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Informalidade e terceirização: duas tendências opostas?* * O autor agradece os comentários de colaborador anônimo desta Revista.

Informality and tertiarization: two opposite tendencies?

RESUMO

O artigo discute algumas questões relacionadas à ideia de flexibilidade no mercado de trabalho. Em primeiro lugar, apresenta diferentes abordagens sobre a existência de um setor informal na economia e distingue o processo moderno de terciarização, observado nos países industrializados, do crescimento das atividades terciárias encontrado na maioria dos países em desenvolvimento. Em segundo lugar, é apresentada uma breve discussão sobre a recente conjuntura do mercado de trabalho brasileiro. Conclui-se que um maior grau de flexibilização do mercado de trabalho brasileiro tem sido buscado por meio da informalização das atividades jurídicas e também por um incipiente processo de terciarização moderna.

PALAVRAS-CHAVE:
Setor informal; terceirização

ABSTRACT

The article discusses some issues concerned with the idea of flexibility in the labor market. Firstly, it presents different approaches on the existence of an informal sector in the economy and distinguishes the modem process of tertiarization, observed in industrialized countries, from the growth of tertiary activities found in most developing countries. Secondly, a brief discussion on the recent juncture of the Brazilian labor market is presented. The conclusion is that a higher degree of flexibility in the Brazilian labor market has been searched throughout the informalization of legal activities and also by an incipient process of modern tertiarization.

KEYWORDS:
Informal labor Market

1. INTRODUÇÃO

A preocupação com o tamanho do Estado e com sua participação na economia tem sido a tônica recente nos debates de cunho político e acadêmico. Os ventos liberalizantes vindos do Norte têm varrido os países em desenvolvimento e provocado o ressurgimento de indagações sobre as benesses e limitações de um Estado intervencionista. O receituário neoliberal de privatização, abertura de mercados e desregulamentação econômica tem sido sugerido (e adotado) como uma alternativa ao estado de estagnação experimentado por vários países ao longo da década passada.

A busca de maior liberdade de mercados através da redução do poder regulador do Estado tem servido ainda de pano de fundo para discussões mais específicas, que não a estabilidade macroeconômica. Nesse particular, insere-se o debate a respeito das razões para a existência de um setor informal em algumas economias. O estudo dos mercados de trabalho de alguns países industrializados tem demonstrado que a busca de uma maior flexibilidade no mercado de trabalho pode ser responsável pela proliferação de relações de trabalho informais. Essa linha de argumentação é a mesma que aponta a terceirização como uma tendência global para as economias capitalistas.

É preciso ressaltar, no entanto, que essa não é a única e talvez também não seja a mais adequada maneira de encarar a informalidade em economias em desenvolvimento. A visão clássica, bastante discutida durante a década de 70, distingue-se da vertente mais moderna ao associar a noção de informalidade à falta de dinamismo das economias dependentes e ao esgotamento do modelo econômico baseado no processo de substituição de importações. Segundo esse enfoque, a chamada “insuficiência dinâmica” dos países periféricos acabaria por favorecer o surgimento de um polo não estruturado na economia (o setor informal) que absorveria aquela parcela da população não aproveitada pelo núcleo dinâmico da economia. Essa mesma falta de dinamismo econômico seria responsável, ainda, pelo inchamento do setor terciário, uma vez que a alternativa à marginalidade e à ocupação informal seria o refúgio em atividades ligadas ao pequeno comércio e à prestação de serviços, que não apresentam muitas barreiras à entrada. Trata-se, pois, de uma terceirização espúria, que difere qualitativamente daquela que se discute hoje nos países industrializados.

Este artigo explicita as divergências entre os principais enfoques utilizados para explicar a existência de um setor informal na economia, fornecendo subsídios para o debate acerca da terceirização. Faz-se ainda uma breve digressão sobre a evolução dos indicadores de emprego e salários na conjuntura recente.

2. OS ENFOQUES DA INFORMALIDADE

2.1 O enfoque tradicional

O setor informal foi oficialmente tratado no relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre o Quênia em 1972.1 1 OIT (1972). Nesse relatório, procurou-se construir uma categoria analítica que descrevesse as características das atividades geradoras de baixas rendas e concentradoras dos trabalhadores mais pobres no meio urbano. O uso do termo “informal” nesse trabalho deveu-se ao fato de que levava algum tempo até que políticas de emprego e renda atingissem satisfatoriamente os estratos mais pobres da população. Além disso, verificou-se que os trabalhadores engajados nesse setor sobreviviam em condições desfavoráveis, exercendo principalmente atividades simples de pequena escala. Esse espaço informal foi caracterizado como composto por atividades que não ofereciam barreiras à entrada, pela utilização de recursos locais, pela propriedade familiar das empresas, pela operação em pequena escala, pela tecnologia adaptada e intensiva em trabalho, e por mercados concorrenciais e não regulados.

