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Os programas de estabilização ortodoxos no Brasil - 1964/68 e 1980/84: uma reflexão sobre suas consequências perversas

Orthodox stabilization programmes in Brazil 1964/68 and 1980/84: reflections on their perverse effects

RESUMO

Os efeitos perversos associados aos programas ortodoxos de estabilização, especialmente a inflação persistente acompanhada de um período prolongado de recessão com o desemprego, atraem a atenção para a avaliação da consistência entre a abordagem ortodoxa e a situação econômica que caracteriza a crise. Em seguida, o estudo comparativo de duas políticas de estabilização econômica no Brasil, nos anos sessenta e oitenta - PAEG (1964-1968) e Programa de Estabilização (1980-1984) - oferece a oportunidade de desenvolver uma análise das incoerências na visão ortodoxa sobre as raízes da inflação e desequilíbrio da balança de pagamentos.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização

ABSTRACT

The perverse effects associated to orthodox stabilization programmes, especially persistent inflation accompanied by a prolonged period of recession with unemployment, attract the attention on the evaluation of consistency between the orthodox approach and the economic situation which characterize the crisis. Then, the comparative study of two economic stabilization policies in Brazil, in the sixties and eighties - PAEG (1964-1968) and Stabilization Program (1980-1984) - gives opportunity to develop an analysis of the incoherencies in orthodox view about the roots of inflation and balance of payments disequilibria.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization

INTRODUÇÃO

A América Latina tem sido alvo, desde o final dos anos 50, de inúmeras experiências ortodoxas de estabilização destinadas, prioritariamente, a restabelecer o equilíbrio no balanço de pagamentos e/ou eliminar a inflação. Os programas, no entanto, só lograram obter resultados positivos no “front externo”, apresentando resultados desalentadores no que toca ao processo inflacionário.1 1 Uma análise exaustiva dos programas implementados na América Latina pode ser encontrada em Diaz-Alejandro (1982) e Foxley (1982).

Os anos 80, por sua vez, se caracterizaram pela implementação de programas de ajustamento externo, cujo enfoque básico foi enquadrar os países da região - criticamente envolvidos num processo de endividamento externo a partir da década de 70 - no novo contexto internacional, marcado pela abrupta retração do Sistema Financeiro Privado Internacional. O objetivo principal foi promover significativos superávits comerciais para suprir o serviço da dívida. Nesse caso, além dos limitados resultados obtidos, os programas acabaram por provocar profundos desequilíbrios internos, principalmente quanto à aceleração do processo inflacionário, desequilíbrio financeiro do setor público e redução significativa do nível de investimento.

Tendo em vista esse quadro, surgiu a ideia de proceder a uma análise comparativa dos dois programas de estabilização ortodoxos implementados no Brasil: o Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco (1964-1968) - PAEG, e o Programa de Estabilização 1980/84 - inseridos nos contextos das décadas de 60 e 80, respectivamente. O objetivo fundamental é avaliar os resultados e os custos inerentes aos programas dessa natureza.

Por outro lado, a constatação dos efeitos perversos da aplicação dos programas, particularmente a persistência e/ou aceleração do processo inflacionário, com elevados níveis de desemprego e redução do potencial de crescimento, levantou a necessidade de analisar a consistência do diagnóstico ortodoxo em relação à natureza da situação que conforma as crises.

O trabalho está dividido em duas partes: Análise Comparativa dos dois Programas, para caracterizá-los em termos do contexto que precede a implementação, natureza dos objetivos, natureza e intensidade das medidas aplicadas e resultados obtidos. E Considerações sobre as Incoerências e Contradições dos Programas Ortodoxos, para mostrar o grau de miopia do diagnóstico ortodoxo das causas da inflação e desequilíbrio externo.

I. ANÁLISE COMPARATIVA DOS DOIS PROGRAMAS

Esta análise privilegia os seguintes pontos:

  • o contexto que precede e condiciona a aplicação dos programas;

  • a natureza dos objetivos perseguidos;

  • as medidas e a intensidade com que foram implementadas;

  • os resultados obtidos.

a. O contexto que precede e condiciona a aplicação dos programas

O início dos anos 60 é marcado por uma profunda desaceleração do crescimento, acompanhada do recrudescimento do processo inflacionário e de crescentes dificuldades no balanço de pagamentos.

A característica fundamental da crise pré-64 é o fato de que seus determinantes básicos residem nos fatores internos, mais precisamente no esgotamento do padrão de desenvolvimento concretizado através do Plano de Metas. Por sua vez, as dificuldades no setor externo decorrem, de um lado, da própria desaceleração do crescimento interno, desestimulando a entrada de capitais ou provocando sua saída; e, de outro lado, de uma política cambial que não favorece o setor exportador, ausentes também os incentivos às exportações do setor industrial.

Diferentemente, a crise que se inicia ao final dos anos 70 e atinge seu ápice em 1982 é determinada pelo nível extremamente crítico do endividamento externo. A “estratégia de ajustamento estrutural via endividamento externo”, implementada a partir de 1974, acabou por revelar seu efeito perverso no triênio 1979/1981, diante do segundo choque do petróleo, da explosão das taxas internacionais de juros e da súbita contração das atividades de empréstimos externos dos bancos privados. A situação insustentável quanto ao balanço de pagamentos configura um quadro de “restrição financeira externa’’, isto é, na impossibilidade de continuar “rolando” o serviço da dívida, faz-se necessária a geração de superávits comerciais crescentes. O resultado é que o crescimento da economia brasileira fica condicionado ao desempenho da sua balança comercial.

Em nível interno, embora ocorra desaceleração das taxas de crescimento em relação ao período de boom (1970/1973), a economia continua a crescer a taxas relativamente elevadas no período 1974/1980. É importante assinalar que, a partir de 1974, ocorre o recrudescimento do processo inflacionário.

