Acessibilidade / Reportar erro

Artigos de Maria da Conceição Tavares

Maria da Conceição Tavares é uma das fundadoras da Revista de Economia Política. Sua contribuição para a compreensão da economia brasileira e latino-americana e de sua inserção na economia mundial é fundamental. Desde julho de 1993 ela vem publicando artigos aos domingos, na Folha de S. Paulo. Fizemos uma seleção desses artigos, organizamos por temas, começando pelos assuntos internacionais, e os estamos publicando como documento, a partir da convicção de que esses artigos precisam ficar mais facilmente disponíveis para os pesquisadores da economia brasileira.

TRISTES MEMÓRIAS DO PACTO INFLACIONÁRIO

O problema fiscal que sempre obcecou os economistas de todos os matizes foi equacionado pelo professor Bulhões, com o auxílio do fiscalista Gerson Augusto da Silva, dando-lhe uma resposta satisfatória, entre 1964/1968. O fato histórico, porém, é que apesar da competência e do poder político incontrastável da equipe econômica, o choque fiscal e a reforma tributária que se lhe seguiu não acabaram com a inflação. Esta reduziu-se substancialmente (de 80% para 40% ao ano), em boa medida, pela política de prefixação de salários, com um redutor escandaloso entre a inflação programada e a inflação real, que deu lugar ao primeiro grande arrocho salarial da história econômica brasileira contemporânea.

Mas, infelizmente, a política Bulhões-Campos não foi tão dura com o capital, nem tão ortodoxa como se imagina. Ao contrário, eles adotaram o “enfoque heterodoxo” do combate gradualista à inflação, pondo a equipe do FMI para correr, por não quererem aceitar os choques cambial e monetário recomendados.

Começou, então, um processo de indexação (correção monetária e cambial), pelo qual o valor do capital, as receitas e dívidas em dólar e as receitas fiscais estavam a salvo, resistindo à inflação. Aí começou a gerar-se a famosa “inércia inflacionária”, pela qual somente choques favoráveis de preços eram capazes de baixar a taxa de inflação, enquanto choques adversos (por exemplo: petróleo, tarifas ou más safras agrícolas) levavam a taxa para cima. Os salários e o emprego (como fim da estabilidade) foram considerados as variáveis de ajuste permanente.

Este mecanismo básico, que se mantém até hoje, para resolver o “conflito distributivo” a favor do capital, não tem resultado noutra coisa a não ser no empobrecimento regular dos assalariados de base, dos trabalhadores sem carteira e dos funcionários públicos da administração direta (aquela que deveria servir o povo). A partir de 1964, a política salarial nunca mais teve uma solução satisfatória. Passamos a viver permanentemente numa economia de alta inflação e baixos salários e com rendimentos da cúpula da sociedade escandalosamente altos.

Mas há um problema que o dr. Bulhões não previu ao introduzir a correção monetária e cambial e contra o qual acabou lutando, em vão, até o fim de seus dias: trata-se da famigerada “ciranda financeira”, que permite aos agentes líquidos (públicos e privados) abrir mão do dinheiro comum e adotar o dinheiro indexado, à custa do Tesouro Nacional. A história é longa e começou na gestão do ministro Delfim Netto, que iniciou o processo de endividamento externo usando os títulos da dívida pública, com correção monetária e juros sob controle, para regular o mercado bancário, em face de um volume de crédito interno alto.

Mas a “ciranda” começou para valer na gestão do ministro Mário Simonsen, que pôs em marcha batida e de uma forma peculiar (o refinanciamento compensatório) o nosso famoso over, lastreado em títulos da dívida pública, com juros altos, sem riscos e com liquidez garantida. Desde aí soldou-se de vez a promiscuidade entre os dealers do Tesouro e o Banco Central, que se mantém até hoje com os breves entreveros do Plano Cruzado e do Plano Collor.

Os títulos da dívida pública federal foram emitidos então, como no ano passado, não por razões estritamente fiscais, mas para dar garantia monetária e cambial, capaz de atrair capital financeiro internacional barato para substituir o crédito interno e formar reservas internacionais, caras e mal remuneradas. O resultado é conhecido, mas nem por isso aprendido, dívida com juros altos torna-se um pesadelo, que se acumula em bola de neve, e faz de qualquer ajuste fiscal uma miragem.

Depois da crise da dívida externa, o over e os mercados financeiros não fizeram senão “sofisticar-se”. Em períodos de crise fiscal ou cambial agudos, o mercado cobra uma senhoriagem financeira cada vez maior, que termina arrebentando com as finanças públicas.

Para tentar manter as reservas internacionais necessárias à credibilidade do Banco Central, este, em sua impotência para regular a moeda indexada, que substitui a velha que ninguém mais quer, apela sempre para um tranco na taxa de juros e uma intervenção pesada no mercado de câmbio (acaba de fazê-lo, de novo, esta semana). Como o Banco Central termina em geral sancionando as expectativas do mercado financeiro, a ciranda continua e a política monetária torna-se inoperante para combater a inflação.

Se eu soubesse o que significa hoje um “Banco Central independente”, seria tentada a pedir às autoridades do nosso país que adotassem essa panaceia, tão cara à ideologia liberal, mas tão pouco praticada pelos próprios “liberais” no poder durante tantos anos. O objetivo de todos nós (ortodoxos e heterodoxos), como o do grosso da sociedade é, ou deveria ser, um orçamento fiscal e uma política monetária e creditícia potentes. Infelizmente, desde a desregulação cambial e financeira da década de 80 ninguém sabe que bicho é um Banco Central independente, se um dinossauro ou um unicórnio.

Neste sentido, a última tentação, com a qual termino minhas tristes memórias, é a de pedir a extinção radical da ciranda financeira (e não o coice de mula collorido). Minha pobre razão crítica, no entanto, obriga-me a perguntar, sem encontrar respostas: como funcionaria o capitalismo brasileiro sem sua dose diária de cocaína? Aguentaria um mercado financeiro “mais primitivo”? A esperança é a última que morre.

Já minha memória, escaldada de tantas derrotas (inclusive a dos ilustres autores da correção monetária e cambial), obriga-me a usar a sabedoria popular do Garrincha, perguntando ao técnico, que expunha suas teorias, nas vésperas de um jogo-decisivo: “O sr. já combinou com o técnico adversário?”

Aparentemente, nosso técnico tem adversários demais, já que os sócios da inflação são muitos. Para piorar a situação, entre os árbitros do momento encontram-se alguns membros do Poder Judiciário, visivelmente tomando partido a favor do time adversário. Assim fica difícil ganhar o jogo! Mas há que tentar chegar até o fim da partida sem terminar às caneladas e sem escolher um novo técnico, as manias preferidas da torcida brasileira. (25/7 /93)

A VIDA E A MORTE DA MOEDA BRASILEIRA

Esta semana de tantas mortes anunciadas, numa sociedade supostamente sem ilusões, por quem os sinos dobram todos os dias, mas raramente são ouvidos na luta surda pela sobrevivência, terminou (mais uma vez) com o nascimento de uma nova moeda. Para que permaneça a ilusão monetária (o fetiche dos fetiches) a nossa moeda “podre” foi batizada de real. Não posso, nem quero fazer ironia, devo cumprir minha tarefa e chamar a atenção para outras ilusões e realidades ligadas às “moedas boas”. Trata-se das que resistem melhor à inflação, o que os cidadãos de primeira classe, e mesmo de classes médias assalariadas, usam nas suas contas bancárias: as moedas da ciranda financeira, cujos agentes produzem dinheiro novo todos os dias, convertendo a moeda má (agora com menos zeros para facilitar os cálculos) em moeda boa.

Os agentes financeiros desta máquina especial de fazer dinheiro não têm ilusão monetária em moeda local, correm eventualmente para outras moedas (dólar ou ouro em particular), mas têm-se mantido fiéis à sua moeda preferida, a dívida pública indexada. Quando há desconfiança sobre a taxa de inflação futura, que eles mesmos projetam e anunciam, fazem pagar mais caro ao governo os serviços prestados por serem guardiães da verdadeira moeda “real”. Mas ainda não passaram definitivamente para o dólar, como nossos vizinhos, talvez porque isso diminuiria o número de clientes e a taxa de arbitragem do jogo. Mas quem ganha com este jogo? Só os bancos? Não, estes são apenas os guardiães da dívida pública indexada, do Tesouro Nacional, a proteção que dão aos seus clientes. O lucro global é dividido por muita gente, mas sobretudo pelos que têm poder de fogo, as grandes empresas, que, tendo reservas líquidas aqui e no exterior, alimentam a ciranda em todas as moedas possíveis, agora preferencialmente em dólar, e ganham margens financeiras adicionais às obtidas com a formação “livre” de preços.

