Acessibilidade / Reportar erro

Endogeneidade da moeda, instabilidade e política monetária

Currency endogeneity, instability and monetary policy

RESUMO

Este artigo tenta analisar o escopo de uma política monetária no contexto de dinheiro endógeno, instabilidade e mobilidade de capital. Começa com a crítica pós-keynesiana ao mainstream e termina com a impotência do banco central em alcançar a estabilidade de preços no Brasil através do uso de instrumentos clássicos de política monetária.

PALAVRAS-CHAVE:
Oferta de moeda; política monetária; banco central

ABSTRACT

This paper tries to analyze the scope of a monetary policy in the context of endogenous money, instability, and capital mobility. It starts with the post Keynesian critique to the mainstream and concludes with the impotence of the central bank to reach the stability of prices in Brazil through the use of the classical instruments on monetary policy.

KEYWORDS:
Money supply; monetary policy; central bank

INTRODUÇÃO

A arraigada crença no poder estabilizador dos preços da autoridade monetária deriva, ao que tudo indica, de uma forma de pensar as estruturas monetárias, que não se alterou desde a época do padrão-ouro. Regras rígidas e automáticas seriam, então, suficientes para impedir emissão excessiva por parte dos governos. No mundo atual, em que a moeda se desmaterializou, destruindo qualquer possibilidade de uma estabilização automática, o debate passou a centrar-se nos aspectos puramente quantitativos do crédito. Associa-se, diretamente, a inflação à política monetária e de crédito do banco central.

O objetivo deste artigo é, precisamente, relativizar essa visão, à luz dos modernos desenvolvimentos da análise pós-keynesiana. Não trata dos instrumentos de política monetária, mas de seus fundamentos. Parte da evolução das formas de organização monetária (seção 1), para, em seguida, cuidar dos conceitos de endogeneidade da moeda (seção 2), de fragilidade financeira (seção 3) e de interdependência das políticas monetárias em escala internacional (seção 4). Tais conceitos são aplicados às finanças públicas brasileiras dos anos oitenta (seção 5). As evidências recolhidas apontam para uma impotência de o Banco Central praticar qualquer forma de política monetária ativa: as taxas reais de juros elevadas têm sido, ao contrário do geralmente aceito, uma forma de manifestação da passividade da política monetária.

1. AS ETAPAS DA ORGANIZAÇÃO MONETÁRIA

a. Nos sistemas de padrão metálico, a oferta de moeda seria endógena - no sentido de que o dinheiro seria uma mercadoria como qualquer outra, isto é, com uma função de produção própria - se houvesse abertura econômica. Neste caso, uma arbitragem especulativa impediria emissão excessiva, obrigando a manutenção de uma relação rígida entre papel-moeda e ouro. A emissão de notas deveria flutuar automaticamente com as variações do estoque do metal, propiciando estabilidade de preços e de câmbio.

Na prática, a exogeneidade manifestada pelo padrão-ouro teria decorrido exatamente da inexistência de mercados livres. Com a proibição de os bancos centrais converterem papel-moeda em ouro, a emissão das notas teria ficado sujeita, apenas, à moderação dos bancos centrais, uma vez que enquanto eles estivessem dispostos a emprestar, sempre haveria tomadores de empréstimos, eliminando quaisquer limites à emissão (Ricardo afirma inúmeras vezes que “o comércio é insaciável em suas demandas ... “). Além disso, as características físicas da moeda-mercadoria permitiam a possibilidade de falsificação, tornando necessária uma autoridade que se responsabilizasse pelo seu peso e teor. Esta, por sua vez, sempre teria abusado de seu poder, ao apropriar-se da diferença entre o valor de face da moeda e seu custo de produção, sob a forma de “seigneuriage”.

No sistema de moeda metálica, o crédito estava sujeito a uma equivalência com o ouro. Se o dinheiro bancário se integrasse à produção mercantil, poderia ser trocado pelo ouro, validando-se diretamente como equivalente geral. No momento em que esse circuito não se realizasse, o dinheiro bancário poderia estar impossibilitado de se converter no equivalente geral. A crise financeira “manifestava diretamente a crise de realização das mercadorias” (Aglietta, p. 298).

Neste caso, o Estado, através do banco central, era um mero administrador da solvência global do sistema bancário, devendo compatibilizar o nível das reservas com a demanda social de meios de pagamento em ouro. Ou seja, o Estado tinha um papel totalmente passivo. É o que alguns autores chamam de mecanismo totalmente autorregulado da oferta monetária pelas reservas metálicas. Isso implica que, quando se dá uma crise de realização de mercadorias, ela se manifesta imediatamente como crise financeira e não existe nenhuma instância de mediação que possa interferir ativamente, tanto na gestão da crise como na recomposição das condições de valorização.

Enfatizando: num sistema monetário com dinheiro metálico, o ouro é cunhado em resposta à demanda social de meios de pagamento em ouro. A restrição monetária é que todo dinheiro bancário privado está sujeito a uma sanção de equivalência com o ouro, direta e sem limitações. Por isso, o dinheiro bancário privado manifesta as crises de realização das mercadorias por uma insolvência ante as demandas de pagamento em ouro.

b. A especificidade do mundo moderno está no uso de moedas desmaterializadas. A “seigneuriage” permite grande ganho devido ao aumento do diferencial entre valor nominal e custo de produção. A aceitabilidade da moeda decorre de um mínimo de centralização e tutela econômica, que assegurem confiança. Quando a moeda era mercadoria, estava sujeita às mesmas regras de mercado que as outras. Com o curso-forçado, sumiram os mecanismos automáticos de regulação monetária. Tornou-se necessário organizar um sistema monetário, isto é, um conjunto de instituições que a emitissem e distribuíssem, garantindo seu valor.