Assim, a taxa de inflação mais do que dobra de 1973 para 1974, permanecendo na faixa de 30 a 46% nos quatro anos seguintes; quase dobra novamente em 1979 e passa a marca dos 100% em 1980.

b. A natureza dos objetivos perseguidos

De modo geral, os programas ortodoxos de estabilização têm três objetivos básicos:

  1. controle e eliminação da inflação;

  2. restauração do equilíbrio no balanço de pagamentos;

  3. restabelecimento da economia de livre mercado.

Os dois primeiros são objetivos de curto prazo. O terceiro é de longo prazo e tem como pano de fundo um modelo de crescimento cujas linhas mestras são o estímulo ao setor capitalista privado e a integração da economia local à economia mundial.

Assim, sob essa ótica, os programas apresentam diferenças substanciais. Além da ênfase distinta quanto aos objetivos de curto prazo, somente os mentores da política econômica de 1964 tinham presentes os objetivos de longo prazo, expressos pela importância atribuída às reformas do mercado de capitais e no setor externo.

O objetivo primordial do PAEG é o combate à inflação. Este caráter de prioridade não significa, segundo o mentor do plano, sacrificar o crescimento. Primeiramente, porque o combate à inflação está sempre qualificado no sentido de não ameaçar o ritmo da atividade produtiva. Em segundo lugar, porque é encarado como condição necessária para a recuperação do desenvolvimento, na medida em que a inflação inibe o investimento e distorce a função orientadora dos preços.

O desequilíbrio no balanço de pagamentos é igualmente diagnosticado como séria limitação ao crescimento. Para superá-lo, o PAEG propõe uma política de incentivos à exportação e a opção de internacionalização da economia, abrindo-a ao capital estrangeiro e promovendo a integração com os centros financeiros internacionais.

Com relação ao Programa de Estabilização 1980/1984, embora o recrudescimento da inflação e o crescimento da dívida externa estejam presentes desde os primórdios da crise, é o segundo fator que irá determinar a sua implementação. O objetivo central é obter superávits comerciais crescentes, para se adaptar às novas condições do mercado financeiro internacional.

Cabe aqui um esclarecimento sobre a natureza do programa que se estende de 1980 a 1984. Ele se caracteriza, inicialmente, no período do segundo semestre de 1980 ao segundo semestre de 1982, por um “ajuste voluntário”, ou tentativa de evitar o recurso ao FMI. A partir de 1983, o ajuste se processa sob a tutela do FMI.

c. As medidas e a intensidade com que foram implementadas

Os principais instrumentos ortodoxos de política econômica destinados a atingir os objetivos de curto prazo são bem conhecidos:

  1. estabelecimento de limites rígidos para expansão do crédito e da oferta monetária;

  2. redução e/ou eliminação do déficit público;

  3. controle dos salários;

  4. desvalorização da taxa de câmbio.

O Quadro I: Indicadores macroeconômicos (1963/1968) - apresenta as medidas e a intensidade com que foram implementadas pelo PAEG.

QUADRO I
Indicadores macroeconômicos 1963/1968

Paradoxalmente, o controle da moeda e do crédito apresenta grandes dificuldades. “A partir do segundo trimestre de 1964, tanto a moeda quanto o crédito expandiram-se aproximadamente em linha com os preços, havendo um primeiro aperto de liquidez no último trimestre do ano. Em 1965, entretanto, as políticas monetária e creditícia foram extremamente folgadas, elevando substancialmente os índices de liquidez real. (...) A partir do segundo trimestre de 1966, a política monetária foi invertida tornando-se apertada. (...) No entanto, a inibição do crédito ao setor privado foi menor do que o aperto monetário.” (Lara Rezende, 1982LARA REZENDE, A. (1982) “A Política Brasileira de Estabilização 1963/68.” Pesquisa e Planejamento Econômico, vol. 12 nº 3., pp. 781 /783). A conclusão é que as políticas monetária e creditícia só são rígidas (ativas) em 1966.

O objetivo de redução do déficit público é plenamente atingido. O déficit, que representara 4,2% do PIB, em 1963, cai para 1,1% em 1966. O aspecto fundamental a ressaltar, no entanto, diz respeito à estratégia de redução que, diferentemente da visão ortodoxa pura (baseada na redução da despesa), apoiou-se muito mais na elevação da carga tributária e recuperação das tarifas. Nesse sentido, o Estado elimina seu déficit através do aumento da sua poupança, o que lhe permite manter o nível de investimento público, contra-arrestando a tendência recessiva no setor privado. “O investimento público desempenhou um papel importante para amortecer a tendência recessiva. Assim, em 1965, enquanto a produção industrial caiu 4,7%, o investimento do governo aumentou 8% e o investimento das estatais 70%. (...) A mesma situação se repete em 1967, quando o investimento total público cresceu em torno de 20%” (Foxley, 1980FOXLEY, Alejandro. (1980) “Stabilization Policies and Stagflation: The Cases of Brazil and Chile.” World Development, vol. 8, pp. 887-912., p. 897).

A política salarial caracteriza-se por um forte arrocho, particularmente dos salários de base, favorecido pela intervenção nos sindicatos. Essa política joga papel fundamental no PAEG. Em primeiro lugar, através da redução do custo primário das empresas, compensando o aumento dos impostos e preços dos insumos básicos. Em segundo lugar, através da contenção do consumo dos trabalhadores. Finalmente, como elemento estabilizador das expectativas.

Na política cambial, a taxa de câmbio é desvalorizada em 70% no início do programa, a fim de corrigir o desequilíbrio externo. No entanto, após 1965 e até 1967, o cruzeiro se valoriza fortemente em termos reais.

Com relação ao Programa de Estabilização 1980-1984, o Quadro II - Indicadores macroeconômicos (1979/1984) - apresenta as medidas e a intensidade da aplicação das mesmas.