Ora, direis, mas o Banco Central só paga juros altos porque tem de financiar o Tesouro, que tem um déficit fiscal alto! Isto não é verdade. Depois do famigerado plano Collor, o déficit fiscal efetivo não foi alto (foi zero, em média durante cerca de três anos e nem por isso a inflação caiu!): o que piorou foi o problema orçamentário e fiscal, para atender às obrigações mínimas do Estado. O Banco Central pagou juros altos por várias razões, entre as quais a de atrair capitais externos e comprar reservas em dólares. Mas vários economistas ainda mantêm a sua crença “histórica” de que juros altos ajudam a enxugar a liquidez (em qual moeda?) e a combater a inflação! A emissão de cruzeiros (a moeda podre, que ninguém quer) é mínima como porcentagem da renda nacional (cerca de l%) e não existe como riqueza, razão pela qual o “imposto” inflacionário cobrado diretamente pelo governo vai desaparecendo. Para todos os credores relevantes do Estado, em particular os bancos e seus clientes, a emissão é em dívida pública. Esta por sua vez cresce com o próprio giro (correção monetária e juros altos), realimenta o déficit fiscal potencial e permite cobrar do Tesouro uma senhoriagem financeira crescente, em que os bancos se substituem ao Estado como guardiães das moedas boas. As elites econômicas cobram “o imposto inflacionário” apropriando-se de 16% da renda nacional, só por conta de juros e não querem pagar ao Estado impostos devidos legalmente.

Os economistas ligados à ciranda vêm recomendando, para facilitar o jogo do “mercado”, liberdade cambial e de movimento de capitais, um jogo que nem os Bancos Centrais europeus aguentam. É a famosa marca da insensatez!

Afinal para que servem, aos agentes privados, as entradas de capitais externos financeiros? Para investir produtivamente ou para financiar a produção? Não, ou quase nunca, servem para especular em bolsa e ganhar dinheiro na ciranda financeira. Se a taxa de juros baixasse muito o negócio da “arbitragem bancária” não seria tão rentável. Quantos são os personagens “oficiais” que participam do jogo? Difícil saber. Oficialmente, além dos bancos, mais de 500 empresas brasileiras têm filiais no exterior, e 17 mil multinacionais operam aqui e lá fora. Os bancos, escaldados com as crises anteriores da dívida externa e interna, só querem tomar e bancar operações em dólar com um ágio que nem nossos credores internacionais se atrevem a cobrar do governo.

Na semana retrasada, depois que a inflação subiu mais uns pontos (por conta de um reajuste salarial que ainda estava em discussão), o Banco Central fez uma intervenção no mercado para tentar baixar a taxa de juros e garantir as posições líquidas em dólares dos bancos e lançou títulos com o risco cambial por conta do Tesouro, a uma taxa média de 16% real em dólar. Esta é a taxa mínima que os bancos dizem poder suportar, quando a taxa nominal de juros para aplicações lá fora oscila em torno de 4% a 6% (isto é, de zero a 2% real). Este prêmio “sem risco” é dividido entre os nossos aplicadores cosmopolitas e os bancos, e foge completamente aos padrões praticados em qualquer parte do mundo “ocidental” (incluindo a China!), com raras e desonrosas exceções.

Por que o Banco Central tolera esta chantagem? Porque o mercado financeiro ameaça não rolar a dívida e mandar de “volta” os dólares. Dada a mudança de circunstâncias internacionais e a posição de reservas potenciais do Banco Central, a ameaça contrária poderia ser feita pelo governo: controle absoluto de câmbio e monetização instantânea da dívida, em “cruzeiro real”! Mas este é um jogo muito pesado em que não cabem ilusões. Talvez seja melhor o Banco Central, com apoio do governo e de possíveis interessados mais lúcidos, convencer a sério os representantes dos bancos a buscar uma saída negociada e ordenada de queda de juros, antes que a dívida interna (em poder do mercado) atinja valores mais significativos ou seja excessivamente dolarizada, vis-à-vis as reservas disponíveis. Os interessados lúcidos só poderiam ser os próprios bancos, cuja situação ficaria mais vulnerável que a dos seus clientes cosmopolitas, no caso de uma crise monetária mais grave. Este é um apelo à razão e ao instinto de sobrevivência, de uma velha economista que ainda não parou de escutar os sinos e sabe que nas mortes sucessivas da moeda eles dobrarão por todos. (1/8/93)

A GUERRA DAS MOEDAS NA CIRANDA MUNDIAL

Nestas duas últimas semanas assistimos provavelmente à destruição do sonho europeu da unificação monetária. Mais do que isso, verificamos como a instabilidade cambial provocada pela especulação de um mercado financeiro “global” foi capaz de derrubar a segunda moeda nacional mais importante do sistema monetário europeu: o franco francês.

A França cumpriu durante o segundo governo socialista com todos os requisitos do modelo liberal, entre os quais a desregulamentação financeira. Supunha-se que, com modernização tecnológica, inflação próxima de zero, sindicatos sob controle e mercados financeiros livres, poderia tornar-se o franco um parceiro confiável do marco para sustentar o projeto da moeda europeia.

Mas a suposição estava furada, porque não contava com o poder desestabilizador da globalização financeira, contraposta aos interesses nacionais da Alemanha e da França.

Assim, enquanto a nossa pobre moeda morria mais uma vez, sem choro nem vela, apenas com alguns episódios provincianos (difíceis de evitar num país de tanta imaginação monetária, que é capaz de converter cheques pré-datados em moeda corrente!), a moeda europeia faleceu antes de nascer, vítima de um assalto trombeteado pela imprensa mundial.

Os governos europeus assistiram impotentes ao estrago feito, em apenas um dia, por especuladores privados que detêm capital financeiro líquido nas várias moedas relevantes, capazes de qualquer banco central europeu, com exceção (até agora) do Banco Central alemão.

Este é o segundo ataque frontal à capacidade de os bancos centrais regularem, simultaneamente, a taxa de juros e a taxa de câmbio das principais moedas do sistema monetário europeu.

A mansa “cobra europeia” que se mantinha sob controle há mais de uma década, mordida pela especulação, levantou-se em corcovas de cascavel e explodiu primeiro as moedas mais fracas (a lira e a peseta), deu um bote decisivo na libra, que saltou fora do barco que, depois de perder dezenas de bilhões de dólares de reservas, foi socorrida como de hábito pelo marco.

Neste começo de agosto, a “cobra” fumou de novo e espalhou uma marola de veneno especulativo que atingiu todas as moedas internacionais, do dólar imperial à modesta coroa dinamarquesa. Esta forte moeda nacional de um pequeno país, bem administrado, reagiu à marola obrigando o seu Banco Central a uma intervenção defensiva no mercado, que produziu em determinado momento uma taxa de juros no overnight de 250% anuais!

O dólar terminou quarta-feira passada em queda nos EUA, e a peseta, que tinha sido desvalorizada duas vezes no ataque anterior, desta vez ganhou do orgulhoso marco, obrigado a descer do pedestal alguns pontos para tentar reequilibrar o franco.

Em Tóquio, o Banco Central do Japão interveio repetidas vezes para controlar a valorização do iene, que já se aproximou perigosamente do limite histórico que lhe permite competir nos mercados mundiais em dólar, sem ter prejuízo excessivo nas margens de lucro operacionais.

Enfim, a ciranda financeira internacional, da qual somos hoje uma pálida caricatura, funcionou a mil e produziu, além de vários sobressaltos, uma importante morte anunciada: a do sistema monetário europeu, que se mantinha em evolução “supostamente” promissora desde 1979. Como foi que começou esta história da rebelião das moedas e por que os ataques especulativos se tornaram tão ferozes?

A história da ruptura da estabilidade monetária mundial é longa, embora muito menos que a nossa, que nunca esteve ancorada no padrão internacional. Começou em 1968, com a criação do euromercado denominado em dólares, que era um pequeno ovo da serpente, envolvendo pouco mais de US$ 100 milhões.

Em 1971 o dólar rompeu a paridade com o ouro e até 1973 tentou-se manter o sistema de taxas fixas com pequenos deslizamentos. Rompido o acordo, as taxas flutuaram livremente, começando as desvalorizações competitivas que arrastaram o dólar para baixo, o iene e o marco para cima e provocaram desvalorizações sucessivas e alta inflação nos países de moeda fraca.

A diplomacia do dólar forte, posta em prática entre 1979 e 1983, fez disparar as taxas de juros internacionais, levou à ruína os países devedores periféricos, sobretudo os da “banda podre” do dólar (os devedores latino-americanos) e fez estalar a primeira grande crise financeira internacional do pós-guerra.

Seguiu-se a desregulamentação dos mercados financeiros, proposta pela dupla Reagan-Thatcher, que teve como resultados práticos a sustentação do dólar como moeda internacional dominante e uma forçada coordenação dos principais bancos centrais entre 1984 e 1989.

Quando esta terminou (com os sonhos europeus de uma moeda forte e unificada de reserva), os americanos responderam com uma baixa violenta da taxa de juros. Aí começou de novo não apenas a guerra comercial, mas a guerra das moedas.

A ciranda financeira internacional, alimentada pelas operações cambiais (que apresentavam em 1992 três vezes o valor do comércio internacional), foi se tornando mais sofisticada, criando papéis securitizados contra vários riscos.

O valor bruto das transações financeiras internacionais em 1992 superava US$ 30 trilhões (!) e as reservas dos principais bancos centrais eram inferiores a 10% do valor das transações cambiais.

