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Hiperinflação e estabilização

Hyperinflation and stabilization

RESUMO

O Brasil vive uma hiperinflação, embora a moeda ainda não esteja morta. Mas para que qualquer plano de inflação e estabilização funcione, é preciso reconhecer que o processo é hiperinflacionário, não apenas inflacionário. Este artigo apresenta uma série de caminhos possíveis para superar essa situação, incluindo a necessidade de um ajuste fiscal permanente.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização

ABSTRACT

Brazil is undergoing hyperinflation, even though the currency is not dead yet. But for any plan on inflation and stabilization to work, one must acknowledge that the process is hyperinflationary, not just inflationary This paper presents a series of possible ways to overcome this situation, including the need for a permanent fiscal adjustment.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization

1. INTRODUÇÃO

No estudo clássico sobre as hiperinflações que ocorreram em alguns países europeus, no período entre as duas guerras mundiais, Cagan (1956CAGAN, P. (1956) “The monetary dynamics of hiperinflation”. In M. Friedman, org. Studies in the Quantity Theory of Money. Chicago: The University of Chicago Press., p. 25) definiu hiperinflação como um processo que começa no mês em que a inflação excede 50% e termina no mês anterior àquele em que a inflação é menor que 50%, e a taxa permanece abaixo deste porcentual pelo menos· durante um ano. Essa definição é completamente arbitrária, embora ela possa ser útil em trabalhos empíricos que necessitam de um critério de escolha para o período amostral. Todavia, ela não serve para diagnosticar a existência, ou não, de um processo hiperinflacionário.

A hiperinflação, de uma maneira rigorosa, é um processo caracterizado pela destruição do padrão monetário, em que o estoque real de moeda (m=M/P, onde M é o estoque nominal de moeda e P é o índice de preços) que o público deseja reter tende assintoticamente para zero com o passar do tempo (m~O). Uma maneira equivalente de descrever o mesmo fenômeno é defini-lo como um processo em que a taxa de inflação aumenta indefinidamente ao longo do tempo (n~oo, onde 7t é a taxa de inflação).

A economia brasileira, depois do fracasso do Plano Cruzado, entrou num processo hiperinflacionário. A moeda nacional (cruzado, cruzado novo, cruzeiro) está sendo destruída de maneira gradual. O fato de que não se atingiu ainda o estágio terminal da doença, quando a moeda deixa simplesmente de existir, deve-se aos poderosos anticorpos que a economia brasileira desenvolveu e que permitem uma sobrevida precária ao paciente. Entretanto, se o câncer hiperinflacionário não for extirpado, ele provocará uma desarticulação do sistema produtivo, com um custo social bastante elevado para as camadas mais pobres da população.

Um plano de estabilização, para combater a inflação brasileira, deve ter como premissa básica o diagnóstico de que a nossa inflação não é uma doença comum e banal que pode ser tratada pelos métodos convencionais das políticas de demanda agregada. Na verdade, trata-se de um processo hiperinflacionário, que deve ser debelado através de uma mudança radical do regime das políticas monetária e fiscal, que permita ao Banco Central do Brasil o controle efetivo da estabilidade do padrão monetário.1 1 O modelo clássico para analisar a hiperinflação foi desenvolvido independentemente por Cagan (1956) e Kalecki (1962). Uma generalização desse modelo é apresentada por Barbosa (1989) e Barbosa, Oliva e Sallum (1993).

Depois de vários choques fracassados, tornou-se popular e lugar-comum criticar os economistas pela incapacidade demonstrada no combate à inflação brasileira. Segundo alguns críticos apressados, seria melhor pedir que outros profissionais fossem encarregados da formulação da política econômica. Esse argumento é falacioso, pois ninguém, tendo sido vítima de um erro médico, iria acreditar que haveria um tratamento mais adequado para sua doença com um profissional que não fosse outro médico.

Este artigo tem como objetivo explicitar os pontos essenciais que qualquer programa de estabilização deve conter para que o combate à inflação tenha êxito. A receita contém cinco ingredientes que podem ser combinados de diferentes maneiras, dando origem a um cardápio variado. A escolha de uma alternativa implica decidir quais os grupos da sociedade que pagarão a conta do programa de estabilização.2 2 No curto prazo um programa de estabilização não é neutro, pois existem ganhadores e perdedores nesse jogo perverso. Os pobres deixarão de pagar o imposto inflacionário (que em alguns anos supera os US$ 10 bilhões anuais) e se beneficiarão do programa. Algum grupo da sociedade tem de substituí-los e pagar essa conta. A longo prazo, uma vez eliminada a inflação, a economia brasileira pode voltar a crescer e toda a sociedade se beneficiar do desenvolvimento econômico. Essa é uma decisão que não cabe aos economistas, mas sim aos políticos.