Quadro II
Indicadores macroeconômicos 1979/1984

A partir do segundo trimestre de 1980, ocorre uma brusca contração da liquidez real. No que tange à política monetária, o crescimento anual da base monetária fica sempre abaixo da inflação, exceção para o ano de 1984. Já o comportamento dos empréstimos ao setor privado é ainda mais significativo. Somente nos anos de 1981 e 1982 a sua taxa de expansão é superior à taxa de inflação, refletindo uma das diretrizes do programa que, até o início de 1983, poupa do arrocho os setores agropecuário, energia e exportação. A conclusão final é que o setor mais afetado é o industrial, sofrendo violenta contração do crédito no período.

Sob a ótica do déficit público, nota-se uma redução sensível. No entanto, uma vez que se assiste, no período, a uma profunda deterioração da capacidade de poupança estatal, tal redução tem que se processar, necessariamente, através da contração do investimento. “Desde 1979 o déficit público real tem tido uma tendência a cair. A diminuição do déficit público em 1981, 1983 e 1984 esteve claramente relacionada ao processo de ajustamento feito no país. Se o déficit público diminuiu, poder-se-ia dizer que as finanças públicas melhoraram, mas também pode ser dito que a capacidade de investimento do Estado reduziu-se. (...) O quadro II mostra que a capacidade de poupança do Estado sofreu uma grande desaceleração em 1980. Sua capacidade de investimento tomou a mesma direção depois de algum tempo, quando o déficit público teve de ser posto sob controle” (Bresser-Pereira, 1987BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. (1987) “Mudanças no Padrão de Financiamento do Investimento no Brasil.” Revista de Economia Política, vol. 7, nº 4, out./dez., p. 12).

Assim, ao contrário da política do período de 1964-1967, onde a manutenção do investimento do governo assumira características estabilizadoras, neste período, atua no sentido de acentuar ainda mais a recessão.

Com relação à política salarial, ocorre uma redução violenta dos salários reais no ano de 1983. Quando o governo recorre ao FMI, em fins de 1982, às pressões internas contra as leis salariais de 1979 e 1980, soma-se a pressão irresistível daquele organismo internacional. A nova política salarial, consubstanciada nos Dec.-Lei 2.012, 2.024, 2.045 e 2.064, visa não só promover o arrocho dos salários de base, como em 1964, mas também dos salários médios.

Quanto à política cambial, ocorrem duas fortes desvalorizações reais, em 1980 e 1983. A primeira é inevitável, diante da alta dos preços do petróleo, choque dos juros internacionais e desaceleração do crescimento das economias centrais. A segunda ocorre em função da queda do volume real das exportações industriais entre 1981 e 1982.

d. Os resultados obtidos

À primeira vista o PAEG parece ter sido bem-sucedido, tanto no combate à inflação quanto no “front externo”. Assim, conforme se observa no quadro I, apesar de a taxa inflacionária ter-se elevado para 90%, em 1964, passa a sofrer um processo de queda a partir de 1965, atingindo um patamar de 28% a.a. em 1967. Quanto ao setor externo, é restabelecido o equilíbrio no balanço de pagamentos graças, de um lado, à forte contração das importações motivada pela recessão interna e, de outro, ao substancial apoio das agências financeiras internacionais.

Salta aos olhos, no entanto, a inconsistência entre a aplicação das medidas ortodoxas e o resultado obtido na contenção do processo inflacionário. Em primeiro lugar, a queda do déficit fiscal não pode explicar a redução da inflação, uma vez que a forma pela qual se processa (aumento significativo da carga tributária e reajuste dos preços e tarifas públicas) acaba por reforçar o momentum inflacionário. Em segundo lugar, a quebra do ritmo inflacionário, a partir de 1965, ocorre num contexto de aumento da liquidez real, conforme assinalado anteriormente. Em terceiro lugar, como explicar a persistência da inflação num patamar relativamente elevado, a partir de 1966, agora num contexto de aperto monetário e creditício considerável?

O quadro levanta dúvidas sobre o diagnóstico ortodoxo das causas da inflação. A explicação do processo inflacionário como fenômeno eminentemente monetário não se mostra adequada. Nesse sentido, deve-se proceder à investigação das condições estruturais que conformam a crise no período, tendo em mente um arcabouço que contemple o conveniente equacionamento da natureza da formação dos preços, do déficit público e da moeda, assim como de suas interrelações.

Assim, na segunda parte do trabalho, recorrendo à visão lúcida de Rangel (1963RANGEL, I. (1963) A Inflação Brasileira. 3ª. ed., São Paulo, Brasiliense, 1978.), abre-se espaço para a análise das causas efetivas da inflação do início dos anos 60, ao lado da identificação da implementação de uma política de rendas, inserida no conjunto de medidas do programa de estabilização 1964/1968, como fator determinante do seu sucesso.

Já no que tange ao programa de estabilização 1980/1984, os indicadores desalentam profundamente.

Considerando inicialmente a situação externa, o fracasso é evidente. Assim, embora se consiga equilibrar o balanço de pagamentos, a partir de 1984, depois de doloroso processo de redução das importações e graças à recuperação da economia americana, o objetivo básico do ajuste das contas externas - aumentar a capacidade de pagamento do País - não é atingido. Conforme atestam os dados do quadro II, as condições de solvência não melhoram, ao contrário, se deterioram. Em primeiro lugar, a relação dívida/exportações, situada, em 1979, em 3,04 - nível extremamente crítico dentro dos parâmetros do sistema financeiro internacional -, após pequena queda em 1980 e 1981 volta a elevar-se a partir de 1982, atingindo o índice 3,3, em 1984. Em segundo lugar, a percentagem das exportações comprometida com o serviço da dívida salta de 36,3%, em 1979, para 67%, em 1982, reduzindo-se para 42%, em 1984.