Enquanto este movimento gigantesco de expansão privada da moeda e da riqueza líquida ocorria, aparentemente sob controle, os liberais de todos os matizes cantavam loas à liberdade de capitais e acreditavam (pasme-se) que as taxas de câmbio de referência (dólar, marco e iene), que haviam mudado violentamente durante a década de 80, terminariam por convergir para o equilíbrio!

Em matéria de insensatez, os nossos liberais tardios até que são mais modestos e realistas. A modéstia não é em relação às taxas de lucro e de juros internos, mas ao reconhecimento tardio de que não tinham cacife para participar do jogo da globalização financeira e podiam apenas copiar os instrumentos financeiros modernos, fazendo da nossa ciranda local uma caricatura.

Por que nos últimos dois anos têm insistido na liberalização cambial e do mercado de capitais? Por convicção liberal? Não creio. Querem apenas aproveitar as sobras de um mercado gigantesco e enlouquecido, confiando que o nosso Banco Central, com as reservas atuais, é capaz de lhes dar proteção.

Mas as operações financeiras de câmbio vêm subindo com uma velocidade muito grande (de 40% no primeiro semestre de 92 para 60% no de 93), o que demonstra que se o BC der corda aos nossos “anões” financeiros, eles serão capazes de querer a mesma relação câmbio/comércio dos gigantes internacionais.

Teriam como desculpa, para o seu apetite, o fato de que não estão mais pondo em risco a nossa moeda (que já não existe) e de que a esta altura o “risco Brasil” é na realidade menor que o risco sistêmico embutido na ciranda internacional.

No entanto, o verdadeiro risco cambial quem corre é o Banco Central, que parece estar confiante demais nas reservas potenciais ligadas ao superávit comercial e em sua capacidade de intervenção no mercado, embora à custa de aumentar o déficit público.

Como não temos propriamente a situação do Banco do Japão, nem a competitividade da indústria japonesa, conviria ir devagar com o andor. Às vezes “navegar não é preciso”. É melhor ficar no porto e sobreviver.

PS para os técnicos do BC - Acabei de reler as conclusões deste artigo e notei duas coisas erradas: 1) estou me comportando como a torcida brasileira, querendo ensinar o jogo ao técnico. Neste caso, com a agravante de que o jogo é muito pesado e eu não conheço as posições em carteira dos bancos (os adversários); 2) lembrei-me em tempo de que o Banco Central não pode evitar a inflação em cruzeiros, mas pode tentar evitá-la em dólares, o que já não é pouco, nestas águas revoltas. Afinal, só me resta acender uma vela a N. Sra. dos Navegantes e torcer para que vocês “levem o barco devagar”. (8/8/93)

JAPÃO É OBSESSÃO PARA MUNDO CAPITALISTA

O Japão tornou-se uma obsessão para o mundo capitalista, em particular os Estados Unidos, que invejam a eficiência e capacidade tecnológica de suas empresas, seu sistema educacional e sua capacidade de poupança. Mas têm dificuldade de aceitar o peso político da burocracia e o rígido sistema de proteção e lealdades da organização econômica, social e política japonesa, sobretudo quando ela se afasta francamente da ética política ocidental (de fundamento individualista e liberal).

Alguns intelectuais anglo-saxônicos de maior envergadura, começando por David Bell (“As condições culturais do capitalismo”, 1976), passando por Ronald Dore (Rigidezes flexíveis, 1986) e muitos outros com abordagens multidisciplinares, tentaram pôr o dedo na ferida do liberalismo para interpretar a realidade contemporânea.

Bell, que foi dos primeiros a ter sucesso, dado o seu prestígio adquirido no mundo “transnacional”, fez o seguinte questionamento: “No fim do século XX, a questão sociológica emergente parece ser porque o capitalismo tornou-se tão bem-sucedido no Japão que justamente manteve muito das suas tradições ( ... ), enfatizou suas raízes comunitárias, privilegiou a busca do consenso e assegura empregos vitalícios a boa parte de sua força de trabalho”.

Não vou tentar explicar o Japão nas laudas de um artigo. Minha própria obsessão com o “capitalismo organizado” japonês persegue-me desde 1968, quando li pela primeira vez artigos de economistas japoneses, tentando explicar a realidade de sua economia, que vai muito além das suas “raízes feudais”, ou de sua capacidade de imitar o Ocidente fazendo “engenharia reversa”.

Vou tentar apenas destacar alguns elementos centrais da “engenharia social” japonesa, que permitam entender a natureza da atual crise política e da nova aliança que acaba de formar o governo.

A estrutura de proteção política e econômica abrange todos os setores, mas em particular os mais atrasados ou vulneráveis (agricultura, comércio interno, construção e pequenas e médias empresas), criando uma rede de ligações públicas e grupos de interesse, que entre 1955/1984 levou a que ex-burocratas constituíssem 21% dos deputados eleitos pelo PLD.

Alguns desses deputados estão voltando agora ao governo. Os agentes econômicos mais imunes à influência política do Congresso e da burocracia são os grandes bancos, mas estes mantiveram com o Banco Central uma relação de cooperação permanente, que só começou a ser rompida com a abertura financeira (1984/ 86) e as bolhas especulativas de Tóquio.

Em contrapartida, a relação dos bancos com as empresas dos grandes conglomerados, embora hoje mais frouxa pela internacionalização, é uma das mais notáveis e permitiu até há pouco tempo taxas de endividamento e de administração de riscos de capital e de câmbio que nenhuma estrutura de conglomeração possui em qualquer país avançado, mesmo na Alemanha.

A separação entre política, sociedade e economia, supostamente comum às sociedades ocidentais, não existe no Japão, e a concorrência, que é violenta em todas as órbitas, é administrada por um jogo de soma positiva, em que, respeitadas as hierarquias e o mérito, o conflito se processa filtrado por inúmeras mediações, nas quais as redes de lealdades e interesses são tanto horizontais quanto verticais.

A solidariedade orgânica nacional e a postura estratégica defensiva não impedem a ofensiva em todos os mercados, nacionais ou internacionais, e em todos os espaços políticos possíveis, respeitadas as regras de que “dizer não” e derrotar fragorosamente o adversário não são táticas aceitáveis para os mil consensos que é necessário obter em tantas frentes parciais.

A coordenação informal entre iguais, para obter uma visão estratégica do futuro, e a proteção para que os mais fracos não sejam abandonados, juntamente com a capacidade de resistência à ação predatória de grupos de pressão, são (ou foram) as características estruturais mais importantes da sociedade japonesa, que lhe permitiriam ajustar-se e responder criativamente às crises de que está cheia a história desse país.

Agora, submetido o país a uma crise econômica maior que a de 1973 e a uma liberalização forçada pela internacionalização, que ameaça atingir fortemente os setores mais frágeis do capital e do trabalho, a elite política dominante que começou a se desmoralizar moralmente desde o governo Tanaka fracassou.

Mas o Japão acabou de demonstrar como é capaz de avançar politicamente contra ventos e marés. Derrotado o PLD, que se fragmentou por sua incapacidade de encarnar o “interesse nacional”, minado por contradições e corrupção (só imperdoável quando foi do “aberta”), o novo governo foi montado por uma aliança improvável, senão impossível, no Ocidente desenvolvido.

Setores conservadores e progressistas reivindicam, lá como aqui, a ética na política, e indicaram um primeiro-ministro conservador, mas politicamente liberal, que prometeu a reforma política. Setores conservadores, representando a “velha guarda” nacionalista, indicaram o ministro da Agricultura, o ministro da Fazenda e o ministro do Comércio Internacional e da Indústria.

Para quê? Para resistir corretamente, isto é, sem arrogância, às pressões externas pela abertura comercial e, sobretudo, controlar os jovens burocratas e tecnocratas ligados ao processo de internacionalização, que advogam o avanço do liberalismo econômico e da desregulamentação financeira.

Para atender áreas sociais e políticas mais sensíveis de uma opinião pública em que as mulheres e os jovens aumentaram as suas reivindicações, o novo gabinete inclui três mulheres, uma conquista política sem precedentes, que culmina com a audácia de colocar a líder socialista mais velha, de grande prestígio e carisma, na presidência da Câmara.

Finalmente, o ministro das Relações Exteriores, um liberal conservador, deve ensinar aos americanos aquilo em que a cultura japonesa é exímia: dizer “não”, dizendo “sim” às teses dos adversários. O Japão, declarou ele, “deve aprender a tomar decisões duras e difíceis para a abertura de seus mercados, a fim de evitar atritos comerciais com os EUA”.

E acrescentou, com a proverbial filosofia japonesa: “Não apenas o governo, mas os setores privados e o povo precisam se compenetrar de que não é bom para o Japão ser vencedor único”. Esta declaração foi feita ao mesmo tempo em que o arroz e o aço foram novamente protegidos das importações, contrariando os “acordos” de Clinton com Miasawa na recente reunião de Tóquio.

