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Estado e desenvolvimento na década de 90: desafios da reforma institucional

State and development in the 90s: challenges of the institutional reform

RESUMO

Até agora, a reivindicação de profundas reformas institucionais na economia brasileira não levou a grandes mudanças. O consenso sobre questões amplas, como menor interferência e controle do governo, tem se mostrado insuficiente para dar mais impulso a essas reformas ao longo dos anos noventa. Pretende-se resumir algumas questões básicas, que podem ajudar a uma melhor avaliação das possibilidades de resolução dos conflitos de interesse em tempo oportuno. As divergências, em muitos casos, são mais uma questão de tempo e grau do que de substância. Nesse sentido, cabe ressaltar que um acordo prévio sobre alguns princípios básicos, ao lado das proposições do escritor italiano Ítalo Calvino para o próximo milênio, será de grande ajuda.

PALAVRAS-CHAVE:
Reforma do Estado; desenvolvimento econômico

ABSTRACT

Up to now the claim for deep institutional reforms in the Brazilian economy did not lead to major changes. The consensus on broad issues, such as less government interference and control, has proved not to be sufficient to give more impetus to these reforms over the nineties. It is intended to summarize some basic questions, which might help to further appraisal of the chances to solve the conflicts of interest in due times. The divergences, in many cases, are more a matter of time and degree than of substance. For that matter, it is pointed out that a previous agreement on some basic principles, alongside the propositions advanced by Italian writer Ítalo Calvino for the next millennium, will be of great help.

KEYWORDS:
State reform; economic development

1. INTRODUÇÃO

Grandes esperanças e fundados receios dominam as expectativas sobre os resultados das mudanças institucionais em curso e seus impactos sobre o processo de desenvolvimento no país, na década que antecede a virada do século. Para uns, o encolhimento do Estado e a liberação das forças de mercado são motivos suficientes para otimismo. Para outros, motivo de preocupação. Até que ponto a liberalização imediata e integral da economia e da sociedade brasileiras é compatível com as elevadas disparidades regionais e sociais? Qual é o ponto de equilíbrio desejável das relações entre o poder público e a iniciativa privada, tendo em vista a instituição de mecanismos adequados de defesa de interesses nacionais e do atendimento dos direitos básicos de cidadania?

O momento atual é propício à reflexão. Inauguramos a década de 90 sob o impacto de novas e infrutíferas tentativas de promover o ajustamento econômico necessário à retomada do desenvolvimento econômico e sob a égide de propostas de reformas institucionais de cunho nitidamente liberalizante. Na ausência de uma estratégia global que redefina o papel que o Estado deveria desempenhar, em um momento crucial para que os anseios nacionais de igualdade e modernização venham a ser alcançados no limiar do século XXI, corremos o risco de desencadear um processo desagregador e desordenado de mudanças.

O novo padrão institucional precisa ser urgentemente definido. Não nos esqueçamos de que a crise de 1961-63 foi enfrentada a partir de um abrangente programa de reformas que lançou as bases para a sustentação de uma estratégia de crescimento voltada para a rápida expansão do produto interno e a integração do mercado nacional. Sob a liderança do Estado, o país assistiu a um ciclo de inegável prosperidade econômica, o qual, no entanto, não foi capaz de impedir o agravamento dos conflitos sociais.

A coerência de propósitos e a simultaneidade das decisões que transformaram as reformas tributária, administrativa, financeira, da dívida pública e do sistema de Previdência Social em um conjunto integrado, construído a partir de um projeto nacional previamente definido, não prevalecem agora. O esgotamento do padrão institucional constituído em meados dos anos 60 deu-se por autofagia. A estatização da dívida externa, as operações de salvamento de instituições financeiras, a proliferação de subsídios, a preservação de privilégios fiscais e tarifários, a excessiva centralização do processo decisório e o uso indiscriminado de práticas clientelistas contribuíram para o crescente enfraquecimento do organismo governamental. O Estado cresceu por fora, mas debilitou-se internamente; o corpo inchado revelou as consequências da intoxicação causada por um progressivo envenenamento.

O figurino desenhado nos anos 60 perdeu sua elegância e funcionalidade. Não basta, entretanto, submeter o Estado a uma dieta forçada de emagrecimento. O traje não está mais adequado à realidade de nossa época. Remendos e ajustamentos periódicos também não irão resolver o problema. O novo figurino institucional precisa ser desenhado e construído.

Em um brilhante conjunto de ensaios publicados após sua morte, um dos mais renomados escritores contemporâneos, o italiano ítalo Calvino, expôs, de forma concisa e elegante, suas propostas para o próximo milênio. Editado recentemente no Brasil, as seis propostas de Calvino (Calvino, 1990CALVINO, Ítalo (1990). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras.) enunciam os princípios básicos que deverão presidir a elaboração do projeto de reforma institucional a ser implementado nesta década. Esses princípios são:

Leveza

“A leveza para mim está associada à precisão e à determinação, nunca ao que é vago ou aleatório” (Calvino, 1990CALVINO, Ítalo (1990). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras., p. 28). Esta citação cai como uma luva no debate sobre o tipo de Estado que a sociedade brasileira necessita para enfrentar os desafios desta última década do século XX. Um Estado leve, sim, mas um Estado leve não deve ser confundido com um Estado pequeno, magro, incapaz de definir com clareza as prioridades do desenvolvimento e de agir de modo eficaz no sentido de garantir o alcance de seus objetivos. Precisão e determinação são as qualidades básicas a perseguir. Para agir com precisão, o Estado deve recuperar sua capacidade de planejamento, tendo em vista obter uma visão global dos problemas, a coordenação de suas atividades e a eliminação de superposições e desperdícios. Para atuar com determinação, é preciso ter firmeza de propósitos e estabelecer bases sólidas para a negociação política, tendo em vista minimizar o efeito de práticas clientelistas nas decisões governamentais.