O estudo da OIT abriu espaço para uma série de interpretações que procuravam atrelar a análise do setor informal ao processo de acumulação internacional, buscando uma ponte entre a clássica teoria da heterogeneidade estrutural2 2 O trabalho pioneiro que explorou a ideia da heterogeneidade estrutural nos países periféricos é o de Pinto (1960). , proporcionada pela subordinação dos países periféricos aos países centrais, e as primeiras ideias sobre a existência de um setor informal.

O argumento principal explorado nos primeiros trabalhos de cunho estruturalista sobre o setor informal urbano (SIU) sustentava que o processo de melhoramento científico e tecnológico estaria concentrado nos países mais ricos. A transferência dessas inovações aos países mais pobres se daria de forma tal que estaria condicionada a toda uma gama de fixação de preços e controle de mercados. Como consequência, os países mais pobres (periferia) teriam um relacionamento de dependência para com os mais ricos (centro), e o resultado disso seria a caracterização de uma estrutura econômica heterogênea nos primeiros. O progresso técnico não se difundiria de maneira uniforme, concentrando-se nos setores mais dinâmicos da economia sem que as antigas tecnologias fossem abandonadas. Daí surgem os enclaves tecnológicos, uma vez que alguns setores permanecem à margem do avanço técnico-científico, enquanto outros utilizam tecnologia cada vez mais sofisticada.3 3 V. a respeito os seguintes trabalhos: Pinto (1960), op. cit.; e Singer (1970).

Com relação à absorção de mão-de-obra, há um crescimento lento acompanhado de uma elevação do perfil de qualificação requerido. Ao lado disso ocorre um rápido incremento da oferta de mão-de-obra urbana, uma vez que a elevação da qualificação requerida tende a elevar os salários e a atrair mais pessoas. O resultado é a aparição de um “polo marginal”, ou setor informal, que seria o depositário de todo o excedente de mão-de-obra não absorvido na produção. Esse contingente “não aproveitado” insere-se na confecção de artigos supérfluos, no comércio ambulante e no desenvolvimento de empresas pequenas e de propriedade familiar com o objetivo de produzir e vender qualquer coisa que possa gerar renda.4 4 V. Tokman (1978).

O setor informal funcionaria, portanto, como uma verdadeira forma de sobrevivência da pequena produção e das pessoas nela engajadas que não apresentam as qualificações requeridas para ingressar no setor formal ou que, se as apresentam, não foram absorvidas dada a dotação dos fatores de produção que privilegia o capital em detrimento do trabalho.

É importante ressaltar ainda que nesse enfoque o setor informal acha-se subordinado ao processo de desenvolvimento capitalista, permanecendo como uma forma dinâmica de produção, não oferecendo necessariamente serviços de má qualidade nem atendendo exclusivamente mercados de baixa renda. Essa subordinação provoca criação, destruição e recriação de atividades informais, permitindo que estas desenvolvam-se e modernizem-se no seio da produção capitalista.5 5 V. Cacciamali (1983), p.23. Portanto, o setor informal não tem características que lhe permitam um crescimento auto-sustentado, mas que permitem que se desenvolva de forma intersticial no sistema econômico. Isso implica a não-existência de uma competição real entre os setores formal e informal6 6 V. Souza (1980), p. 135. .

2.2 O neoliberalismo

Um enfoque alternativo é o que procura medir o tamanho do setor informal com base na evasão de receitas tributárias e na parcela não computada do Produto Nacional Bruto (PNB).7 7 Sobre esse enfoque v. Tanzi (1983), Lima (1985), e Cartaya (1987). Trata-se da abordagem que intitula a informalidade de “economia subterrânea” (underground economy), relevando, por assim dizer, a ilegalidade dos contratos de trabalho e associando ao setor informal a população ocupada sem registro legal e, portanto, sem direitos trabalhistas e previdenciários. Essas pessoas estariam vinculadas a firmas “fantasmas”, que não arcam com as obrigações legais e que sonegam impostos, atuando, assim, nos subterrâneos da economia.