Os cinco ingredientes básicos de um programa de estabilização são: (i) ajuste fiscal permanente; (ii) utilização de instrumentos pelo Banco Central que permitam o controle efetivo do crédito interno líquido; (iii) mudança nos procedimentos operacionais do Banco Central; (iv) extinção da moeda indexada; e (v) política de rendas consistente com a meta de inflação desejada. As seções seguintes cuidam de descrever cada um desses ingredientes.

2. AJUSTE FISCAL PERMANENTE

O déficit público de um país pode ser financiado através da emissão de moeda e da venda de títulos públicos, de acordo com:

G - T + r b B = d M d t + d B d t

onde G representa as despesas do governo, T a arrecadação tributária, rbB o serviço da dívida pública com o pagamento de juros, e dM/dt e dB/dt a expansão de moeda e da dívida pública, respectivamente.

O déficit público elevado em vários países do mundo, como nos Estados Unidos, no Japão e na Itália, por exemplo, não provoca inflação porque ele não é financiado pela emissão de moeda, mas sim através da colocação de títulos da dívida pública no mercado.

No Brasil, o Programa de Ação Econômica do Governo Castello Branco (PAEG) procurou criar um mercado de títulos da dívida pública com a introdução das Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN), um título com correção monetária, para que o governo federal fosse capaz de se financiar através de um instrumento não inflacionário. Essa experiência fracassou, porque a regra de correção monetária foi mudada de maneira casuística em diversas oportunidades, e o governo deixou de ter a credibilidade necessária para colocar no mercado títulos de longo prazo. A consequência natural foi o financiamento de grande parte do déficit público através da emissão de moeda. Essa afirmação pode ser entendida de maneira bastante simples dividindo-se ambos os lados da restrição orçamentária anterior pelo nível de preços e transformando-a, com um pouco de álgebra, para se obter a seguinte identidade3 3 Dividindo-se pelo nível de preços P ambos os lados da restrição orçamentária, tem-se: G - T P + r b B P = d M d t I P + d B d t I P Definindo-se m=M/P e b=B/P, e derivando-se com relação ao tempo, obtém-se: d M d t = m + π m e d B d t I P = b + π b , o n d e m = d m d t e b = d b d t Substituindo-se essas expressões na restrição orçamentária chega-se à fórmula do texto. :

f + r b - π = m + b + π m

O lado esquerdo desta expressão é o déficit operacional, igual à soma do déficit primário (f), com o pagamento de juros reais sobre a dívida pública [(rb - n)b]. O financiamento desse déficit é feito através da expansão do estoque real de moeda (m), do acréscimo do estoque real da dívida pública (b), e com o imposto inflacionário, que é igual ao produto da taxa de inflação (n) pelo estoque real da base monetária (m).

A incapacidade do governo de financiar seu déficit através da colocação de títulos da dívida pública levou-o à utilização do imposto inflacionário como uma fonte sistemática de recursos. O imposto inflacionário é bastante peculiar, pois o público pode evitar o seu pagamento sem que isso se configure num ato ilegal, bastando reduzir o estoque real de moeda que se deseja reter. Para se conseguir o mesmo montante de financiamento quando o estoque real de moeda diminui, a taxa de inflação tem que aumentar para compensar a queda da receita, criando uma dinâmica perversa que conduz a um processo hiperinflacionário.

Para erradicar a hiperinflação é necessário, portanto, que o governo deixe de utilizar o imposto inflacionário como uma fonte de financiamento do déficit público. Isso requer um ajuste fiscal permanente, que substitua o imposto inflacionário por outros tipos de imposto, ou uma redução das despesas que não represente uma mera repressão fiscal, através do corte de despesas que não podem ser contidas no longo prazo.

Na situação brasileira em que o governo deixou de ter credibilidade para a colocação de títulos da dívida pública de longo prazo, o remédio consiste em promover um ajuste fiscal que seja percebido pela sociedade como permanente, que resolva não somente o problema do déficit de cada dia, mas o déficit de todos os dias. Em termos práticos, o governo deve programar seu orçamento para que o déficit operacional seja igual a zero. Isso significa dizer que o superávit primário, a diferença entre receitas tributárias e despesas com consumo e investimento, deve ser suficiente para cobrir os serviços da dívida pública, interna e externa.