No sistema de papel-moeda, inconversível, não há mais a necessidade de qualquer equivalência do crédito com o metal; o Estado pode emitir enquanto conseguir manter a coerção do curso-forçado, tornando-se credor de última instância; daí a ideia de moeda exógena. A organização monetária é arbitrária, uma vez que cede a certos interesses privados em detrimento de outros. A moeda não é neutra e é na busca de financiamento apropriado que se dá o embate de diversos grupos sociais. Deste choque de interesses - mascarado sob a forma de universalidade da ordem monetária, de consenso comunitário - resulta uma determinada estrutura para o sistema financeiro, que hierarquiza as relações sociais e que configura um particular modelo de acumulação. “O sistema bancário não é um véu, mas uma estrutura rígida que goza de uma eficácia e de uma autonomia relativas” (Aglietta, s/dAGLIETTA, Michel. Teoria da Regulação Capitalista, cap. 6 (Sistema Monetário, Crédito e Crise), s/d.).

A crise agora não mais se manifesta sob a forma de insolvência do sistema bancário global, mas sim com inflação. A crise é exatamente a “compatibilização” do valor dos créditos privados com o valor realizado socialmente. Na medida em que este último é menor, sua compatibilização se dá através de uma elevação da sua representação em signos monetários, ou seja, inflação. Se o dinheiro de curso forçado emitido pelo banco central não corresponde ao valor socialmente realizado, se desvalorizam as relações de débito/crédito pelo processo inflacionário. Em função disso costuma-se deduzir que o banco central já não exerce mais uma função passiva, mas que sanciona ativamente perdas a certos setores, o que permite reconstituir as condições de valorização do capital.

c. Em resumo: no sistema de padrão metálico, o banco central apenas organizava o enfrentamento do dinheiro bancário com um equivalente geral objetivo e universal, isto é, um dinheiro metálico. As crises financeiras destruíam o caráter monetário dos símbolos de crédito emitidos pelos bancos, o que implicava quebra de bancos e empresas. Desemprego e flutuações do salário nominal resolviam a crise.

No sistema de curso-forçado isso não ocorre: aqui o banco central dirige a criação do equivalente geral no espaço nacional, impondo uma restrição monetária global. A obrigação social de aceitar o dinheiro central constitui a possibilidade formal da crise. Sua manifestação - a inflação - decorre de o banco central dar uma pseudo-validação social a uma fração da produção mercantil. Ele sanciona, não deixa quebrar, o sistema bancário que fez avanços indevidos de crédito. Indevidos no sentido de que financiou projetos cujo valor futuro não tem probabilidade de concretizar-se em valor realizado.

2. A QUESTÃO DA ENDOGENEIDADE

As discussões, a partir da moeda desmaterializada, mudaram para a possibilidade/impossibilidade de o banco central deixar de validar os avanços de crédito. O pensamento monetarista acredita que é necessário impedir o banco central de sancionar ativamente (exogenamente) perdas a certos setores por meio da inflação. O controle rígido da moeda, que só se daria num ambiente de independência do banco central, estaria na origem da estabilização da moeda. A visão pós-keynesiana, ao contrário, imputa à autoridade monetária uma nova forma de passividade (endogeneidade): não estaria em seu poder deixar de aumentar a quantidade de dinheiro, sob risco de quebra do sistema financeiro. A grande função do banco central - a única que não poderia ser jamais negligenciada - seria a de emprestador de última instância.

Em defesa dessa segunda tese, leia-se Kaldor (1982KALDOR, N. (1982). The Scourge of Monetarism, Oxford University Press, London.). Recentemente, ele fez um ataque cerrado às teses monetaristas a partir de um M totalmente endógeno, que seria, típico de uma economia de dinheiro de crédito. Seu ponto de partida foi uma análise histórica do desenvolvimento inglês, ressaltando a época de prosperidade pós-guerra, quando prevaleceram as políticas de “administração da demanda” de Keynes, cuja síntese é uma combinação de dinheiro fácil (“cheap money”) com protecionismo.

Acontece que isto feria os interesses das finanças e da especulação, porque seus lucros andavam baixos, o mercado de ações estagnado devido ao congelamento dos dividendos etc. Começaram eles, então, a pedir a reativação da política monetária para combater a inflação e, em 1951, aboliram-se as medidas de austeridade de guerra e controles para restaurar a “City”. Surgiu um retrocesso ao monetarismo, o que provocou, em 1959, um grande inquérito (“Radcliffe Comittee”) para tratar do funcionamento do sistema monetário.

A conclusão do Comitê foi que a política monetária apertada leva a que os tomadores frustrados de empréstimos procurem outras fontes de crédito, com resultados perversos na perda de eficiência entre indústrias novas e progressivas. A· obstrução de canais particulares de financiamento não teria, portanto, qualquer efeito sobre a pressão na demanda total, mas criaria ineficiências na organização financeira.