Não se imagine que se trata de cinismo e que a nova aliança política heterogênea é meramente um saco de gatos. Os japoneses foram treinados para levar em conta todas as pressões relevantes e para atuar defensivamente, sobretudo no pós-guerra.

Hoje, mesmo mergulhados numa crise, que é mundial, sabem que são os melhores, industrial, comercial e tecnologicamente,, mas que a guerra comercial aberta pode ser desastrosa. Sabem também que as demandas de mais liberdades e ética são avassaladoras, produtos do liberalismo político que acompanhou a onda da internacionalização.

Não querem pagar o preço do liberalismo econômico desenfreado e da desestruturação da sua sociedade, e gostariam que a sociedade aceitasse pagar, em termos fiscais e políticos, as promessas de um “novo Japão”.

Um pacto político desta natureza enfrenta resistências na organização patronal mais forte (o “Keidaren”) e no exterior (veja-se a reação das imprensas americana e inglesa), mas divide os apoios das empresas e da classe média estabelecida.

Além disso, a administração dos conflitos leva mais tempo, dada a convivência dos contrários ideológicos. Requer, também, manter uma diplomacia de perfil baixo, para um país economicamente poderoso, mas que, por sua tradição histórica, provocou externamente mais inimigos do que é capaz de tolerar.

Converter “ex-inimigos” e “aliados” externos em concorrentes, com os quais seja possível negociar, e antigos adversários internos em aliados, parece ser o caminho que o Japão escolheu mais uma vez para surpreender o mundo. (15/8/93)

BAIXOS SALÁRIOS E COMPETITIVIDADE EXTERNA

Não apenas com a questão da alta inflação crônica, mas também com a questão da competitividade da indústria brasileira, os economistas andam perdidos, estão perplexos.

A maioria ainda tenta compreender as mudanças na economia internacional com base nas teorias de Adam Smith ou David Ricardo, que já não servem para nada. Hoje em dia, até mesmo os ensinamentos de Keynes não nos ajudam muito para trabalhar com uma “economia globalizada”.

Mas a maioria dos economistas ainda é neoclássica e acredita que pode tentar explicar a competitividade internacional com base nos fatores estáticos da produção. Eles pegam os salários, transformam os valores pagos em cada país em dólares e começam a fazer comparações entre as nações, com base nos padrões salariais. Trata-se de um exercício sem qualquer sentido.

Essas comparações não dizem nada, pois a competitividade das economias e das empresas multinacionais não têm mais como base os custos salariais. O que importa, agora (além das vantagens tecnológicas e sistêmicas que determinam o potencial competitivo do longo prazo), são os ganhos ou perdas que as empresas obtêm com as variações cambiais e com as movimentações financeiras que realizam.

O padrão salarial só é importante, atualmente, como determinante do poder de compra interno dos trabalhadores. Os salários em dólar não servem sequer para comparar o poder aquisitivo dos trabalhadores de diferentes regiões da mesma área monetária internacional (por exemplo: Brasil, Argentina e México), que se dirá de áreas distintas.

Os produtos japoneses custam muito mais caro em Tóquio do que em Nova York. Muitas empresas japonesas fazem preços duplos administrados para exportar, quando a sua moeda se sobrevaloriza.

Assim, o preço interno em dólares é muito superior ao externo, que é mantido constante, quando não declinante, para compensar a brutal valorização do iene. Portanto, um trabalhador japonês pode ter renda mais elevada que um norte-americano e um poder de compra menor.

Os países que ainda acreditam que os custos salariais, de matérias-primas, etc. são determinantes para a competitividade internacional estão dando com os burros n’água.

A França, por exemplo, cortou custos, mandou gente aos montes embora, adotou a política mais conservadora da Europa Continental, provocou deflação e aumentou rapidamente seus níveis de produtividade. De que é que adiantou tudo isso? De nada. As empresas francesas continuam sem capacidade de competir com as alemãs, que têm o poder de manipular uma das moedas de referência e de se apropriar financeiramente dos ganhos proporcionados pelas variações cambiais.

Graças a esses ganhos financeiros, as empresas alemãs podem vender mais barato que as francesas no mercado internacional, mesmo que tenham custos de produção mais elevados.

Atualmente, as receitas financeiras são importantíssimas para qualquer empresa internacionalizada, incluindo as brasileiras. Se, por exemplo, a taxa de câmbio no Brasil se atrasar, dada a liberalização financeira, as empresas não deixarão de exportar.

Elas vão continuar vendendo, só que passarão a operar de outra maneira. Elas irão buscar, com mais intensidade, recursos de curto prazo lá fora para operar no mercado brasileiro, aproveitando as altas taxas de juros reais pagas aqui dentro.

Os exportadores utilizarão sua capacidade de arbitragem financeira para mudar suas fontes de lucros e exportação de preferência para áreas onde as moedas sejam mais valorizadas. O que isto tem a ver com custos salariais? Nada, rigorosamente nada.

Diante disso, falar em competitividade a partir dos custos salariais é uma ficção. E não adianta falar em custos totais em dólares, porque isso também não significa nada.

Em dólares de que época? Quanto valem esses dólares em relação às outras moedas de referência e em relação aos competidores da mesma área? Qual a capacidade que têm de fazer seguro contra o risco de câmbio? Em quantos países as empresas estão operando e em quantas moedas podem transacionar e fazer aplicações financeiras?

Evidentemente, é isso que conta e dá flexibilidade aos negócios globais e não meras comparações estáticas de custos em dólares.

Os que contestam essa visão, os que ainda acreditam na importância dos custos salariais, citam o exemplo da China, onde os trabalhadores ganham cerca de US$ 50 por mês. O sucesso do boom exportador chinês de bens de consumo estaria associado aos baixos salários pagos à mão-de-obra.

A invasão chinesa do mercado americano de bens populares impressionou tanto a alguns, que o primeiro ministro inglês, John Major, disse recentemente para seu colega francês: “Precisamos reduzir nossos salários para concorrer com os chineses”. Ao que o francês respondeu que para chegar lá seria preciso reduzir os salários na França e na Inglaterra em 30 vezes.

É evidente que a competitividade chinesa não tem como base os baixos salários, nem qualquer tipo de mágica, de eficiência excepcional, que seja apanágio do governo chinês. A China exporta maciçamente para os Estados Unidos porque os americanos facilitam a entrada de produtos chineses, não impõem cotas e outras barreiras, porque querem conquistar o mercado chinês.

As empresas americanas estão tentando investir na China, tentando firmar suas posições para vencer a corrida com os japoneses, no futuro, que também estão de olho naquele enorme mercado potencial.

Com o mercado americano à disposição, com as tradings asiáticas e americanas abrindo canais de comercialização para os produtos chineses, com esquemas de financiamento das vendas externas, os chineses conseguem obviamente exportar a uma velocidade espantosa.

E o capital, de onde vem? Das praças abertas de Hong Kong e Cingapura. Não se trata, portanto, de competitividade com base em salários baixos. É uma questão complexa de investimento direto, comércio e finanças internacionais.

É essencial não ignorar as lições da história. A Índia tinha a manufatura têxtil mais bem montada do mundo, no século passado. Os seus tecidos eram de boa qualidade e a mão-de-obra barata. Tudo certinho, tudo perfeito.

Acontece que os ingleses é que financiavam a produção manufatureira indiana e as tradings inglesas é que comercializavam esses produtos no mercado internacional. Pois bem; quando acharam que estavam ameaçados pela superprodução mundial de têxteis, os ingleses liquidaram com o poder de competição da Índia. Isso aconteceu no século XIX, quando o poder do capital financeiro não era tão determinante como agora.

O Brasil tem uma dupla inserção internacional. Uma é de natureza “clássica”, em que a abundância de recursos naturais e energia barata ainda contam. Essa diz respeito aos produtos primários de exportação ou semifaturados (mais de 50% das exportações).

Assim, mesmo o agribusiness só avançou porque na ponta consumidora mundial usou a concorrência de tradings globais e penetrou em mercados onde os EUA eram dominantes (soja e suco de laranja).

A outra inserção é o mercado de manufaturas de uso difundido, da 2-ª revolução industrial. Como estão respondendo as empresas ao desafio de um baixo “potencial” de desenvolvimento tecnológico?

Fazendo modernizações parciais e organizacionais, sofisticando as operações financeiras e mercados futuros e usando, em 40% das exportações manufatureiras, o poder das filiais transnacionais.

Esse tipo de ajuste ao “jogo global” já cria desemprego e instabilidade macroeconômica. Só falta pleitear em nome da “competitividade” que continuemos uma economia de baixos salários, incluindo São Paulo e as empresas Fiesp. Aí o nosso destino não será “Belíndia” mas a “Feia África”, e não haverá “Tropicália” que resista. (29/8/93)

O CONSENSO E O DISSENSO DE WASHINGTON

O consenso de Washington é um conjunto de regras de condicionalidade, cada vez mais abrangentes, aplicadas pelos organismos internacionais, sobretudo FMI e Banco Mundial, que os países devedores do mundo capitalista periférico e agora do ex-mundo socialista têm de aceitar para obter apoio político das grandes potências e escasso apoio financeiro dos bancos e agências internacionais.