Uma alternativa mais radical, adotada no México recentemente, seria gerar em alguns anos um superávit operacional, para resgatar parte da dívida pública. Essa alternativa não é recomendável para o Brasil, pois, no curto prazo, ela provocaria uma recessão desnecessária que atingiria sobretudo as camadas mais pobres da população. Ademais, existe um mecanismo mais adequado para o resgate de parte da dívida pública, através da privatização de empresas estatais, que será analisado mais adiante.

Um programa de estabilização para erradicar de uma vez por todas o processo hiperinflacionário brasileiro requer, portanto, uma reforma fiscal abrangente, que corrija os erros da reforma fiscal incluída na Constituição de 1988. Essa reforma é fundamental não somente para que a população pobre se livre do imposto inflacionário, mas também para que o Estado tenha condições de promover o bem-estar social, através de programas de investimento em educação, saúde, transportes e habitação popular.

Um argumento que tem sido defendido por alguns economistas e recebido inclusive o apoio de editoriais da imprensa brasileira é o de que a estabilização só seria possível depois da aprovação de uma reforma fiscal. No PAEG do governo Castello Branco, o único plano de estabilização que teve sucesso no Brasil, essa cronologia não ocorreu, pois a reforma fiscal foi feita e aprovada durante o programa. Afirmar que no curto prazo, entendendo-se curto prazo como o período de um orçamento fiscal, não há espaço para reduzir as despesas de pessoal, de custeio, de transferências não constitucionais do governo federal para os estados e municípios e de investimentos não tem o mínimo fundamento numa análise objetiva do orçamento da União. O fato de que a reforma fiscal é condição necessária para o sucesso de um programa de estabilização não significa dizer que ela deva ter precedência sobre os demais instrumentos de ação do programa.

3. CONTROLE DO CRÉDITO INTERNO LÍQUIDO

Num balancete simplificado do Banco Central o crédito interno líquido é definido pela diferença entre a base monetária e o estoque de reservas internacionais. Qualquer que seja a âncora nominal do programa de estabilização, o Banco Central, deve ter liberdade completa de ação para utilizar os instrumentos necessários para o controle do crédito interno líquido, seja ele concedido ao setor público, seja ao setor privado, pois caso contrário o programa de estabilização fracassará.

Uma medida preliminar para que esse controle possa ser feito é a consolidação e separação das contas do Tesouro Nacional com o Banco Central para a redução substancial do passivo não monetário do Banco Central, constituído em grande parte de obrigações da dívida externa, com a consequente redução dos títulos do Tesouro na carteira do Banco Central. A renegociação da dívida externa que deve ser concluída no final de 1993 já prevê que os novos títulos serão emitidos pelo Tesouro Nacional.

Adicionalmente, é necessário encontrar uma solução para a conta de depósitos do Tesouro no Banco Central. A movimentação dessa conta provoca variações no nível de reservas do sistema bancário, o que requer operações defensivas do Banco Central para estabilizar o nível de reservas no sistema. Existem duas alternativas para resolver esse problema. A primeira é emendar a atual Constituição para permitir que os depósitos do Tesouro sejam feitos no sistema bancário, pois seu artigo 164 prescreve que esses depósitos sejam feitos exclusivamente no Banco Central. A segunda alternativa é introduzir um procedimento operacional para que, respeitada a atual Constituição, os depósitos continuem sendo feitos no Banco Central, mas com esses recursos sendo automaticamente emprestados ao sistema bancário, que pagaria juros pela sua utilização.

Para controlar o crédito interno líquido, o Banco Central precisa ter autonomia para tomar decisões que coíbam o financiamento aos bancos estatais (federais e estaduais) quando o problema não é de liquidez e sim de solvência, e que impeçam a monetização da dívida pública a pretexto de fazer política de mercado aberto.

No passado recente alguns bancos estatais se comportaram na prática como se fossem o banco central, pois descumpriram a exigibilidade de depósito compulsório legal, forçando o Banco Central a emitir moeda para cobrir rombos provenientes da má administração dessas instituições financeiras. Nessas circunstâncias o Banco Central não pode sofrer qualquer interferência política, mas simplesmente aplicar a lei que existe para punir o infrator.