A quantidade de dinheiro ofertada é apenas parte da maior estrutura de liquidez da economia. “É a posição de liquidez total que é relevante para as decisões de gastar e nosso interesse na oferta de moeda é devido à sua significância no quadro de liquidez global ( ... ) A decisão de gastar depende da liquidez num sentido amplo, não do acesso imediato ao dinheiro” (Kaldor, 1982KALDOR, N. (1982). The Scourge of Monetarism, Oxford University Press, London.). O gasto não é limitado pelo montante de dinheiro em existência devido à variabilidade da velocidade de circulação da moeda, o que contrasta com a teoria quantitativa da moeda, que pressupõe a estabilidade na demanda de dinheiro e consequentemente, em V. Se esta é uma relação puramente estatística - como o Comitê sugere - não pode haver qualquer influência direta ou causal derivada de mudanças na quantidade de moeda sobre os dispêndios ou os preços.

A política monetarista só teve sucesso em reduzir o acréscimo de M1 (notas em depósitos em conta-corrente}, mas isto era óbvio porque a elevação provocada na taxa de juros levou a demanda do público a desviar-se de caixa para títulos que rendem juros, o que de modo algum significou uma pressão para baixo no dispêndio ou nos preços. Enfim, a mensagem importante é que a maior parte dos ativos financeiros está nas mãos das instituições financeiras e de empresas, de modo que os bancos podem trocá-los por dinheiro, sempre que houver uma decisão de gastar. Com isso, fica completamente descartada a eficiência de uma política de cunho monetarista do banco central.

Entende-se, também, que o único campo em que se detectou importante reação ao controle de crédito foi nas compras a prazo, um tipo de empréstimo para tomadores que possuem pouco caixa ou ativos líquidos e onde o artigo vendido (carro, televisão, mobília) serve como garantia colateral. “Dinheiro apertado” é apenas um instrumento poderoso em relação às decisões de gastar daquelas pessoas que nada possuem (idem).

Em outro texto, Kaldor (1970KALDOR, N. (1970). The New Monetarism, in Lloyds Bank Review.) não poderia ser mais explícito, ainda que incorrendo em quantitativismo quando fala do padrão metálico: “Quando eu ouvi pela primeira vez as descobertas empíricas de Friedman, no início dos anos cinquenta, recebi as notícias com alguma incredulidade, até que repentinamente se tornou claro que os resultados de Friedman deveriam ser lidos ao contrário; a causação deveria ser de Y [renda] para M e não de M para Y. E quanto mais eu pensava nisso, mais convencido ficava de que uma teoria do valor do dinheiro baseada numa economia de dinheiro-mercadoria não é aplicável a uma economia de dinheiro de crédito. Num caso, o dinheiro tem uma função de oferta independente, baseada no custo de produção, enquanto no outro caso o dinheiro novo entra em existência em consequência da (ou como um aspecto da) extensão do crédito bancário. Se, como resultado, mais dinheiro entra em existência do que o público deseja reter, a um dado ou esperado nível de renda ou gastos, o excesso será automaticamente extinto - seja através de quitação de dívidas, seja por sua conversão em ativos que rendem juros - de uma forma na qual o ouro não poderia desaparecer de existência meramente porque indivíduos descobrissem que possuem muito dele. Eles podem transferi-lo a outros, mas se eles tiverem menos, outros terão mais”.

À medida que a moeda deixa de ser uma mercadoria, deixa consequentemente de existir um mercado onde a mercadoria poderia ser transformada em moeda, via arbitragem. A moeda sujeitar-se-ia, assim, plenamente ao processo de formação de preços e à extensão do crédito bancário. “A política monetária é representada não por uma dada quantidade de dinheiro, mas por uma dada taxa de juros e o montante de dinheiro existente será determinado pela demanda. A demanda variará com os pagamentos como antes e é possível que a taxa de juros do Banco Central ( ... ) seja alterada para cima ou para baixo como um meio de restringir o crédito ou torná-lo mais fácil, mas isto não altera o fato de que a qualquer tempo, ou em todos os momentos, o estoque de dinheiro será determinado pela demanda e a taxa de juros determinada pelo Banco Central” (idem).

Não lhe parece correto partir de M dado e dizer que r varia com o nível de Y; o que é dado não é M, mas sim r, com o montante de dinheiro sendo determinado pela demanda. Para os keynesianos, o importante é controlar r, em face das alterações em M, ao contrário dos monetaristas, que procuram controlar M via r. Para os primeiros, portanto, é impossível “segurar” a base monetária; o máximo que se pode fazer é aumentar ou diminuir as taxas de redesconto sempre que o crescimento do estoque de moeda correr à frente ou atrás da meta. O estoque de dinheiro é determinado pela demanda (endógeno) e não pela oferta (exógeno), com o ajuste sendo feito pela velocidade. A estabilidade de V em resposta a varia-ções de r é evidência não da importância dos controles monetários, mas exatamente da sua impotência. Ela só ocorre porque a oferta de dinheiro é instável e endógena (Kaldor, 1970KALDOR, N. (1970). The New Monetarism, in Lloyds Bank Review., p. 8-9).

Finalmente, o fato de o banco central não poder recusar o desconto de “títulos qualificados” (se o fizesse, deixaria de ser o emprestador de última instância do sistema bancário e este quebraria), é que torna M endógeno em uma economia de dinheiro de crédito; ou seja, M varia diretamente em resposta a mudanças na demanda do público em manter caixa e depósitos.