A causa básica desse quadro deriva do fato de o nível de endividamento externo ter assumido proporção extremamente elevada, com total incapacidade do país de cumprir as condições de ajuste impostas pela comunidade financeira internacional. “A dívida externa de um país torna-se muito alta, isto é, incompatível com crescimento e estabilidade de preços, quando o pagamento dos respectivos juros, considerando-se que uma parte razoável deles será financiada, requer um determinado nível de superávit comercial e assim uma determinada elevação de exportação que o país é incapaz de atingir” (Bresser-Pereira, 1988BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos (1988) “Uma Estratégia Alternativa para Negociar a Dívida Externa.” In: BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. (org.). Dívida Externa: Crise e Soluções. São Paulo, Brasiliense, 1989. Trabalho apresentado no XIV Congresso Internacional da Latin American Studies Association. Nova Orleans, março/1988., p. 227).

A natureza da crise do setor externo, ao final dos anos 70, chama a atenção para um importante obstáculo não presente para os formuladores do PAEG. Em primeiro lugar, o desequilíbrio externo do início dos anos 60 decorria, como apontado anteriormente, basicamente de um problema de fluxo, fruto do mau desempenho das exportações, deterioração dos termos de troca e retração do fluxo de capitais externos. Em segundo lugar, o suporte do FMI foi decisivo para evitar a ameaça de eventuais crises cambiais, que levariam à necessidade de promover desvalorizações na taxa de câmbio, prejudicando, inevitavelmente, a meta básica de combate à inflação.

O desequilíbrio do final dos anos 70, no entanto, é eminentemente estrutural, tendo como razão básica a presença de um estoque da dívida muito alto. A comparação dos indicadores de solvência (dívida/exportação e saldo de serviços de capital/exportação) nos dois períodos é suficientemente esclarecedora.

Nesse sentido, o equívoco fundamental do programa de ajuste 1980/1984 foi ter diagnosticado um desequilíbrio de estoque como mero desequilíbrio de fluxo.

Quanto ao comportamento da taxa de inflação no período de implementação do programa de estabilização 1980/1984, caracteriza-se, em 1980, por forte aceleração, atingindo 110% a.a. A partir de 1981, sofre pequena redução, mantendo-se no patamar de 99% até 1982. Quando se implementa o ajuste sob a tutela do FMI, em 1983, volta a acelerar-se violentamente, atingindo 200% a.a.

No caso, as inconsistências não se dão só ao nível das medidas, mas também e sobretudo entre os objetivos restauração do equilíbrio externo e combate à inflação, supostamente compatíveis segundo a visão ortodoxa. Em primeiro lugar, como explicar a resistência da inflação nos anos de 1981 e 1982, quando se empreende uma profunda contração monetária e do crédito, aliadas a medidas fiscais profundamente recessivas? Em segundo lugar, a aceleração da inflação decorre da prioridade atribuída ao ajustamento externo; mais precisamente, na medida em que o objetivo fundamental do programa é obter resultados positivos na balança comercial, gera tensões inflacionárias inevitáveis, principalmente pela manipulação drástica da taxa de câmbio, elevação das taxas internas de juros e restrições não cambiais às importações.

Para explicar a origem dessas inconsistências é necessário investigar a natureza do processo inflacionário dos anos 70. Surge um novo elemento estrutural, que não estava presente no contexto do início dos anos 60; o desenvolvimento de mecanismos formais generalizados de indexação retroativa dos contratos. A indexação desempenha um papel fundamental, refletindo, na inflação corrente, os aumentos de preços ocorridos no passado, isto é, o processo inflacionário adquire um grau de automatismo, um componente inercial.

A partir da introdução do componente inercial, representado pela indexação generalizada, a inflação torna-se praticamente insensível a quedas moderadas de demanda agregada e, portanto, às terapias de cunho ortodoxo. Por outro lado, o processo inflacionário adquire acentuada propensão à aceleração diante de quaisquer choques de oferta ou de demanda.

Finalmente, cabe considerar as consequências recessivas inevitáveis nos programas ortodoxos, particularmente quanto às características distintas dos dois programas analisados.

Em primeiro lugar, embora o PAEG tenha contribuído para reduzir drasticamente o ritmo de crescimento de economia, em relação à sua tendência histórica, não implicou processo recessivo tão profundo quanto o do ajuste de 1980/1984. Assim, no período 1981/1983, o PIB apresentou crescimento negativo; ao lado de uma prolongada retração do setor industrial.

Em segundo lugar, os dois programas têm lógicas internas diferentes. O PAEG tinha na recessão a lógica da queima e centralização de capitais, no sentido de preparar a economia para um nova fase de expansão, fundada no reforço da capacidade de investimento do Estado, no fortalecimento de grandes empresas e grupos conglomerados, na criação do mercado de capitais e forte articulação com o capital internacional. “O PAEG do governo Castelo Branco, sob a orientação de Roberto Campos, leva a crise às últimas consequências: pratica uma política de recessão calculada, cujo sentido é o de preparar as bases institucionais para um processo de concentração de capital que vinha se dando caoticamente” (Oliveira, 1977OLIVEIRA, Francisco. (1977) A Economia da Dependência Imperfeita. 4ª. ed., Rio de Janeiro, Graal, 1984., p. 92).

Diferentemente, a recessão do início dos anos 80 não é provocada com o fim de reorganizar a estrutura produtiva para, a partir daí, estabelecer nova etapa de desenvolvimento. A capacidade ociosa generalizada que se observa na indústria não será revertida, porque esbarra na restrição externa, uma vez que a elevação do nível interno de atividade implica a redução do tão necessário superávit comercial com o resto do mundo. Nesse sentido, fica claro que o ajuste externo se processa com o sacrifício do crescimento interno.

