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A dualidade brasileira de Ignácio Rangel

The Brazilian duality of Ignácio Rangel

RESUMO

Os brasileiros chamam os anos 80 de “a década perdida”. Após quarenta anos de crescimento médio anual de 7%, o PIB por habitante caiu 5% naquela década. Ignácio Rangel, economista marxista, previu o advento da crise em 1978 e sugeriu a única saída: a privatização dos serviços públicos. Isso foi antes de Reagan e Thatcher. A “Dualidade Brasileira” é a mola mestra do pensamento de Rangel. Segundo ele, a economia nacional deve ser analisada tanto do seu “lado interno”, ou seja, a própria economia nacional, quanto do seu “lado externo”, a economia mundial.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; Rangel

ABSTRACT

Brazilians dub the eighties “the lost decade”. After forty years of an average annual growth of 7%, the GDP per inhabitant dropped 5% in that decade. Ignácio Rangel, a Marxist economist, foresaw the coming of the crisis in 1978, and suggested the only way out: the privatization of the public utilities. That was before Reagan and Thatcher. The “Brazilian Duality” is the mainspring of Rangel’s thought. According to it, the national economy must be analysed from both its “internal side”, i.e., the national economy itself, and its “external side”, the world economy.

KEYWORDS:
History of economic thought; Rangel

1. INTRODUÇÃO

Por que os anos 80 foram para nós, brasileiros, a “década perdida”, em termos de desenvolvimento econômico? Refazendo a pergunta em termos cepalinos: por que o ciclo de substituição de importações não se encerrou com chave de ouro, na década da redemocratização? Essa pergunta pode ainda ser refeita sob dois aspectos: o sociopolítico e o intelectual. Socio politicamente: por que os dirigentes e empresários brasileiros, que souberam comandar uma vitoriosa industrialização por meio século, perderam essa capacidade na década de 80? Intelectualmente: poderia essa crise ter sido prevista, e, em tendo sido prevista, poderia ter sido proposta uma solução efetiva? À primeira dessas duas perguntas não temos resposta, nem seu escopo pertence ao âmbito deste artigo. Quanto à segunda, respondemos: sim, essa crise não apenas poderia ter sido prevista, como também foi, antecipadamente, proposta a sua solução. Neste artigo, estudaremos a estrutura do fundamento teórico do pensamento de Ignácio Rangel, a Dualidade Brasileira. Com base nesse fundamento, Ignácio Rangel, já em 1978, anunciava a crise e propunha a sua solução: a privatização dos serviços públicos.1 1 Ignácio Rangel, na última sentença do posfácio que preparou em 1978 para a terceira edição de seu livro A Inflação Brasileira, afirmava: “Parece prenunciar(-se) uma reestruturação no pacto fundamental de poder da sociedade brasileira, em substituição ao de 1930”. Referia-se ele ao advento, em sua terminologia, da Quarta. Dualidade Brasileira. E também afirmava: “O novo pacto de condomínio deverá, necessariamente, abrir o setor dos serviços de utilidade pública aos investimentos privados”. Rangel, Ignácio (1963). A Inflação Brasileira. São Paulo, Bienal, 1986, pp. 150 e 136 Rangel, um economista marxista e cepalino, antecipou-se ao neoliberalismo, e, ao profetizar o futuro de sua terra, tornou-se o precursor da avassaladora tendência que tomou de assalto a economia mundial.

Neste artigo, não tentaremos entender por que a proposta de Rangel não foi devidamente considerada no debate intelectual a tempo hábil de possibilitar mobilização que nos salvasse a década. Esse é assunto para outro artigo. Por ora, consolemo-nos com a sabedoria do evangelho: “nenhum profeta é bem recebido em sua própria terra” (Lucas 4:24).

2. A DUALIDADE BRASILEIRA

“A história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas de classe ( ... ) opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta”.2 2 Marx, Karl, & Engels, Friedrich. Textos, v. 3, São Paulo: Edições Sociais. Manifesto Comunista. 1847, pp. 21-2. O trecho inicial (após o prólogo) do Manifesto Comunista é o ponto de partida do pensamento marxista. Para os marxistas brasileiros, essa concepção apresenta o seguinte problema: como interpretar a história brasileira em termos de luta de classes, ou em termos da divisão da sociedade em dominantes/dominados (ou “os de cima/os de baixo”), se o Brasil teve uma constituição artificial, não espontânea, a partir da expansão marítimo-comercial portuguesa, com a dialética “para dentro/para fora” condicionando a própria formação de suas classes sociais e a dinâmica de suas lutas de classes?