Rapidez

Em um mundo assolado pela competição, a rapidez de comunicação, de raciocínio, de decisão, é um importante valor a cultivar. A rapidez de comunicação é uma questão de linguagem. A comunicação escrita (no caso de Calvino, a literatura; em nosso caso, os planos e programas de governo) é a forma apropriada de facilitar a compreensão do que é diverso, exaltando as diferenças e criando, assim, condições propícias à negociação. A linguagem hermética utilizada pela tecnoburocracia na elaboração de planos de governo, orçamentos e outros documentos que consubstanciam as propostas de ação governamental é um dos principais entraves à democratização do processo decisório e ao estabelecimento de prioridades de intervenção consentâneas com as preferências da maioria.

Exatidão

Para Calvino, a busca da exatidão bifurca-se em duas direções. “De um lado, a redução dos acontecimentos contingentes a esquemas abstratos que permitam o cálculo e a demonstração de teoremas; do outro lado, o esforço das palavras para dar conta, com a maior precisão possível, do aspecto sensível das coisas.” Visão de conjunto e fidelidade aos detalhes. Cálculo racional abstrato e percepção clara da realidade. Pensar o macro sem olvidar o micro. Nada mais próximo dos atributos de um Estado moderno, capaz de orquestrar o processo de desenvolvimento sem abafar o virtuosismo de cada instrumento.

Visibilidade

A proposta de visibilidade traz à mente o tão propalado e desgastado discurso da transparência. É preciso que o governo seja transparente, isto é, que haja uma nítida percepção por parte da sociedade dos motivos e dos meios que correspondem a ações ou omissões do poder público e das consequências derivadas das escolhas feitas. Transparência e percepção dependem do estabelecimento de um eficaz mecanismo de comunicação. O recurso à imagem é, na opinião de Calvino, ao mesmo tempo um instrumento que permite uma melhor compreensão e transmissão do saber científico e uma mais perfeita identificação do escritor com a alma do mundo, mas a civilização da imagem, das comunicações de massa, da propaganda, das pesquisas de opinião põe em risco a capacidade de o indivíduo formar juízos a partir das imagens extraídas de sua própria consciência. A manipulação da opinião é uma arma perigosa e que ameaça o atingimento dos ideais de representatividade e transparência.

Multiplicidade

“No momento em que a ciência desconfia das explicações gerais e das soluções que não sejam setoriais e especialísticas, o grande desafio para a literatura é o de saber tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (Calvino, p. 127). Visão pluralística e multifacetada é exatamente o que necessitamos na condução do processo de desenvolvimento. A visão parcial e fragmentada dos problemas que decorre da organização do Estado e da administração pública em grandes sistemas setorialmente definidos contribui para a submissão do poder público a interesses particulares e para o abandono de uma perspectiva global, de longo prazo, na condução dos negócios governamentais. O cerne das novas propostas de reforma do Estado e da administração pública deve estar na recuperação da capacidade de pensar a economia e a sociedade como um todo e de buscar soluções comuns para os problemas do crescimento econômico e dos desequilíbrios sociais.

Consistência

Calvino morreu antes de escrever a última de suas seis conferências que compunham o conjunto de valores a preservar no próximo milênio. Seu mero enunciado é, todavia, suficiente para nossos propósitos de utilizar esses mesmos valores como uma cartilha de princípios básicos a observar na reforma institucional. A desmoralização do Estado e a fragmentação da administração pública multiplicaram as chances de conflito no tocante a decisões de política e definição de programas, aumentando a ineficiência da ação governamental pela perda de consistência dos planos e pela falta de coerência das medidas adotadas para implementá-los. Trata-se, pois, de recriar condições mínimas indispensáveis à adoção de uma estratégia coerente de atuação e à utilização de um conjunto de instrumentos de intervenção consistente (no sentido de ser suficientemente forte para promover mudanças necessárias) com os objetivos pretendidos. Uma das providências necessárias nesse sentido é a redefinição das normas jurídicas que estabelecem os princípios básicos das organizações da administração pública, no sentido de adaptar o estatuto que rege o funcionamento de cada órgão à natureza da função que ele desempenha; abordaremos essa questão mais adiante.

2. A REFORMA DO ESTADO

A reforma do Estado deve ter como referencial a urgente necessidade de fortalece-lo e não promover seu aniquilamento. Um Estado não significa um Estado grande, conforme já foi assinalado anteriormente. Ele deve ser leve, ágil, visível, capaz de dar conta com exatidão da multiplicidade de problemas que precisam ser solucionados, adotando medidas consistentes e coerentes com os objetivos perseguidos. O Estado precisa reforçar sua capacidade de sinalizar na direção correta, induzir as ações necessárias, coibir as práticas contrárias ao interesse nacional e punir as infrações morais e legais. Mais planejamento e menos execução constitui uma atitude saudável a perseguir.

