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Notas a respeito da Escola Francesa da Regulação

Notes on the French School of Regulation

RESUMO

Este artigo analisa as contribuições da Escola de Regulação. A partir das obras seminais de Michel Aglietta, o artigo discute as inovações dessa abordagem e as respostas que esta escola dá para os seguintes tópicos: a passagem do crescimento à estagnação; a diferença de prosperidade em diferentes países no mesmo momento histórico; as características em constante mudança da crise. Os próprios conceitos de regulação e crise são analisados e algumas críticas também são feitas.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; Escola da Regulação

ABSTRACT

This paper reviews the contributions of the Regulation School. From the seminal works of Michel Aglietta, the paper discusses the innovations of this approach and the responses that this school gives for the following topics: the passage from growth to stagnation; the difference in prosperity in different countries on the same historical moment; the ever-changing characteristics of crisis. The concepts of regulation and crisis themselves are analyzed and some critics are also made.

KEYWORDS:
History of economic thought; Regulation School

1. INTRODUÇÃO

Com a tese de Michel Aglietta em 1974, sobre a regularidade e acumulação em longos períodos, tomando como campo de reflexão os EUA, nasce a Escola Francesa da Regulação ou, simplesmente, teoria da regulação1 1 Accumulation et régulation du capitalisme en longue période. Exemple des États Unis (1870-1970)”. Université de Paris I, outubro de 1974. Publicado com o título Régulation et Crise du Capitalisme. Paris: Calmann-Lévy, 1976. .

Para Boyer2 2 Boyer (1986). , o mais original da tese de Aglietta é a relação da revisão teórica com a história econômica e social dos EUA, que conduz à noção de normas de produção e consumo, possibilitando repensar a dinâmica social e econômica dos últimos trinta anos. Da mesma forma, é a divergência entre essas normas que irá, visivelmente a partir de meados dos anos 70, mas de fato desde o final dos anos 60, criar as condições da atual crise.

A partir das repercussões do trabalho de Aglietta, desenvolve-se um conjunto de pesquisas e aglutina-se um conjunto de pesquisadores que irão aprofundar essa problemática teórica, matizar certas percepções, corrigir certos conceitos, acrescer o instrumental teórico, ampliar seu campo de reflexão, redundando na hoje conhecida teoria da regulação. O crescimento capitalista e suas crises, sua variedade no tempo e no espaço, vinculado às formas sociais em vigor, torna-se para os regulacionistas o centro da análise econômica.

Três são os problemas eleitos como fundamentais pela TR:

  • por que e como, em uma formação econômica dada, passa-se de um crescimento forte e regular a uma quase estagnação e/ou uma instabilidade econômica, com encadeamentos conjunturais de crescimento e recessão;

  • em uma mesma época histórica, como explicar que crescimento e crise assumam formas nacionais significativamente diferentes, ou mesmo que se aprofundem os desequilíbrios em certos países, enquanto em outros se observa uma relativa prosperidade;

  • por que, além de determinados elementos invariantes, as crises se revestem de aspectos contrastantes ao longo do tempo, diferentes, por exemplo, do tempo entre as duas guerras mundiais e do atual.

Na verdade, são três problemas que se inscrevem em uma mesma problemática mais geral: a da variabilidade no tempo e no espaço das dinâmicas econômicas e sociais. Aparentemente, fazer da história longa um meio de enriquecimento e de elaboração crítica das intuições a respeito da dinâmica capitalista é a finalidade a que se propõe a teoria da regulação. Trata-se de um conjunto articulado de conceitos que objetiva explicar, de um lado, o crescimento capitalista e, de outro, suas crises cíclicas. Crescimento e crise entendidos como partes de um mesmo todo, de caráter endógeno, e que necessitam, como tais, de um corpo único de conceitos para ser compreendido.

Em uma outra perspectiva, pode-se afirmar que a teoria da regulação nasce da rejeição dos conceitos de crise então existentes na teoria econômica e, consequentemente, das explicações propostas. Para melhor compreender a questão, torna-se necessário, mesmo que muito sucintamente, expor algumas das ideias a respeito do conceito de crise, assim como algumas das principais formulações então avançadas na época para explicar a presente crise do capitalismo.

2. CONCEITOS DE CRISE

Em um primeiro sentido, de caráter mais geral, a crise é entendida como um episódio em que a reprodução econômica se encontra bloqueada pela irrupção de catástrofes naturais ou eventos exteriores. Neste sentido, a crise é sempre uma disfunção do sistema, provocado por variáveis externas, como se este tendesse sempre a um equilíbrio, apenas transtornado por influências que lhe seriam exteriores. Essa ideia é predominante na maioria das teorias econômicas originadas do século XIX e inícios do XX e ainda prevalece em meados dos anos 70.

Coube inicialmente aos economistas da segunda metade do século XIX formular a ideia de que a crise do sistema capitalista é provocada por variáveis endógenas. Particularmente para Marx, a crise constitui um episódio no qual a dinâmica econômica e social entra em contradição com o processo de desenvolvimento que a impulsiona.

É do conceito de crise endógena, conforme formulada por Marx, que partem os regulacionistas para formular uma tipologia relativamente didática dos tipos de crise contidos na história econômica do capitalismo. O primeiro tipo de crise seria visualizado quando um conjunto de variáveis se articula desfavoravelmente à reprodução do sistema e suas instituições mantenedoras são incapazes de absorvê-las, provocando paralisações e perturbações que comprometem gradativamente a própria reprodução social. Na origem desse tipo de crise três circunstâncias são observadas:

  • perturbações externas ou internas de tipo novo que se articulam - não é tanto o fato de serem simultaneamente internas e externas, nem mesmo sua força, mas antes seu caráter de novidade, ou seja, o fato de serem inadequadas à reprodução do sistema, denotando incapacidade por parte dos instrumentos asseguradores da regularidade;

  • lutas sócio-políticas desagregam as formas institucionais mantenedoras das regularidades, seja por sua desobediência por parte de determinados atores, seja pela mudança de valorizações dessas mesmas formas institucionais, que passam a ter uma importância cada vez menor;

  • as formas asseguradoras da estabilidade entram em uma espécie de saturação, e então desequilíbrios setoriais e locais começam a se acumular sem ser resolvidos.