3. INSTABILIDADE FINANCEIRA

É necessário desenvolver um outro conceito, o de fragilidade financeira, antes de se fazer qualquer avaliação de uma política monetária. E uma forma criativa de se entender a instabilidade está nos estudos de Minsky (1975MINSKY, H.P. (1975). John Maynard Keynes, Columbia University Press, New York.), que veem a natureza intrinsecamente especulativa do capitalismo a partir de uma tendência ao desenvolvimento de um sistema financeiro cada vez mais frágil.

Seguindo Keynes (1936KEYNES, J .M. (1983) Teoria Geral do Juro, do Emprego e do Dinheiro, ed. Abril Cultural S.A.., capítulo 17), ele considera que qualquer firma tem fluxos de entrada de caixa esperados sobre seus ativos (q=receita total esperada menos o custo variável esperado) e fluxos de saída de caixa (c) decorrentes de compromissos de pagamentos (endividamento). Possui, além disso, ativos cujo valor é dado por sua disponibilidade ou liquidez (l), de forma que a especulação é feita em decisões quanto a rentabilidade (q-c) e a liquidez (l).

Classificando os agentes econômicos que interagem num sistema financeiro segundo o grau de prudência quanto ao endividamento, chega-se às seguintes unidades: “hedge”, onde q é maior que c, seja qual for a taxa de atualização, o valor do investimento líquido é positivo; especulativas, onde q é menor que c em alguns períodos curtos de tempo, mas que se podem refinanciar, embora vejam o valor líquido do investimento tornar-se negativo caso a taxa de juros suba muito; e Ponzi, onde q é menor que c e o valor do investimento líquido é negativo.

Esta mesma classificação pode ser vista em termos de portfofios, dependendo da forma como se financiam os ativos retidos. “No primeiro caso, “hedge”, o agente emite débitos de longo prazo, cujo serviço é sempre inferior ao rendimento esperado dos ativos financiados. Esta postura, bastante conservadora, é a mais estável porque, no caso de as expectativas se mostrarem corretas com relação às rendas dos ativos, o agente estará a salvo de mudanças nos mercados financeiros, dado que suas necessidades de financiamento são equacionadas inteiramente no início do período de retenção. Menos seguros são os portfolios especulativos em que refinanciamentos de curto prazo são necessários, ainda que no período de retenção como um todo os rendimentos dos ativos sejam suficientes para pagar o serviço daquela dívida. O desequilíbrio de curto prazo, neste caso, é tal que nem ao menos os juros podem ser pagos. O principal, porém, a ser amortizado tem de ser refinanciado até que, mais para o fim do período, ele possa ser saldado. Finalmente, há os portfolios chamados Ponzi, em que refinanciamentos poderão ser necessários no curto prazo até mesmo para os juros, o que implica que o valor da dívida tende a crescer durante o período de retenção. Este é um caso mais extremo de portfolio especulativo e é por isso mesmo também muito vulnerável a mudanças adversas no mercado financeiro” (Carvalho, 1987CARVALHO, Fernando J.C. (1987) Stabilizing an Unstable Economy, de Minsky, resenha bibliográfica 2, PPE/IPEA, vol. 17, (1), abril., p. 260/1).

A necessidade de liquidez das unidades “hedge” é pequena e quanto maior o peso relativo das unidades especulativas e Ponzi na economia, menor é a disponibilidade de liquidez em relação às suas necessidades operacionais. “Em outras palavras, quanto maior é a proporção das unidades especulativas e Ponzi na economia, tanto maior é a fragilidade financeira” (Mollo, 1986MOLLO, Maria L.R. (1986) Instabilidade do Capitalismo, Incerteza e Papel das Autoridades Monetárias: Uma Leitura de Minsky, ANPEC., p. 176).

O processo de investimento - aqui entendido como sendo a alocação da produção que aumenta os ativos que rendem q - depende do alinhamento dos preços dos ativos de capital (PK) com os dos bens de investimento (PI). Um aumento em PK com relação à moeda, aos outros ativos líquidos e à produção corrente que o leve a ficar maior que PI, estimula novos investimentos. E variações em PK decorrem da existência de condições financeiras adequadas e da oferta de moeda, por sua vez, são determinadas endogenamente (idem).

Uma expansão se caracteriza por e aumentando em relação a q. O preço de mercado dos ativos que comandam l cai com relação ao preço de ativos financeiros que rendem c. A taxa de juros sobre os ativos líquidos sobe com relação às outras taxas. As firmas estão investindo e aceitando, consequentemente, mais endividamento e menos liquidez, isto é, se arriscando mais (inclusive devido aos cronogramas diferentes entre os retornos dos ativos, q, e o pagamento dos passivos, c). Com isso, sobe a taxa de juros sobre os ativos líquidos com relação à taxa dos ativos financeiros que rendem c. Se a especulação dá certo, o valor do capital da firma (q-c+1) sobe mais que o custo do investimento.

Num mundo onde há mercado de ações, se isso ocorre, sobe o valor da ação da firma, o que lhe permite mais endividamento. Keynes, aliás, disse que isso não é mau, se a especulação estiver subordinada a uma corrente firme de empreendimentos, mas péssimo se a especulação predomina. Além do mais, como ações comuns são usadas como numerário para adquirir ativos de capital ou para expandir firmas, ocorre que durante um boom o preço desses ativos de capital e do investimento podem cair no numerário usado, mesmo que seu preço em dinheiro tenha subido.

