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A construção de uma política econômica civilizada

Building a civilized economic policy

RESUMO

Esta peça é a transcrição da aula magna inaugural da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo, em 7 de março de 1991.

PALAVRAS-CHAVE:
Introdução à economia.

ABSTRACT

This piece is the transcription of the inaugural master lecture at the Faculty of Economics and Administration of the University of São Paulo, on 7 March 1991.

KEYWORDS:
Introductory economics.

Escolhi o tema da possibilidade de termos uma política econômica civilizada, porque me impressionam os contrastes e paradoxo que temos vivido. Quão distantes estamos de poder alcançar os ideais mais altos da humanidade, consubstanciados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada há mais de 200 anos, em 1789, por ocasião da Revolução Francesa, ou na Declaração Universal dos Direitos do Homem, mais completa, proclamada pela Organização das Nações Unidas, da qual o Brasil foi signatário, em 10 de dezembro de 1948. Quase todos esses ideais foram inseridos na Constituição da República Federativa do Brasil, Título II, sobre os direitos e garantias fundamentais.

Quando eu tinha a idade da maioria de vocês, que hoje estão iniciando os cursos de Economia e Administração, entre meus 17 e 20 anos de idade, tive uma vontade muito grande de querer descobrir a verdade e o porquê das coisas. Eu que vivia numa casa muito boa, com pais que sobretudo se preocupavam com a harmonia entre todos na família, comecei a questionar a tremenda desarmonia que havia para além dos muros de casa. A começar pelos gritos que às vezes ouvia, à noite, das mulheres prostitutas do Parque Siqueira Campos - pois junto ao parque do Trianon, na esquina das alamedas Casa Branca com a Santos, na cidade de São Paulo-, quando, de repente, vinha a polícia para dar uma batida, distribuir borrachadas, levá-las para pernoitar na delegacia, para alguns dias depois elas estarem lá de volta, fazendo o trottoir.

Nessa época, li uma biografia de Galileu Galilei, bem como vi um filme sobre a história de Nicolau Copérnico. Apaixonei-me pela vontade que eles tinham de descobrir as coisas, a mesma que recomendo que vocês venham a ter como cientistas sociais ao longo de suas vidas, mesmo quando a descoberta possa não lhes agradar. Numa cena do filme sobre a vida de Copérnico, sua filha lhe pergunta: “Por que tanto você insiste em ficar querendo descobrir que a Terra não é o centro do universo, que ela é redonda? Você não percebe que está perturbando todo mundo, a Igreja, mudando os ensinamentos da Bíblia?” “Porque eu quero descobrir a verdade”, respondeu Copérnico. “Mas por que tanto você quer descobrir a verdade?” “Porque é uma coisa humana”, arrematou Copérnico.

Os contrastes que havia para além dos muros de casa, de tanta pobreza em meio à abundância para alguns, só aumentaram desde aquela época. Em muitos momentos, o país cresceu aceleradamente e, como quase todos, eu me entusiasmava por isso. Mas volta e meia me deparava com graves episódios. Por exemplo, no início dos anos 60, depois de grande surto de desenvolvimento, encontrei-me longamente com a sra. Carolina Maria de Jesus, que acabara de escrever o livro Quarto de Despejo, sobre como seu sofrimento havia se intensificado numa favela de São Paulo naqueles anos de crescimento do PIB e da inflação.

Estudante de Administração de Empresas, tendo completado o segundo ano na FGV, parei para conhecer os países tanto do Oeste quanto do Leste Europeu. Fui testemunhar o crescimento econômico provocado pelo Mercado Comum Europeu, assim como ver o que seria possível conquistar com o socialismo.

Diante do Muro de Berlim, em 1962, e de tantas restrições à liberdade e à democracia, em meio a conquistas de natureza social, observando as diferenças de eficiência dos sistemas econômicos, avaliei que os ideais do socialismo - liberdade, igualdade, fraternidade - só seriam efetivamente alcançados através da democracia.

Uma vez formado bacharel em Administração, com pouco mais de um ano de trabalho em empresa familiar, resolvi que gostaria de lecionar Economia, especialmente porque queria aprender mais. Assim, fui fazer o mestrado e depois o doutorado nos EUA. Procurei estudar os fundamentos da economia neoclássica e as vantagens do sistema de mercado livre.