Um segundo tipo de crise parece se revestir de maior gravidade: um clímax de contradições compromete em profundidade as formas institucionais que asseguram a coesão social, impossibilitando a própria regularidade. Observa-se, nesses casos, um bloqueio da reprodução da dinâmica econômica. Dois são os critérios que permitem caracterizar uma crise de tal natureza:

  • as instabilidades acumuladas pelo sistema não permitem a reconstituição automática dos lucros e, dessa forma, a retomada endógena da acumulação de capital faz com que o sistema entre em processo de desacumulação crescente;

  • a dinâmica selvagem da acumulação destrói as próprias instituições que asseguram a reprodução social, comprometendo-as seriamente e provocando, assim, conflitos sociais e políticos crescentes que tendem a paralisar o sistema em sua globalidade.

Nenhum automatismo assegura que o sistema, encontrando-se em uma situação de crise dessa natureza, possa superá-la, pois não há qualquer lei trans histórica que assegure a passagem. Assim, o sistema em crise deverá criar, em seu interior, as novas formas de superar os bloqueios, e estas não estão dadas nem são previsíveis. Essa observação, em particular, coloca algumas divergências marcantes dessa teoria com as reflexões desenvolvidas nos anos 20 por Kondratieff e sua teoria dos ciclos longos na economia.

A concepção de crise, desenvolvida pelos regulacionistas, assim como sua tipologia, corresponde a uma concepção de base estrutural da própria TR: a noção da plasticidade das relações sociais, as quais não são aqui concebidas como determinantes ou determinadas, mas antes como fruto de ações articuladas que, por diversas razões, como veremos mais adiante, assumem foros de reprodução e estabilidade no interior de um dado sistema.

A partir desse quadro brevíssimo, é possível situar as posições das diversas correntes do pensamento econômico que os regulacionistas enfrentaram no início de suas formulações, bem como as razões de suas objeções e quais as distinções mais marcantes. Afinal, a teoria da regulação nasce, em parte, de uma crítica às formulações econômicas vigentes nos anos 70, particularmente às vertentes do pensamento econômico neoclássico. Nestas, é preciso ter presente o paradigma que as constitui, ou seja, de que o mercado é autorregulador e equilibrado. Desse modo, a crise é sempre um transtorno externo. Assim, conceitualmente, crescimento e crise exigem o recurso a corpos teóricos distintos, criando uma compartimentação artificial entre ambos.

Uma vertente da escola econômica neoclássica mais sofisticada situa a crise na existência de determinadas formas de rigidez institucional, particularmente de três tipos:

  1. o aumento do preço relativo do trabalho mais rápido que o crescimento da produtividade, fazendo com que aquele se torne um fator relativamente raro, explicando seu menor emprego e criando situações de desemprego crescente ou estrutural;

  2. os preços são administrados em vez de livres, provocando distorções internas no mercado;

  3. a existência de contratos e/ou informações imperfeitas criam uma rigidez provocadora de desemprego e/ou inflação.

Em qualquer de suas formulações, porém, as instituições conservam um papel negativo, o que os regulacionistas não aceitam. O pensamento regulacionista tem um paradigma mais próximo ao dos keynesianos ou neokeynesianos, ou seja, parte do princípio de que o capitalismo é intrinsecamente instável, assim como seu crescimento. No entanto, é possível criar uma certa estabilidade e tornar o crescimento mais regular e permanente através de políticas orçamentárias e monetárias. Dessa forma, foram os keynesianos que criaram instrumentos de política econômica, em grande parte responsáveis pelo crescimento constante, característica do capitalismo durante os “trinta anos gloriosos”.

Sem dúvida, os regulacionistas constituíram uma novidade no campo da teoria econômica em meados dos anos 70. Uma novidade saudada, por alguns, com alegria, na medida em que os keynesianos se tornavam incapazes de formular políticas consistentes para enfrentar a crise. Uma situação marcada pelo crescimento simultâneo da inflação e do desemprego, desenhando uma crise original intitulada de estagflação, como diferença de situações anteriores.

3. ORIGENS: CONJUNTURA TEÓRICA E INFLUÊNCIAS

O contexto de nascimento da TR é marcado pelo surgimento visível da crise atual e, paralelamente, pela crise das teorias econômicas, tanto keynesiana quanto marxista.

A crise do marxismo, já nos anos 70, se manifesta por um enrijecimento da teoria na França em dois espaços simultaneamente comuns e distintos. O primeiro, no nível do pensamento oficial do PCF. Com seu famoso Tratado sobre o Capitalismo Monopolista, Paul Boccara interpreta a crise em termos de superacumulação/desvalorização, enfatizando excessivamente as formas da concorrência, a concentração industrial e os monopólios, de forma que as relações de trabalho e de exploração não desempenham qualquer papel central no quadro explicativo, ao contrário da interpretação regulacionista de O Capital. O mais grave, porém, é o fato de que a teoria de Boccara não permite matizar as diferenças observadas entre a crise dos anos 30 e a crise de hoje. O segundo é no do althusserianismo. O pensamento de Althusser e seus discípulos, promissor em seus inícios, aos poucos enrijece-se numa tendência empobrecedora de buscadas invariantes do sistema (particularmente com seu discípulo mais brilhante, Etiênne Balibar).

No entanto, grande parte dos regulacionistas passou pela escola althusseriana e foi por ela marcada, sobretudo na valorização da especificidade radical do modo de produção capitalista, no valor explicativo do conceito de relações de produção e na relatividade do papel das forças produtivas. É também significativa a influência do componente mais independente e original dos althusserianos, Charles Bettelheim3 3 Bettelheim, Charles (1970) Calcul Économique et Formes de Proprieté, Paris: Maspero, Col. Économie et Socialisme. , particularmente quanto às formas distintas de contradições que as relações de troca desenvolvem em contextos diferenciados.

Para alguns expositores da TR (Benjamin Coriat, por exemplo) foi também importante a influência de uma pensadora independente como Suzanne de Brunhoff4 4 Brunhoff’, Suzanne de (1976) État et Capital: La Politique Économique. Genebra, Presse Universitaire de Genêve. , particularmente através de uma profunda linha de pesquisa a respeito das relações entre moeda e mercadoria. Um último autor marxista não poderia deixar de ser citado, pela importância que assume no bojo da crise do marxismo. Trata-se de Antonio Gramsci, cuja obra produz um boom no Brasil, como na França, em inícios dos anos 70. Desse autor restará, para os regulacionistas, um legado extremamente rico no nível de reflexão política, com o conceito de hegemonia, entre outros. Aliás, segundo Lipietz, é em homenagem a Gramsci que se utiliza o termo fordismo para denominar o modo de regulação criado nos anos 30 e generalizado após a Primeira Guerra.