Estas regras começaram a ser construídas com a crise da dívida externa de 1982 e referiam-se inicialmente a um conjunto de políticas macroeconômicas que deveriam produzir um ataque simultâneo aos mecanismos de propagação inflacionária: déficit público, déficit de balanço de pagamento e expansão monetária, interpretados sem maior análise e com a convicção dos “santos” como as causas da inflação.

As políticas inicialmente recomendadas eram ajuste fiscal (corte de despesas e incremento de receitas), desvalorizações cambiais (para produzir um superávit comercial capaz de servir à dívida externa) e políticas monetárias duras (com metas monetárias restritivas e a subsequente elevação das taxas de juros).

Dado o caráter contraditório e a interdependência das políticas de câmbio e juros e seu impacto sobre o déficit operacional do setor público, as políticas recomendadas começaram a produzir fracassos sucessivos na América Latina, que levaram vários países a buscar soluções heterodoxas ou hetero-ortodoxas por conta própria, com maior ou menor sucesso.

O FMI, baratinado com a diversidade de experiência de sucessos e insucessos - Bolívia, Peru, Israel, Argentina (três ameaças de hiper), Polônia, Rússia e agora China - e perplexo com os insucessos do Brasil, resolveu ficar mais cauteloso e ir modificando as suas recomendações.

No último relatório de 1993, que acabou de sair, o FMI aponta para as dificuldades dos países de “alta inflação crônica”, que não são semelhantes às experiências de hiperinflação, e sai pela tangente.

As várias recomendações do atual “estado da arte”, encomendadas aos economistas do “consenso”, vão da âncora cambial à “câmara de conversão”. Todas parecem indicar que se deveria adotar de novo o “Estado Colonial” do século passado e implantar na periferia alguma forma “moderna” do modelo de Padrão Ouro (talvez impressionados tardiamente com as experiências da Argentina e da Letônia). No entanto, o diretor-gerente Camdessus, um homem prudente, dada a complexidade da situação brasileira e o fato de que nosso ministro da Fazenda não quis comprometer-se com as novidades (dado o dissenso dentro de sua própria equipe e a pressão dos ares de Washington), acaba de recomendar novamente a velha e boa ortodoxia inicial do FMI.

Mas o “Consenso de Washington” não se limita às idas e vindas do FMI, cada vez mais sobrecarregado com o número de candidatos provenientes da desorganização do mundo periférico capitalista e do gigante ex-socialista.

Na verdade, a peça de resistência do Consenso é a que foi denominada “Reformas Estruturais” (não confundir com o velho e bom estruturalismo Cepalino), das quais o porta-voz mais potente é o Banco Mundial, que desde 1985 vem fazendo esforços redobrados para montar uma sólida doutrina neoliberal.

O corpo de doutrina está agora consolidado (exceto na questão monetária-cambial) e pode ser considerado o paradigma da “nova modernidade conservadora”, já que vem sendo aceito “universalmente”, embora com fortes resistências de alguns países asiáticos, social-democratas europeus e (pasme) até recentemente o Brasil.

As reformas neoliberais têm tido práticas concretas muito distintas. Mas, como “doutrina”, estão centradas na desregulamentação dos mercados, abertura comercial e financeira e redução de tamanho e papel do Estado (para chegar ao chamado Estado Mínimo).

Curiosamente, estas reformas, irradiadas a partir do pensamento Reagan-Thatcher do começo ·da década de 80 e amplificadas pelas antigas instituições de Bretton-Woods, propõem como paradigma o modelo ideológico anglo-saxônico, justamente o dos países centrais perdedores da concorrência intercapitalista global, ganha pelo Japão e pelos Tigres Asiáticos, que nunca tiveram nada de liberais.

À medida que as ondas de “globalização” foram avançando, movidas por razões mais profundas do que mera ideologia das classes cosmopolitas - educadas nas universidades norte-americanas e o poder das burocracias internacionais sediadas em Washington-, os efeitos perversos sobre a sociedade nacional americana, perdedora, não se fizeram esperar.

Desde a onda de nacionalismo reativo ao Japão, passando por problemas sociais agudos, os americanos estão enfrentando uma verdadeira “crise de identidade”, e começaram a indagar-se: “Quem somos nós?” Esta é a pergunta que Robert Reich fez aos seus concidadãos antes de tornar-se o ministro do Trabalho do governo Clinton.

Atentos às contradições do seu próprio país, no duplo papel de “Cabeça de Império e Estado Nacional”, a resposta foi a rejeição à onda de modernização conservadora que exclui populações nacionais crescentes, nos centros e nas periferias, dos benefícios da suposta “nova modernidade”.

Os estragos provocados nas economias e populações nacionais pela “modernização conservadora”, dizem os novos teóricos e elites políticas do governo Clinton, devem ser combatidos por políticas industriais, tecnológicas e sociais abrangentes.

O Estado não deve retirar-se, mas reformar-se e obrigar os mais ricos (os que usam a medicina privada, os carros importados e têm acesso a mercados de trabalho privilegiados) a pagar, para estender os benefícios da educação, da saúde e da Previdência Pública aos excluídos, que só assim terão acesso à cidadania.

O Estado não deve ceder aos lobbies empresariais, mas empreender junto às empresas, mesmo as maiores e mais transnacionalizadas, uma política industrial e tecnológica que lhes dê efetiva competitividade no “mercado global”, mas que assegure emprego e modifique as relações capital/trabalho, isto é, as relações industriais obsoletas do país.

Este é o novo “dissenso de Washington”. Nós, com mais fortes razões do que eles, devemos optar com determinação pelas razões nacionais e sociais do nosso povo, tanto mais quanto as nossas elites cosmopolitas só por vaidade e alienação podem se pretender “imperiais”, tornando-se paladinas da nova modernidade conservadora.

Ante esta contradição entre o consenso e o dissenso de Washington é natural, embora penoso, que mesmo um grande intelectual da “Teoria da Dependência” seja forçado, pelas circunstâncias e as contradições de seu cargo, a aceitar e reforçar a versão conservadora do “consenso”. (3/10/93)

O FUTURO É INCERTO, MAS NÃO ESTÁ FECHADO

A economia brasileira tem resistido mais de uma década, apesar da estagnação e da alta inflação, ao tipo de desestruturação e desindustrialização que sofreram o Chile, nos anos 70, e a Argentina, nos últimos 20 anos.

Além disso, sua tentativa de integração regional com os países do Cone Sul não é da mesma natureza que a do México com os EUA. Como o Brasil já é um trader global, sua inserção competitiva na nova divisão internacional do trabalho será fatalmente mais complexa.

Assim, a economia brasileira não pode retornar a uma especialização que destrua segmentos industriais completos e adaptar-se à divisão clássica internacional do trabalho orientado para os recursos naturais.

A nossa especialização tem de ser obrigatoriamente por seleção de produtos em todos os segmentos produtivos, com vistas a um consumo de massas que, por sua vez, permita economias de escala e de escopo, que mantenham a sua produção competitiva.

Para isso, a modernização do nosso sistema produtivo tem de ser sistêmica, melhorando as externalidades (sobretudo educação e infraestrutura), as relações de trabalho e a sinergia dos grupos empresariais, de forma a ganhar maior eficiência, tanto no agroibusiness como nos complexos eletroeletrônico e metalmecânico e nos serviços públicos e privados.

Não há como imaginar que os simples “ajustes” e reformas de cunho liberal sejam capazes de dar vantagens comparativas dinâmicas à economia brasileira e melhorar a sua competitividade internacional.

Muito menos se pode pretender reduzir as disparidades de renda e resgatar a dívida social sem uma maior cooperação entre o governo, empresas e trabalhadores e, mais, sem um conjunto de políticas públicas de mais longo fôlego, que inclua o combate à miséria como dimensão estratégica e não crie falsas oposições entre mercado interno e externo e entre crescimento e distribuição.

Evidentemente, estamos falando de necessidade de um novo padrão de desenvolvimento, que permita incluir os excluídos e tornar virtuoso o novo paradigma industrial-tecnológico que prevalece nos capitalismos mais avançados.

No entanto, não foi por estas razões “paradigmáticas”, tão opostas ao espírito liberal-conservador das elites brasileiras, que estas se opuseram ou resistiram às reformas liberalizadas.

Na verdade, poderíamos afirmar que tanto a resistência à mudança quanto as dificuldades de coordenação para avançar têm suas raízes profundas no próprio sucesso do modelo passado.

Este modelo permitiu, em meio a uma enorme heterogeneidade estrutural, a convivência com sucesso de grupos econômicos das mais distintas origens, com grande dispersão setorial de capitais e baixo grau de conglomerado, além de baixíssima eficácia social.

Na ausência de alianças de longo prazo entre os grandes grupos e mantido um sistema financeiro eminentemente especulativo, os agentes econômicos privados têm recorrido sempre ao acesso privilegiado às finanças, para defender seus interesses particulares, sem buscar uma coordenação estratégica entre si.