O ciclo de crédito ou de negócios - que aqui será associado às divergências no cálculo capitalista, isto é, à conjuntura monetária e de crédito - começa com inovações financeiras, que surgem em resposta a oportunidades de negócios lucrativos, ainda que num contexto de restrições na oferta monetária. Essas inovações financeiras têm a ver com mudanças na relação ativos rentáveis/reservas dos bancos, isto é, um mesmo volume de reservas permite alavancagem financeira e ativos rentáveis maiores. Há uma fragilização financeira - que é uma condição necessária, mas não suficiente para a instabilidade -, decorrente de o sistema haver assumido uma estrutura de passivos mais complexa.

Dado o estoque dos ativos de capital no curto prazo, uma inovação financeira tende a aumentar a disponibilidade de financiamento para a manutenção dos ativos de capital e, portanto, o seu preço. Um maior preço dos ativos de capital (PK), numa corrente de lucros esperados inalterada, implica menor taxa de juros implícita em ativos reais. Quanto maior PK em relação ao preço do investimento (PI), maior o nível do investimento e maior a taxa incremental de alavancagem.

As inovações financeiras facilitam, portanto, o acréscimo do investimento, que leva a maiores lucros agregados. “Existe um processo de autoalimentação numa moderna economia capitalista nas conexões entre inovações financeiras, o financiamento do investimento e lucros realizados”. Esta é a essência do movimento “upward” de que nos dá conta Minsky (1984MINSKY, H.P. Financial Innovations and Financial Instability: Observations and Theory, in Financial Innovations - Their Impact on Monetary Policy and Financial Markets. Boston, The Federal Reserve Bank of Saint Louis, Kluwer-Mighoff Publishing., p. 28).

As inovações financeiras aumentam o investimento e os lucros agora, mas também tornam o sistema mais sensível a acréscimos na taxa de juros no futuro. Enquanto as inovações financeiras vão se realizando; as taxas de juros tendem a ser menores do que o seriam na ausência de inovações. Mas, quando estas maturam, recoloca-se uma pressão ascendente nas taxas de juros, que passam a comandar um aumento nos fluxos de caixa necessários à validação das dívidas feitas a partir da maior alavancagem financeira. Caem os lucros esperados e o investimento. Este é o movimento “downward”.

É detonada uma pressão inflacionária que, por sua vez, atua sobre as próprias taxas de juros. As autoridades monetárias, na tentativa de frear a inflação, promovem um aumento ainda maior nas taxas de juros. A economia funcionará sob pressões inflacionárias derivadas das altas e ascendentes taxas de juros até que haja um brusco corte de crédito. Esse corte no crédito altera os critérios para a tomada de empréstimos, que leva a uma rápida queda no valor de alguns ativos e a declínio nos lucros. Surge risco de ruína financeira, porque diminui a proteção dada aos devedores pelos fluxos de caixa e pelos valores de mercado.

Conclui-se que o aumento da disponibilidade financeira decorre de inovações que vêm no rastro de altas e crescentes taxas de juros e que a oferta de moeda disponível nos bancos e outras instituições financeiras responde a uma demanda por financiamento. Essa endogeneidade da oferta de moeda impõe uma potencial instabilidade “upward” ao sistema. Além disso, na baixa (alta) cíclica haverá um aumento (diminuição) na preferência pela liquidez e uma queda (alta) na oferta de liquidez. Os mercados financeiros exageram os efeitos de mudanças na eficiência marginal do capital, encorajando expansão nas altas e contração nas baixas. “Muito da alta, em termos nominais, pode, contudo, ser concentrado em atividades especulativas ao invés de produtivas; em geral, quanto mais aquecida e próxima a expansão do financiamento, mais cedo se dará a diversificação da atividade financeira em mercados especulativos e mais rapidamente o produto e o emprego chegarão ao pico. Ao contrário, em geral quanto mais aquecida a expansão financeira, mais severa será a contração seguinte no financiamento e também no produto e emprego. Assim, quanto mais exagerado o ciclo financeiro, menor o nível médio de produto e emprego” (Dow, p. 247).

4. MOBILIDADE DE CAPITAIS E POLÍTICA MONETÁRIA

No modelo monetarista global, as flutuações de curto prazo na atividade econômica, ao longo dos ciclos de negócios, são fenômenos monetários. Mudanças exógenas nos estoques de dinheiro são a principal fonte de instabilidade econômica. O setor real é visto como inerentemente estável, assim como também é estável a demanda por saldos reais para financiá-lo.

Abertura econômica diminui a instabilidade. Os ciclos são eventualmente amortecidos pelas forças de mercado numa economia fechada; integração com mercados internacionais dá mais poder ao processo de amortecimento. Por exemplo, supondo-se taxas fixas de câmbio e mobilidade internacional de capital, um aumento na oferta doméstica de moeda promoverá queda na taxa de juros vis-à-vis a taxa externa e, consequentemente, fuga de capitais e déficit de balanço de pagamentos até que a taxa interna de juros suba ao nível mundial. O excesso de dinheiro será eliminado antes mesmo de qualquer acréscimo na produção; o ciclo nem terá chance de começar (Dow, 1987DOW, Sheila C. (1987) “Post Keynesian Monetary Theory for an Open Economy”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. X, n. 2., p. 24).

