nacional e eliminar a dolarização crônica em um contexto de estagnação e de deterioração social permanente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • LOPES, Francisco L. (1990). “Um milagre argentino?”. Macrométrica, Rio de Janeiro, maio 1990.
  • SALAMA, Pierre (1989). La Dollarisation. Paris, La Découverte. Publicado em português pela Editora Nobel, São Paulo.
  • 1
    Ver FOXLEY, Alejandro 1983FOXLEY, Alejandro (1983). Latin American Experiments in Neoconservative Economics. Berkeley, University of California.; GATICA e MIZALA, 1990GATICA, J. e MIZALA, A. (1990). “Autoritarismo e política econômica: Chile 1947-87”. Revista de Economia Política, vol. 10, n. 2, abril 1990.; KIGUEL e LIVIATAN, 1988MIGUEL, M. A. e LIVIATAN, N. (1988). “Inflationary rigidities and orthodox stabilization policies: Lessons from Latin America”. The World Bank Economic Review, vol. 2, n. 3, setembro 1988..
  • 2
    M4 inclui, além dos depósitos à vista e do dinheiro em poder do público (MI), os depósitos no overnight, os depósitos a prazo e os depósitos de poupança.
  • 3
    Excluído também, naturalmente, o Panamá, onde a dolarização é total: a moeda oficial do país é o dólar.
  • 4
    No início de março de 1990, às vésperas do lançamento do Plano Collor, o estoque de ativos financeiros denominados em moeda nacional (M4) equivalia a US$ 110.000 milhões, correspondentes a vinte e nove por cento de um PIB estimado em US$ 365.000 milhões.
  • 5
    Ver BRESSER-PEREIRA e NAKANO, 1984BRESSER-PEREIRA, L. e NAKANO, Y. (1984). La Teoria de la Inercia Inflacionaria. México, Fondo de Cultura Económica, 1989. Primeira edição em português, 1984; segunda, em inglês, 1987.; BRUNO, DI TELLA, DORNBUSCH e FISCHER (1988BRUNO, M., DI TELLA, G., DORNBUSCH, R. e FISCHER, S., orgs. (1988). Inflation Stabilization. Cambridge, Mass., MIT Press.); KIGUEL e LIVIATAN (1988MIGUEL, M. A. e LIVIATAN, N. (1988). “Inflationary rigidities and orthodox stabilization policies: Lessons from Latin America”. The World Bank Economic Review, vol. 2, n. 3, setembro 1988.).
  • 6
    Esta última condição se cumpre parcialmente na atualidade. As reservas do Banco Central representam cerca de setenta por cento do M4. Entretanto, os compromissos em títulos de dívida pública denominados em divisas estrangeiras e o estoque da dívida externa inibem a capacidade de intervenção das autoridades monetárias no caso de uma nova corrida contra o austral.
  • 7
    JEL Classification: F31; E31.

Apêndice


Variações semanais da inflação e do câmbio

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1991
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