Num contexto democrático, os problemas do planejamento assumem maior complexidade. Não basta reunir um corpo técnico qualificado para alcançar um bom resultado. A elaboração de um projeto nacional para a década dos 90 precisa ser negociada politicamente. A insistência em atribuir à atuação impatriótica de alguns a responsabilidade pelo fracasso das propostas governamentais é fruto da ausência prévia de entendimento. A questão da participação é, pois, um assunto prioritário para a reabilitação do planejamento.

Conforme assinala Wanderley Guilherme dos Santos, o acelerado processo de transformação econômica e social que marcou o último ciclo de crescimento contribuiu para a intensificação da ação coletiva e para o surgimento de novas associações voltadas para a defesa de interesses particulares. Entre 1960 e 1980, por exemplo, o número de associações civis criadas na cidade de São Paulo e periferia pulou para mais de 2.500. Mais ainda, o aumento em quantidade foi acompanhado de uma acentuada diversificação e velocidade de transformação, do ponto de vista de natureza dos interesses envolvidos: as associações desportivas, que correspondiam a quase 40% de todas as associações criadas na década de 20, representam apenas 16% das criadas em 1980; quase 70% das associações criadas nesse período o foram nos últimos dezesseis anos (Santos, 1990, págs. 5-6).

Fenômeno idêntico ocorreu no Rio de Janeiro, revelando que nos principais centros nacionais assistiu-se, nas últimas décadas, à organização de grupos de proprietários, criadores, industriais, profissionais liberais, trabalhadores e funcionários públicos, todos eles preocupados em reivindicar o atendimento de seus interesses particulares. A esse crescimento do associativismo soma-se a rápida expansão do eleitorado, que, em 1982, era inferior apenas aos do Japão, EUA, Índia e Indonésia; o estado de São Paulo, que nessa mesma época já representava um eleitorado equivalente aos da Bélgica, Dinamarca, Finlândia, Noruega e Suíça (13 milhões de eleitores), deverá apresentar um eleitorado da ordem de 48 milhões de pessoas no início do século XXI (inferior apenas aos eleitorados da Alemanha, Japão, Estados Unidos, Índia e Indonésia).2 2 Os dados são apresentados em Santos (1990).

A contrapartida da diferenciação social dos interesses e da transformação de um regime oligárquico em uma sociedade semi ou quase poliárquica é o aumento do custo do mandato político. “Ao contrário da política oligárquica, na qual a riqueza privada era a condição para obter poder público, a competição política em sociedades semi ou quase poliárquicas é caminho alternativo ao mercado para a obtenção de riqueza privada. Daí que a participação política visando posições também seja investimento econômico, de onde a crescente procura por cargos eletivos não só da parte de políticos profissionais, mas também dados empresários profissionais” (Santos, 1990SANTOS, Wanderley Guilherme (1990). “Público e privado no sistema brasileiro”. Rio de Janeiro (mimeo)., p.12, grifo nosso), ou seja, a disposição de “bancar” o custo de obtenção do mandato político está na razão direta da expectativa dele (do mandato) de usufruir benefícios.

Quanto maior a complexidade da organização social, maior é, portanto, a necessidade de o Estado intervir para arbitrar e regular conflitos. Nesse caso, a ação direta é menos importante que a regulação. Trata-se de aumentar a concorrência nos mercados em que operam os setores diretamente produtivos pari passu com o aperfeiçoamento da capacidade do Estado de ordenar o processo de desenvolvimento. Se nas décadas passadas o avanço da industrialização dependia de pesados investimentos na siderurgia, na energia, nos transportes e nas telecomunicações, o desafio da terceira revolução industrial transforma em prioritárias as ações voltadas para o desenvolvimento científico e tecnológico e para a melhoria do sistema educativo.

A redefinição das funções do Estado deve ter como ponto de partida o pleno reconhecimento de suas principais responsabilidades. Produzir e disseminar conhecimento é uma tarefa mais complexa que a simples produção de mercadorias e serviços. Não basta mobilizar recursos financeiros e desenvolver capacidade gerencial. É preciso estimular a criatividade, incentivar a pesquisa e desenvolver esforços para obter maior cooperação internacional.

O desenho do novo padrão organizacional do Estado brasileiro deve subordinar-se a uma nova hierarquização de suas funções. O modelo de descentralização administrativa gestado pela reforma de 1967 (Decreto-lei nº 200/67) buscava maior eficiência na produção pública de bens e serviços pela multiplicação de órgãos descentralizados, dotados de maior autonomia em relação ao poder central e supridos de recursos humanos e financeiros capazes de levar avante um ambicioso programa de expansão. Enquanto o regime militar pôde manter um controle absoluto sobre os diferentes segmentos da administração pública, a fragmentação institucional não comprometeu, de modo irremediável, as atividades de coordenação e planejamento. O enfraquecimento do autoritarismo e a transição democrática revelaram, contudo, a progressiva perda de controle do criador sobre a própria criatura. A administração descentralizada expandiu-se de forma indiscriminada, reforçando seu próprio poder pelo amálgama dos interesses privados setoriais que gravitam em torno dos mais importantes organismos estatais.