II. CONSIDERAÇÕES SOBRE AS INCOERÊNCIAS E CONTRADIÇÕES DOS PROGRAMAS ORTODOXOS

A análise anterior chamou a atenção para as incoerências e contradições presentes nos dois programas ortodoxos. Em primeiro lugar, a inconsistência entre os resultados obtidos em relação ao processo inflacionário e a aplicação das medidas. É expressa, de um lado, pela redução da inflação no contexto de aumento da liquidez e, de outro, pela sua persistência apesar da severa contração da liquidez e do déficit público. Em segundo lugar, numa situação de restrição externa, a aplicação do programa ortodoxo acabou por criar fortes desequilíbrios internos, caracterizados, principalmente, pela aceleração inflacionária e pelo condicionamento do ritmo de crescimento da economia ao desempenho da balança comercial.

Esta seção tem por fim explicitar a natureza dessas incoerências e contradições, pela análise crítica do diagnóstico ortodoxo das causas da inflação e do desequilíbrio externo.

Diagnóstico equivocado das causas da inflação

A matriz teórica dos programas ortodoxos de estabilização é o monetarismo.

Partindo da premissa de que o aumento da oferta monetária é realizado exogenamente, isto é, independente das pressões dos agentes econômicos, e considerando que a velocidade-renda da moeda é constante ou previsível, a aceleração da inflação tem como causa básica a excessiva expansão monetária. Essa causalidade direta decorre, de um lado, do fato de se considerar o dinheiro como um ativo equiparável não só aos ativos financeiros, mas também aos bens de consumo e de investimento; e, de outro, da introdução de duas premissas adicionais:

  1. o sistema econômico tende a operar naturalmente ao nível de pleno emprego, configurando uma situação de rigidez da oferta agregada;

  2. com exceção do mercado de trabalho, marcado por imperfeições devidas à atuação dos sindicatos, os demais mercados são competitivos e se caracterizam pela flexibilidade de preços.

Por sua vez, a rigidez da inflação é explicada por meio da introdução das expectativas dos agentes econômicos acerca do comportamento futuro dos preços, estado psicológico fundamental causado pela própria experiência inflacionária. No entanto, as expectativas podem ser revertidas, dependendo da credibilidade e da férrea persistência das autoridades na aplicação dos instrumentos ortodoxos.

O fundamental a reter na visão monetarista é que a aceleração e a resistência da inflação são provocadas por fatores eminentemente exógenos, consubstanciados na incompetência e demagogia das autoridades monetárias e na excessiva intervenção do governo na economia, ambas materializadas no déficit público e no seu financiamento através da emissão. Daí decorrem duas conclusões. Primeira: como o nível do produto ou sua taxa de crescimento são independentes da taxa de expansão da moeda, ou seja, num sistema com total flexibilidade de preços e salários, o aumento ou contração da oferta monetária só produz efeito sobre o nível de preços. Segunda: dada a rigidez introduzida pelas expectativas e particularmente pela ação dos sindicatos, explica-se a necessidade de provocar recessão e desemprego, na medida em que é necessário sujeitar os trabalhadores à decepção do mercado para que suas expectativas e pretensões salariais sejam revistas.

O profundo irrealismo imanente às hipóteses sobre o funcionamento da economia capitalista é, por si só, suficiente para refutar a visão monetarista. Agregue-se, ainda, a crítica que se dirige à lógica interna da doutrina, mais especificamente as dificuldades inerentes ao controle da oferta monetária e o caráter de indeterminação da política monetária. “A despeito de todo barulho que tem sido feito sobre essa doutrina, ela se mostra incapaz de revelar de maneira efetiva se mais dinheiro altera os preços, a produção ou o emprego; a não ser a longo prazo, quando, assim ela nos assegura, a produção e o emprego encaminhar-se-ão para os seus níveis ‘naturais’, independentemente de qualquer variação de P” (Lima, 1982LIMA, Luiz Antonio de Oliveira. (1982) “A Atual Política Econômica e os Descaminhos do Monetarismo.” Revista de Economia Política, vol. 2, nº l, jan./mar., pp. 145/146).

A superação do equívoco fundamental da ortodoxia se dá a partir da visão da inflação como um fenômeno endógeno, com origem na própria estrutura e dinâmica do sistema econômico. “Cumpre, portanto, buscar os fatores que podem determinar, endogenamente, o aumento original dos preços, o qual, em seguida, provocará o aumento de M, que reforçará o aumento de P” (Bresser-Pereira, 1981BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. (1981) “A Inflação no Capitalismo de Estado (e a Experiência Brasileira Recente).” In: BRESSER-PEREIRA e NAKANO. Inflação e Recessão. São Paulo, Brasiliense, 1984. (Publicado originalmente na Revista de Economia Política, vol. 1, nº 2, abril-junho/1981.), p. 20). Implica dizer que a compreensão do processo inflacionário necessita de um aprofundamento da análise da dinâmica capitalista, em especial do processo de formação de preços e da natureza de déficit público e da moeda.

A inflação do início dos anos 60 e as causas do relativo êxito do PAEG

A visão pioneira do processo inflacionário da década de 60 se deve ao trabalho de Inácio Rangel, A Inflação Brasileira. “O caráter endógeno da oferta da moeda, a inflação como mecanismo de defesa da própria economia diante da crônica insuficiência de demanda, e o conceito de inflação administrada ou oligopolística são as principais ideias desenvolvidas por Rangel” (Bresser-Pereira e Nakano, 1986BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos e NAKANO, Yoshiaki. (1986) “A Inflação Inercial e o Choque Heterodoxo no Brasil.” In: REGO, J. M. (org.) Inflação Inercial, Teorias sobre Inflação e o Plano Cruzado. 2ª. ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra., p. 132).