Assim, a TR nasce da recusa de determinadas concepções e formulações teóricas marxistas, mas por elas extremamente influenciada, a ponto de alguns a situarem como uma teoria marxista, enquanto outros, mais prudentes, preferem classificá-la apenas como uma teoria compatível com o marxismo - o que não impede que outros ainda a classifiquem como funcionalista. Afinal, a TR recusa as concepções marxistas sustentadas na existência de leis gerais que seriam determinantes e explicativas do crescimento e das crises do capitalismo. A ênfase teórica recai sobre as formas particulares que assumem as relações sociais, sobre a plasticidade de que estas são revestidas, sem qualquer predeterminação que explique por que as relações sociais fundamentais do capitalismo assumem tal forma e não outra. Trata-se, portanto, de uma oposição marcante à ideia de leis regentes dos comportamentos sociais acima das subjetividades, à noção de equilíbrio geral própria aos neoclássicos, como também às concepções estruturalistas da reprodução. As relações sociais, em suas formas particulares e diversificadas, são sempre o resultado de articulações relativamente autônomas, condicionadas sem dúvida, mas sem obedecer a qualquer ideia de um “deus ex-machina” ou de uma lei trans histórica.5 5 Coriat (1987).

Fora do marxismo, a maior influência sobre a escola regulacionista provém de Keynes. A simpatia dos regulacionistas por Keynes deve-se, entre outras, à ideia de que a instabilidade é inerente ao capitalismo e ao seu crescimento. Mas também porque, para o economista inglês, as instituições têm uma conotação positiva. Outra influência marcante advém dos trabalhos de história, sejam aqueles próprios à história econômica, sejam aqueles provenientes da “École des Anales”.

Mas, afinal, quais são os conceitos básicos da TR? Qual seu valor gnoseológico para a presente crise? Quais seus limites?

4. CONCEITOS FUNDAMENTAIS

O conceito mais visível é, sem dúvida, o de regulação. O conceito de regulação foi introduzido inicialmente, e mais recentemente, nas ciências sociais, por Gerard de Bernis, importado das ciências biológicas. Para De Bernis, na sociedade capitalista se encontram forças essencialmente divergentes, mas certas normas sociais, instituições, regularidades, fazem convergir essas forças, garantindo, de um lado, que os conflitos e divergências não se agudizem e, de outro lado, a própria reprodução da sociedade. Entre essas instituições, a mais importante é o Estado. Embora a concepção tenha tido influência sobre os regulacionistas, estes discordarão da última parte, buscando formas institucionais endógenas às relações sociais.

Outra influência na formulação do conceito de regulação deve-se, segundo Boyer, a Ganguilhem, expresso na Encyclopedia Universalis: “A regulação é o ajustamento, em conformidade a algumas regras ou normas, de uma pluralidade de movimentos ou de atos e de seus efeitos ou produtos, que sua diversidade ou sucessão tornam inicialmente estrangeiros uns aos outros”. Ainda na opinião de Boyer, Aglietta, em suas primeiras formulações, irá definir regulação como “o que é necessário para que a reprodução se realize apesar de tudo”6 6 Boyer (1986). .

Para Lipietz, por sua vez, “regulação de uma relação social é a maneira pela qual essa relação se reproduz, apesar de seu caráter conflitual, contraditório”7 7 Lipietz, Alain. “Position des problèmes et propositions thèoriques”. Paris: Cepremap, p. 12, citado em Possas (1988: 195-212). . Portanto, apesar de suas distinções, na realidade bem maiores que as aqui assinaladas, o objetivo do conceito é o de chamar a atenção para as formas que a sociedade cria para superar a natureza intrinsecamente contraditória de suas relações sociais, ou seja, o modo, os mecanismos, os instrumentos, as instituições enfim, capazes de assegurar sua continuidade. Supõe-se, destarte, que as práticas sociais definidoras de um todo social possuem certa regularidade, que, não sendo automáticas, criam-se em sua permanência e repetição. Como diz Boyer, “a finalidade da noção de regulação é a de operar a passagem entre um conjunto de racionalidades limitadas, relativas a decisões múltiplas e descentralizadas, e a coerência dinâmica do conjunto do sistema”.8 8 Boyer (1986).

O conceito primeiro da TR nasce, dito de forma mais simples, da pergunta: por que o sistema capitalista se reproduz, quando as decisões de produção e consumo são assumidas por indivíduos, grupos e entidades relativamente independentes entre si e que conhecem apenas parcialmente as intenções uns dos outros? Por que determinadas práticas, na medida de sua repetição, ganham foros de permanência, ou seja, de relação social? Noção que é o ponto de partida do conceito de regulação, pois constitui ela mesma o substrato real da sociedade.

É a existência de relações sociais e sua reprodução que asseguram a configuração determinada de uma sociedade e sua durabilidade, pois toda relação social define um sistema de lugares hierarquizados e, sob este ângulo, a relação é uma estrutura. Por sua vez, os lugares induzem os indivíduos que os ocupam a desempenhar um determinado papel que, na medida de seu desempenho, permite a identificação de uma relação. Ou, de forma mais dinâmica, ao ocupar determinados lugares, os indivíduos passam a desempenhar papéis específicos e constantes que se transformam gradativamente em relações sociais.

O que faz, porém, com que o desempenho de um determinado papel se reproduza? Na sugestão de Lipietz, é inicialmente a disposição do ator. Essa disponibilidade estrutural completa-se para que a regularidade assuma formas estáveis, com a percepção do ator das intenções e interesses dos outros atores, com os quais interage direta ou indiretamente. Munidos de disposição e de representação, os atores desenvolvem uma estratégia, uma trajetória, que lhes permitirá a reprodução de seu papel, ou seja, o estabelecimento de uma relação social. Portanto, duas condições são essenciais na construção de uma relação social como prática reproduzida: a disposição do ator (interesse, desejo) e um espaço de representação.