Volta e meia, entretanto, ainda que atento aos argumentos mais enfáticos de economistas como Milton Friedman, de que o capitalismo seria o sistema mais compatível com a liberdade, sempre avaliei como era importante ouvir os questionamentos dos que consideravam seriamente as críticas de Karl Marx e dos que, com urna visão mais aberta e liberal, detectavam aspectos dramáticos da natureza deste sistema.

Com John Kenneth Galbraith aprendi que economista, para ser útil, precisa levar em conta o poder. Especialmente na hora, por exemplo, de se examinar quem, no Brasil, ao longo das últimas décadas, tem realmente influenciado a elaboração da política econômica; quais os que conseguem em primeiro lugar influenciar a definição do funcionamento das instituições, as regras sobre o direito de propriedade e as relações contratuais; quais os que realmente têm voz na hora de se elaborar a política de prioridades para o desenvolvimento industrial e tecnológico, o orçamento governamental, a política salarial e a de preços, a creditícia e a de juros, e assim por diante.

Os economistas chegam muito tarde para resolver as grandes crises. Assim, durante a Grande Depressão dos anos 30, quando a atividade econômica caiu pela metade nos EUA e na Inglaterra, desempregando um quarto da força de trabalho, com repercussão por todos os países, John Maynard Keynes mostrou que o nível de emprego poderia ser elevado aumentando-se os gastos governamentais. Mas Hitler já o havia feito na Alemanha, tragicamente por meio de gastos em armamentos.

Em dezembro de 1970, em Nova Orleans, ouvi Joan Robinson falar para uma atenta plateia no Encontro da Associação Americana de Economistas. Dizia ela que os economistas também estavam atrasados para resolver a Segunda

Grande Crise Econômica, não mais tanto relativa ao nível de emprego, mas, em especial, ao conteúdo do emprego. Ou seja, relacionada à questão da extraordinária desigualdade entre nações ricas e pobres e, dentro de cada nação, entre ricos e pobres.

Em 1973, tive a oportunidade de mostrar os contrastes de São Paulo para aquela senhora de mais de 70 anos, contemporânea de Keynes, cujos olhos azuis se interessaram por ver justamente as favelas da cidade, em meio à grande riqueza de algumas mansões. Naqueles dias havia eclodido um grande debate sobre a natureza do chamado “milagre brasileiro”, urna vez que os dados do Censo de 1970 demonstravam um perverso processo de concentração de renda, colocando na defensiva os principais economistas responsáveis por sua formulação. Artigos e livros foram escritos, procurando demonstrar que se tratava de um processo natural de crescimento, que logo mais as desigualdades diminuiriam e todos se beneficiariam com maior grau de bem-estar do que antes.

Vinte anos depois de ouvir aquela palestra de Joan Robinson, eis que observo, no Brasil dos anos 90, o amálgama das duas crises. Pois agora o problema está tanto no nível quanto no conteúdo do emprego. Há uma década que a economia não cresce e, pior, a desigualdade aumentou, tornando o Brasil um dos destacados campeões da desigualdade social dentre todos os países do mundo. Tem sido dito que Serra Leoa, Honduras e África do Sul apresentam índices Gini de desigualdade ainda mais elevados. O Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 1990, entretanto, indica que em nenhum outro país, dos 41 para os quais há dados disponíveis, os 20% de maior renda familiar detêm parcela tão grande da renda nacional - 62,6%, em 1983 - quanto no Brasil.

Se quisermos fazer um paralelo entre o poder de voto ideal numa democracia e o poder de votar na economia, chegaremos a uma indicação dramática de quão longe estamos de qualquer critério adequado de equidade. Se levarmos em conta que são os sinais emitidos pelo mercado que contribuem para definir o que é produzido pela economia no que respeita ao setor privado, observaremos que o 1% mais rico no Brasil, em 1989, passou a votar no mercado com um peso de 17%, bem mais do que os apenas 13% da metade mais pobre da população brasileira.