É nessa perspectiva que a privatização deve ser colocada. A transferência do controle acionário de empresas estatais para o setor privado é apenas uma dentre as providências voltadas para a revisão do padrão de relacionamento entre o setor público e a iniciativa privada. A privatização, entendida latu sensu, abrange um conjunto de medidas que deve conduzir à efetiva transferência de responsabilidade pela produção de bens e pela prestação de serviços ao setor privado: revogação de medidas protecionistas, cancelamento de subsídios, extinção de privilégios fiscais e cartoriais. Não se deve confundir, no entanto, a necessidade de transferir boa parte das ações que o setor público vinha executando à iniciativa privada com o abandono de qualquer iniciativa de ordenação das relações produtivas e sociais. Na maior parte das questões relevantes para o futuro do país, a omissão do poder regulador do Estado não fará surgir em seu lugar um mercado capaz de dirimir os conflitos de interesses em conformidade com os desígnios maiores do desenvolvimento nacional. A privatização do setor público deve ser acompanhada da concomitante privatização do setor privado.

Duas questões relevantes para o traçado do perfil do Estado brasileiro na década de 90 dizem respeito à abrangência e à velocidade do processo de privatização. Uma privatização ampla estender-se-ia aos principais segmentos da infraestrutura básica, restringindo a ação direta do Estado ao monopólio de exploração do petróleo (nos termos definidos pela Constituição de 1988), às telecomunicações, ao saneamento básico e aos grandes sistemas de geração de uma energia elétrica, por exemplo. A alternativa de uma privatização restrita corresponderia a um avanço mais lento do processo de privatização, buscando preservar a posição estratégica que a atuação do Estado no desenvolvimento da infraestrutura e na produção de alguns insumos básicos teve, e poderá continuar a ter, na promoção do desenvolvimento da economia brasileira. Nesse caso, a privatização avançaria rapidamente naqueles setores que se referem às atividades industriais propriamente ditas, mas evoluiria lentamente no campo dos transportes e da energia. Nesses setores, é provável que venha a ocorrer um esforço conjunto do setor público e da iniciativa privada, com o intuito de flexibilizar as regras de concessão e de buscar novas formas de cooperação que permitam superar as restrições financeiras ao atendimento das necessidades mínimas de expansão e modernização.

A contrapartida de uma ampla privatização é o retorno do Estado a suas funções tradicionais. A recomposição da capacidade técnica, gerencial e financeira para o exercício das responsabilidades governamentais, no campo da segurança pública, das ações básicas de saúde, da educação fundamental e da preservação do meio ambiente, estaria no centro das preocupações de uma profunda reforma administrativa e financeira que deveria conduzir a uma recuperação do poder de atuação da administração central e ao consequente esvaziamento da administração descentralizada. Essa alternativa, que corresponde ao cenário liberal mais ortodoxo, prevê que as reformas se estenderiam aos programas sociais, nos quais ocorreria também um avanço perigoso da privatização, e esse seria o principal ponto de divergência entre esse cenário e uma outra alternativa menos conservadora. Essa última considera o estabelecimento de maiores restrições à privatização de programas sociais, com o intuito de garantir o acesso da população de baixa renda a bens e serviços indispensáveis à melhoria do bem-estar e à redução das desigualdades sociais; admite, também, que a questão do apoio do Estado ao desenvolvimento tecnológico venha a assumir um papel preponderante.

A retração do Estado e o estímulo à entrada do setor privado em setores/atividades que até então vinham sendo campo de atuação predominante do setor público irão exigir uma revisão das normas vigentes com respeito à contratação de serviços, cessão de direitos, mecanismos de controle e critérios de penalização. Para que o setor privado possa vir a desempenhar um papel significativo com respeito aos objetivos de expansão e modernização da infraestrutura e da produção de serviços urbanos e sociais, será necessário flexibilizar normas vigentes e estabelecer garantias de continuidade e estabilidade das regras que vierem a ser instituídas (um exemplo importante é o da política tarifária). Para que o interesse público e a população de baixa renda não sejam prejudicados, será necessário ainda criar mecanismos efetivos de controle e fiscalização.

Conforme assinala um interessante estudo do Instituto de Administração da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (IA-FEA-USP, 1987IA-FEA-USP- Instituto de Administração da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (1987). “Concessão de serviços públicos no Brasil: condicionantes históricos, problemas atuais e perspectivas futuras”. São Paulo.), o regime de concessão de serviços públicos no Brasil perdeu sua funcionalidade à medida que o crescimento do setor produtivo estatal na produção da infraestrutura básica (transportes, telecomunicações e energia) e no provimento de serviços urbanos (transporte urbano coletivo, iluminação e saneamento) acarretou o virtual aniquilamento da iniciativa privada, com exceção do transporte aéreo e do transporte rodoviário e de passageiros.

A intervenção estatal fez com que uma das condições básicas para o adequado funcionamento do regime de concessões fosse desrespeitada, qual seja, a de observância de uma clara distinção entre o poder concedente e o concessionário. Com o avanço da estatização, as cláusulas relativas a prazo, reversão dos bens e possibilidades de cassação do contrato de concessão tornaram-se inoperantes. O próprio contrato deixou de ser uma exigência necessária, tendo sido progressivamente abandonado. A simbiose entre o poder concedente e a empresa concessionária acarretou ainda a ausência de regras claras para a fixação de tarifas e a ineficiência dos mecanismos de controle previstos, uma vez que o poder das empresas públicas prestadoras de serviços sobrepunha-se com frequência à capacidade de comando dos órgãos da administração direta encarregados de exercer o controle e a fiscalização dos serviços3 3 Para citar apenas dois exemplos, é oportuno mencionar a fragilidade dos órgãos controladores das concessionárias de energia e telecomunicações- DNAEE e Dentel. respectivamente, frente ao poderio das empresas estatais do ramos (Eletrobrás e Telebrás). .