Robert Srour nos ensina que, embora Marx nunca tenha exposto “de forma completa uma teoria do conceito de modo de produção”, podemos encontrar em seus escritos, entre outros, “um sentido que faz do conceito a chave de periodização (série de modos dominantes que definem ‘épocas progressivas’, e série de modos secundários)”.3 3 Srour, Robert H. Modos de Produção: Elementos da Problemática. Rio de Janeiro, Graal, 1978, pp. 121-2. Nas tradições soviética, economicista e determinista, temos os modos de produção dominantes, a saber: comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo; e modos de produção secundários, como a pequena produção mercantil. Aprendemos ainda com Srour que podemos distinguir em Marx “conceitos singulares, referidos a objetos reais, e conceitos formais, referidos a objetos abstratos”, e que “toda análise concreta resulta do investimento desses conceitos formais e da síntese entre esses conceitos e os conceitos singulares”.4 4 Essa metodologia não é apenas marxista, é científica no sentido mais amplo: “dar uma explicação causal decerto evento específico equivale a deduzir um enunciado em que se descreve o evento, a partir de duas espécies de premissas: algumas leis universais e alguns enunciados singulares ou específicos, que podemos chamar condições iniciais específicas”. In Popper, Karl. A Miséria do Historicismo. São Paulo, Cultrix, 1991, p. 95. A citação de Srour está na op.cit., p. 58. Pois bem, a genialidade de Ignácio Rangel em sua análise marxista da economia brasileira consistiu em criar o conceito singular de Dualidade Brasileira pela combinação dialética dos conceitos formais de escravismo, feudalismo e capitalismo (em suas formas mercantil, industrial e financeira). A combinação desses três modos e três formas de produção5 5 Srour define formas de produção como modalidades de um modo de produção. Op.cit., p. 129. em sequência determinada pelo desenvolvimento das forças produtivas cria o mais econômico6 6 Econômico no sentido ockhamiano: a ordem melhor é a que realiza o máximo resultado com o mínimo de esforço. Albagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982, verbete economia. modelo da formação socioeconômica brasileira em seus 170 anos de história como Nação independente.

Segundo o modelo da Dualidade, ao tornar-se independente, o Brasil - a sua infraestrutura econômica - estava estruturado em dois polos, um interno e outro externo. Cada um desses polos, por sua vez, estruturava-se em um lado interno e em um lado externo:

Nesse modelo7 7 Neste artigo, utilizamos como referência a versão do modelo exposta em Rangel, Ignácio. “A história da Dualidade Brasileira”. Revista de Economia Política 1(4), out.-dez. 1981. , cada polo representa uma das duas classes dominantes, cujo pacto de poder constitui cada uma das sucessivas formações da Dualidade. Os lados de cada polo exprimem as relações de produção de cada uma das classes: as classes dominantes brasileiras são caracterizadas por Rangel por esse bifrontismo, que é a solução dele para a questão da dialética “para dentro/para fora” no contexto da luta de classes. Por exemplo, os senhores de engenho: escravocratas, das porteiras de seus engenhos para dentro, e senhores feudais, das porteiras para fora, em suas relações com a Coroa (portuguesa e depois brasileira) - imaginamos que Rangel abstraia suas transações mercantis porque estas teriam para eles caráter secundário; nesse caso, tanto a importação de escravos quanto a exportação de açúcar seriam, fundamentalmente, a atividade do capital mercantil presente no polo externo.8 8 Luiz Carlos Bresser-Pereira e José Márcio Rego denominam “feudalismo mercantil” o lado externo desse polo, em “Um mestre da economia brasileira: Ignácio Rangel”.Revista de Economia Política 13(2), abr.-jun. 1993.

3. POLOS E LADOS

Para que compreendamos desembaraçadamente a densa simplicidade do esquema rangeliano - a Dualidade Brasileira não é apenas dual, é também dupla: dois polos, cada qual com dois lados -, explicitemos os conceitos de polo e lado.