Esta, quando ocorreu, foi dada por uma burocracia de Estado autônomo, em alguns poucos períodos nos quais existiram projetos estruturantes de mais longo prazo (Plano de Metas e 2o PND), com financiamentos externos e parafiscais abundantes e baratos, e sem maiores preocupações sociais. Não se trata, porém, de um modelo fechado, como muita gente pensa, já que a orientação exportadora tem sido estimulada desde a década de 70, de tal modo que, a partir da primeira crise do petróleo, em 73-74, a indústria manufatureira e os novos complexos agroindustriais têm mantido superávits comerciais, pressionando continuamente por uma política cambial realista.

O único setor moderadamente deficitário, em termos de comércio exterior, é o energético, que, no entanto, tem feito, desde 1974, um esforço importante de grande custo e risco, de substituição de importações do petróleo e uma forte expansão, com alto grau de endividamento externo, do setor hidrelétrico.

A resistência estrutural dos principais agentes econômicos privados foi permitida por este tipo especial de ajuste externo, com desvalorizações diárias do câmbio, e foi compatível com um longo período de estancamento e altíssima inflação dos anos 80.

Apesar da crise financeira do Estado, não se verificou qualquer quebra importante de empresa ou bancos e manteve-se um superávit privado de comércio exterior sem paralelo na América Latina, com altas taxas de lucratividade privada. Mas as condições começaram a mudar com o agravamento da crise econômica de 89-90 e com os choques monetário, cambial e liberalizante do Plano Collor.

Ameaçadas pela recessão e pelas perspectivas de diminuição de proteção cambial e tarifária, as grandes empresas reagiram, tentando pela primeira vez um ajuste rnicroeconômico, com redução de custos internos, que confirmou a recessão e aumentou o desemprego. Assim começou a busca de modernização, para seguir resistindo nos mercados externos.

A especialização, visando maior eficiência microeconômica, não tem conseguido, contudo, um impacto global positivo e está se fazendo, em nível de certas empresas e produtos, com características típicas de uma reestruturação conservadora e adaptativa, sem maior visão de longo prazo.

O problema sistêmico de reestruturação da atividade interna, para nova inserção internacional competitiva, não se coloca, no Brasil, da mesma forma que na América Latina.

Não se trata de abrir indiscriminadamente a economia e abandonar setores industriais do antigo processo de substituição de importações, como fizeram o Chile e a Argentina, nem de se abrir preferencialmente para um processo de integração regional, como fez o México.

Do ponto de vista dos empresários, trata-se de manter posições de produção e comércio no mercado interno e internacional, resistindo o máximo possível a uma política de abertura das importações fora de controle, a políticas de sobrevalorização cambial e a políticas fiscais mais drásticas.

Do ponto de vista do governo, tratar-se-ia de conseguir compatibilizar um maior grau de abertura comercial com proteção econômica adequada, mediante instrumentos de políticas comercial e industrial distintas do passado, isto é, sem tanta renúncia fiscal e protecionismo tarifário.

Essas políticas, no entanto, requerem mais e não menos coordenação entre os agentes privados e públicos e, na prática, uma política industrial mais ativa, da qual as Câmaras Setoriais são apenas um embrião, ainda insuficiente.

O processo de retomada de crescimento, com uma inserção internacional competitiva, supõe poder se montar novos projetos estruturantes que possibilitem conexões progressivas e alianças estratégicas entre distintas empresas privadas nacionais e internacionais e bancos públicos e privados (nacionais e internacionais), capazes de desenvolver redes de financiamento e de competitividade autossustentáveis.

Vale dizer, iniciativas que tornem menos vulneráveis as situações das finanças públicas e do balanço de pagamentos, aproveitando simultaneamente as vantagens de um mercado interno com perspectivas de expansão e a flexibilidade que dá ao setor privado a inserção já existente no mercado internacional.

As condições de cooperação entre agentes privados e públicos para empreender uma nova trajetória de longo prazo, com mais justiça social, colocam, no entanto, requerimentos que não são triviais para o comportamento dos agentes econômicos e sociais em situação de crise e que não têm precedentes na ação anterior do Estado.

Em vez da oposição à mudança, requerem-se mudanças que resistam à instabilidade, nas quais o movimento ativo dos agentes sociais implique cooperação e solidariedade (que são os únicos meios eficazes de obter competitividade sistêmica), em lugar da resistência passiva e da exclusão econômica e social.

Somente assim, em um processo pactado e com um novo horizonte de interesses comuns, seria possível ir abrindo caminho e perspectivas que permitissem estabilizar as expectativas e encaminhar o país a um processo de desenvolvimento de longo prazo. (17/10/93)

OUTRA VEZ É A VELHA POLÍTICA MONETÁRIA

Emitir dívida pública com juros altos é um tipo de política monetária supostamente restritiva da liquidez e do crédito interno ao setor privado e, como tal, utilizada para combater a inflação de demanda.

Esta política monetária “velha de guerra” é manifestantemente incapaz de controlar a liquidez dos bancos com acesso a um mercado internacional extremamente líquido e sequioso de novas colocações financeiras com juros promissores a curto prazo.

A política de juros altos também não opera como “restrição de crédito” para empresas que produzem, exportam e. importam os bens comerciáveis mais relevantes para a formação de preços da economia e também têm acesso ao mercado financeiro internacional.

Hoje, até monetaristas da velha guarda, entre os quais vários ex-presidentes do Banco Central, reconhecem que a política monetária “dura” não funciona, porque a moeda é endógena, isto é, criada pelo próprio funcionamento do mercado financeiro aberto.

Com o mercado externo de capitais fornecendo liquidez e crédito para capital de giro ou para financiar exportações e importações das grandes empresas a juros baixos, a subida dos juros internos é um excelente negócio para quem quer trazer capital barato e faturar a diferença, incluindo um bom “prêmio de risco”.

A única coisa que a política de juros altos faz é atuar sobre o custo de retenção de estoques, promover a valorização da riqueza financeira líquida e. aumentar o custo de serviço da dívida e aumentar o custo de serviço da dívida pública, piorando as necessidades de financiamento do setor público.

Em condições de liberdade de movimento de capitais, estimula a entrada de capitais especulativos e aumenta ficticiamente as reservas internacionais, para além do volume que seria permitido pelo superávit do balanço de pagamentos de transações correntes.

A absorção microeconômica de recursos externos é nitidamente incompatível com a chamada “absorção macroeconômica” e contrária a uma política de “estabilização monetária”. Mas pode ser considerada como pré-requisito de uma política de estabilização a esperada “paulada” na inflação, se ela usar alguma forma de âncora ou prefixação cambial.

Faz mais de uma década que a discussão sobre o papel dos Bancos Centrais do mundo é menos sobre a sua “independência” e mais sobre a sua “impotência” ou “interdependência” diante das modificações no mercado financeiro crescentemente globalizado.

A teoria monetária convencional, por sua vez, está completamente embananada em seu poder explicativo e de previsão dos movimentos dos fluxos monetários, dada a tremenda fragilidade do velho conceito de liquidez (MI), diante dos demais agregados monetários que se prendem a operações financeiras e cambiais. Estes crescem desmesuradamente, apoiados por uma enorme diversidade de instrumentos financeiros que operam pelas regras do “mercado global”.

As políticas monetárias convencionais tornam-se, nestas condições, um exercício ritual, quase sempre inoperante. Só os Bancos Centrais mais poderosos têm algum poder de coordenação dos seus mercados financeiros, assim mesmo só quando possam coordenar-se entre si, para evitar surtos cambiais especulativos e fuga de capitais.

Para tentar a “coordenação”, os Bancos Centrais tiveram de aceitar volumes de dívida pública consideráveis, que tornaram os orçamentos fiscais de muitos países prisioneiros de uma componente financeira de gastos importante. O valor do serviço da dívida depende das taxas de juro e de câmbio que, além de interdependentes, obedecem a forças desencontradas do mercado e das políticas macroeconômicas.

Assim, em vez de trajetórias de equilíbrio “natural” ou “planejado”, o esperável é topar com bolhas especulativas em todos os mercados e “quedas de braço” periódicas entre os Bancos Centrais e o mercado financeiro.

Deste modo, as políticas monetária e cambial são em geral “passivas”, isto é, correm atrás dos mercados, mesmo quando pareçam “ativas”, vale dizer, quando tenham como propósito combater a inflação ou os desequilíbrios do balanço de pagamentos.

A política fiscal, com juros altos, é impotente para lidar simultaneamente com o “equilíbrio” entre fluxos (receitas e despesas) e entre passivos (dívida pública acumulada) e ativos (reservas líquidas e patrimônio imobilizado). Daí a recorrência dos déficits fiscais e as ondas sucessivas de privatização.

A “Teoria do Caos”, infelizmente, não está suficientemente desenvolvida para lidar com esta dinâmica instável em que se acumulam nuvens mesmo quando o céu parece de brigadeiro. Diante desta “meteorologia” complexa, os governos são manifestamente impotentes para obter “equilíbrios macroeconômicos” a médio prazo e têm dificuldades crescentes de trafegar quando o ar está saturado de incertezas.

Por que então, apesar dos desequilíbrios, alguns têm inflação elevada e outros não?