Por outro lado, no que tange ao conteúdo do que é produzido pelo Setor Público, ao nível do município, do Estado e da Federação, constatamos enorme diferença de poder de influência dos diferentes segmentos da sociedade. Progresso tem havido nessa área. Haja vista o exemplo de elaboração do orçamento, procurando-se ouvir a população reunida nos mais diversos bairros ou regiões da cidade de São Paulo, como tem procurado fazer a prefeita Luiza Erundina de Souza, além do trabalho complementar das audiências públicas realizado na Câmara Municipal para melhor orientação dos vereadores na hora de apresentar emendas e aprovar a lei que define a receita e a despesa. Mas a maneira como os deputados e senadores se sujeitaram às pressões de empresas interessadas nos mais diversos tipos de obras, além da sofisticada influência que tais empresas exercem sobre os órgãos do Executivo, como recentemente mostraram reportagens da revista Veja e inúmeros artigos na imprensa, dentre os quais os de Janio de Freitas, na Folha de S. Paulo, indicam a necessidade de procedimentos muito mais abertos e participativos de elaboração dos orçamentos governamentais.

Paradoxo maior no que diz respeito ao conteúdo dos gastos públicos, que seriam de esperar de economias caracterizadas por alto grau de civilização, que realmente viessem a indicar o quanto estão contribuindo para a melhoria de bem-estar de seus povos, bem como das nações mais pobres, é o quanto países como os EUA, a Inglaterra, a França, a Alemanha, o Iraque e os outros estiveram a gastar nesta Guerra do Golfo Pérsico. O extraordinário desenvolvimento tecnológico alcançado tem servido sobretudo para que vejamos cenas de mísseis destruindo a riqueza feita pelo homem e vidas humanas, cenas absolutamente selvagens.

Com o economista Paul Davidson, mais rcentemente, me deparei com a busca incessante daquilo que nos parece possível de ser alcançado pela humanidade, tanto no Brasil quanto noutros países do mundo.

Paul, que é editor do Journal of Post Keynesian Economics, escreveu com seu filho, Greg Davidson, um analista de programas astrofísicos da NASA, um livro que li com grande interesse: Economics for a Civilized Society. Neste livro, Paul Davidson argumenta que considera bárbara uma política econômica que para combater a inflação leva a economia à recessão, negando oportunidades de empregos e de rendimentos a pessoas que tenham a potencialidade e a vontade de estar trabalhando e produzindo riquezas.

Civilizada é a política que procura encontrar caminhos mais humanos, mais democráticos, para administrar os limites de conflitos distributivos que ocorrem entre os membros da comunidade, e que são a causa fundamental da inflação.

Paul Davidson inicia o seu livro com uma pergunta: “Qual é a diferença entre o amor e a prostituição?” Para aqueles que acreditam que para resolver os problemas de uma economia como a brasileira - de tanta inflação e que ainda tem que enfrentar os problemas da dívida externa - é necessária a recessão, o negar oportunidade de empregos a tantos, a prostituição teria maior valor. Pois a prostituição alcança um valor no mercado e o amor, não.

Ora, argumenta Paul Davidson, para efetivamente conquistar a definição e a prática de uma política econômica civilizada, precisamos levar em conta outros valores que não apenas o interesse próprio, que obviamente existe, dos trabalhadores, dos empresários, de cada um de nós. Mas também existem, dentro de cada um, valores éticos muito importantes, valores cívicos que podem e precisam ser levados em conta por governos e por todos os segmentos da sociedade.

Valores, por exemplo, como os que levaram milhões de pessoas nos Estados Unidos a lutarem e conquistarem avanços na Campanha dos Direitos Civis nos anos 50 e 60, campanha que levou milhões de americanos a paralisarem a Guerra do Vietnã, ou os que estão, por exemplo, contidos no famoso pronunciamento, feito para mais de 200 000 pessoas, diante do Memorial de Abraham Lincoln, por Martin Luther King Junior, quando ele dizia que tinha um sonho:

“Eu tenho um sonho que todos os vales serão elevados e todos os morros e montanhas serão rebaixados. Este será o dia, quando todas as crianças de Deus serão capazes de cantar com um novo sentido. Meu país é para você a doce terra da liberdade. Para você eu canto.

Quando deixarmos a liberdade prevalecer, quando nós a deixarmos prevalecer em todas as vilas e vilarejos, em todos os Estados, em todas as cidades, nós poderemos ver chegar o dia em que todas as crianças de Deus, negras e brancas, judias e gentias, protestantes e católicas serão capazes de se darem as mãos e cantar as palavras daquele velho canto espiritual negro: ‘Finalmente a liberdade. Finalmente a liberdade’. Graças a Deus todo-poderoso. Finalmente nós somos todos livres”.