Considerando não se poder caracterizar que a economia brasileira vivesse uma fase de excesso de demanda agregada, a partir da constatação da existência de excesso de capacidade ociosa, a questão fundamental é como explicar a aceleração da inflação. A análise de Rangel apontava para o elevado grau de oligopolização presente na estrutura industrial e nos setores controladores do comércio de produtos agrícolas. Dessa forma, esses setores tinham a capacidade de determinar preços através da regra do adicional sobre o custo, independentemente das condições da demanda. Esse caráter estrutural explicava, de um lado, a inflexibilidade dos preços e, de outro, a aceleração inflacionária diante do excesso de capacidade ociosa.

Partindo do mesmo argumento de Rangel, Fishlow (1974FISHLOW, Albert. (1974) “Algumas Reflexões sobre a Política Econômica Brasileira após 1964.” Estudos Cebrap, nº 7, jan./mar.) chega à conclusão de que a implementação do PAEG foi não só fútil, mas também contraproducente. Primeiro, porque o aumento dos impostos, tarifas públicas e taxas reais de juros, medidas destinadas a regular a demanda, acabaram sendo incorporados aos preços. Segundo, porque o setor oligopolístico reagia à contração da demanda aumentando as margens de lucro.

A partir dessa visão lúcida do processo inflacionário dos anos 60 é possível detectar os verdadeiros determinantes da quebra do ritmo inflacionário, que podem ser encontrados na adoção de uma política de rendas caracterizada pelo controle dos salários e pelo controle dos preços.

Para Rezende, o ponto-chave da política desinflacionária de 64 foi a política salarial. “Dentro do espírito da ortodoxia, que só no mercado de trabalho percebe inconveniências e ineficiências na livre determinação dos preços, o programa desinflacionário do PAEG substituiu a negociação dos salários pela fórmula de ajuste oficial. (...) Desta forma, usando o poder de repressão sobre a sociedade em geral e os sindicatos em particular, de que dispõe o governo autoritário, foi possível fazer aquilo que a ortodoxia pretende conseguir através de recessão e do desemprego: solucionar o impasse distributivo através da redução da parcela salarial” (Lara Rezende, 1982LARA REZENDE, A. (1982) “A Política Brasileira de Estabilização 1963/68.” Pesquisa e Planejamento Econômico, vol. 12 nº 3., p. 802).

O controle de preços, um instrumento nitidamente fora do receituário ortodoxo, foi iniciado a partir de 1965, e se processou de forma muito menos rigorosa do que o controle dos salários. Consistiu em dois esquemas paralelos:

  1. controle direto e compulsório através da SUNAB, principalmente sobre produtos agrícolas;

  2. controle voluntário, expresso através da criação da CONEP, aplicado aos produtos industriais.

Finalmente, deve-se ressaltar, como já feito anteriormente, que a ausência de restrição cambial constituiu outro elemento fundamental para explicar a estabilização interna.

O processo inflacionário dos anos 70 e a contradição entre o ajuste externo e o combate à inflação

A taxa de inflação, no período de implementação do programa de estabilização 1980/1984, conforme já ressaltado anteriormente, apresentou um comportamento bastante peculiar. Assim, apesar da forte redução do déficit público e da contração da moeda e do crédito, a inflação não cedeu; ao contrário, acabou se acelerando.

A explicação desse fenômeno requer, primeiramente, que se proceda à caracterização do processo inflacionário nos anos 70 e, em segundo lugar, que se explicite a contradição inevitável entre inflação e equilíbrio externo.

Os anos 70 se caracterizaram pelo aparecimento, em nível mundial, do fenômeno da estagflação, isto é, taxas elevadas de inflação convivendo com taxas reduzidas ou negativas de crescimento. No Brasil, no período 1974/1978, a taxa média anual de inflação duplicou em relação ao período imediatamente anterior (1970/1973), tendendo a se estabilizar num patamar em torno de 40% a.a. A partir de 1979, o patamar se elevou para 100% a.a., permanecendo até 1982. Novamente, em 1983, o patamar duplicou para 200% a.a.

A nova natureza do processo inflacionário tornou obsoletas as teorias tradicionais, desafiando e exigindo a formulação de novas teorias explicativas. A resposta veio através da Teoria da Inflação Inercial, consubstanciada no trabalho de dois grupos de economistas brasileiros: o chamado grupo da PUC-Rio de Janeiro (Arida, Lara Rezende, Bacha e Lopes) e o chamado grupo da FGV-São Paulo (Bresser-Pereira e Nakano).

Resumidamente, a teoria explica a inflação atual pela ideia de que nos processos inflacionários crônicos existe um componente dominante de inércia, em que a causa principal da inflação presente passa a ser a inflação passada. Dois são os mecanismos básicos que explicam a manutenção do patamar da inflação: a indexação e o conflito distributivo. O grupo da PUC-Rio de Janeiro deu ênfase ao primeiro e o grupo da FGV-São Paulo, ao segundo.

Ao contrário dos monetaristas, a moeda é vista como um agente passivo, que convalida o aumento de preços. Assim, numa situação de inflação crônica ou inercial, o aumento da oferta nominal de moeda não pode ser considerado fator acelerador da inflação; na verdade, tende a ser um fator sancionador. “A expansão monetária simplesmente acompanha a elevação dos preços, transformando-se em uma variável endógena do sistema, e não em uma variável exógena como pretende um tipo de pensamento linear como o monetarista” (Bresser-Pereira e Nakano, 1983BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos e NAKANO, Yoshiaki. (1983) “Fatores Aceleradores, Mantenedores e Sancionadores da Inflação.” In: BRESSER-PEREIRA e NAKANO (1984). Publicado originalmente nos Anais do X Encontro Nacional de Economia, Belém, ANPEC, 1983. Republicado na Revista de Economia Política, vol. 4, nº 1, janeiro/1984., p. 66).