Uma das consequências importantes da redução do prazo médio do pagamento da dívida pública é a possibilidade de monetização dessa dívida. A cada semana, durante o primeiro semestre de 1993, por exemplo, o Banco Central colocou nos leilões das terças-feiras cerca de US$ 5,5 bilhões de títulos (BBCs) para rolar um montante igual que vencia nas quartas-feiras. O Gráfico 1 descreve o que poderia ocorrer se, por qualquer razão, diminuísse a demanda de títulos pelo público, com o deslocamento de curva de demanda de D0D0 para D1 D1, supondo-se que o Banco Central tenha de colocar um volume de títulos igual a Vo. Uma alternativa é o Banco Central aceitar a redução do preço do título de P0 para P1, com o aumento correspondente da taxa de juros. Mais adiante analisaremos as consequências desse tipo de ação. A outra opção é o Banco Central manter o preço do título em Po (e a mesma taxa de juros) e colocar um volume menor de títulos (V), monetizando a diferença (~V=VO-V1) através da expansão da base monetária. Esse exemplo expõe de maneira bastante simples a ameaça potencial que existe na economia brasileira para o crescimento adicional do estoque de moeda. Um programa de estabilização tem necessariamente de atacar esse problema, pois em caso contrário estará fadado ao insucesso. Mais adiante voltaremos a esse problema.

GRÁFICO 1

Uma proposta controversa para que o Banco Central tenha controle mais efetivo sobre a política monetária consiste em proibi-lo de comprar e vender títulos públicos, para que o elo entre o Banco Central e o Tesouro Nacional deixe de existir. Dessa forma, o primeiro parágrafo do artigo 164 da Constituição seria cumprido na prática, pois não haveria como o Banco Central conceder de maneira indireta empréstimos ao Tesouro Nacional. Não resta dúvida que em vários países do mundo a política de mercado aberto, de compra e venda de títulos públicos, é um instrumento bastante eficiente para alterar a liquidez da economia. Todavia, esse mercado foi criado e desenvolvido no Brasil de maneira artificial, pois no início da década de 70 não existia um mercado secundário de títulos públicos de curto prazo para que o Banco Central pudesse fazer operações de mercado aberto. As Letras do Tesouro Nacional foram criadas naquela oportunidade pelo próprio Banco Central para viabilizar o mercado aberto, e não para financiar o Tesouro Nacional. De lá para cá as distorções aumentaram, e seria mais prudente que esse mercado surgisse somente quando o Tesouro Nacional readquirisse credibilidade, o mercado secundário desses títulos estivesse bastante desenvolvido e a economia estivesse estabilizada.

Alguns críticos apressados da proposta de extinção temporária do mercado aberto confundem esse mercado com o mercado de reservas bancárias. A extinção de um não implica que o outro deixará de existir. Pelo contrário, o mercado de reservas bancárias pode ser aperfeiçoado para que se torne o principal instrumento de administração da liquidez do dia a dia do sistema financeiro.

4. MUDANÇA NOS PROCEDIMENTOS OPERACIONAIS DO BANCO CENTRAL

O Banco Central do Brasil tem adotado, durante os últimos anos, dois procedimentos operacionais básicos: (i) comprar e vender divisas estrangeiras no mercado de câmbio, com o objetivo de manter um determinado nível do câmbio real, e (ii) comprar e vender títulos públicos no mercado aberto, com o objetivo de atingir uma dada meta para a taxa de juros real. Uma mudança no regime das políticas monetária e fiscal para destruir o processo hiperinflacionário implica mudar essa situação, introduzindo-se novos procedimentos operacionais para o Banco Central. Existem dois caminhos alternativos: a âncora cambial e a âncora monetária.

Na âncora cambial, o Banco Central compra e vende moeda estrangeira (o dólar, por exemplo) a uma taxa de câmbio fixa, e o mercado determina a taxa de juros. Na âncora monetária, o Banco Central controla um agregado monetário (a base monetária, por exemplo) e o mercado determina a taxa de câmbio. A âncora cambial corresponde a um sistema de taxa de câmbio fixo, e a âncora monetária, a um sistema de taxa de câmbio flexível. No primeiro sistema, o Banco Central pode interferir de modo eventual e não sistemático na taxa de juros, porém ele deixa de ter controle sobre o estoque de moeda, que passa a ser determinado de maneira endógena pela demanda de moeda pelo público. No segundo sistema, o da âncora monetária, o Banco Central pode interferir de modo eventual no mercado de câmbio, fazendo operações de compra e venda nesse mercado, mas no longo prazo ele regula o valor nominal do câmbio de maneira indireta, através da expansão do agregado monetário.