Assim, há duas formas de conceber a regularidade de um processo social: a reprodução, ao longo do tempo, de uma relação social e a interação de trajetórias individuais dos agentes perseguindo seus fins em função da representação que fazem dessa mesma interação. Se ambas as interpretações se complementam, antes de se excluir, torna-se legítimo pensar a estrutura social como o resultado de uma compatibilidade observada de trajetórias individuais, complementares, divergentes ou mesmo excludentes. Nesse caso, os indivíduos - a partir do conceito de sobre determinação - já ingressam nas relações como sujeitos constituídos, modificando-se mediante seu ingresso numa relação nova e, ao mesmo tempo, moldando-a conforme sua constituição singular. Dessa forma, fazendo com que o desempenho de papéis seja sempre distinto (pois não há dois amores iguais, diz Lipietz, utilizando a metáfora de Molière em Misanthrope).

Nessa percepção a contradição entre estrutura e agente, perseguida pelos sociólogos que se opuseram à corrente estruturalista nos anos 70, passa a não ser a questão central, concebida agora como residindo no interior mesmo das ações: entre seu aspecto rotinizado e seu aspecto potencialmente divergente. Por isso é que os homens fazem a história com 5% de liberdade, mas reside nestes 5% a possibilidade de criação de novas formas, da mudança social.

A preocupação com a reprodução social não pode, para os regulacionistas, ser pensada sem as possibilidades de mudança. As regularidades coexistem, permanentemente, com a possibilidade de sua não-eficácia, ou seja, de sua não-realização. Em palavras próximas de Bourdieu, o habitus como disponibilidade de participar do jogo não apenas reproduz a realidade, mas também a transforma. O que nos conduz a pensar na recusa em reduzir os comportamentos dos indivíduos e dos grupos sociais a simples respostas às demandas estruturais. A ocupação do lugar não é passiva, o desempenho do papel não é igual, a subjetividade não é um simples acessório; enfim, as relações sociais são revestidas de uma qualidade intrínseca: sua plasticidade. Elas são criadas e recriadas permanentemente, e a recriação não é algo dado a priori, mas o resultado de uma confluência de fatores extremamente complexa. Utilizando ainda uma imagem de Lipietz, os fios da trama podem se afastar do lugar predestinado pela rede. Isto é, o desempenho dos papéis pode não condizer com as expectativas e induções dos lugares, e isso em virtude de razões as mais diversas9 9 Lipietz, Alain (1988) “La trame, la chaine et la régulation; un outil pour les sciences sociales”, Colloque Intemational sur la théorie de la régulation. Barcelona, 16-17 de junho de 1988. Traduzido pela revista Sociedade e Estado IV(2), agosto-dezembro, 1989.

Em primeiro lugar, porque cada ator social ocupa lugares distintos e desempenha papéis múltiplos, que, por vezes, são divergentes ou mesmo excludentes entre si. O fato de ser dotado de habitus diversos cria a possibilidade de o ator denunciar determinados lugares que ocupa, provocar desvios, comportamentos não esperados, enfim, se recusar a desempenhar os papéis na forma a princípio predestinada a seus ocupantes. Mas há também razões internas. As relações sociais são intrinsecamente contraditórias, possibilitando, portanto, desempenhos distintos e não completamente homogêneos, como se poderia imaginar de acordo com uma concepção simplista do social.

O conceito de regulação conduzirá àquele de modo de regulação, entendido como o conjunto de procedimentos e de comportamentos individuais e coletivos, que possuam a tríplice propriedade de

  1. reproduzir as relações sociais fundamentais através de um conjunto de formas institucionais determinadas;

  2. sustentar e dirigir o regime de acumulação (conceito que veremos a seguir) em vigor;

  3. assegurar a compatibilidade dinâmica de um conjunto de decisões descentralizadas.

Ou então, nas palavras de Lipietz: “Modo de regulação é o conjunto das formas institucionais, redes e normas explícitas ou implícitas que asseguram a compatibilidade de comportamentos no quadro de um regime de acumulação, em conformidade ao estado das relações sociais, apesar das contradições e do caráter conflitual das relações entre os agentes e os grupos sociais”10 10 Lipietz, Alain “La mondialization de la crise général du fordisme: 1967-1984”. Paris: Cepremap (8413): 6. . Como conceito, visa a substituir as teorias das escolhas individuais e do equilíbrio geral.

Não se pode esquecer que o conceito de regulação, aqui expresso, distingue-se do conceito tal como empregado nas ciências biológicas ou pelos economistas neoclássicos, ou mesmo segundo a definição de Caguilhem. Em primeiro lugar, porque o papel das normas e regras é relativizado, pois constitui apenas um dos elementos das formas institucionais. Em segundo lugar, os comportamentos e ações não são, desde o início, como pensam os neoclássicos, estranhos uns aos outros. A coesão da sociedade não é o resultado feliz de um conjunto de atos individuais, pois toda forma institucional difunde um princípio de socialização. Dito de outra forma, os indivíduos não estão soltos, ocupam lugares definidos na estrutura social. Finalmente, é mais ou menos evidente, nenhum ator representa o papel de “engenheiro-sistema”, ou seja, aquele que define a lógica do processo, nem a ideia de regulação é compatível com a formulação de uma lei trans histórica, como em certas vertentes do marxismo.

Sem esquecer que entre os regulacionistas existem matizes, por vezes significativas, o que importa, porém, é que persiste entre eles um núcleo duro na formulação do conceito de regulação: série de mecanismos que contribuem para a reprodução do conjunto, tomando-se em consideração tanto as estruturas econômicas quanto as formas sociais em vigor.

O problema da definição de regulação (e modo de regulação) é que ela implica duas outras definições essenciais, quais sejam, a de regime de acumulação e formas institucionais. Isso porque esses termos não correspondem exatamente nem ao senso comum, nem às definições utilizadas em determinadas correntes econômicas ou sociológicas.

A noção de regime de acumulação refere-se à valorização do capital ou, mais precisamente, às formas em que se dá tal processo de valorização que, segundo os regulacionistas, varia ao longo da história do capitalismo. O problema que alimenta e funda o conceito é o da origem da coerência do processo, o que assegura a continuidade da aplicação rentável do capital, sobretudo em face da incerteza radical inerente ao processo de realização da mercadoria. Nada assegura, para os regulacionistas, de antemão, que a produção realizada pelo capitalista vá encontrar sua convertibilidade no equivalente geral, possibilitando a retomada da produção em escala mais ampliada. A esse problema, tenta responder o conceito de regime de acumulação.