Nesta abordagem, a explicação para a clandestinidade não está na necessidade de complementação da renda familiar ou na necessidade de sobrevivência, em última instância. Na verdade, o que se mostra como principais fatores que induzem à economia subterrânea são os custos trabalhistas do emprego legal e a carga fiscal sobre as empresas. Vale dizer que esse enfoque foi formulado em países desenvolvidos, onde a carga fiscal que as empresas têm que repassar ao governo costuma ser bastante elevada, o que funcionaria como um incentivo à clandestinidade.

Essa abordagem foi aprofundada nos últimos anos dentro da ofensiva hegemonia teórica e política do neoliberalismo. Nessa perspectiva, o setor informal é entendido como um conjunto de atividades não declaradas ou ilegais, mas que têm a característica de ser primordialmente lícitas. A explicação para a clandestinidade agora está na excessiva regulação estatal, expressa, fundamentalmente, nas intervenções sobre o mercado de trabalho com o objetivo de determinar salários. Assim, o setor informal se constituiria numa forma de fugir a esse controle do Estado, permitindo uma tendência de fortalecimento das forças de mercado nas relações de trabalho e outorgando maior flexibilidade ao mercado de trabalho.8 8 Para uma análise bastante ilustrativa sobre as diversas formas de flexibilidade no mercado de trabalho, v. Ramos (1992).

Em consequência, não fica determinada qualquer característica de ordem tecnológica ou de tamanho das unidades produtivas para distinguir as empresas formais das informais, a não ser aquela de caráter legal. Sendo assim, pelo enfoque neoliberal, a economia informal em crescimento representaria uma situação de informalização de empresas formais sem, no entanto, que se enfatize um caráter ilícito ou a característica de depositário do excedente de mão-de-obra da economia, apontada no enfoque tradicional. Dessa forma, considera-se “informal” tanto o profissional liberal que trabalha por contratos e não paga impostos como uma fábrica que opera sem registros ou o dono de uma pequena venda de fundo de quintal.

Ainda na busca de uma flexibilização do mercado de trabalho, a maioria dos países industrializados da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) tem procurado substituir contratos de trabalho por contratos comerciais. Isso porque, ao passo que o direito do trabalho tende a defender o assalariado, o direito comercial tende a estabelecer uma igualdade entre as partes, minimizando, assim, alguma rigidez que possa estar associada a leis trabalhistas (por exemplo, estabilidade no emprego, adicional de férias etc.) Procura-se, então, transferir os custos de possíveis choques (como uma política salarial populista) para terceiros, o que acaba por favorecer o surgimento de formas “atípicas” de trabalho, como os empregos de tempo parcial e os contratos de duração determinada. Essa preferência pela terceirização tem sido vista pelos analistas como favorável às duas partes, uma vez que os empregados adquirem experiência e independência profissional e as firmas, por outro lado, podem beneficiar-se minimizando tanto custos como riscos.

Feita essa breve apresentação teórica sobre algumas abordagens para o setor informal, passamos agora a examinar a conjuntura recente do mercado de trabalho brasileiro.

3. A CONJUNTURA RECENTE

A discussão a respeito do comportamento do emprego e dos salários vis a vis o comportamento do produto ao final da década de 80 (1987 a 1989) suscitou interpretações das mais diversas, envolvendo desde análises pessimistas, que enfatizavam o tom recessivo da década de 80, a análises otimistas, que chegaram a apontar um PIB superior àquele divulgado oficialmente pelo IBGE em 1988. Essa divergência nas interpretações foi possibilitada pela peculiaridade observada nos indicadores de emprego, de salários e de produto para o ano de 1988, que apontavam uma queda no produto acompanhada de um aumento do emprego formal e informal e taxas de desemprego relativamente constantes durante aquele ano.

Um ponto comum entre as diversas visões que surgiram para explicar as peculiaridades já apontadas foi o reconhecimento de que houve uma expansão das atividades e, consequentemente, das ocupações tipicamente informais. Todas as fontes foram unânimes em reconhecer uma revitalização do setor informal da economia.

A evolução dos indicadores de emprego entre 1987 e 1989, como já frisado, parece não obedecer à lógica da trajetória do produto, caracterizando o contexto econômico mais geral como, no mínimo, controverso. Pela Tabela 1, observamos que, enquanto o Produto Interno Bruto medido pelo IBGE caiu cerca de 0,3% em 1988, o nível de emprego medido por diversas fontes (IBGE, DIEESE e MTb) se elevou. O setor industrial, geralmente identificado como o núcleo dinâmico da economia brasileira, apresentou uma queda no produto de 3,4%, enquanto a demanda por trabalho neste setor observou um ligeiro crescimento, que varia conforme a fonte dos dados.