Qual a âncora nominal mais adequada num programa de estabilização para a economia brasileira? Do ponto de vista técnico não existe uma resposta simples e pronta para essa pergunta, pois um sistema não sobrepuja o outro. O que se pode fazer é relacionar os prós e contras de cada opção, para que uma decisão informada seja tomada. Vejamos, em primeiro lugar, os prós para a adoção de uma âncora cambial. A fixação da taxa de câmbio é uma regra bastante simples para o novo regime da política monetária e, portanto, de fácil compreensão pela sociedade; o câmbio fixo funciona também como um instrumento de coordenação de preços, principalmente daqueles produtos que são comercializáveis internacionalmente (tradable goods); quando a inflação diminui, a demanda de moeda pelo público aumenta, e no regime de câmbio fixo essa monetização é endógena, pois o público vende divisas ao Banco Central, que por sua vez lhes fornece o estoque de moeda doméstica desejado; em geral, em algumas experiências de âncora cambial, observa-se um aumento do nível de consumo da população nos primeiros meses do programa de estabilização, em virtude do aumento dos salários reais, que não é sustentável a longo prazo. Os aspectos que contraindicam a adoção de uma âncora cambial no Brasil atualmente são os seguintes: a possível apreciação cambial, que vai resultar da inflação residual que ocorrerá com a rearrumação do sistema de preços na economia, tornando os produtos brasileiros caros lá fora e os produtos estrangeiros baratos aqui dentro; a ocorrência de déficits na balança comercial brasileira, em virtude do aumento das importações e da redução das exportações; o aumento do endividamento externo para financiar o déficit na conta corrente do balanço de pagamentos; e o prejuízo que a apreciação cambial causará à indústria brasileira, que tem de se ajustar ao processo ora em curso de abertura ao comércio exterior, pois segmentos importantes podem ter que fechar suas portas, não porque sejam ineficientes, mas porque um preço importante, a taxa de câmbio, pode estar fora de lugar.

No caso da âncora monetária, os aspectos negativos da sua adoção são os seguintes: elevação temporária da taxa de juros, que pode provocar um processo recessivo de curta duração; maior volatilidade das taxas de câmbio e de juros, que demandará maior desenvolvimento dos instrumentos que protegem os agentes dos riscos nesses mercados; um processo sofisticado de sintonia fina na administração da política monetária para que a monetização da economia se faça em níveis adequados, pois a monetização excessiva pode acarretar o recrudescimento da inflação e a escassez de moeda pode levar a taxa de juros a níveis insuportáveis. Os elementos positivos na âncora monetária são os seguintes: a apreciação cambial que pode ocorrer será apenas temporária, não terá um caráter duradouro como no caso do câmbio fixo; parte do processo de remonetização da economia pode ser feito através da redução da alíquota do depósito compulsório que os bancos são obrigados a manter junto ao Banco Central, contribuindo para o ajustamento do sistema financeiro à nova realidade inflacionária; o Banco Central não abdica do uso da política monetária, como ocorre no sistema de câmbio fixo.

5. A MOEDA INDEXADA

A ciranda financeira é um fenômeno que ficou bastante popular na imprensa brasileira nos últimos anos, embora alguns economistas afirmem que não sabem do que se trata e outros preferem fazer pouco caso, dizendo que se trata de pura sandice. Afinal de contas, o que é a ciranda financeira?

É pura bobagem querer ser contra uma denominação consagrada pelo público brasileiro, como se o nome fosse importante para definir o conteúdo. A ciranda financeira é outro nome para aquilo que os economistas que escrevem na língua inglesa convencionaram chamar de crowding-out, ou seja, o efeito de expulsão do setor privado pelo setor público. O governo, para financiar o déficit, coloca no mercado títulos públicos oferecendo uma taxa de juros que as empresas do setor privado não podem pagar nos seus empréstimos, pois ela é maior que a taxa de retorno que as empresas obteriam nos seus investimentos. Essas empresas deixam de colocar seus recursos na produção para aplicar no mercado financeiro; o sistema financeiro, por sua vez, cria opções para que o público possa comprar frações desses títulos públicos, através de diferentes fundos de investimento. Como consequência, uma boa parte da poupança do setor privado é canalizada para o financiamento do déficit público do governo. Ademais, com a dinâmica perversa do processo hiperinflacionário, causado pelo financiamento de parte do déficit via emissão de moeda, a desvalorização diária da moeda criou um grande incentivo para que os bancos começassem a oferecer ativos financeiros que praticamente substituem a moeda na sua função tradicional de reserva de valor, com custos de transações bastante baixos para as camadas da população cujo nível de renda permite ter acesso aos serviços prestados por esses ativos.