Exemplo de valores cívicos foram aqueles que motivaram os brasileiros durante a extraordinária campanha das Diretas Já. Fomos às ruas. Pensávamos num país muito melhor, que certamente imaginávamos viria a ocorrer com as eleições para a Presidência da República.

Mesmo no ano de 1989, nas campanhas de cada um de nossos candidatos à Presidência, quantos de nós vibramos com estes valores mais altos da alma humana, seja na campanha Sem Medo de Ser Feliz, de Lula, ou mesmo na campanha contra os marajás, de Fernando Collor de Mello.

Quantos de nós não vimos a sra. Zélia Cardoso de Mello expor na televisão, ao longo da campanha, que era chegada a hora de um crescimento autossustentado, de uma política salarial feita com base no diálogo com os trabalhadores, uma política em especial para o salário mínimo, que em pouco tempo seria aumentado em termos reais, e em poucos anos seria triplicado, e de como seria possível conseguir combater a inflação e os problemas da dívida externa brasileira sem pagá-la senão ao alcance de nossa capacidade.

Mas certamente é difícil, deve estar tão difícil para a ministra Zélia Cardoso de Mello administrar este país, quanto eu sei que está sendo difícil para a prefeita Luiza Erundina de Souza fazer tudo aquilo que ela gostaria nesta cidade. De resolver os problemas de transporte público, da habitação, da miséria de todos que vivem na periferia.

Mas algo me parece estar errado. Eu tenho a impressão de que isso tem a ver com os próprios valores, talvez menos os dela, e mais do próprio presidente da República. Se nós não os convencermos de que outro deva ser o caminho ...

Pensemos um pouco mais na questão do desemprego num sistema empresarial. Os dirigentes de empresas realizarão investimentos desde que os fluxos previstos de receitas sejam maiores do que os fluxos de despesas. Para isso é preciso haver algumas regras básicas estabelecidas. Se a cada semestre tivermos novas medidas provisórias, tudo fica provisório.

Como bem ressaltou em pronunciamento na Câmara dos Deputados o deputado Ulysses Guimarães, tudo parece provisório neste país, a política salarial, a política de juros, a política de créditos. Não há como o empresário ou mesmo o dirigente de empresa pública saber o que vai acontecer proximamente e isso obviamente atrapalha as decisões de investimentos. Isso tem a ver com a recessão vigente.

Nem sempre concordo com o professor Mário Henrique Simonsen, mas achei interessante sua proposta de uma última medida provisória: a que viesse proibir as medidas provisórias daqui para frente.

Para pensarmos na questão que vocês tantas vezes vão discutir com professores sobre a moeda, a inflação, a atividade econômica e o desemprego, acho interessante ilustrar com um exemplo.

Os economistas mais tradicionais argumentam que não há alternativa: para conter a inflação, é preciso provocar a recessão. Porque a inflação, antes de tudo, segundo, digamos, Milton Friedman, é um fenômeno essencialmente monetário, que decorre do aumento da quantidade da moeda numa proporção maior do que a de bens e serviços produzidos. Para ilustrar isso normalmente os economistas usam parábolas.

Vou usar uma dessas parábolas. Vamos supor que numa ilha haja a produção de dez lápis num período de tempo e que a quantidade de moeda nessa ilha seja de 10.000 cruzeiros. Então fica simples. Dez lápis, 10.000 cruzeiros de oferta da moeda, cada lápis vai custar 1.000 cruzeiros.

Agora, se na mesma ilha colocarmos mais 10.000 cruzeiros, para cada lápis caberão mais l.000 cruzeiros. Cada lápis vai custar 2.000 cruzeiros. É assim que se produz a inflação: com mais dinheiro, sem aumento de produção.

Se esta economia estiver crescendo e produzir mais dois lápis num período de tempo, aumentando-se em 20% a produção, se a oferta de moeda aumentar de mais 2.000 cruzeiros, teremos doze lápis para 12.000 cruzeiros. Cada lápis continuaria a custar l.000 cruzeiros cada.

Mas a questão que se coloca é a seguinte: se aumentarmos a moeda em termos reais, se aos 10.000 cruzeiros originais adicionarmos mais 10.000 cruzeiros, canalizando-os para as mãos de dirigentes de empresas públicas e privadas, agiremos de maneira a possibilitar-lhes e ao próprio governo financiarem suas atividades e contratarem trabalhadores, para custear matéria-prima e assim por diante. Se disso resultar que os trabalhadores e as empresas - a combinação de esforços de todos os envolvidos na produção - consigam de um período para outro aumentar a produção de dez para quarenta lápis, acrescentando trinta lápis, então teremos ali as vinte notas de l.000 cruzeiros para cada uma, 20.000 cruzeiros para adquirir quarenta lápis. Cada um, portanto, vai custar 500 cruzeiros. Quer dizer, conseguimos aumentar a produção e ainda reduzir os preços.