Quanto ao déficit público, “só pode ser considerado diretamente um fator acelerador da inflação se for causa de excesso de demanda’’ (Bresser-Pereira, 1989aBRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. (1989a) “A Teoria da Inflação Inercial Reexaminada.” In: REGO, J. M. (org.) Aceleração Recente da Inflação. São Paulo, Bienal., p. XIX). Excluída essa hipótese, não existe relação de causalidade entre déficit e inflação. Nesse sentido, em face da natureza eminentemente endógena das causas da inflação (conflito distributivo e indexação), podem existir múltiplas taxas de inflação para um mesmo déficit e, por sua vez, a redução ou eliminação do déficit não implica redução da taxa de inflação.

A partir dessas considerações, fica fácil compreender o porquê da inflexibilidade da taxa de inflação diante das medidas ortodoxas. No contexto da inflação inercial, o repasse automático dos custos aos preços, aliado à indexação formal, acaba por introduzir rigidez de preços e salários, significando que as políticas destinadas a combater a inflação através da administração da demanda agregada tornam-se ineficientes ou, por outra, extremamente dolorosas, quando aplicadas de forma insistente e prolongada. A propósito, o trabalho de Kiguel e Liviatan (1988KIGUEL, Miguel A. e LIVIATAN, N. (1988) “Inflationary Rigidities and Orthodox Stabilization Policies: Lessons from Latin America.” The World Bank Economic Review, vol. 2, nº 3, setembro.), ao analisar a aplicação dos programas de estabilização ortodoxos na América Latina, é suficientemente comprovador.

Por fim, fica igualmente claro porque, numa economia plenamente indexada, uma mudança na configuração dos preços relativos, no sentido de favorecer o setor exportador, implica, necessariamente, a aceleração da inflação.

Assim, como os salários nominais são reajustados periodicamente de acordo com a inflação passada, uma drástica desvalorização na taxa de câmbio só produz efeitos temporários sobre o nível do salário real. O resultado é que a taxa de câmbio deve continuar a ser desvalorizada frequentemente para que atinja seu objetivo. Em outras palavras, a rigidez para baixo dos salários nominais implica forçosamente a aceleração da inflação como mecanismo para reajustar os preços relativos.

Diagnóstico equivocado das causas do desequilíbrio externo

A fundamentação teórica dos programas ortodoxos de estabilização se complementa com o chamado enfoque monetário do balanço de pagamentos, que pode ser resumido por meio da utilização de algumas identidades básicas da Contabilidade Nacional:

  1. DAC+I+G: O Dispêndio Agregado (DA) é idêntico à soma das despesas totais de Consumo (C), Investimento (1) e Gastos Governamentais (G);

  2. PNBDA+X-M: A soma do Dispêndio Agregado com as Exportações Líquidas de Bens e Serviços (X-M, ou Saldo de Transações Correntes) identifica o Produto Nacional Bruto (PNB);

  3. X-MPNB-DA: Como decorrência direta da identidade (2) conclui-se que a ocorrência de um déficit em Transações Correntes está diretamente associada à existência de um excesso de Dispêndio Agregado em relação ao PNB;

  4. X-MRI+K: Expressa que o dispêndio excedente (déficit em Transações Correntes) pode ser financiado através do ingresso líquido de capitais (K) ou pela redução das reservas internacionais (∆RI);

  5. RIX-M: A rigor, a crise no balanço de pagamentos se instaura quando K≤0 e o país passa a financiar a totalidade de seu déficit em transações correntes por meio de redução das reservas;

  6. RIS-I+T-G: Após substituir o valor de X-M, de acordo com as identidades anteriores e lembrando que S é a poupança privada e T é a Receita do Governo, chega-se à conclusão final.

A identidade (6) permite concluir que o desequilíbrio externo decorre ou porque o setor privado investiu mais do que poupou, ou porque o governo gastou mais do que arrecadou, ou ambos. A partir desse diagnóstico, a estratégia de ajuste concentra-se sobre duas variáveis:

  1. controle do crédito para eliminar o excesso de dispêndio do setor privado;

  2. controle do déficit público (NFSP) para ajustar o gasto do setor público e evitar que todo ajuste recaia apenas sobre o setor privado.

Na prática, a estratégia acaba se concentrando na redução ou eliminação do déficit público, pois se acredita que o setor privado está equilibrado (S=I). A essência do ajustamento ortodoxo pode ser assim resumida: a geração do equilíbrio no balanço de transações correntes depende da obtenção do equilíbrio nas contas do governo, através da eliminação do déficit público.

As críticas a essa concepção teórica podem ser resumidas nos seguintes pontos:

  • a. Omite a possibilidade de o país ter um déficit em conta corrente, sem que exista um excesso de demanda interna sobre os recursos disponíveis. Nesse sentido, deixa de considerar a ocorrência de choques externos adversos, assim como o peso do serviço da dívida externa.

A visão ortodoxa não contempla o fato de o desequilíbrio no balanço de pagamentos ter-se originado na queda da capacidade de exportar, devido à recessão mundial e à redução do preço das exportações. “Os programas pressupõem que os desequilíbrios em conta corrente são sempre devidos ao excesso de dispêndio sobre a renda do país. Um país com déficit em conta corrente é um país que está vivendo além de suas possibilidades. (...) O déficit em conta corrente pode ser consequência tanto da demanda interna ser superior à renda de pleno emprego quanto da queda acentuada no valor das exportações. Neste segundo caso, o déficit pode ser acompanhado de recessão interna com desemprego e capacidade ociosa” (Lara Rezende, 1983LARA REZENDE, A. (1983) “Crise Externa: Avaliação do Impasse neste Momento.” In: MOURA DA SILVA, Adroaldo e outros. FMI x Brasil. A Armadilha da Recessão. São Paulo, Forum Gazeta Mercantil., p. 31).