O Banco Central do Brasil, que acabou se transformando nos últimos anos no grande corretor da dívida pública, obriga as instituições financeiras a lastrear uma fração desses ativos com títulos públicos, como é o caso dos Fundos de Aplicações Financeiras (FAFs), criados em 1991. O resultado desse processo é o atual sistema monetário dual brasileiro, em que a moeda do pobre é o cruzeiro e a moeda do rico é algum ativo financeiro com liquidez diária. A sustentação desse sistema requer que o Banco Central fixe a taxa de juros diariamente em níveis adequados para que o público mantenha suas aplicações nesses ativos e não fuja para o dólar ou para ativos reais (bens duráveis, imóveis etc.), pois essa fuga produziria o estágio final da hiperinflação, com a destruição total da moeda nacional. O Banco Central tornou-se, então, um prisioneiro da política de taxa de juros, pois não pode fixá-la independentemente da taxa de inflação esperada pelo público.

Um outro ponto importante que não tem sido bem compreendido por alguns economistas brasileiros é que uma política de taxa de juros elevada, como foi praticada na administração do ministro Marcílio Marques Moreira, é contraindicada no combate a nossa hiperinflação. Do ponto de vista teórico, toda política monetária de mercado aberto, com a compra e venda de títulos públicos, afeta o serviço da dívida pública, e acaba tendo um impacto sobre a política fiscal (o orçamento do governo). Todavia, em qualquer livro-texto de Macroeconomia esse efeito é desconsiderado, pois supõe-se que o montante dessas operações é pequeno comparado com o estoque da dívida pública, e que o prazo médio da dívida é bastante longo, o suficiente para não afetar a análise no curto prazo. Entretanto, as condições da economia brasileira são bem diferentes dessas suposições de livro texto: o prazo de vencimento dos títulos públicos é bastante curto, e as operações de compra e venda de títulos pelo Banco Central representam uma proporção significativa do estoque de títulos públicos. Portanto, uma política monetária contracionista de taxa de juros elevada é ao mesmo tempo uma política fiscal expansionista, que aumenta o déficit público e como consequência aumenta também a taxa de inflação.

O sucesso no combate à hiperinflação brasileira requer, portanto, um conjunto de medidas que permitam ao Banco Central ter a capacidade de manter o câmbio fixo, no caso da escolha de uma âncora cambial, ou de controlar o estoque de moeda, se se preferir uma âncora monetária.

A reconstrução do padrão monetário nacional necessitará do alongamento da dívida pública mobiliária para que as políticas monetária e fiscal deixem de ser irmãs siamesas. Para se extinguir a moeda indexada, lastreada em títulos públicos, deve-se proibir que os depósitos à vista remunerados tenham depósitos compulsórios remunerados, como ocorre com os atuais FAFs. O Banco Central não pode pagar juros nos depósitos compulsórios porque esse pagamento só pode ser feito emitindo-se mais moeda ou mais títulos públicos. Cabe lembrar que a alternativa de recursos tributários para esse pagamento não faz o mínimo sentido do ponto de vista social.

O alongamento da dívida pública pode ser feito de modo voluntário ou compulsório. No alongamento voluntário, a receita de privatização de empresas estatais pode ser usada no resgate de parte da dívida pública de curto prazo, e é bastante provável que uma vez iniciado esse processo o mercado esteja disposto a comprar títulos públicos de longo prazo, pois a dívida pública mobiliária não representa por si só um problema, em virtude de o seu tamanho em relação ao produto interno bruto ser bastante pequeno (menos que 10% do PIB, no primeiro semestre de 1993).

O alongamento compulsório pode ser feito com ou sem calote. Na opção sem calote escolhe-se um preço unitário para o título, dando-se um prêmio ao seu detentor, de sorte que não haja perda de capital na operação. Entretanto, do ponto de vista legal ela representa uma quebra de contrato que não está explicitada, embora do ponto de vista econômico essa quebra esteja implícita na medida em que a taxa de juros incorpore um prêmio de risco que o governo paga ao comprador do título público.