Tabela 1:
Indicadores econômicos selecionados -1988

Muitos analistas chegaram a anunciar o quadro como recessivo, baseando suas conclusões apenas na queda do PIB. No entanto, não só as taxas de desemprego como a demanda por trabalho parecem descartar esse diagnóstico. O desemprego permaneceu em 1988 num patamar quase 50% inferior ao de 1980, quando o PIB cresceu à taxa de 9,1%, superior à média histórica do país (7%). Além disso, quando examinamos o lado da oferta de mão-de-obra, esse comportamento das taxas de desemprego tampouco se justifica. Em princípio, num contexto de desaceleração da atividade econômica, seria de se esperar uma possível retração na oferta de trabalhadores tendo como causa o desalento. Porém, em economias subdesenvolvidas, a desaceleração da atividade econômica poderia gerar um incremento na oferta de mão-de-obra, que funcionaria como uma estratégia de sobrevivência, em que o propósito seria o de compensar quedas na renda familiar e/ou de procurar ocupação nos espaços não estruturados (ou informais). Assim, em países com um fraco sistema de proteção social (seguro-desemprego, por exemplo), a taxa de desemprego torna-se um fraco indicador da situação no mercado de trabalho. Contudo, ao observarmos os dados sobre as taxas de participação, não podemos optar por nenhuma das interpretações clássicas antes assinaladas, uma vez que se observa uma certa estabilidade na oferta de trabalho entre 1987-1988. Dessa forma, o quadro delineado não corresponderia a um período de crise como o consensualmente diagnosticado para a economia brasileira, mas sim a um cenário de estagnação.

Enquanto as séries de emprego e produto para o setor industrial são bem consistentes, assinalando em ambos os casos uma deterioração, as informações para os outros setores indicam um quadro contraditório. Assim, no comércio o PIB teria caído 2,8% em 1988, sendo que a demanda de trabalho deste setor cresceu 3,94% nas seis regiões metropolitanas (dados da PME-IBGE) e 2,65% em todo o Brasil, segundo dados do MTb (Lei nº 4923/65). Segundo esta última fonte de informação, para a totalidade dos setores o emprego formal cresceu 2,24% durante 1988 - um dado contraditório em face de um PIB decrescente.

Os mesmos questionamentos podem ser estendidos à trajetória dos salários e rendimentos. Em geral, os ocupados no polo informal ou não-estruturado da economia são aqueles trabalhadores com menor poder de negociação, e, portanto, os mais suscetíveis às mudanças no nível de atividade. Em períodos recessivos, a queda da demanda originada no setor formal e a elevação do número de ocupados nos espaços não-estruturados resultam em quedas nos rendimentos per capita destes últimos. No entanto, os rendimentos reais dos assalariados sem carteira de trabalho assinada na Região Metropolitana de São Paulo (dados da PME-IBGE) no ano de 1988 foram em média 26,22% superiores aos vigentes em 1985 (um ano de crescimento). No caso dos “conta-própria”, também integrantes do setor informal, essa porcentagem atinge 37,55%. Se em 1988 esses rendimentos caem quando comparados com os vigentes em 1987, esse fato deve-se ainda à influência do Plano Cruzado nos valores médios deste último ano. Essa trajetória se verifica em um contexto de crescente demanda por trabalho informal.9 9 Uma análise mais profunda desse período pode ser encontrada em Camargo & Ramos (1988).

De acordo com o enfoque tradicional, a dinâmica do setor não-estruturado ou informal é associada às flutuações cíclicas do nível de atividade econômica ou a tendências de mais longo prazo. Dessa forma, o polo não-estruturado é assumido como um receptáculo do excedente estrutural e/ou conjuntural de mão-de-obra. Entretanto, em razão da facilidade de entrada e dos baixos requerimentos de capital por pessoa ocupada, é no setor terciário que se concentrariam os espaços informais. Complementando essa “caricatura” tradicional, o setor industrial seria o “núcleo dinâmico” do aparelho produtivo, sendo o “carro-chefe” das atividades restantes.

As informações para os últimos anos confirmam tal quadro. Ao lado do crescimento da informalidade, o setor serviços parece ter sido o mais dinâmico. Segundo dados do DIEESE, a ocupação terciária cresceu 22% entre 1987 e 1991 (na comparação das médias anuais), enquanto na indústria o número de ocupados caiu 12% no mesmo período. Contudo, nem todo o crescimento do emprego terciário pode ser considerado informal. Segundo dados do MTb, que pesquisa apenas o setor formal da economia, a demanda por trabalho nesse setor também foi elevada entre 1987 e 1991.