O regime de acumulação diz respeito, sob o ponto de vista geral, às formas de acumulação do capital ou, em outras palavras, como se dá o processo de crescimento econômico no capitalismo. Por essa razão, o modo de repartição e de realocação sistemática do produto social realiza, em um período prolongado, uma certa adequação entre a transformação das condições de produção (volume de capital investido, distribuição entre os ramos, normas de produção etc.) e a transformação das condições de consumo final. Noção que remete às formas como se ligam e articulam as seções I e II, conforme o modelo de Marx em O Capital. Evidentemente que o regime de acumulação capitalista pressupõe a atuação das formas de regulação, assim como regimes de acumulação distintos, que os regulacionistas normalmente definem como: a) extensivos - a acumulação processa-se através de uma simples ampliação dos processos de produção, com as mesmas técnicas; e b) intensivos - quando as normas de produção são constantemente modificadas, à medida que se dá a acumulação. Trata-se de mudanças que não se referem apenas às inovações tecnológicas, mas também regem a organização do trabalho e os processos e volume do consumo social.

A acumulação traduz uma tendência inerente ao capitalismo, que se realiza sob formas ou regimes distintos. Por isso, é fundamental analisar as formas concretas que assume a acumulação, como também as contradições que ela cria. E estudar, finalmente, as possibilidades inerentes a cada regime. Em termos concretos isso significa:

  1. analisar a evolução da organização da produção e as relações dos assalariados com os meios de produção;

  2. definir um horizonte temporal de valorização do capital;

  3. identificar como se processa a distribuição do valor, possibilitando a reprodução do sistema;

  4. determinar a composição da demanda social;

  5. estudar as modalidades de articulação com as formas não capitalistas de produção (afinal, o capitalismo funciona sempre em um “exterior”).

Dessa forma, será possível em cada caso obter as potencialidades do regime de acumulação, definida em grande parte pelo conjunto de regularidades que absorvem ou distribuem no tempo as distorções e desequilíbrios resultantes, permanentemente, do processo mesmo de acumulação. Mas, para que esse quadro explicativo fique mais inteligível, é fundamental em cada caso definir as formas institucionais particulares. Em outras palavras, as diversas formas institucionais que compõem o modo de regulação.

Forma institucional, para os regulacionistas, é toda codificação, toda regularidade que assume importância, que rege, enfim, as várias relações sociais no capitalismo, sendo duas as fundamentais: a relação salarial e a relação mercantil. Vistas sob esse ângulo, as instituições - formas de contrato ou arranjos diversos, ou ainda compromissos desenvolvidos sobretudo a partir de conflitos - ocupam um lugar de destaque na teoria da regulação. Não possuem apenas uma conotação negativa, como ocorre na teoria dos neoclássicos, mas antes uma conotação extremamente positiva.

A relação salarial -capital/trabalho - diz respeito ao contrato salarial, advindo da separação dos produtores dos meios de produção, que se estabelece entre empresários e trabalhadores no processo produtivo, supondo pelo menos cinco componentes: i) o tipo dos meios de produção; ii) a forma da divisão social e técnica do trabalho; iii) a modalidade de mobilização e vinculação do assalariado à empresa; iv) os determinantes diversos do salário real, direto e indireto; e, finalmente: v) o modo de vida do assalariado (as formas e volume de aquisição de mercadorias e utilização de serviços coletivos). Ao longo da história recente do capitalismo, os regulacionistas constataram a existência de pelo menos três formas de relação salarial: concorrencial, tayloriana e fordista.

A relação mercantil, ou de troca, é a forma como as mercadorias são validadas socialmente pelo trabalho envolvido em sua produção - o que remete à forma segundo a qual se organizam as relações no seio de um conjunto de centros fracionados (de acumulação), cujas decisões são a princípio independentes umas das outras. A lei do valor (quantidade socialmente necessária à produção e reprodução de uma determinada mercadoria) é a forma geral da regulação da produção mercantil.

Ao lado dessas formas institucionais, outras são consideradas importantes pelos regulacionistas no estudo de um modo de regulação: a forma monetária, o Estado e a modalidade de adesão ao regime internacional. A forma monetária é a modalidade que reveste, para um país ou uma época, a relação social fundamental que institui os sujeitos de mercado. Forma composta sobretudo pela moeda, um dos atributos chaves do Estado-Nação, e pela lógica monetária que, ultrapassando o Estado-Nação, impõe limites a sua autonomia. A forma Estado é concebida como a totalização, frequentemente contraditória, de um conjunto de compromissos institucionalizados. Sua importância é revelada pelo fato de que a passagem de um regime de acumulação a outro está sempre associado a mutações na forma Estado. Ou seja, não se pode definir o Estado exteriormente à relação com o sistema econômico. A terceira é a modalidade de adesão ao regime internacional, que introduz a noção de áreas estratégicas - conjunto de potencialidades e limites em cada espaço - e relativiza a dialética entre autonomia nacional e limite exterior, além de sugerir uma revisão e cuidados especiais no tratamento da dicotomia interior/exterior.

Como operam essas formas institucionais? Aparentemente, através de três modalidades de ação:

  1. a lei, a regra e o regulamento têm por vocação impor, através da coerção direta ou simbólica, um certo tipo de comportamento econômico aos grupos e indivíduos concernidos;

  2. os agentes privados ou coletivos terminam por definir um certo número de convenções que regem seus engajamentos mútuos;

  3. a comunidade de um sistema de valor ou de representações é suficiente, por si só, para substituir a espontaneidade pela rotina.

Para Boyer, apesar das diferenças, os regulacionistas se caracterizam também por um conjunto de quatro teses comumente partilhadas11 11 Boyer (1986). .

A primeira diz respeito ao papel das instituições na dinâmica econômica. Segundo os participantes da escola regulacionista francesa, as pesquisas têm demonstrado quanto são diferentes as configurações institucionais no tempo e no espaço. Por outro lado, as formas institucionais ora se inscrevem na continuidade lógica em vigor, ora se desenvolvem segundo linhas novas. Em grande parte, é a diferença do contexto institucional que explica por que recessão e deflação caminhavam juntas no século XIX, enquanto no pós-guerra convivem concomitantemente recessão e inflação.