A irrealidade tarifária e as incertezas provocadas pela ausência de regras claras são os principais problemas a solucionar para atingir os propósitos de ampliar a participação do setor privado na expansão e operação dos serviços de utilidade pública. A rigor, a preservação de tarifas em níveis incompatíveis com a remuneração dos serviços prestados corresponde à prática de dumping, que inviabiliza os propósitos de privatização.

A regra saudável de fixar o preço dos serviços em níveis suficientes para a cobertura dos custos operacionais e as necessidades de capitalização das empresas deve ser restaurada em sua plenitude. Nesse sentido, propõe-se que o Código de Finanças Públicas, que deve ser elaborado em obediência aos preceitos constitucionais, estabeleça os critérios a aplicar à fixação dos preços e à preservação do valor real das tarifas, abrangendo, portanto, uma espécie de código tarifário. Não se desconhece, obviamente, o fato de que preocupações sociais ou interesses maiores de política macroeconômica justifiquem o estabelecimento de preços subsidiados, quando for julgado necessário; no entanto, o valor do subsídio deverá ser explicitamente apontado e incluído no orçamento, de forma a permitir um melhor controle da sociedade sobre a política governamental.

O problema do controle precisa ser reavaliado com urgência. O enfoque puramente financeiro que presidiu a instituição dos sistemas de controle do governo (administração central) sobre as empresas estatais deixou de lado as questões relativas ao padrão dos serviços prestados pela concessionária aos usuários. Cumpre fazer com que o usuário venha a ter voz ativa nas decisões relativas à estratégia de expansão e à preservação do padrão de qualidade dos serviços. A sugestão básica nesse sentido consiste em incluir na pauta de revisão do estatuto jurídico aplicado às estatais desses setores o tema da participação de representantes dos usuários no conselho de administração das empresas. Poderia, também, ser aproveitada a recomendação contida no citado documento da USP (IA/USP, 1987) quanto à criação de comissões reguladoras de serviços de utilidade pública, constituídas de representantes do poder público e de membros da comunidade, indicados pelo governo e aprovados pelo Poder Legislativo.

Mais uma vez, a distinção importante, aqui, com respeito às duas alternativas contempladas para a elaboração dos cenários institucionais é de grau e não de substância. Na alternativa ortodoxa, pode-se prever a liberalização das regras aplicadas à concessão de direitos de exploração de serviços públicos, a abolição do princípio de unicidade tarifária aplicada a alguns segmentos da infraestrutura, a extinção de incentivos e subsídios e o estabelecimento de mecanismos que viabilizem maior cooperação financeira público-privada para a execução de grandes obras de infraestrutura. Na segunda hipótese, pode-se prever que a preocupação predominante deverá estar centrada na busca de maiores garantias para que o avanço do setor privado não conduza a uma progressiva predominância de interesses individuais sobre os interesses coletivos. Assim, o controle estatal voltado para a preservação dos interesses nacionais e regionais deverá ser reforçado, a eles subordinando-se as propostas de liberação tarifária e a extinção dos subsídios e dos incentivos fiscais.

Um outro item importante da agenda de debates sobre o papel do Estado é o que se refere ao sistema de seguridade social. Como se sabe, as normas constitucionais a respeito da proteção social assegurada ao trabalhador vêm sendo objeto de críticas contundentes, por representarem um movimento oposto àquele defendido pelos princípios do liberalismo. A ampliação das responsabilidades do Estado no campo das relações trabalhistas e dos direitos previdenciários, aprovada pela Constituinte de 1987/88, deu-se em um contexto internacional de repulsa à tese do Estado do bem-estar social e em um contexto doméstico de elevadas incertezas quanto à capacidade do Estado e dos setores produtivos de arcar com o crescente ônus do seguro social, sem comprometimento das metas de ampliação da produtividade e de retomada do desenvolvimento.

No curto prazo, conforme destaca Beatriz Azeredo (1990AZEREDO, Beatriz (1990). “Perspectivas para o financiamento da seguridade social”. Rio de Janeiro (mimeo)., p.10), os prognósticos a respeito da inviabilidade financeira da seguridade soda) decorrem de uma estratégia de ajustamento das contas federais que compreende a transferência para o orçamento da seguridade social de encargos que eram, tradicionalmente, da responsabilidade do orçamento da União, como o pagamento dos inativos e pensionistas do governo (estatutários) e as despesas administrativas (pessoal e custeio) do sistema de Previdência. Esses dois itens apenas correspondem a cerca de 25% da receita de contribuições sociais (excluídos os recursos do PIS/Pasep) e equivalem, aproximadamente, ao total do déficit computado nas cifras oficiais para o orçamento da seguridade em 1991. O crescimento da despesa de benefícios e a transferência de novas responsabilidades para o orçamento da seguridade social acarretam uma redução da disponibilidade de recursos para o financiamento da área de saúde e a sustentação de programas sociais. Nos cálculos do governo, os demais programas da seguridade contariam com recursos equivalentes a apenas 23% do orçamento, percentagem em muito inferior aos 30% que a Constituição buscava assegurar para a área de saúde.

As perspectivas para a década são desfavoráveis do ponto de vista da disponibilidade de recursos para financiar o crescimento da despesa de benefícios e o processo de descentralização das ações de saúde e assistência social. A perspectiva de que a despesa de benefícios absorva uma parcela crescente das receitas do sistema de seguridade corresponde a um cenário de queda da participação do governo federal no financiamento dos demais gastos do sistema. Menores disponibilidades financeiras, associadas à ausência de regras claras e permanentes de transferência dos recursos a Estados e municípios, tornam o processo de descentralização vulnerável a injunções políticas e passível de descontinuidade.