Uma análise desagregada da evolução do emprego pode ser mais esclarecedora. Considerando a evolução do emprego por categorias ocupacionais descrita no Gráfico 1, notamos que são os assalariados sem carteira de trabalho assinada e os autônomos que apresentam a maior taxa de crescimento (média de 21 % entre 1987 e 1991 - dados do DIEESE). Segundo a mesma fonte, o número de assalariados com carteira de trabalho assinada chegou a crescer 5% entre 1987 e 1989, mas já em 1991 alcançou o mesmo nível observado em 1987. Assim, pode-se reconhecer um movimento de informalização no mercado de trabalho, fato este que permite entender as reduzidas taxas de desemprego observadas num quadro de estagnação como o atual.

Gráfico 1:
Emprego por posição na ocupação Grande São Paulo -1987/1992

Se analisarmos separadamente o período 1987-1989, no entanto, observaremos uma relativa estabilidade do número de autônomos acompanhada do exponencial crescimento dos assalariados sem carteira. Essa situação merece um comentário à parte, uma vez que, dentro da caricatura tradicional apresentada acima, uma situação de deterioração como a que se observou no período analisado deveria refletir-se, principalmente, em crescimento do número de trabalhadores por conta própria, cujo setor absorveria o crescimento normal da População Economicamente Ativa (PEA) e os possíveis desligados do setor formal ou dos outros espaços do setor informal mais suscetíveis às mudanças na demanda agregada (assalariados sem carteira). No entanto, o que se verificou foi uma informalização diferente daquela tradicionalmente descrita: relações de trabalho assalariadas mas não legalizadas, embora não em detrimento da ocupação nos outros setores. Dessa forma, a demanda por trabalho sem uma cobertura institucional das relações trabalhistas parece ter-se constituído num setor dinâmico do mercado de trabalho, ao menos na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).10 10 Nas restantes regiões o crescimento dos informais é também expressivo, mas, lamentavelmente, não temos um corte conta-própria/assalariados sem carteira que nos permita realizar as mesmas inferências que para a RMSP.

Esse movimento pode ser associado a dois fatores básicos. O primeiro relaciona-se com a crescente importância do setor de serviços; como já salientamos, o desenvolvimento desse tipo de atividade é relativamente fácil de ser viabilizado à margem de qualquer fiscalização, daí o setor informal ser tradicionalmente associado a ele. O segundo fator pode ter origem em fatores institucionais, e talvez seja uma prolongação da crise da regulação estatal, em que o governo já teria esgotado sua capacidade de intervir eficientemente no sistema produtivo.

Porém, ainda que as origens sejam controvertidas e sujeitas a análises mais aprofundadas, parece-nos que o núcleo dinâmico da economia nos anos seguintes ao do Plano Cruzado foi caracterizado pelo setor à margem da regulação governamental. Tal setor pode ser reconhecido como qualitativamente diferente daquele tradicionalmente associado ao setor informal (entendido como depositário da população excedente e que apresentaria um comportamento reflexo). O setor emergente foi assumido pelo enfoque neoliberal, anteriormente apresentado, como um movimento que corroboraria suas teses. Trata-se, pois, de espaços formais que se tornam informais e mantêm sua própria dinâmica, sendo de alguma forma “centrais”, e não “periféricos”.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Do exposto acima, podemos afirmar sem receio que a economia brasileira experimentou entre 1987-89 uma informalização tipicamente caracterizada pela abordagem neoliberal. Tal característica permitiu reconhecer o surgimento de um núcleo dinâmico situado à margem da regulação governamental e com traços distintos do setor informal clássico (abordado no enfoque tradicional), que funciona como depositário da mão-de-obra excedente e apresenta um comportamento reflexo.

Além disso, reconheceu-se no setor de serviços o maior dinamismo. Nesse setor, que apresenta as características de facilidade de entrada e baixos requerimentos de capital por pessoa ocupada, é que geralmente se encontram os espaços informais. No entanto, seu dinamismo não parece ter se concentrado apenas no seu lado informal, mas também nas suas atividades legais, tanto em termos de emprego como de produto. Não fosse pela sua vigorosidade, o PIB poderia ter caído além do 0,3% registrado em 1988 e ter sido menor que os 3,5% observados em 1989.