Da mesma forma, a explicitação do pagamento dos juros sobre a dívida externa deixa patente a presença de um desequilíbrio em conta corrente, sem que haja excesso de demanda. “Em 1983 não apenas não havia excesso de demanda no Brasil (o PIB caiu 3,1%) como também não havia desequilíbrio externo corrente, ou seja, compra de bens e serviços reais do exterior maiores que as exportações do país. O superávit da balança de transações reais nesse ano no Brasil foi de 3,4 bilhões de dólares. (...) No entanto, havia déficit em conta corrente e, portanto, ‘desequilíbrio externo’, porque o país, dado o volume de sua dívida e a elevada taxa de juros em vigor no mercado internacional, devia pagar cerca de 11 bilhões de dólares de juros” (Bresser-Pereira e Nakano, 1984BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos e NAKANO, Yoshiaki. (1984) “A Armadilha Teórica da Política de Estabilização.” In: Inflação e Recessão . São Paulo, Brasiliense., p. 173).

Essa crítica aponta para uma deficiência conceitual básica dos programas ortodoxos. O modelo macroeconômico convencional apoia-se essencialmente nos fluxos básicos de uma economia, desconsiderando os juros. Ora, tal esquecimento é tolerável quando as dimensões do endividamento do país devedor e a taxa de juros são reduzidas. Assim, no contexto de um nível de endividamento extremamente crítico, o modelo convencional perde seu significado, tornando-se imperativo introduzir o efeito estoque da dívida, mais precisamente a presença de um desequilíbrio de estoque (dívida externa), provocando um desequilíbrio de fluxo (serviço da dívida).

Ocorre que, através da explicitação do componente financeiro, tanto no que tange às contas externas quanto às contas do setor público, as conclusões são bem outras. “A balança comercial, assim como o orçamento não financeiro do setor público, podem estar equilibrados, mas o país continua a apresentar déficit em transações correntes (X<mml:m+Jx). E mais ainda, a relação causal é oposta à apresentada pelo modelo convencional. Assim, é o déficit em transações correntes, fruto do pagamento dos juros, que provoca um déficit no setor público, incluindo o pagamento dos juros pelo Estado. Temos um déficit público que não conduz a excesso de demanda, mas que é consequência do endividamento externo do Estado (e, como veremos, também do endividamento interno)” (Bresser-Pereira, 1989bBRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. (1989b) “The Perverse Macroeconomics of Debt, Deficit and Inflation in Brazil.” In: FUKUCHI e KAGAMI (eds.). Perspectives on the Pacific Basin Economy: A Comparison of Asia and Latin America. Tóquio, Institute of Developing Economies/The Asian Club Foundation, 1990. Trabalho apresentado ao Simpósio The Present and the Future of the Pacific Basin Economy. Tóquio, Institute of Developing Economies, julho/1989., pp. 8-9).

  • b. Como prolongamento da crítica anterior, “o problema da dívida externa é dramaticamente complicado pelo fato de que a maior parte da dívida é de responsabilidade do setor público, enquanto a quase totalidade das receitas de exportação são obtidas pelo setor privado. Em consequência, os governos são obrigados a obter junto ao setor privado os recursos requeridos para suprir o serviço da dívida” (Reisen, 1989REISEN, Helmut. (1989) “Public Debt, External Competitiveness and Fiscal Discipline in Developing Countries.” Princeton Studies in International Finance, nº 66., p. 3).

A partir daí, a relação de causalidade identificada pelo modelo ortodoxo se inverte. Na verdade, a presença de um déficit em transações correntes, provocado pelo pagamento do serviço da dívida externa, é a causa e não a consequência do déficit público. Por outro lado, a persistência do déficit público passa a ser consistente com o equilíbrio no balanço de transações correntes, ou, por outra, a obtenção do equilíbrio externo se processa ao custo do aumento do desequilíbrio financeiro do setor público.

A interação entre a dívida externa e o desequilíbrio financeiro do setor público pode ser analisada com o auxílio de duas equações:

  • 1. Restrição orçamentária do governo:

G - T + i * D * + i D = Δ M + Δ D * + Δ D

O lado esquerdo decompõe o déficit: déficit/superávit primário (G-T), pagamento do serviço da dívida externa (i*D*) e pagamento do serviço da dívida interna (iD). O lado direito aponta as alternativas de financiamento: emissão de moeda (∆M): endividamento externo (∆D*) e endividamento interno (∆D).

  • 2. Restrição externa e equilíbrio em transações correntes:

X - M = i * D *

Na medida em que cessa a entrada líquida de capitais externos e se esgotam as reservas internacionais, o país é obrigado a ober saldos positivos na balança comercial equivalentes ao serviço da dívida externa.

No momento em que se configura a restrição externa (AD”=0), o governo é obrigado a suprir o serviço da dívida (i*D*) por meio da aquisição de divisas junto ao setor privado (X-M). No entanto, diante da rigidez fiscal, caracterizada pela incapacidade do Estado em promover um aumento da carga tributária e/ou comprimir seu gasto corrente, esse processo acaba implicando ou o aumento da emissão de moeda ou o aumento do endividamento interno. Por sua vez, a forma pela qual se processam o endividamento interno, a elevação da taxa de juros e a redução do prazo de maturação dos títulos, acaba por agravar, de forma crescente, a capacidade de solvência do setor público.

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    Uma análise exaustiva dos programas implementados na América Latina pode ser encontrada em Diaz-Alejandro (1982DIAZ-ALEJANDRO, Carlos F. (1982) “Southern Cone Stabilization Plans.” In: CLINE, W. e WEINTRAUB, W. (eds.) Economic Stabilization in Developing Countries. Washington, D.C., Brookings Institution.) e Foxley (1982FOXLEY, Alejandro. (1982) “Stabilization Policies and Their Effects on Employment and Income Distribution: Latin American Perspective.” In: CLINE, W. e WEINTRAUB, W. (eds.) Economic Stabilization in Developing Countries. Washington, D.C., Brookings Institution, 1982.).
  • 2
    JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1991
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