Se a taxa de câmbio for flutuante, não haverá desequilíbrios de balanço de pagamentos nem influência no estoque doméstico de moeda, mas saídas de capital pressionam para baixo a taxa de câmbio, aumentando o preço dos produtos importados. Embora a produção possa crescer no setor de bens não-comerciáveis · se subir a oferta de moeda, o acréscimo no preço dos produtos importados assegurará ajuste imediato no nível de preços domésticos. O ciclo é amortecido e, se as expectativas forem racionais, não haverá nem mesmo ciclo.

Em resumo: ofertas exógenas de moeda, em ambiente de mobilidade de capitais, não têm capacidade de alterar o nível de atividade econômica. Se a taxa de câmbio é fixa, o ajuste se dá via déficit no balanço de pagamentos e não via nível interno de preços; se a taxa de câmbio é flutuante, o balanço de pagamentos não se altera, mas há inflação.

Mais recentemente, a vertente pós-keynesiana vem ganhando terreno por contestar a “mainstream” precisamente em seus fundamentos. Os mercados financeiros, por exemplo, são vistos como instáveis em economia fechada e, mais ainda, em economia aberta. Às suposições monetaristas - exogeneidade da moeda como causa primária da instabilidade, abertura econômica como fonte de amortecimento dos ciclos, estabilidade da demanda por dinheiro e expectativas adaptativas ou racionais - contrapõe-se uma análise centrada em movimentos internacionais de capitais detonados por especulação em ambiente de incerteza.

Não se aceita que movimentos de arbitragem com moedas tragam uma tendência equilibradora; antes, ao contrário, os mercados financeiros magnificam as mudanças nas expectativas de retornos nos investimentos e encorajam expansão nas altas e contração nas baixas cíclicas. É claro, porém, que essa instabilidade se manifesta de forma diferenciada, conforme a situação de cada país. Economias relativamente pouco abertas ao exterior e com retornos superiores à média mundial são mais imunes a choque externos e podem gozar de expansões mais sustentadas como resultado de fontes externas de financiamento. Países dependentes de exportações, cujo centro dinâmico é exógeno, são muito mais sujeitos a entradas e fugas de capitais, com sérios reflexos no nível de suas reservas, de sua renda e de seu emprego. “O ajustamento adicional de renda exigido pela deterioração do balanço de pagamentos, a menos que compensado por influxos de fundos pelo setor público internacional, serve para exacerbar o movimento de baixa” (Dow, 1987DOW, Sheila C. (1987) “Post Keynesian Monetary Theory for an Open Economy”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. X, n. 2., p. 255).

A consequência da alta mobilidade dos fluxos internacionais de capitais a curto prazo - produto da existência do mercado de euro moedas - foi a de tornar as políticas monetárias estreitamente correlacionadas. Poder-se-ia, portanto, pensar que é o conjunto das políticas monetárias dos países industriais que determina a taxa de juros no euromercado. Mas, dado o peso da economia americana, a taxa de juros vigente nos Estados Unidos praticamente determina univocamente a taxa de juros vigente no mercado de euro divisas. Por sua vez, aquela que é regida pela taxa de redesconto estabelecida pelo “Federal Reserve”. Se se considerar que a taxa de euro moedas influi sobre as taxas de juros e sobre a variação das paridades cambiais, o mercado de euro moedas se transformou em um veículo de influência da política monetária americana no resto do mundo. Isso fala contra qualquer tentativa de um país - particularmente se periférico - praticar políticas monetárias autônomas.

5. UMA BREVE NOTA ACERCA DO BRASIL

Tomem-se alguns conceitos desenvolvidos nas seções anteriores - (a) moeda endógena, (b) fragilidade financeira e (c) mobilidade de capitais - e pense-se na situação brasileira atual, em termos de sua política monetária.

  • a. Em termos de endogeneidade da moeda, a tabela 1 mostra as mudanças na estrutura dos ativos financeiros no Brasil: Até 1964 o governo não contava com um aparelhamento financeiro compatível com seus propósitos de apoiar a diversificação industrial. Projetos desenvolvimentistas de largo alcance, como a industrialização “pesada” levada a efeito pelo Plano de Metas e a construção de Brasília, foram financiados, em boa medida, por capitais de risco e por expansão do crédito do Banco do Brasil ao Tesouro Nacional. Entende-se isso: os números mostram que, no início dos sessenta, 88% dos haveres financeiros eram monetários, sendo 70% sob a forma de depósitos à vista (cerca de 30% destes junto às Autoridades Monetárias), o que dava ao governo bastante flexibilidade para avançar o crédito e, consequentemente, influir no nível da atividade econômica, ainda que às custas de aceleração inflacionária.

Tabela 1
Principais haveres financeiros Brasil - participação percentual

A partir de 1967, houve um grande acréscimo dos haveres financeiros, para priorizar um desenvolvimento baseado em bens duráveis de consumo e construção habitacional, o que foi possibilitado pelo instituto da correção monetária. A liquidez real, associada à moeda manual e aos depósitos à vista, foi sendo convertida em liquidez financeira, que decorre do volume de títulos liquidáveis a curtíssimo prazo no mercado.