Prognósticos financeiros pessimistas deverão forçar uma revisão dos direitos previdenciários por ocasião da reforma da Constituição, prevista para 1992. As pressões para corte do plano de benefícios deverão ser mais intensas quanto maior for a duração do ajuste recessivo da economia nacional. Em qualquer hipótese, o apoio financeiro do governo federal ao processo de descentralização da saúde e da assistência social deverá sofrer um forte revés. Não só os recursos estarão mais escassos; é o próprio princípio de descentralização que está em xeque. Visões imediatistas e interesses clientelistas poderão ressuscitar a prática das transferências negociadas politicamente, comprometendo o atendimento dos princípios de descentralização dos serviços e de universalidade de cobertura e de atendimento consagrados na Constituição.

O cenário da seguridade social para os anos 90 estará ainda na dependência do desdobramento do quadro político nessa primeira metade da década. A prevalecer o discurso neoliberal ortodoxo, a reversão dos “excessos” cometidos no processo constituinte conduzirá à imposição de limites mais rígidos à proteção concedida pelo Estado ao trabalhador (a revogação da aposentadoria por tempo de serviço e a privatização da assistência médica e do seguro complementar, por exemplo, fazem parte do cardápio ortodoxo). A alternativa menos radical pode abranger um conjunto de medidas que aliviem as empresas e o Tesouro sem desconsiderar a realidade social brasileira, que ainda requer uma dose maior de garantia do usufruto dos direitos sociais básicos do cidadão. Nesse caso, a flexibilidade da legislação laboral poderá ser promovida com a contrapartida da criação de um efetivo programa de seguro-desemprego, a revisão dos benefícios previdenciários poderá ser conduzida de forma a abolir os privilégios e a questão da assistência médica deverá ser prioritariamente enfrentada mediante descentralização dos serviços e transferência de maiores responsabilidades para os estados e municípios, ao invés da privatização.

A redefinição do papel do Estado conduz necessariamente a mudanças estruturais na administração pública que deverão ir muito além das alterações cosméticas que predominaram no passado e da insistência perigosa na dispensa de funcionários, que vem ganhando corpo no presente. O sentido das alterações previsíveis na estrutura administrativa é o mesmo, qualquer que seja a variante escolhida com respeito ao rigor da adesão aos princípios do liberalismo. O que deve variar é a intensidade das mudanças e o grau de preocupação com a necessidade de o Estado preservar e criar mecanismos capazes de assegurar um mais efetivo controle social.

3. REFORMA ADMINISTRATIVA

No campo das reformas administrativas estruturais, a prioridade ao trinômio educação-ciência-tecnologia traduz-se em fortalecimento da administração central, com a reversão da tendência do crescimento da administração descentralizada, que marcou a experiência administrativa das últimas décadas. Esse deverá ser um traço comum de qualquer processo de reforma administrativa, mas o perfil das mudanças deverá assumir contornos diferentes, dependendo do cenário que vier a prevalecer. Na versão ortodoxa do cenário, os anos 90 assistiriam a um debilitamento da administração pública, com a extinção ou fusão de órgãos públicos e a dispensa de funcionários atingindo elevadas proporções. O objetivo-síntese dessas medidas seria a redução abrupta dos índices que refletem a participação dos gastos de custeio no PIB, transformando esse índice em indicador mais importante da “eficiência” governamental. Na versão alternativa, o “enxugamento” da máquina não é visto como o único propósito a perseguir. Trata-se de eliminar desperdícios e superposições, sim, mas não de forma abrupta e desconsiderando suas consequências sobre a qualidade dos serviços e as prioridades sociais. A meta de redução nos índices que medem a relação custeio/PIB não será fixada globalmente, mas sim para cada um dos principais segmentos da atividade governamental, de forma a que as diferenças estruturais na composição dos custos de cada programa sejam devidamente consideradas.

A descentralização de responsabilidades (transferência para estados e municípios), que constitui a outra perna do processo de restauração do equilíbrio federativo, iniciado com a promulgação da Constituição de 1988, também deverá apresentar maior amplitude e velocidade caso prevaleça a hipótese mais radical. Nessa, o governo federal irá concentrar seus gastos nas funções de âmbito nacional (defesa, justiça e segurança), forçando a transferência integral para estados e municípios da responsabilidade pelo financiamento e execução dos demais programas no decorrer da década dos 90. Seriam reforçadas as ações normativas e de controle, de forma a garantir o atendimento de padrões nacionais de qualidade. A prevalecer a versão menos ortodoxa, a atuação direta da União no financiamento (principalmente) e na execução (secundariamente) seria preservada sempre que justificada por interesses relativos à redução das disparidades regionais. A transferência de maiores responsabilidades para os estados e municípios se faria de forma gradual e distinta, de modo a levar em conta as agudas diferenças entre as várias unidades da federação. Seriam fixadas metas parciais para o avanço do processo de descentralização nos anos 90, não se prevendo, portanto, sua conclusão nesse período.

A reforma do Estado brasileiro e da administração pública federal fornecerá o pano de fundo para a reorganização administrativa dos estados e municípios. Não se trata de defender a reprodução mimética e acrítica que marcou as experiências pretéritas de reorganização da máquina administrativa estadual, mas sim de situar as propostas específicas que vieram a ser formuladas em um marco geral de referência.