Essa desenvoltura do setor terciário não deve ser confundida com o movimento de terceirização que tem ganhado proporções na maioria dos países industrializados.

Como procuramos ressaltar na primeira parte deste artigo, a fuga à intervenção do Estado na economia e a busca de maior flexibilidade no mercado de trabalho, conjugadas à necessidade de cortar custos e aumentar a produtividade como estratégia de sobrevivência da firma, seriam as principais causas dessa tendência à terceirização nos países industrializados. Embora já possamos reconhecer alguns poucos casos que obedeçam a esse padrão no Brasil (particularmente em indústrias multinacionais com representação no país), o quadro descrito pelas estatísticas aqui apresentadas ainda não permite uma associação positiva com a terceirização moderna. A falta de dinamismo do setor industrial, refletida na estagnação econômica vivenciada nos últimos anos, continua sendo responsável pela vitalidade do setor terciário nos países em desenvolvimento.

Por fim, cabe destacar que a busca de maior flexibilidade no mercado de trabalho acaba por funcionar como indutor de dois fenômenos distintos. Por um lado, estimularia a terceirização, numa estratégia que visaria ainda à redução de custos e à minimização de riscos. E, por outro lado, favoreceria a economia invisível, à medida que as firmas procurassem fugir ao controle do Estado, passando então a atuar na clandestinidade. Esses dois fenômenos, aparentemente tão próximos, constituem-se, porém, nos dois lados de uma mesma moeda, uma vez que, na busca de flexibilidade, ou a firma opta pelos serviços de terceiros ou decide tomar-se invisível aos olhos do governo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    OIT (1972)OIT. “Employment, incomes and equality: a strategy for increasing productive employment in Kenya”, Genebra, 1972. .
  • 2
    O trabalho pioneiro que explorou a ideia da heterogeneidade estrutural nos países periféricos é o de Pinto (1960)PINTO, A. “Concentración del progresso técnico y de sus frutos en el desarrollo latinoamericano”. El Trimestre Económico nº 108, 1960. .
  • 3
    V. a respeito os seguintes trabalhos: Pinto (1960)PINTO, A. “Concentración del progresso técnico y de sus frutos en el desarrollo latinoamericano”. El Trimestre Económico nº 108, 1960. , op. cit.; e Singer (1970)SINGER, H. “Dualism revisited: a new approach to the problems of the dual society in developing countries”, Journal of Development Studies 7(1), 1970. .
  • 4
    V. Tokman (1978)TOKMAN, V. “Las relaciones entre los sectores formal e informal: una exploración sobre su natureza”. Revista de la CEPAL nº 5, 1978. .
  • 5
    V. Cacciamali (1983)CACCIAMALI, M. C. “Setor informal urbano e formas de participação na produção”. Série Ensaios Econômicos nº 20, IPE/USP, 1983. , p.23.
  • 6
    V. Souza (1980)SOUZA, P. R. Emprego, salários e pobreza. São Paulo, Hucitec, 1980. , p. 135.
  • 7
    Sobre esse enfoque v. Tanzi (1983)TANZI, V. The underground economy in the United States and abroad. Nova York, Lexington Books, 1983. , Lima (1985)LIMA, B. M. F. “Cripta economia ou economia subterrânea: uma investigação preliminar no Brasil”. Estudos Especiais nº 5, IBRE/FGV, 1985. , e Cartaya (1987)CARTAYA, V. “El confuso mundo del sector informal”. Revista Nueva Sociedad nº 90, jul.-ago., 1987. .
  • 8
    Para uma análise bastante ilustrativa sobre as diversas formas de flexibilidade no mercado de trabalho, v. Ramos (1992)RAMOS, C. A. “Flexibilidade e mercado de trabalho: modelos teóricos e a experiência dos países centrais durante os anos 80”. Texto para Discussão nº 271, Brasília, IPEA, agosto, 1992. .
  • 9
    Uma análise mais profunda desse período pode ser encontrada em Camargo & Ramos (1988)CAMARGO, J. M. & RAMOS, C. A.., A revolução indesejada. São Paulo, Campus, 1988. .
  • 10
    Nas restantes regiões o crescimento dos informais é também expressivo, mas, lamentavelmente, não temos um corte conta-própria/assalariados sem carteira que nos permita realizar as mesmas inferências que para a RMSP.
  • *
    O autor agradece os comentários de colaborador anônimo desta Revista.
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    JEL Classification: J46; J86; L24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1994
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