A segunda, em parte resultante da anterior, é que cada sociedade tem as conjunturas e as crises de sua estrutura. Às configurações institucionais distintas corresponderiam sempre crises de natureza diferente. Esta é uma das ideias que inspiram os regulacionistas a se opor à teoria dos longos ciclos de Kondratieff, para eles, despida de qualquer modelo teórico para explicar as razões da regularidade, da plasticidade das relações sociais e da variabilidade das formas institucionais.

A terceira ideia, de alcance mais mediano, afirma que a relação salarial fordista se encontra no coração do crescimento e, em seguida, da crise do pós-guerra. Por sua vez, tal crise precipita a das formas de relação entre Estado e economia. Esta seria uma das razões pelas quais assistimos hoje às mutações e recomposições sobre o papel do Estado, e não simplesmente a sua simples retirada, como prega a ideologia liberal, em vias de tornar-se hegemônica.

Finalmente, a última das ideias do legado comum regulacionista consiste na convicção de que toda política econômica deve visar à emergência de um novo modelo de desenvolvimento, ou seja, um novo regime de acumulação e um novo modo de regulação.

Para Coriat12 12 Coriat (1987). , dever-se-ia acrescentar mais duas ideias ao fundo comum regulacionista. Em primeiro lugar, a distinção entre pequenas e grandes crises. As primeiras, definidas como crises conjunturais ou crises no modo de regulação, e as segundas, como crises estruturais ou do modo de regulação. A segunda ideia refere-se à nova periodização do capitalismo, que os regulacionistas terminaram por propor em suas pesquisas.

5. PERIODIZAÇÃO E CRISE ATUAL

A análise retrospectiva do capitalismo mostra o quanto ele esteve sujeito a transformações e soube encontrar esquemas de crescimento (regimes de acumulação) e formas de controle desses esquemas (modos de regulação), resolvendo, ainda que não definitivamente, suas próprias contradições. A identificação das formas e dos processos que criaram historicamente tais configurações é um programa de estudos; talvez o verdadeiro e único programa a que se propõem consistentemente os regulacionistas. Aparentemente, as pesquisas concluíram pela insuficiência da percepção dominante das fases de crescimento e crise que conheceu o capitalismo ao longo de sua história.

Os regulacionistas13 13 Lipietz (1986). recusam a periodização de Kondratieff como arbitrária e não correspondente aos processos produtivos engendrados, pois baseada exclusivamente nos processos de renovação tecnológica. Não toma em consideração o fato de que inovações técnicas não se aplicam de qualquer maneira, pressupondo determinadas condições, que, se não existentes, deverão ser criadas. A teoria do longo ciclo inspira-se, por outro lado, na autonomia de um “movimento do alto”, ou seja, do capital. Aparentemente, há uma lógica imperativa que se impõe independentemente dos agentes, de suas percepções, articulações e interesses. A história econômica do capitalismo passa a ser a história da técnica, substituindo assim a da concentração do capital, pregada pelo marxismo mais tradicional, supondo sempre, em ambos os casos, imperativos categóricos que se realizam independente da trama dos atores. O determinismo passa a ser o regedor da história, em ambas as correntes.

Outra será a concepção desenvolvida pela TR. Os períodos de crescimento são concebidos como etapas marcadas por regimes de acumulação que asseguram a concordância entre as normas de produção e de consumo, permitindo uma articulação adequada entre os departamentos I e II de Marx e, dessa forma, um crescimento econômico. Porém, como o regime de acumulação não se sustenta sozinho, são necessárias normas institucionalizadas que assegurem a convergência das antecipações e dos comportamentos individuais em determinada direção. A função do modo de regulação, como vimos, é justamente a de assegurar a convergência por meio de formas diversas de regularidade, tais como a relação salarial, a concorrência, a gestão da moeda e a intervenção do Estado, entre outras. Dito de outra forma: é da articulação dessas formas parciais de regulação, de sua coerência, que resulta um determinado modo de regulação que possibilita a permanência e a continuidade do regime de acumulação.

A concepção acima conduzirá os regulacionistas a formular uma outra periodização para o capitalismo14 14 Lipietz (1987). , sem que ela seja necessariamente consensual entre os seus diversos membros.

Na primeira fase, correspondente ao século XIX, predomina o regime de acumulação extensiva, consubstanciando um modo de regulação concorrencial e um Estado circunscrito, que se extingue no final daquele século. Tal fase se encerra com a depressão do final do século, a primeira grande crise do capitalismo e, portanto, do regime de acumulação, que se torna inadequado para possibilitar a extração da mais-valia, em consequência das deficiências na regulação.

A segunda fase corresponde à retomada do crescimento, iniciada ainda em finais do século passado, com o surgimento de estruturas monopolistas no nível da concorrência, da estabilização do baixo poder de compra do operário e do aperfeiçoamento do modo de regulação no início de uma transformação mais profunda do regime de acumulação. Movimento, portanto, de passagem da acumulação extensiva para a acumulação intensiva. Com a Primeira Guerra Mundial, generalizam-se nos países desenvolvidos os métodos tayloristas de produção. A fase se encerra com a segunda crise do capitalismo no final dos anos 20, crise do regime de regulação, que continuava concorrencial, quando já se desenhava o surgimento de um novo.

A terceira fase, em vias de se encerrar, surge com a estabilização do regime de acumulação de caráter intensivo e o estabelecimento do modo de regulação monopolista. Uma nova forma de Estado - a intervencionista- ganha corpo. Novas normas de produção e consumo se generalizam. A organização e os contratos de trabalho asseguram, respectivamente, a demanda permanente para o crescimento da produção - e sobretudo da produtividade dos diversos ramos da economia - e a distribuição de renda entre a massa de trabalhadores.