No plano das mudanças estruturais, a reforma da administração pública estadual deverá obedecer aos mesmos movimentos que irão caracterizar o cenário federal: extinção de órgãos e privatização de empresas, enxugamento da máquina, eliminação de superposições, unificação orçamentária. Presume-se que a alternativa progressista da reforma que vier a se implantar tenha uma preocupação maior com o fortalecimento do sistema de planejamento e a sustentação da capacidade de investimento do setor público, tendo em vista preservar uma mais ativa participação do setor público estadual na condução do processo de desenvolvimento ao longo dos anos 90. Pelo mesmo motivo, a preocupação com a integração das políticas urbana e social, visando atingir sua maior eficácia, deverá ser objeto de atenção específica.

Divergências maiores entre as duas alternativas que estão sendo contempladas deverão ser observadas com respeito ao avanço das propostas de municipalização. À semelhança do que foi dito a respeito das mudanças esperadas no plano federal, é possível prever que, a prevalecer uma linha mais ortodoxa, todo o esforço será feito para forçar uma transferência integral para os municípios das responsabilidades que o governo estadual hoje detém na execução direta de programas de saúde e ensino básicos, alimentação e nutrição e assistência social; o instrumento a utilizar para forçar essa transferência seria a redução progressiva das verbas consignadas no orçamento estadual para esses programas a um ritmo tal que provocaria seu integral desaparecimento no último quartel da década em questão. A alternativa menos radical rejeitaria a solução forçada e abrupta para a municipalização de programas sociais, adotando, em substituição a ela, um programa negociado que visaria a transferência progressiva das responsabilidades do governo estadual para os municípios. As características básicas desse programa seriam a não-padronização das regras e a não-setorização do processo de municipalização, tendo em vista evitar a reprodução no plano municipal dos mesmos vícios que a ausência de uma visão integrada no planejamento e na implementação das políticas urbana e social têm até agora apresentado. O programa em questão deveria ainda contemplar regras específicas para a cooperação técnica e financeira entre o Estado e os municípios, com a finalidade de assegurar um processo menos traumático de transição. A municipalização, nesse caso, não se completaria em todo o território estadual durante os anos 90; a transferência de responsabilidades seria escalonada de acordo com o porte do município e sua capacidade econômica, financeira e gerencial.

Uma outra questão importante e que deverá estar presente no debate sobre a reforma do setor público é a que trata da coordenação dos investimentos públicos na infraestrutura básica e no desenvolvimento urbano. Todos concordam que a ausência de coordenação é fonte de ineficiência e desperdício, mas a forma mais adequada de promover a coordenação deve ser objeto de discordância. A suposição inicial é a de que a linha ortodoxa defenderá a preservação da autonomia das empresas estatais (as que sobreviverem à privatização) com respeito à política de investimentos, transferindo para o processo de elaboração do orçamento de investimentos das estatais a responsabilidade pela busca de uma maior coordenação. É certo que a redução do número de empresas estatais prevista nessa variante do cenário institucional poderá facilitar a tarefa de coordenação dos investimentos públicos, mas o aumento da participação do setor privado na infraestrutura criará problemas ainda desconhecidos para a melhoria dos mecanismos de coordenação dos investimentos.

Para além das reformas estruturais, há que se concentrar na remoção das conhecidas barreiras à modernização e à eficiência da administração pública. Destacam-se, a esse respeito, o formalismo e a simetria dos sistemas de controle e das normas de gerenciamento e a rigidez imposta pela legislação trabalhista dos servidores públicos.

É reconhecido que as normas vigentes com respeito à execução orçamentária não impedem o mau uso dos recursos, nem inibem irregularidades, antes contribuindo para emperrar o funcionamento das atividades do governo. Elas são, ao mesmo tempo, o terror dos administradores honestos e o escudo protetor dos incompetentes; encobrem os vícios e ofuscam as virtudes, gerando um círculo vicioso de ineficiência de difícil rompimento: o atendimento das formalidades indispensáveis provoca demora na execução de obras e na prestação de serviços; quanto maior a demora (que depende também do número de organizações envolvidas), maior a corrosão das verbas provocada pela inflação e menor a chance de atender às metas físicas originalmente estabelecidas; por sua vez, o não-atendimento das metas e a deterioração dos serviços daí resultantes reforça a tese da ineficiência administrativa, o que, paradoxalmente, conduz a novas tentativas de reforçar os sistemas de controle que são um dos fatores geradores dessa mesma ineficiência.

Um dos exemplos mais conhecidos do círculo vicioso da ineficiência é o referido ao gasto social. Tornou-se lugar-comum na administração pública a afirmação de que a chamada área social do governo oferece um dos maiores exemplos de ineficiência administrativa, uma vez que se estima que apenas um quinto dos recursos aí aplicados se transforma em benefícios concretos para a clientela. Embora não se possa contestar a afirmação de que o gasto social é administrado de modo ineficiente, sua magnitude e os principais fatores determinantes são questões mais difíceis de responder. É na área social que ocorre a interveniência de um maior número de instituições dos distintos níveis de governo no repasse de verbas e na autorização para seu uso. Não surpreende, portanto, a constatação de que aí ocorra a maior diferença entre a programação inicial e a realização efetiva. Sua solução não está, no entanto, na tentativa de reforçar os controles existentes, mas sim na busca de novas alternativas para o problema.