Seria demais neste espaço reproduzir o esquema da “ciranda” financeira, propiciada pelo instrumento da carta de recompra, que acelerou a circulação de papéis e promoveu a subida da taxa global de desconto. Importa mencionar, apenas, que esse dinheiro endógeno ao sistema financeiro se valorizou a si mesmo nas sucessivas operações de repasse, graças, principalmente, à confiança em última instância nas operações de cobertura do Banco Central, que não podia deixar o sistema quebrar. O risco nulo, a liquidez garantida e a proteção contra a inflação tornaram os papéis públicos um ativo financeiro de primeira linha (Tavares, 1978TAVARES, Maria C. (1978) O Sistema Financeiro Brasileiro e o Ciclo de Expansão Recente, in Desenvolvimento Capitalista no Brasil n. 2, ed. Brasiliense, SP, 1983.).

Em 1978, ano que antecedeu dois grandes choques de oferta (juros e petróleo), a estrutura dos haveres financeiros já mostrava uma forte redução do poder da política de crédito do governo (os ativos monetários caíram para a faixa dos 30%) e um aumento na importância relativa dos detentores da riqueza financeira. O modelo de ajuste recessivo adotado pelo Brasil desde meados da década de setenta, que envolveu a elevação das taxas internas de juros e a estatização da dívida externa, acentuou o caráter endógeno da oferta de moeda. Esse fato só se agravou ao longo dos anos oitenta, de tal sorte que, ao final de 1988, os haveres monetários não iam além de 9% do total dos ativos financeiros, reduzindo o conceito mais restrito de moeda (MI) à sua dimensão puramente transacional.

Uma análise da base monetária mostra que entre seus principais fatores expansionistas, nos anos recentes, estão as operações do setor externo e os empréstimos do (ou suprimentos ao) Banco do Brasil, basicamente à área rural, à exportação e, mais recentemente, ao saneamento do sistema financeiro estadual. A endogeneidade da moeda manifesta-se, agora, por duas vias: em termos de estoques, porque 91% dos haveres não são monetários, estando sua quase totalidade distribuída entre títulos públicos e depósitos de poupança (cerca de quinze vezes superior à base, em dezembro de 1988); em termos defluxos, porque o equilíbrio externo do sistema repousa na geração de enormes superávits comerciais pelos setores exportadores (cerca de quatro vezes maior que a base), o que aprisiona a política de crédito e de subsídios aos interesses desses grupos econômicos.

Não faz sentido, então, falar que a taxa de juros no Brasil é função de uma demanda por “finance” versus a política monetária no “open market” somente, mas sim que ela é função prioritariamente da preferência pela liquidez de todos os agentes econômicos que estão cobertos de ativos financeiros (os detentores da riqueza “velha”) e/ou que têm o poder de “chantagear” o governo por disporem da capacidade de gerar divisas.

  • b. A ideia de fragilização financeira (seção 3) pode ser aplicada ao setor público brasileiro, nos termos desenvolvidos por Kandir (1988KANDIR, Antônio. (1988) Inflação Acelerada. Tese (Doutoramento) apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, março.). Fragilidade financeira não significa a existência de déficit público. “A rigor, não há nenhum problema macroeconômico na existência de um déficit público, desde que este seja financiável de maneira apropriada. O que quero dizer com isto? Um déficit é financiável adequadamente quando existirem fontes de financiamento em termos de disponibilidade e custos que não impliquem no futuro uma perspectiva de incapacidade de financiamento ou em financiamento a custos elevados. Em outras palavras, uma situação robusta das finanças públicas só é mantida quando o endividamento que acompanha o déficit se dá segundo um ritmo compatível com a geração normal (ou seja, sem alterações nos preços) de recursos por parte do setor público e/ou com ampliação das suas fontes externas de financiamento”. Aborde-se a questão pelos prismas da dívida líquida, dos encargos financeiros e da independência do banco central.

No primeiro caso, verificou-se uma tendência de estabilização da dívida líquida do setor público, em torno de 50% do PIB, depois da forte aceleração entre 1982/4 (tabela 2). O saldo dessa dívida, ao final de 1988, atingiu USS 149 bilhões, observando-se no ano uma substituição de endividamento externo (diminuição de USS 10,6 bilhões) por fontes internas (aumento de USS 6,8 bilhões), subindo a participação destas de 39,8% para 45,4% do total. A redução do endividamento externo se explicou pelo processo de conversão de dívida em investimento, pela valorização do dólar frente às demais moedas estrangeiras e pela elevação do nível das reservas internacionais. O aumento da dívida interna se explicou pelo incremento de 35,1% da dívida mobiliária junto ao público, conforme relatório anual de 1988 do Banco Central.

Tabela 2
Divida liquida do setor público/PIB(%) 1982-1988

No segundo caso, a tabela 3, colunas 1/3, discrimina os elevados encargos financeiros associados às dívidas interna e externa. Considerando-se a suspensão da entrada de recursos novos desde o setembro “negro” (1982) - e mais particularmente 1984, após os empréstimos-ponte e a queima de reservas - pode-se afirmar que o governo teve que subir a taxa de juros para poder pagar o serviço da dívida “velha”, aumentando seu déficit financeiro.

Tabela 3
Encargos financeiros e déficit público (*) Percentagem do PIB 1979-1988

É patente, ao longo dos anos oitenta, o esforço de corte do gasto público e aumento da receita tributária, o que levou à geração de superávits primários (colunas 4/5), ainda que cadentes a partir de 1984. Tomando-se os encargos financeiros como proxy do déficit financeiro - isto é, desprezando-se as receitas financeiras do governo -, verifica-se que eles não cederam porque o aumento da taxa de juros agravou o serviço da dívida.