A marca maior dessa terceira fase é o fordismo, o regime de acumulação intensivo com consumo de massa, sob regulação monopolista, que domina o noroeste do mundo - EUA, Europa e Japão-entre 1945 e 1970. Não se confunde, assim, o fordismo com a organização de trabalho introduzida por Ford, que visava, aliás, muito mais as formas de gestão da força de trabalho que medidas de repercussão de nível macroeconômico. Como regime de acumulação, o fordismo é baseado numa organização do trabalho que combina taylorismo e mecanização. O mais importante, porém, é que os ganhos de produtividade são distribuídos entre o crescimento do capital e o salário real. A regulação desse regime de acumulação é baseada prioritariamente sobre a regulação da relação salarial. Ou seja, trata-se da existência de formas coercitivas que controlam o crescimento paralelo, e simultâneo, da demanda dos assalariados e da produção capitalista.

A terceira fase do capitalismo, para os regulacionistas, encontra-se em vias de se encerrar com a presente crise. Uma crise mista, pois simultânea à do regime de acumulação e à do modo de regulação. É ainda no final dos anos 60 que a presente crise se inicia. O fordismo cria ganhos de produtividade decrescentes, com uma composição técnica de trabalho crescente. Há naquele momento, portanto, os primeiros sinais da baixa de rentabilidade do capital industrial e da diminuição da capacidade de acumulação com decréscimo na criação de novos empregos. Ao lado disso, nota-se o início da incapacidade do Estado de obter recursos para o financiamento de suas funções previdenciárias, o que cresce ainda mais com a queda do ritmo de acumulação.

A primeira reação dos empresários, particularmente nos EUA, foi a de implantar atividades do tipo III (exportação) nas formações externas ao fordismo, paralisando cada vez mais a regulação monopolista nacional e comprimindo os custos salariais internos. Porém, o que se perde no mercado interno não se ganha necessariamente no externo. Tal estratégia permite que os “novos países industrializados” tenham um crescimento. Configura-se, destarte, o que Lipietz caracteriza, talvez, não de forma precisa, como “fordisrno periférico”(15). O deslocamento de capital esgota-se, porém, em meados dos anos 70, comprometendo aquele processo em amplas regiões do mundo.

A crise atual, sendo simultaneamente do regime de acumulação e do modo de regulação, compromete a eficácia da intervenção econômica estatal, explicando por que as proposições keynesianas fracassaram até agora. Por sua vez, a internacionalização dos circuitos produtivos quebrou a unidade (relativa) entre espaço econômico e espaço político nacional, comprometendo a eficiência dos instrumentos e mecanismos de regulação, em sua esmagadora maioria, de caráter nacional.

A crise do fordismo desenhou-se ao longo da segunda metade dos anos 60 pela deformação progressiva da estrutura econômica (diminuição dos ganhos de produtividade, aumento da composição orgânica do capital, crescente internacionalização do processo produtivo), acirrando a luta entre os atores sociais. De um lado, os sindicatos querendo impor aumentos automáticos, enquanto os trabalhadores resistem às mudanças tecnológicas na organização do trabalho; de outro, os empresários buscando aumentar a automação e ampliar a escala de produção, deslocando-a para países com regulações mais favoráveis. Por vezes, os empresários tentaram evitar a legislação social através da dualização do mercado de trabalho, permitindo, dessa forma, que o setor informal se introduza em espaços anteriormente virgens. Entravam-se as normas de produção - impossibilidade de aumentar significativamente os ganhos de produtividade - e as de consumo - impossibilidade de garantir o aumento da demanda. Desde o início dos anos 70 que os países do noroeste do mundo abandonaram a política de estímulo à demanda interna.

São os impasses do Estado-previdência, impotente em face do não funcionamento dos mecanismos de regulação, que alimentam o desenvolvimento da ideologia liberal-modernista na pregação do “enxugamento do Estado”. Entretanto, a incapacidade do Estado de criar um novo modelo econômico, com a internacionalização diminuindo seus poderes de intervenção, tende a revigorar duas instâncias políticas novas: o Estado federativo (trata-se, segundo Lipietz15 15 Lipietz (1986). , de dotar as armaduras regionais de instrumentos de regulação econômica e social reforçadas e reservar ao Estado nacional a gestão das relações com o exterior) e as formas multinacionais - na verdade, instâncias supranacionais dotadas de atributos para a gestão macroeconômica do conjunto, inclusive através de compromissos e alianças multirregionais e transnacionais. O que resolveria um dos problemas graves da crise atual: falta de instâncias especializadas de soberania que garantam os compromissos institucionalizados no coração do sistema hegemônico.

Não se sabe qual será a saída para a crise. Afinal, segundo a teoria da regulação, toda retomada do crescimento é uma trouvaille, um achado, o resultado da confluência de trajetórias que não podem ser completamente previstas anteriormente. Pode-se, no entanto, sinalizar alguns problemas para os quais se necessita encontrar uma solução, entre os quais se destacam os seguintes: o relançamento dos ganhos de produtividade sem aumentar demasiadamente a composição orgânica do capital; a decisão sobre a alocação desses ganhos de produtividade (repartidos entre o capital e o trabalho, distribuídos por todos os ramos do capital?); o modo de resolver a crise do Estado-previdência; e, finalmente, como inventar formas de regulação internacional referentes à reforma monetária, à legislação social e à circulação de mercadorias.

Se não é possível discernir qual a forma que assumirá a saída para a crise, é perfeitamente factível identificar algumas de suas tendências. Pelos menos duas: processo de trabalho e produtividade.

Quanto às mudanças no processo de trabalho, a primeira possibilidade atualmente em gestação remete ao aumento da automação, com o crescimento do espaço entre a concepção do processo produtivo e os gestos de execução do trabalhador coletivo (EUA e certas empresas europeias). A segunda aponta na direção de uma requalificação parcial do trabalhador coletivo, mobilizando o saber-fazer dos operadores (Japão e certas empresas europeias).

Quanto aos ganhos de produtividade, há um primeiro movimento no sentido de reservá-los aos lucros, resultante da flexibilidade industrial que permite a produção de pequenas séries novas de produtos destinados a uma clientela seleta. Consequentemente, haverá um crescimento do desemprego e a gestação de uma nova estrutura social tripartite (classe dominante, núcleo de trabalhadores estáveis, consumidores significativos e uma massa crescente de trabalhadores de baixíssima remuneração, sem emprego estável ou simplesmente desempregada). O segundo movimento aponta para uma redistribuição negociada entre o capital e o trabalho, com redução importante do tempo de trabalho.