E a pergunta que vocês vão ter que se colocar ao longo de suas vidas de economistas é: a inflação é simplesmente um fenômeno de muito dinheiro correndo atrás de poucos bens?

Será que faz sentido combater a inflação pela diminuição da oportunidade de emprego para pessoas que querem produzir, querem dar de si, que têm potencialidade?

Em 1990, no Brasil, 57.000 empresas fecharam; 46.000 foram criadas. Muito mais foram fechadas em relação às que foram abertas.

E o desemprego aumentou. Em janeiro de 1991 foi maior do que em janeiro do ano passado.

No dia 31 de janeiro último, quando estava sendo anunciado o Plano Collor II, a ministra Zélia Cardoso de Mello me chamou, bem como o deputado Aloizio Mercadante. Perguntei-lhe: qual a sua convicção de que a economia agora vai realmente deslanchar, vai recuperar-se e sair dessa situação de recessão e desemprego?

Ela afirmou que certamente os empregos iriam ser ativados, especialmente no setor imobiliário, com o Fundão, e assim por diante.

Eu me preocupei muito, porque não estou convicto, e ainda não vi acontecer, um mês depois do plano, que os investimentos estejam crescendo para valer.

A moeda é algo que parece muito simples, mas os professores que aqui estão sabem que, a respeito dela, nós economistas temos discordado muito e vamos continuar a fazê-lo.

Vamos supor o caso de um construtor que planeja construir um condomínio, um prédio. Tem que pensar nos próximos anos, como é que vai ser a oferta de apartamentos dos diversos tipos, a concorrência, quanto vai custar, como vai evoluir todo o fluxo de custos, mão-de-obra, matérias-primas; qual vai ser o preço, quais serão os limites que vai ter com planos do governo e assim por diante. Se o empresário achar que vai ser rentável, ele vai fazer o investimento.

Precisamos pensar em como conter a inflação. Primeiro, compreender que a inflação não é simplesmente um fenômeno monetário. Mais que fenômeno monetário, a inflação é um fenômeno que resulta das pressões de diferentes segmentos da sociedade, para obter parcelas crescentes do bolo da economia.

Então, temos que administrar esses conflitos, isso é inevitável. Ainda mais no Brasil, com tanta desigualdade. São da natureza do sistema. E a questão que se coloca é se é possível administrá-los por meios democráticos ou se será por meio da ditadura militar, do regime militar, de decreto­lei, da medida provisória e assim por diante. Com a censura e a repressão aos trabalhadores, aos seus direitos, colocando os sindicatos sob intervenção, e depois pauleira e helicópteros, bombas de gás lacrimogênio, episódios de matança de trabalhadores, como o da Companhia Siderúrgica Nacional ou em Rio Maria, no Pará.

Os conflitos num país com tantas desigualdades, nesse regime, são mais que naturais. O importante é conseguir resolvê-los de maneira democrática.

Para pensar no controle da inflação, é preciso considerar dois tipos de bens: aqueles cuja produção não se pode aumentar com rapidez, tipicamente bens agrícolas, e os de produção mais regular, como sapatos ou tecidos.

No caso de bens agrícolas, às vezes você pode aumentar a oferta com importações. No ano passado, tanto foi a preocupação com a limitação de crédito e da moeda, que não se financiou adequadamente a produção, em especial, dos pequenos e médios agricultores. A produção agrícola caiu em mais de 5%.

Para esse tipo de bem, cuja produção não pode ser aumentada com rapidez, é importante lembrar de uma velha lição da Bíblia: a história de José e o faraó.

José estava preso e foi chamado pelo faraó, que estava tendo sonhos, pois este tinha conhecimento de que aquele homem sabia interpretar sonhos. O faraó disse a José:

“Olha, sonhei que do rio haviam saído sete vacas gordas e depois sete vacas magras, e depois sonhei com um caule, do qual saíam sete espigas cheias de milho e sete espigas secas”.