Uma característica das inovações financeiras é que elas são permanentes, e não adianta querer reprimi-las ou suprimi-las. A moeda remunerada é hoje em dia bastante comum em qualquer país desenvolvido. Todavia, sua remuneração não é indexada à taxa de inflação, nem tampouco os bancos centrais desses países remuneram os depósitos compulsórios que incidem sobre ela. Cabe ao sistema financeiro desenvolver os produtos e serviços que seus clientes demandam, e ao Banco Central ter os instrumentos necessários para que a moeda seja estável e não entre num processo de decomposição como ocorreu nos últimos anos aqui no Brasil.

6. POLÍTICA DE RENDAS

A política de rendas, de intervenção do Estado na determinação dos salários e dos preços, é um instrumento coadjuvante importante no combate à inflação para reduzir o custo social do programa de estabilização. Infelizmente, desde 1965, quando a primeira política salarial foi introduzida pelo PAEG do governo Castello Branco, o que era transitório virou permanente, e o populismo confundiu política salarial com bem-estar do trabalhador. No curto prazo, a política salarial tem efeitos sobre o salário real e o nível de emprego, porém, no longo prazo, salário e emprego são determinados pelas condições de oferta e de procura do mercado de mão-de-obra.

Em geral, as várias leis salariais determinam o reajuste do salário com base em alguma fórmula que depende da inflação passada. Num programa em que se pretenda diminuir rapidamente a inflação, o uso dessas fórmulas levaria a um aumento do salário real, que teria que ser corroído por mais inflação ou por uma elevada recessão. Para que isso não ocorra existem duas alternativas. A primeira é uma política salarial que converta os salários pela média, os quais permanecem nesse patamar durante um certo período. A segunda alternativa é deixar que o próprio mercado funcione sozinho, o governo fixando apenas o salário-mínimo, que é uma atribuição legal e obrigatória do governo, pela Constituição.

Na questão da intervenção do Estado no sistema de preços é preciso, em primeiro lugar, diagnosticar se a inflação é dominada por um forte componente inercial ou se os agentes econômicos baseiam seus preços nas condições de mercado que eles antecipam para o futuro. Na inércia, o passado determina o presente; na expectativa, o presente é determinado pelo futuro.

Quando a inflação tem um importante componente inercial, um congelamento de preços temporário é justificável para quebrar o elo da corrente que une o passado com o presente, mesmo que isso se faça ao custo de uma ineficiência transitória na alocação dos recursos da economia. Por outro lado, se o componente inercial é desprezível e as expectativas são importantes, o congelamento de preços não é recomendável, e a ação concreta através da introdução de um novo regime para as políticas monetária e fiscal é suficiente para mudar a trajetória da inflação. É importante ressaltar que o simples anúncio de mudanças futuras, nas condições atuais da economia brasileira, depois de vários planos fracassados, não será suficiente para convencer a opinião pública a mudar seu comportamento com relação à remarcação de preços.

Alguns economistas alegam que a inflação crônica brasileira possui um componente inercial importante. Eles repetem um diagnóstico errado, comum entre vários analistas, que confundem equilíbrio com inércia. Se, por exemplo, o preço real de um produto está constante por um longo período, não se pode dizer que o preço desse produto é inercial, no sentido de que o preço de ontem determina o preço de hoje. O que ocorre na realidade é que as condições de demanda e oferta estão estáveis, e por isso não há razão para que o preço se altere. A inércia inflacionária depende da existência de contratos longos e da memória sobre a história recente que os agentes econômicos levam em conta nas tomadas de decisões. Com a inflação brasileira atual, os contratos são cada vez mais curtos, e as inflações do passado são irrelevantes para as decisões econômicas. Nessas circunstâncias, o componente inercial perde sua importância e a inflação é comandada pela expectativa de eventos futuros. No caso da economia brasileira, o problema fiscal do Estado tem que ser equacionado de forma permanente, e o Banco Central tem que ter instrumentos e autonomia para fazer política monetária. Quando essas condições forem estabelecidas, os agentes econômicos mudarão suas previsões de inflação futura e remarcarão seus preços de acordo com uma nova realidade das políticas monetária e fiscal.

7. CONCLUSÃO

Depois do insucesso de vários choques heterodoxos é bastante difícil convencer a sociedade brasileira de que o tratamento gradualista da nossa hiperinflação é um evento que tem uma probabilidade desprezível de dar certo, embora exista atualmente um bom número de economistas que preferem acreditar no ditado popular de que Deus é brasileiro. A história não registra nenhuma experiência de países com inflação anual de quatro dígitos (uma inflação mensal de 30% corresponde a uma anual de 2.230%) que a tenham reduzido de maneira gradual.