Se o próprio corpo teórico deixa os regulacionistas em uma situação difícil quanto à proposição de uma saída para a crise, não poderiam alguns de seus componentes resistir à tentação de desenhar algumas proposições mais gerais em nível de programa. Em outras palavras, alguns, como Lipietz, caíram na tentação de propor uma saída progressista para a crise: o estabelecimento de compromissos que garantissem um aumento da capacidade de controle dos produtores e dos cidadãos, fazendo recuar as formas de alienação do trabalho e da opressão do Estado. Assim, utilizar-se-ia a presente revolução tecnológica para conquistar uma maior qualificação para o trabalhador, uma cooperação mais consciente no processo produtivo e um maior controle sobre os processos de decisão por parte dos cidadãos, dentro e fora das unidades produtivas, acarretando, por outro lado, uma melhor repartição dos ganhos de produtividade, melhorando os níveis de proteção social e de visibilidade política.

A TÍTULO DE CONCLUSÃO: ALGUMAS CRÍTICAS À TEORIA DA REGULAÇÃO

Não seria possível concluir um texto desta natureza sem assinalar, mesmo de forma breve, algumas das críticas à TR, o que permitirá ao leitor ter uma ideia dos limites desse corpo teórico.

Na literatura brasileira, a refutação mais conhecida e consistente coube a Mário Luiz Possas..16 16 Possas (1988: 195-212). Sua crítica central é a da falta de mediações entre o alto nível de abstração em que se encontram os conceitos centrais relativamente à reprodução/regulação e os movimentos da conjuntura em crise, da política econômica e das lutas sociais. “É justamente este espaço - o da compreensão da dinâmica da economia capitalista- que constitui a mediação fundamental” (págs. 206/7). Possas cita alguns exemplos que fundamentariam seu reparo: o conceito de regulação, pensado no contexto da reprodução, não é claramente diferenciado deste último, e os fatores teóricos gerais, determinantes da crise, são pouco esclarecidos, carecendo o tratamento do problema de profundidade analítica. Assim, há um uso corrente de determinações gerais, referências frequentes a fórmulas vagas e analiticamente insatisfatórias, com dificuldades plausíveis em formular hipóteses alternativas (págs. 208/10). Outro limite, para Possas, reside em que, na teoria regulacionista, a problemática das inovações tecnológicas sofre limitações drásticas. A ênfase excessiva na relação salarial não deixa espaço para as questões pertinentes à difusão das inovações. Consequentemente, há uma escassez de instrumental teórico para estabelecer conexões entre a dinâmica econômica e distintos cenários de difusão tecnológica.

A bem da verdade, apesar de aspectos consistentes, a crítica de Possas limita-se excessivamente a alguns textos de Lipietz, nem sempre os mais importantes, e esquecendo-se dos outros componentes da escola francesa da regulação.

Boyer, por sua vez, no texto já citado, arrola um conjunto de críticas que se têm apresentado à teoria, algumas das quais, segundo ele, de grande pertinência, como as de Mingat, Salmon e Wolfelsperger17 17 Mingat, A., P. Salmon e A. Wolsfesperger (l985) Méthodologie Économique. Paris: PUF. Citado por Boyer (1986). , que consideram a TR possuidora de características excessivamente descritivas e sociologizantes. Isso parece ser verdade apenas se se toma em consideração, como protótipo de cientificidade, a teoria do equilíbrio geral. Para esses autores, a TR, em diversas questões, não faz mais que atribuir novas roupagens a correntes antigas do pensamento social, particularmente o historicismo e o institucionalismo. Em parte, Boyer tem razão quando denuncia que há um desconhecimento de formulações primárias e bem fundamentadas dos regulacionistas em relação ao institucionalismo, o que não é, porém, pertinente em relação ao historicismo. De toda forma, a TR não parece ter pretensões de se constituir como teoria global e, assim, vir a substituir outros corpos teóricos mais antigos.

Já outro autor, Noel18 18 Noel, A. (1986) Acumullation, regulation and social change: an essay on French political economy. EUA: University of Denver, 1986. Citado igualmente por Boyer (1986). , reclama que a TR não tem uma verdadeira teoria das formas institucionais. Aparentemente, tanto a esta crítica quanto a algumas das de Possas, os regulacionistas conferiram importância em alguns trabalhos mais recentes, como os já citados de Lipietz (1988LIPIETZ, A. (1988). Miragens e Milagres. Problemas da Industrialização no Terceiro Mundo. São Paulo: Nobel.) e de Boyer, que visam suprir tais lacunas. Em seu texto, Boyer chega a propor um programa para uma “segunda geração de pesquisas”, no qual se encontram sugestões para ampliar o espaço de reflexão, formular um modelo do tipo de regulação das economias dominantes, aprofundar as reflexões sobre a lógica das instituições, incluindo sua gênese, crescimento e decadência. O mais importante, porém, parece ser a sugestão de suprir a deficiência da inexistência de conceitos de mediação que possibilitem seguir, no tempo real, as recomposições anunciadoras de uma saída da crise.

A crítica mais constante, porém, é outra. Por sua linguagem e proximidade conceituai, a TR é criticada como funcionalista. Aparentemente, embora constante, essa crítica não parece ter grande consistência, sobretudo se se tomar em consideração que os regulacionistas - e, particularmente, entre eles, Lipietz - têm insistido sobre a dualidade permanente entre as forças de coesão e as tendências à ruptura, concebendo as relações sociais como identidade e contradições, prevalecendo a primeira nos períodos de crescimento e as segundas nos momentos de crise. Boyer, porém, chega a admitir um funcionalismo a posteriori, indicativo de como esse corpo teórico se situa nos interstícios das teorias econômicas e sociais modernas, não tendo uma caracterização muito explícita.

De qualquer maneira, uma teoria não se julga apenas por sua coerência interna, pelo grau de logicidade entre seus conceitos constituintes. É preciso ter presente, também, como critério balizador, seus resultados. Ou seja, o grau de satisfação provocado por suas conclusões, o poder explicativo alcançado por suas proposições. E, nesse aspecto, a TR encontra-se apenas em seus primórdios, com pouco mais de uma dezena de anos de existência. Será necessário que se conclua, talvez, a segunda geração de seus trabalhos para formar uma ideia mais consistente de seu poder teórico.

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    JEL Classification: B24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1993
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