E José disse então ao faraó:

“Acontece que vão ocorrer no Egito sete anos de fartura e depois sete anos de seca, sem produção, o que vai provocar a fome. Você precisa estabelecer o planejamento adequado, exigindo que todos os produtores reservem, durante os sete anos de fartura, pelo menos 1/5 da produção para os sete anos que virão posteriormente”.

O faraó acabou convidando José para ser o executor deste plano. A lição é simples. É preciso produzir bens e armazená-los para enfrentar a inflação com esse tipo de mercadoria.

O outro tipo de mercadoria é aquele de produção corrente, como lápis, roupas, tecidos, sapatos e assim por diante. Produção corrente nas fábricas. E aí você precisa administrar uma política de rendas. Para isso você precisa ter as partes dialogando.

Ai é muito importante, no processo de negociação coletiva entre trabalhadores e empresários, que os trabalhadores tenham acesso aos dados econômico-financeiros, para que possam avaliar a evolução das vendas, das compras, do valor adicionado, do número de empregados; para que possam comparar o valor adicionado por número de empregados com a evolução dos salários, dos lucros ao longo do tempo. Que tenham o direito de conhecer a folha de pagamento, como é distribuída a renda em cada fase do processo produtivo.

Isso deve ser feito nos setores público e privado. Na Câmara Municipal de São Paulo, quando de lá fui presidente, por exemplo, em 1989, resolvemos publicar a relação nominal de todos os funcionários com a respectiva função, lotação e remuneração. Houve ali um quiproquó. O corpo diretivo ficou preocupado: “Não faça isso. Vai ferir nossa privacidade”.

Consultei os juristas Fábio Konder Comparato e Goffredo Silva Telles Jr., que me disseram: .”Absolutamente. Dinheiro público, pago pelo povo, tem que ter transparência. Não há o que esconder”.

“Ah. Mas isso vai me prejudicar. Imagine, minha ex-mulher vai saber quanto eu ganho e querer aumentar a pensão dela”, veio um dizer.

É um direito de justiça que ela saiba. Entrei no Senado com um projeto de resolução obrigando a publicação anual dos dados relativos à remuneração de todos que ali trabalham. Tenho procurado advogar e vou batalhar nessa direção da transparência, para que trabalhadores e empresários estejam conscientes de como garantir, a todos os envolvidos, a justa participação no processo produtivo.

Uma coisa é você ter uma política de rendimentos. Por exemplo, Paul Davidson propõe que haja uma política de impostos, baseada na política de rendas. Qualquer empresa que viesse a pagar para os trabalhadores aumentos de salários maiores que os ganhos de produtividade teria de pagar maiores impostos. Por outro lado, haveria diminuição de impostos para empresas que assim não procedessem, ou seja, que não pressionassem os preços para cima.

Uma política tributária consistente com uma política anti-inflacionária seria a que flexibilizasse a alíquota de imposto de renda, de maneira a torná-la tão menor quanto menor fosse a margem de lucro da empresa. Resultaria em estímulo a se vender mais, produzindo maior quantidade de mercadorias e empregando mais pessoas.

Mas o que se poderia pensar para resolver o problema mais fundamental de eliminar a miséria e a pobreza?

Creio que vale a pena estudar seriamente a proposta de renda mínima garantida, também denominada de imposto de renda negativo. Três importantes economistas de diferentes credos a defendem: Milton Friedman, John Kenneth Galbraith e James Tobin. No Brasil, dentre outros, o professor Antônio Maria da Silveira, da FGV.

Assim como os que ganham mais pagam imposto de renda, os que ganham menos, aqueles que não atingem o mínimo de rendimentos, receberão algo do governo na forma de dinheiro, de rendimentos.

No diálogo havido no Congresso Nacional sobre as medidas provisórias, particularmente de preços e salários, se instituiu o conceito de cesta básica.

A ideia proposta pelo PT, pelo governo paralelo de Lula, pelo professor Walter Barelli, nasceu da experiência italiana, logo após a Segunda Guerra Mundial, quando se fez o panieri, que era a cesta básica. A ideia do Barelli é de que se discuta em âmbito nacional o que seria a cesta básica. Incluiria o arroz, o feijão, os ingredientes fundamentais para qualquer família assalariada. Iria ter uma cerveja por semana, um jogo de futebol, uma vez por ano, para quem mora em São Paulo, uma ida e volta a Santos ou coisas assim.