A palavra choque é, em geral, associada a medidas que surpreendem a sociedade e que afetam a vida cotidiana de cada cidadão. Na verdade, um tratamento de choque pode consistir apenas na interrupção abrupta da inflação, através da mudança do regime das políticas monetária e fiscal descrita neste trabalho, e ser previamente anunciado.

A moderna teoria econômica tem enfatizado a importância da informação no processo decisório dos agentes econômicos, e alguns estudos têm mostrado que o custo social de programas de estabilização bem-sucedidos em países que sofreram um processo de hiperinflação foi bastante reduzido, quando a inflação foi interrompida num curto espaço de tempo, em alguns casos da noite para o dia.4 4 Em um trabalho que já se tornou um clássico na literatura sobre hiperinflação, Sargent (1982) mostrou que os custos sociais dos programas de estabilização nas hiperinflações que ocorreram na década de 20 na Áustria, na Hungria, na Alemanha e na Polônia foram bastante reduzidos. Para uma análise detalhada sobre a hiperinflação alemã vale a pena consultar os trabalhos de Bresciani-Turroni (1968) e de Webb (1989). É preciso exorcizar a palavra choque, pois a hiperinflação não pode ser tratada por exorcismo, mas sim por um plano de estabilização que promova um ajuste fiscal permanente e que permita a reconstrução da moeda nacional, uma instituição fundamental em qualquer sociedade e que até agora tratamos com tanto descaso.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    O modelo clássico para analisar a hiperinflação foi desenvolvido independentemente por Cagan (1956CAGAN, P. (1956) “The monetary dynamics of hiperinflation”. In M. Friedman, org. Studies in the Quantity Theory of Money. Chicago: The University of Chicago Press.) e Kalecki (1962KALECKI, M. (1962) “A model of hyperinflation”. The Manchester School of Economics and Social Studies.). Uma generalização desse modelo é apresentada por Barbosa (1989BARBOSA, F.H. (1989). “As origens e consequências da inflação na América Latina”. Pesquisa e Planejamento Econômico, nº 19.) e Barbosa, Oliva e Sallum (1993BARBOSA, F.H., W.M. Oliva e E. M. Sallum (1993). “A dinâmica da hiperinflação”, Revista de Economia Política 13(1), janeiro.).
  • 2
    No curto prazo um programa de estabilização não é neutro, pois existem ganhadores e perdedores nesse jogo perverso. Os pobres deixarão de pagar o imposto inflacionário (que em alguns anos supera os US$ 10 bilhões anuais) e se beneficiarão do programa. Algum grupo da sociedade tem de substituí-los e pagar essa conta. A longo prazo, uma vez eliminada a inflação, a economia brasileira pode voltar a crescer e toda a sociedade se beneficiar do desenvolvimento econômico.
  • 3
    Dividindo-se pelo nível de preços P ambos os lados da restrição orçamentária, tem-se:
    G - T P + r b B P = d M d t I P + d B d t I P
    Definindo-se m=M/P e b=B/P, e derivando-se com relação ao tempo, obtém-se:
    d M d t = m + π m e d B d t I P = b + π b , o n d e m = d m d t e b = d b d t
    Substituindo-se essas expressões na restrição orçamentária chega-se à fórmula do texto.
  • 4
    Em um trabalho que já se tornou um clássico na literatura sobre hiperinflação, Sargent (1982SARGENT, T.J. (1982). “The ends of four big inflations”. In R. Hall, org. Inflation, Causes and Effects. Chicago: University of Chicago Press.) mostrou que os custos sociais dos programas de estabilização nas hiperinflações que ocorreram na década de 20 na Áustria, na Hungria, na Alemanha e na Polônia foram bastante reduzidos. Para uma análise detalhada sobre a hiperinflação alemã vale a pena consultar os trabalhos de Bresciani-Turroni (1968BRESCIANI-TURRONI, C. (1968) The Economics of lnflation, a Study in Currency Depreciation in Post-war Germany. Londres: Augustus M. Kelley Reprint, 1968.) e de Webb (1989WEBB, S.P. (1989). Hyperinjlation and Stabilization in Weimar Germany. Nova York: Oxford University Press.).
  • 5
    JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1993
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