Trata-se de substituir o rigor formal e a simetria cega por normas flexíveis e diferenciadas, segundo a natureza das instituições e a complexidade das tarefas que executam. Por que submeter o ensino básico, a assistência hospitalar, a construção de rodovias, o sistema penitenciário e a administração tributária, só para citar alguns exemplos, às mesmas regras de gestão? A flexibilização e a diferenciação das normas podem prever distintos graus de autonomia, de forma a facilitar a gestão dos serviços. A contrapartida da autonomia é a substituição das regras preventivas, nas quais se baseia a ação dos Tribunais de Contas, por mecanismos eficazes de punição.

No que diz respeito ao funcionalismo, será necessário rever as regras aplicáveis às relações de trabalho entre o Estado e seus servidores, com vistas a adaptá-las às realidades brasileira e internacional neste final de século. A modernização da administração pública exigirá um ritmo mais rápido de reciclagem e atualização profissional do funcionalismo, ao mesmo tempo em que o aumento da competição entre emprego público e emprego privado no mercado de trabalho deverá acelerar o fluxo de entrada e saída de pessoal no serviço público. A sindicalização do funcionalismo é outro dado novo que ainda não foi inteiramente assimilado.

Qualquer que seja a velocidade das transformações do mercado de trabalho do setor público nesta década, uma providência indispensável para o estabelecimento de uma política de recursos humanos compatível com o novo papel do Estado é a revisão das normas constitucionais referentes à estabilidade dos servidores e à isonomia salarial. Trata-se de restringir os casos em que a estabilidade e a isonomia devem ser preservadas, recomendando-se, portanto, a adoção de providências imediatas para a elaboração de propostas a considerar por ocasião da próxima reforma constitucional.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Afirma-se, com frequência, que este final de século é decisivo para as aspirações nacionais de romper as barreiras do subdesenvolvimento nos primórdios do século XXI. O atraso já acumulado no transcorrer de uma década perdida, principalmente no que diz respeito a padrões tecnológicos, reclama uma ação enérgica e urgente para que as restrições conhecidas possam ser imediatamente superadas.

O desenvolvimento tecnológico não pode ser alcançado em um contexto de degradação do sistema de ensino, de ampliação das dificuldades de aprendizado provocadas pela desnutrição (associada à fome e às precárias condições de higiene e saneamento), de permanência de índices elevados de evasão escolar e de desestímulo à pesquisa científica e tecnológica. Investir no homem é a opção correta para obter o passaporte para a modernidade, conforme têm demonstrado as experiências recentes de desenvolvimento de países do leste asiático.

A modernização do parque produtivo brasileiro é indispensável para a inserção do país na comunidade internacional, mas não pode ser sustentada em um contexto de contínuo agravamento das disparidades sociais. Numa sociedade moderna, o aumento da produtividade econômica deve ser acompanhado de uma progressiva melhoria das condições de vida do povo. Nas avançadas sociedades industriais, a sustentação do crescimento não depende apenas da expansão da infraestrutura de transportes, energia e telecomunicações, que viabilizam o acréscimo da produção industrial e agrícola. Depende, também, do incremento da massa salarial, que propicia a expansão do consumo e do mercado interno. A valorização do trabalho é, assim, um requisito indispensável à valorização do próprio capital.

Já se reconhece que a ampliação das desigualdades sociais no Brasil ameaça as chances do país de ingressar no fechado clube das nações modernas no início do próximo século. Não se trata mais de dar aos investimentos sociais um tratamento secundário, coerente com o enfoque assistencialista que presidiu a formulação da política social no passado. A correção das disparidades é, cada vez mais, exigência do próprio desenvolvimento.

Qualquer que seja o cenário escolhido para retratar o provável perfil que a economia e a sociedade brasileiras deverão assumir no limiar do século XXI, a ratificação desse cenário dependerá de um criterioso esforço de planejamento. O vulto dos problemas a enfrentar no campo das deficiências de infraestrutura, de deterioração dos serviços urbanos e de acúmulo de carências sociais contrasta com o quadro geral de debilidade do Estado brasileiro e de desorganização das finanças públicas, para o qual não há solução fácil à vista. A revisão do padrão de financiamento do setor público e o exame de alternativas institucionais que viabilizem novas formas de cooperação entre o setor público e a iniciativa privada são providências indispensáveis para que o objetivo de modernização não fique irremediavelmente comprometido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • AZEREDO, Beatriz (1990). “Perspectivas para o financiamento da seguridade social”. Rio de Janeiro (mimeo).
  • CALVINO, Ítalo (1990). Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo, Companhia das Letras.
  • IA-FEA-USP- Instituto de Administração da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (1987). “Concessão de serviços públicos no Brasil: condicionantes históricos, problemas atuais e perspectivas futuras”. São Paulo.
  • SANTOS, Wanderley Guilherme (1990). “Público e privado no sistema brasileiro”. Rio de Janeiro (mimeo).
  • 2
    Os dados são apresentados em Santos (1990SANTOS, Wanderley Guilherme (1990). “Público e privado no sistema brasileiro”. Rio de Janeiro (mimeo).).
  • 3
    Para citar apenas dois exemplos, é oportuno mencionar a fragilidade dos órgãos controladores das concessionárias de energia e telecomunicações- DNAEE e Dentel. respectivamente, frente ao poderio das empresas estatais do ramos (Eletrobrás e Telebrás).
  • 3
    JEL Classification: H11; O10.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1992
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