Haveria um grande debate sobre a cesta básica.

Agora, neste março de 1991, a proposta do PT foi de que a cesta básica deveria, ao menos, preencher as necessidades de alimentação e transporte coletivo; aí,· seu valor foi estimado em 50.000 cruzeiros.

O salário-mínimo, que estava em cerca de 13.000 cruzeiros em março, iria para 25.000 cruzeiros e, gradativamente, se chegaria aos 50.000 cruzeiros. Propôs-se uma política de curto prazo para que os assalariados em geral ganhassem, ao menos, o aumento do valor da cesta básica. Se esta-aumentasse de 50 para 55.000 cruzeiros, os trabalhadores de salário-mínimo, aumentariam de 25 para 30.000, os que ganham 50, para 55.000 e os que ganham 80 aumentariam ao menos para 85.000 cruzeiros.

Na mesa de negociação, o valor da cesta básica baixou para 29.600 cruzeiros, e o salário-mínimo foi fixado em 17.000 cruzeiros em março, e depois 20.000 cruzeiros em abril, o que o PT considerou insuficiente.

Gostaria que vocês pensassem no conceito de renda mínima garantida, que seria paga a cada pessoa que não tivesse rendimento até um certo patamar, digamos 50.000 cruzeiros. A pessoa teria o direito de receber, na forma de taxação negativa, numa proporção de 50% sobre a diferença entre o seu rendimento e aquele patamar definido como mínimo, para que sempre houvesse o incentivo ao trabalho.

Portanto, uma pessoa adulta que recebesse zero cruzeiro de renda, teria direito a 50% de 50.000 cruzeiros, ou 25.000 cruzeiros. A pessoa que fazendo alguma atividade - e aí vem a dificuldade administrativa de saber, - vendendo cachorro-quente ou fazendo serviço de limpeza, ganhasse 10.000 cruzeiros mensais, portanto, receberia 50% da diferença entre 50 e 10.000. Seu rendimento aumentaria de 50% de 40.000, passando de 10 para 30.000 cruzeiros.

Assim, todas as pessoas adultas, cujos rendimentos não atingissem o patamar definido, independentemente de estarem trabalhando ou não, receberiam aquele complemento.

Esta é uma forma de substituir o seguro-desemprego. Uma maneira interessante de complementar o salário-mínimo, com a vantagem de não ter repercussão sobre o mercado de trabalho, no sentido de prejudicar as oportunidades de emprego. Friedman, por exemplo, argumenta em favor do imposto de renda negativo e contrariamente à existência do salário-mínimo, que possa prejudicar o emprego daqueles que não estão em condições de obter uma remuneração no mercado senão menor do que o salário-mínimo fixado.

John Kenneth Galbraith, entretanto, argumenta que deve haver o salário-mínimo e o mínimo de renda garantido, um reforçando o outro.

Proponho que vocês pesquisem a respeito, para saber da funcionalidade. Claro, há que pensar: será que as pessoas serão honestas em declarar o quanto ganham?

Mas o problema da dificuldade no que respeita à declaração honesta de quem ganha pouco não é muito diferente do problema da honestidade das pessoas que ganham muito e nem sempre pagam o imposto devido. Então, não é pelo problema da honestidade que se deixa de cobrar o imposto de renda, ainda mais com as facilidades de controle proporcionadas hoje pela informática.

Quero lhes dizer que preparei esta aula como se fosse um diálogo com meus filhos. Outro dia conversei com o André sobre se vocês teriam interesse nessas coisas de que estou falando. Depois de ter assistido ao Eduardo, o Supla, no Rock in Rio, eu disse a ele:

“Olha, filho, eu gosto de suas músicas, gosto sim. Essa música, ‘Esses humanos cheios de certeza’, está se referindo aos pais, eu acho bem interessante”. Aí eu falei: “essa música que você canta ‘é só queimar’ não sei não”.

Aí ele disse: “Ah, pai, você não sabe de nada da juventude mesmo, não sabe como são os jovens hoje”.

Daí o André disse: “Pai, o que o senhor quer é um rock assim: É trabalhar, é a transparência, é a verdade, é a distribuição de renda. Assim, quem vai assistir?”

Muito obrigado. Para terminar, transmito-lhes a recomendação de Antônio Machado: “Camínante, no hay camíno. El camíno se hace al andar”.

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    JEL Classification: A22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1991
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