Polos são diferenças econômicas regionais e/ou estruturais dentro de uma economia nacional. Por exemplo, um país pode dividir-se em um polo dinâmico e em um polo estagnado:

No caso acima, o polo dinâmico tem a hegemonia sobre a condução do país como um todo, e, por isso, o polo estagnado aparece como um polo interno. Mas o conceito de polo pode referir-se também a uma diferença estrutural, e não apenas meramente regional: o país pode dividir-se em um polo feudal e em um polo capitalista. E podemos supor também que, nesse caso, a internalidade do polo não signifique falta de dinamismo econômico ou de capacidade política, e sim que as relações do polo feudal interno com o exterior sejam feitas através do polo capitalista:

Pode-se ainda imaginar uma situação polar mais complexa, como no caso de um país que funda uma colônia, o que é diferente da conquista imperial de uma economia preexistente. Naquela situação, como foi o caso do Brasil, a colônia fundada é uma extensão da economia metropolitana:

Nesse caso, não se fecha o quadro porque o complexo imperial não se restringe à relação da metrópole com a colônia. Ao proclamar-se a independência da colônia, tornam-se os antigos polos duas economias nacionais como outras quaisquer:

Vejamos agora os conceitos de lados de uma economia nacional.

A ciência econômica surgiu com os fisiocratas e seu tableau économique, que é um diagrama de uma economia nacional. Analisa-se apenas a economia nacional, sem considerar o resto da economia mundial:

Genealogicamente, o tableau économique foi sucedido no aspecto que aqui nos interessa - quais sejam, os lados de uma economia nacional - pela macroeconomia keynesiana, que acrescentou à economia nacional a cláusula de comércio exterior (mais importações, menos exportações), reconhecendo parcialmente o resto do mundo:

A Dualidade de Rangel sucede à macroeconomia keynesiana, problematizando a própria noção de economia nacional. Para as análises econômicas fisiocrática e keynesiana, bastava considerar a economia nacional em si, abstraindo-se o restante da economia mundial ou reduzindo-o à condição de uma cláusula. O esquema dual criou o conceito de lados de uma economia nacional, colocando em pé de igualdade conceitual a economia nacional e o resto do mundo:

Poderíamos também definir o lado externo como as relações externas, ou o comércio exterior, de uma economia nacional, mas preferimos ressaltar o caráter relativamente autonômico dessas relações, que dependem só parcialmente - na meia parte, evidentemente - da economia nacional em questão. De uma forma ou de outra, não se deve confundir o lado externo de uma economia nacional com o lado interno das outras economias nacionais. Em última análise, consolidadamente, o conceito de lado externo refere-se à externalidade de todas as economias nacionais.

Esse conceito de lados de uma economia nacional, sua internalidade e sua externalidade, é extensivo aos polos. Entre os polos econômicos de um país, um deles se relaciona com o resto do mundo: seu lado externo é o lado externo da economia nacional como um todo; seu lado interno expressa sua dinâmica própria. Por sua vez, o outro polo, interno, relaciona-se com o polo de vocação externa através de seu próprio lado externo:

4. A ORIGEM DA DUALIDADE BRASILEIRA

Exporemos agora a formação da Dualidade Brasileira de forma diagramática, partindo de sua raiz portuguesa. Utilizaremos como recurso expositivo diagramas das economias portuguesa e luso-colonial que não fazem parte da teoria original de Rangel; contudo, acreditamos que não fogem ao espírito da teoria.

Ao final do século XV, Portugal tinha uma economia estruturada em dois polos: um polo agrícola feudal e um polo urbano mercantilista. A agricultura era completamente feudal, tanto pelo lado interno - isto é, as relações entre os agricultores e os senhores do solo agricultado - quanto pelo lado externo - ou seja, as relações dos senhores do solo agricultado com o rei, vale dizer, o instituto da enfiteuse feudal. Por sua vez, o mercantilismo português estava sob hegemonia feudal: o comércio, tanto interno quanto externo, era realizado pela própria Coroa ou por intermediação de um estanco, ou concessão de serviço público. Portanto, vista pelo lado externo, ou do ponto de vista de sua expansão colonialista marítima, a economia portuguesa, ou o seu polo urbano, ou, ainda, o seu polo metropolitano, era feudal:

O polo agrícola ou interno português não nos interessa porque sua agricultura não se relacionava conosco, pelo menos não diretamente. Por isso, abstrairemo-lo. Ao criar a economia brasileira, interessava ao feudalismo português a produção ou extração de bens agrícolas ou minerais para o seu capitalismo mercantil. Como a população indígena não produzia excedentes, foi necessário criar uma economia que o fizesse. O lado interno do polo econômico colonial só poderia ser constituído por escravismo, que forçasse as populações indígenas e africanas a produzir mercadorias na escala necessária. Por sua vez, o lado externo foi moldado pelo lado externo do polo metropolitano:

Ligados pelo cordão umbilical do feudalismo, os dois polos compartilhavam a mesma economia urbana e o mesmo mercantilismo. Por um lado, as fortificações, as cidades e o comércio estabelecidos nas terras da colônia eram a materialização da expansão marítimo-comercial portuguesa; por outro lado, o produto ou extrato colonial, tão logo produzido ou extraído, era comercializado em urbes vassalas da Coroa, sendo, por isso, ao fim das contas, canalizado para Lisboa. A economia colonial Portugal-Brasil deve ser, pois, esquematizada da seguinte forma:

Observe-se que nessa diagramação o lado externo do polo colonial (posteriormente, polo interno da Dualidade Brasileira) está em contato com o lado externo do polo metropolitano (polo este que posteriormente se tornará em polo externo da Dualidade Brasileira), ao contrário das quatro Dualidades do Brasil independente, nas quais o lado externo do polo interno se comunica com o lado interno do polo externo.

Vem agora a questão da Independência, do rompimento do cordão umbilical entre os dois polos. Para que uma colônia se transforme numa nação, a constituição do lado externo de seu novo status independente não representa problema, pois ele está dado: é a economia mundial em geral. O problema - isto é, o problema lógico - é a constituição de seu lado interno, de sua economia nacional propriamente dita.

Uma economia nacional é constituída de suas partes agrícola e urbana. Por sua vez, a economia urbana pré-industrial pode ser analisada em sua fundação urbanística e no capital comercial que esta aloja. Por fatalidade geográfica define-se que cidades farão parte da nova economia nacional. Quanto ao capital comercial, é necessário que a facção solidária à metrópole seja expulsa, e que a outra facção assuma todo o comércio da nova nação. Como a economia agrícola já estava formada, temos então a nova nação constituída. Porém, a velha economia agrícola e a nova economia urbana funcionam em etapas históricas diferentes: aquela está sob hegemonia feudal, e esta é plenamente mercantil. Por essa razão, a nova nação passa a carregar em sua história independente o “carma” de seu passado colonial, dividida em dois polos. O antigo polo colonial, a economia agrícola e/ou extrativa que justificava a colônia, torna-se o polo interno da nova nação, e mantém-se funcionando sob a lógica feudal. Fazendo as vezes do antigo polo metropolitano, constitui-se o polo externo do país pela cisão do aparato colonial português. Esta cisão implica inversão de posições dos lados do antigo polo metropolitano, internalizando-se no novo país parte do capital mercantil que era antes interno à metrópole. Implica também, obviamente, a expulsão do feudalismo português do lado externo do polo, que passa a ser ocupado pelo capitalismo industrial inglês. A expulsão do feudalismo português também se dá por cisão, ao criar-se a nossa própria Coroa, gemelar da portuguesa: o mesmo Pedro que foi o nosso D. Pedro I tornou-se depois D. Pedro IV em Portugal.

Através desse recurso expositivo que, repetimos, não faz parte da teoria original, chegamos, pois, à Primeira Dualidade Brasileira:

Antes de passar à consideração das quatro Dualidades Brasileiras, é importante ressaltar a potencialidade desse conceito de lados interno e externo, que, como dissemos, problematiza o conceito de economia nacional. Talvez Rangel, ao desenhar esse conceito para a análise de uma economia nacional periférica, tenha desenhado um diagrama analítico que serve a todas as economias nacionais, centrais ou periféricas, pois todas elas estão em relações, mais ou menos intensas, com todas as outras economias, com o centro dinâmico. O crescimento exponencial do comércio internacional a partir da década de 70 e a globalização dos mercados de capitais a partir da década de 80 nos fazem pensar em um superpolo econômico mundial que seja o lado externo de todas as economias nacionais.9 9 De fato, Robert Reich diz que os Estados Unidos já são uma dualidade, com os 20% mais ricos de sua população fazendo parte de uma economia e comunidade globais, do tipo “lado externo”, e cada vez mais ricos e prósperos, e mais desidentificados e separados dos outros 80%, que trabalham a economia e habitam a comunidade “interna”, cada vez mais insulados e relativamente mais pobres. The Work of Nations. Nova York, Vintage Books, 1992. Antes ainda da consideração das quatro Dualidades, falemos sobre a inspiração de Rangel para a criação desse conceito: os ciclos econômicos de longo prazo de Kondratieff.