Estas questões, centrais para a teoria e a política econômica, não podem ser respondidas simplesmente e têm levado os economistas a escrever muitos trabalhos, que mudam de perspectiva quando incluem aspectos institucionais e assimetrias de poder. O debate sobre a doutrina convencional de ajuste e estabilização tem levado a desacordos crescentes entre os especialistas internacionais e, sobretudo, entre os dos países que sofrem de alta inflação.

Mas duas respostas simples podem ser dadas: a primeira é que a estabilidade de preços depende mais de formas administradas de mercados com “convenções” estáveis e pactuadas, implícita ou explicitamente, do que de “preços livres”. A segunda é que· a inflação depende menos do déficit público e do balanço de pagamentos do que de condições de crédito interno e externo adequadas.

Por sua vez, a confiança dos credores nas possibilidades de o governo servir regularmente a dívida passada e futura afeta muito mais o crédito público que a dimensão dos déficits e dívida.

É por isso também que as “âncoras” monetária, fiscal ou cambial só podem funcionar em nossos mercados quando já foram estabelecidas e aceitas regras estáveis e pactadas, de formação de preços básicos (câmbio, tarifas e salários) e, sobretudo, de rolagem das dívidas. Só então o país deixa de ser classificado pelo credores como um “país de alto risco”.

Quando estas condições não se verificam, não há “credibilidade”. Os dirigentes da política econômica são forçados a aceitar a sua impotência e a submeter-se à velha “disciplina canônica”, isto é, praticar juros altos para tentar conter os mercados de risco, mesmo quando isto implique maior endividamento externo e interno de curto prazo, como vem acontecendo recentemente.

Este parece ser de novo o caso brasileiro, que continua a ser classificado como um país de “alto risco”, apesar de sua visível capacidade de solvência em termos de balanço de pagamento e da sua baixa dívida interna líquida.

Por quê? Porque ele não acertou as suas “contas passadas”, de acordo com o figurino das condicionalidades exigidas pelos credores externos e internos que, sobressaltados com a falta de “convenções estáveis”, arbitram o “risco Brasil”.

Assim, continua valendo a velha expressão: “O rabo está abanando o cachorro”. O rabo é a negociação da dívida externa, que está paralisada. Os “sete anões” do Orçamento são só as pulgas do cachorro, que continua ligado na alta tensão da arbitragem financeira interna e internacional, até que se convença a proceder “corretamente”, de acordo com as regras da boa conduta pregada pelos credores e aceita pelos devedores.

Como o capitalismo brasileiro é um bicho muito resistente e há perspectivas de bons negócios com a privatização, basta assegurar a curto prazo as regras monetárias solidamente implantadas nos códigos do Banco Central, para que os capitais privados externos afluam.

Isto também pode ser traduzido no velho adágio português: “Enquanto a ‘paulada’ não vem, folgam as costas”. Naturalmente, estas regras aplicam-se para quem tem “costas”. O povo brasileiro só tem tido paciência e é convidado a assistir estarrecido ao espetáculo das “pulgas”. O rabo que balança o cachorro só é perceptível, de fora, para quem teve, e não esqueceu, suas aulas de anatomia. (28/11/93)

A REALIDADE SOBRE O NAFTA E O MERCOSUL

O Nafta não é um “mercado comum”, nem um acordo de livre comércio completo. É um acordo de liberalização escalonado, em 15 anos, complementado por um acordo sobre propriedade industrial, serviços e proteção de investimentos de fora da área.

A iniciativa teria sido tomada pelo governo mexicano para melhorar o acesso ao mercado norte-americano. A suposição que fundamentou a proposta da área de livre comércio é de que estamos vivendo num mundo em que os blocos regionais estão adquirindo facetas protecionistas e, portanto, é melhor proteger-se participando com algumas garantias do maior mercado do continente.

É isso que repetiram beatamente quase todos os comentaristas brasileiros do Nafta, em particular os liberais, em contraste com as explicações mais realistas dadas pelos liberais americanos.

Qual é, porém, a realidade? O México sempre dirigiu para os EUA cerca de 70% do comércio e as barreiras comerciais que enfrentavam as suas exportações já eram muito baixas, desde 1985.

Portanto, não foi só por razões comerciais que o governo mexicano propôs o tratado.

Aliás, do ponto de vista comercial, a vantagem foi evidentemente para o mercado norte-americano, cujas exportações para o México têm crescido a grande velocidade, produzindo nos últimos dois anos um superávit de mais de US$ 20 bilhões a favor da economia dos Estados Unidos.

Na verdade, a abertura e a desregulação da economia mexicana foram uma das condicionalidades impostas pelo acordo da dívida externa (o primeiro plano Brady) e tornou-se um passo essencial para que o tratado se tornasse viável e desejável pela elite empresarial norte-americana.

As outras condicionalidades relevantes foram a reforma do regime de proteção dos serviços básicos, que são os pontos fortes da pressão norte-americana em todos os foros, desde a primeira rodada do Uruguai, na qual os mexicanos ajudaram muito a posição americana e deixaram a delegação brasileira falando sozinha.

Sobre a privatização e participação do capital estrangeiro, o único setor sobre o qual o governo mexicano não cedeu, por causa da reação política que isto despertaria, foi o petróleo, que continuou estatal e mexicano, apesar do acordo do gás.

Só em março de 1990 o governo mexicano deixou que a imprensa anunciasse que funcionários mexicanos e os seus parceiros norte-americanos estavam explorando a ideia de um acordo de livre comércio. Quando se escutaram pela primeira vez as notícias sobre as intenções mexicanas, elas causaram grande surpresa e controvérsia nos dois países.

No entanto, a assinatura da Associação de Livre Comércio com os Estados Unidos é, em grande medida, a evolução esperada de um processo de liberalização comercial que começou no México pouco tempo depois que estalou a crise da dívida externa, isto é, desde 1983.

O México não tinha como pagar a dívida e as suas políticas de estabilização não tinham destino sem atrair de volta os capitais mexicanos que tinham fugido do país e buscaram refúgio nas carteiras dos bancos e dos fundos de pensão norte-americanos.

A vontade de atrair capitais e a necessidade política de Salinas, cuja eleição tinha sido contestada pela oposição como fraudulenta, de legitimar-se rapidamente ante a elite mexicana, levaram-no a tomar ousadamente a iniciativa.

Esta decisão não estava prevista no começo da administração Salinas, porque a tecnocracia mexicana esperava, após o acordo Brady de renegociação da dívida externa e as vastas reformas econômicas liberais, o ingresso de capital estrangeiro “plurilateral”, em especial do Japão e da Europa.

Como este não veio e a confiança do setor privado mexicano não se reanimava, o tratado foi o único meio concebível de garantir aos empresários dos dois lados da fronteira a durabilidade da estratégia de abertura econômica e o acesso ao mercado norte-americano de mercadorias e de capitais com regras estáveis e politicamente irreversíveis.

A proposta de Salinas, aceitando todas as condicionalidades impostas pelos EUA, foi prontamente aceita pelo ex-presidente Bush, que propôs ao Congresso americano o mecanismo da “via rápida”, pela qual as negociações não seriam interrompidas e o Congresso americano só podia aprovar ou recusar o acordo final.

Em fevereiro de 1991, Bush anunciou que as negociações incluíam o Canadá, a pedido deste. Para que o México não servisse de mera “plataforma” de exportações de capitais de fora da área atraídos pela possibilidade de furar o “protecionismo contingente” norte-americano, o tratado incluiu um acordo de proteção de investimentos que discrimina contra terceiros.

Aplicada uma regra de origem, pela qual se requer uma percentagem alta de valor agregado gerado na própria área de livre comércio - de 60% a 70% para setores mais vulneráveis, como material de transporte e eletroeletrônico -, os norte-americanos e canadenses tentam garantir que sua indústria não será afrontada por montadoras maquiladoras, sobretudo de origem asiática.

É curioso que o nosso tratado de integração no Mercosul, assinado pelo ex-presidente Collor em março de 1991, não tenha qualquer das salvaguardas no Nafta. Como disse o deputado José Serra, em recente artigo na revista Exame: “Na nossa versão (rápida e malfeita) de integração sul-americana, propõe-se para 1995 um mercado comum, perto do qual o próprio Nafta tem objetivos e propostas de uma modéstia franciscana”.

Sacramentado o Mercosul, contra o qual não se ouviu qualquer briga relevante, do Congresso, da imprensa ou de sindicatos, a Argentina teria acesso livre a um mercado três vezes maior, e o Uruguai e o Paraguai a um mercado 60 vezes superior aos seus, sem qualquer cláusula efetiva de ‘proteção de investimentos, nem regra prática de verificação da origem de importações.

Assim, qualquer montadora (maquiladora) japonesa, coreana ou chinesa, implantada em um dos três países, poderá submeter a indústria mecânica, eletroeletrônica e automobilística sediadas no Brasil a um desgaste fulminante.

A pressão do ministro Cavallo sobre o Brasil tem sido constante: alíquota zero para importação de bens de capital, subsídio de 15% aos bens de capital argentinos, impostos específicos sobre têxteis e suas declarações reiteradas sobre a política cambial brasileira. Estas pressões não têm sido respondidas com uma posição ativa do governo brasileiro.