No último caso (independência do banco central), constata-se que o ajuste promovido pela economia brasileira, nos anos oitenta, implicou uma dolarização do passivo da autoridade monetária. O balancete de maio de 1989, por exemplo, mostra que as obrigações externas do banco central (plano brasileiro de financiamento, Clube de Paris, depósitos de organismos internacionais e outros) montavam a 62,7% do total de suas fontes de financiamento. Para que o serviço associado a essa massa de recursos não levasse à geração de um enorme passivo a descoberto da autoridade monetária, seu ativo apresentava uma carteira de títulos federais que equivalia a 82% do total de suas aplicações e que servia de “hedge” a seu passivo externo.

Ora, a condição básica para a independência decorre da neutralidade do banco central em termos da dívida pública, o que não é observado no particular relacionamento Tesouro/Bacen. As dificuldades para a rolagem da dívida interna, que se faz a juros crescentes, impedem a dissociação de uma política de dívida pública de uma política monetária, o que fragiliza ainda mais o sistema.

c. No plano internacional, o que ocorreu de significativo no final da década de setenta foi o desgaste dos padrões tecnológicos e de produção, após um grande surto desenvolvimentista no pós-guerra, associado a uma política keynesiana bastarda que, nas palavras de Tavares (1985, p. 6), redistribuiu renda a favor dos mais ricos e aumentou o déficit fiscal. A política monetária, ao contrário, foi contracionista, elevando fortemente a taxa de juros. O resultado dessa explosiva combinação de política econômica foi que os Estados Unidos recuperaram o controle do sistema bancário, antes internacionalizado, iniciando um processo de retomada do desenvolvimento baseado no setor terciário e na tecnologia de ponta. Sua posição de emissor da moeda internacional permitiu-lhe não ter nem mesmo inflação. Para a “periferia” do sistema, porém, os resultados foram desastrosos, em termos da deterioração das finanças públicas.

d. Concluindo: a década de oitenta mostrou, como característica marcante, uma elevada taxa de juros: em nível internacional, devido à política contracionista do “Federal Reserve”; em nível nacional, devido ao modelo de ajuste empreendido, que acabou por autonomizar o déficit financeiro do setor público. Pode-se dizer, então, que o Brasil manifesta características de unidade Ponzi, dada a incapacidade de girar sua dívida a não ser a juros crescentes; ou melhor, o nível dos encargos financeiros é dado exogenamente, pelo comportamento da política monetária norte-americana e pelas exigências dos rentistas internos. Essa situação de fragilidade potencializa as incertezas ligadas ao futuro comportamento do próprio governo, impulsionando a inflação. Por este prisma, é fútil dizer que o Banco Central promove uma política monetária ativa, ao elevar a taxa de juros. Simplesmente não está em seu poder resistir às demandas da classe rentista, interna ou externa. Juros altos são uma forma de manifestação da passividade da política monetária.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AGLIETTA, Michel. Teoria da Regulação Capitalista, cap. 6 (Sistema Monetário, Crédito e Crise), s/d.
  • CARVALHO, Fernando J.C. (1987) Stabilizing an Unstable Economy, de Minsky, resenha bibliográfica 2, PPE/IPEA, vol. 17, (1), abril.
  • DOW, Sheila C. (1987) “Post Keynesian Monetary Theory for an Open Economy”. Journal of Post Keynesian Economics, vol. X, n. 2.
  • KALDOR, N. (1970). The New Monetarism, in Lloyds Bank Review.
  • KALDOR, N. (1982). The Scourge of Monetarism, Oxford University Press, London.
  • KANDIR, Antônio. (1988) Inflação Acelerada. Tese (Doutoramento) apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, março.
  • KEYNES, J .M. (1983) Teoria Geral do Juro, do Emprego e do Dinheiro, ed. Abril Cultural S.A..
  • LEVY-GARBOUA, V. & WEYMULLER, B. (1981) Macroeconomie Contemporaine. cap. 3 (La monnaie bancaire), Economica, Paris, 1981.
  • MINSKY, H.P. (1975). John Maynard Keynes, Columbia University Press, New York.
  • MINSKY, H.P. Financial Innovations and Financial Instability: Observations and Theory, in Financial Innovations - Their Impact on Monetary Policy and Financial Markets. Boston, The Federal Reserve Bank of Saint Louis, Kluwer-Mighoff Publishing.
  • MOLLO, Maria L.R. (1986) Instabilidade do Capitalismo, Incerteza e Papel das Autoridades Monetárias: Uma Leitura de Minsky, ANPEC.
  • POSSAS, Mário. (1987) Dinâmica da Economia Capitalista - Uma Abordagem Teórica. Ed. Brasiliense, SP, 1987.
  • SIMOENS DA SILVA, L.A. (1989) A Teoria Quantitativa da Moeda e a Política Monetária. Tese (Doutoramento) apresentada ao Instituto de Economia da UNICAMP, Campinas, 1989.
  • TAVARES, Maria C. (1978) O Sistema Financeiro Brasileiro e o Ciclo de Expansão Recente, in Desenvolvimento Capitalista no Brasil n. 2, ed. Brasiliense, SP, 1983.
  • 1
    JEL Classification: E31; E51; E52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1991
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br