Na verdade, temos muito que aprender com os norte-americanos, que lutam até o fim pelos seus interesses, como se viu no debate final para a aprovação do Nafta, mesmo quando já levaram a melhor na integração.

Só falta mesmo empreendermos uma política violenta de sobrevalorização cambial, a pretexto de combater a inflação, para nos tornarmos, em dois anos (a data da entrada em vigor do tratado é 1995), um candidato a “dançar o tango argentino” e, como nos velhos tempos, Buenos Aires passar a ser confundida com a capital do Brasil. Neste caso, quem sabe, seria melhor se candidatar logo à fila do Nafta.

Serra tem razão: “Para quem está refazendo sua própria Constituição, de cinco anos de idade, a ideia de revisão geral do Tratado de Assunção e seu andamento parece hoje razoável e sensata”, para dizer o mínimo. (28/11/93)

FELIZ ANO VELHO PARA O PAÍS DO FUTURO

Gostaria de começar 1994 apontando fatos ou propondo mudanças que pudessem indicar caminhos novos para a economia brasileira. Infelizmente, as evidências são no sentido da permanência e agravamento das características estruturais mais perversas de uma sociedade profundamente desigual, que apenas toma consciência das suas “chagas” mais profundas, em arroubos de emoção periódica, para logo esquecê-las.

Cheguei há 40 anos neste país, que era então o país do futuro. As questões que estavam sendo discutidas continuam sem solução. A escala dos velhos e novos problemas não fez senão aumentar.

Na década de 50, a massa de pobreza representava cerca de 25% da população. Hoje também, só que em números absolutos multiplicou-se por quatro. As mudanças ocorridas na composição desta pobreza só fizeram piorar o problema. Antes, o corte fundamental era a diferença rural-urbana. Os mais pobres estavam no campo, sobretudo no Nordeste. A fronteira agrícola estava em expansão: Norte do Paraná, Goiás e Mato Grosso, Maranhão. A Amazônia ainda era um “Eldorado” a conquistar e a capital do Brasil não tinha mudado para Brasília.

Havia fundadas esperanças de que uma ocupação racional das terras da nova fronteira e uma reforma agrária poderiam alterar a situação atacando o mal pela raiz. Eram as propostas de reformas de base do início dos anos 60, que como se sabe foram abortadas pelo movimento de 64.

Hoje, a fronteira está “ocupada” até os limites da Amazônia. A “grande empresa capitalista” continua usando o latifúndio e relações de trabalho supostamente “pré-capitalistas” para avançar nos grandes negócios de gado, extração de madeira, agribusiness e finalmente, como sempre, valorização patrimonial das terras.

Na franja do movimento do grande capital agrário (nacional e multinacional) continuam movendo-se milhões de párias, entre os “sem-terra” e os “boias-frias” que agora têm apenas mais “liberdade” de ir e vir, num rotineiro “bye, bye Brasil”. Mais da metade da pobreza contemporânea foi depositar-se nas grandes metrópoles, num movimento migratório espantoso que realizou em 40 anos uma mudança na demografia econômica que levou 80 anos para ocorrer nos EUA e mais de 200 nas antigas “civilizações camponesas” europeias.

Esta pobreza metropolitana está longe de ser arcaica. É moderníssima. Usou as brechas abertas por um “mercado” de trabalho urbano em expansão rápida, sobretudo nas décadas de 60 e 70, para se encaixar nos interstícios da economia urbana. O setor de serviços cresceu desmesuradamente e é hoje onde mais se concentram a renda, a riqueza e a pobreza.

A reprodução das desigualdades avançou no setor urbano para níveis inimagináveis e alcançou-se uma distribuição das “rendas do trabalho” que é a pior do mundo. Não por falta de novos “empregos”, mas porque a estrutura ocupacional, formal e “informal”, e o correspondente leque de rendimentos sofreram distorções profundas.

Apesar de permitir a ascensão individual ou familiar de muitos grupos sociais, a famosa mobilidade vertical, associada a uma violenta mobilidade horizontal, rebaixou a base de referência da “pirâmide salarial”: o valor do salário-mínimo. Este, que serve de piso para a estrutura dos assalariados formais (com carteira assinada) e dos aposentados, serve também de farol para a remuneração dos que apenas lutam pela sobrevivência na franja do capitalismo urbano.

Se o “mercado” vai bem, há crescimento e melhoram as rendas das “classes médias” (distribuídas nos 20% superiores da pirâmide de rendas), aumentam o emprego e as rendas derivadas, o salário de base cresce e diminui o número de pessoas ocupadas com remuneração abaixo do mínimo. Se há estagnação e superinflação, as perspectivas de emprego (formal e informal) diminuem, a renda da classe média cai, junto com o número de “agregados” que ela é capaz de sustentar.

O número de pessoas com renda nominal abaixo do mínimo aumentou e o próprio salário-mínimo é incapaz de sustentar-se no nível histórico, quer da sua origem (1942), quer dos seus valores máximos (1950-59). Assim, não apenas o valor dos salários cai brutalmente na distribuição funcional da renda (repartição entre assalariados e rendas de capital), mas a “pirâmide salarial”, ou seja, a distribuição interna aos rendimentos do trabalho, torna-se monstruosamente desigual.

Essa desigualdade se reproduz em todos os setores da vida nacional, modernos ou atrasados, legais ou ilegais, formais ou informais. A diferença é de cerca de 200 vezes (hoje: US$ 50 para o piso e cerca de US$ 10.000 para a cúpula “assalariada”).

Essa diferença foi primeiro detectada por Edmar Bacha, numa pesquisa que fez em meados da década de 70, embora já tivesse sido sugerida por mim e José Serra num ensaio que escrevemos a quatro mãos em Santiago do Chile (1969-70). Fazíamos todos (os progressistas de então) a crítica da “teoria do bolo”, que pretendia justificar o “perverso milagre brasileiro” na base do slogan: “É preciso crescer para depois distribuir”.

Hoje o slogan mudou, mesmo para os “progressistas”: é preciso estabilizar para depois crescer, para depois distribuir. Isto é: com a superinflação pioraram as condições reais da população e cresceram os obstáculos (objetivos e subjetivos) para melhorar a distribuição de renda.

Não importa se o salário-mínimo legal foi fixado em US$ 100; o seu valor real, quando se fizer o 13o ajuste impossível, não pode superar a “média” de US$ 60 ( metade do que era no final dos anos 70 e um quarto do valor alcançado na década de 50!!).

A atual distribuição salarial, na qual um “bagrinho” do serviço público ganha 200 vezes menos que um juiz do Supremo Tribunal (bons tempos em que a escala máxima era a “letra O”), só tem uma explicação plausível, que está na generalização dos “direitos” dos poderosos e na independência dos “poderes”.

Vale dizer, é o poder - e não a eficiência ou “a lógica da acumulação de capital” - que guia a distribuição dos rendimentos. Esta lógica do “poder” e do “direito”, estabelecidos como uma tática de “ocupação e demarcação do território”, vale para qualquer estrutura social neste país.

Os “podres poderes” são legitimados tanto no mercado informal de produtos ilegais (por exemplo, a droga) quanto nos mercados formais de trabalho, onde os contratos têm níveis e regras de indexação arbitrárias, com vários períodos e formas de correção monetária.

No sistema financeiro, um jovem universitário treinado em algum curso de pós-graduação, na boa técnica norte-americana, mesmo sem experiência, pode ingressar no mercado com um salário de US$ 10.000, enquanto o boy que o serve no escritório ou a faxineira de turno ganham salário-mínimo e rodam mais do que pião nas “empresas” prestadoras de serviços de apoio (fenômeno que ganhou status com o nome pomposo de terceirização).

Enquanto isto, velhos e novos liberais cosmopolitas dançam a ronda da modernidade, entre Rio, São Paulo e Brasília, como se estivessem todos em Berlim, Londres, Paris e Nova York, onde, aliás, os “novos tempos” também já estão chegando. É lá, nas grandes metrópoles cosmopolitas, que devem saudar o “ano novo” que se aproxima, já que, ao contrário do imaginado por um velho “profeta de barbas” do século passado, é olhando para nós (ao sul do Equador) que devem ver a imagem futura de si mesmos. Cabe a eles decifrar a sua própria imagem no “espelho de Próspero” invertido. Talvez algum americano se suicide em Paris pensando no Brasil - país do futuro.

Aqui, como o futuro já chegou, podemos voltar à luta pela sobrevivência de cada um, até que as velhas “leis malthusianas” sejam aposentadas, supostamente lá pelo ano 2030. Enquanto antigos esquemas de solidariedade revisitados não derem frutos maduros, podemos também continuar lutando, sobretudo os que ainda não desistiram, pelas bandeiras de 200 anos atrás, apenas agora com a “ordem” trocada: “Liberdade, Fraternidade e Igualdade!” Nada de “utopias realistas”, busquemos forças no passado, para atravessar este futuro doloso: feliz ano velho! (14/11/93)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br