5. O MOTOR PRIMÁRIO DA DUALIDADE

Em 1925, Nikolai Kondratieff publicou o ensaio Ciclos econômicos de longo prazo. Nesse ensaio, estudou dados estatísticos de preços, taxas de juros, salários, produção e consumo das principais mercadorias agrícolas e industriais, e comércio exterior da Inglaterra, da França, da Alemanha e dos Estados Unidos, e dados de outros países referentes à produção de carvão e ferro-gusa. Foi levantado o máximo de dados disponíveis. Os dados foram tratados estatística e matematicamente, e como as curvas assim obtidas coincidiam em suas inflexões, Kondratieff chegou à conclusão da existência “muito provável”, embora não conclusiva “de maneira totalmente categórica”10 10 Kondratieff, Nikolai. The Long Wave Cycle. Nova York, Richardson & Snyder, 1984, p.81 , de ciclos econômicos com duração de 48 a 55 anos.11 11 Kondratieff delimita assim os ciclos de longo prazo: Primeiro ciclo: 1. Onda de alta: dos anos finais dos anos 80 e anos iniciais dos anos 90 do séc. XVIII a 1810-17. 2. Onda de baixa: de 1810-17 a 1844-51. Segundo ciclo: 1. Onda de alta: de 1844-51 a 1870-75. 2. Onda de baixa: de 1870-75 a 1890-96. Terceiro ciclo: 1. Onda de alta: de 1890-96 a 1914-20. 2. Onda de baixa: provável início em 1914-20. Pode-se extrapolar que a onda de baixa do terceiro ciclo se encerrou ao fim da segunda Guerra Mundial (1949). Dessa época até 1973 teríamos tido então a fase de alta do quarto ciclo. Estamos, consequentemente, vivendo a fase de baixa desse ciclo, cujo fim deverá coincidir, grosso modo, com o fim do século.

Não nos interessa aqui discutir os ciclos longos, interessa apreciar o uso que Rangel fez deles. Do ponto de vista de Kondratieff, que foi o planejador-chefe da URSS até que o inusitado das suas ideias o pusesse em choque com a ortodoxia stalinista, o capitalismo era um todo a ser compreendido - e a ser confrontado -, e não uma constelação de economias nacionais. Através de dados que só existiam em agregação de nível nacional, Kondratieff conseguiu delinear empiricamente a existência de uma economia supranacional, uma economia mundial cujo centro são - ou eram somente até o tempo de Kondratieff - as economias avançadas da Europa e dos Estados Unidos. Essa perspectiva de Kondratieff serviu como uma luva para os propósitos de Rangel em sua tarefa de analisar a economia brasileira, que, além de ser uma economia nacional em si, teve sempre um centro global de capitalismo a movimentar suas engrenagens econômicas, estivesse ou não esse centro mais ou menos identificado com uma economia nacional: o mercantilismo português até a Independência, a indústria inglesa após, as finanças americanas a partir de certa data: uma economia nacional em particular, ou o Atlântico Norte em geral.12 12 Op.cit., p. 13.

6. A EVOLUÇÃO DAS QUATRO DUALIDADES BRASILEIRAS

A transformação de uma Dualidade na Dualidade seguinte segue um padrão que Rangel denomina “leis”:

  • 1a lei: quando as forças produtivas da sociedade crescem, entrando em conflito com a estrutura de relações de produção da Dualidade vigente, esta se transforma pela mudança de apenas um dos polos, guardando o outro sua estrutura.

  • 2a lei: alternadamente, mudam o polo interno e o externo.

  • 3a lei: o polo muda pelo processo de passar para o lado interno o modo de produção já presente no seu lado externo.

  • 4a lei: em consequência, o lado externo do polo mutante muda-se também, passando a adotar instituições características de um modo de produção mais avançado.

  • 5a lei: as mudanças da Dualidade Brasileira, como formação periférica que é, são provocadas não apenas pelo desenvolvimento nacional das forças produtivas, mas também por mudanças no comércio internacional.

  • (As leis foram transcritas quase que literalmente do artigo “A história da Dualidade Brasileira”, de 1981.)

As “leis” da Dualidade se parecem com as leis dos movimentos planetários do sistema solar, de Kepler. Mas, enquanto estas são a expressão existencial da lei da gravidade no sistema solar, as “leis” da Dualidade são a expressão existencial no Brasil de tendências que, embora possam ser constatadas estatisticamente, não são leis. Essas tendências são: o crescimento demográfico, o desenvolvimento técnico da economia e a acumulação de capital. Tendências são enunciados históricos singulares, e não leis universais.13 13 Popper, Karl. Op.cit., p. 90. Por essa razão, a emenda que fazemos ao esquema dual com a “Dualidade Colonial” - e adiante, na recapitulação histórica, faremos uma modificação na Quarta Dualidade - não lhe fere a integridade científica, pois não são leis no sentido estrito que estão sendo refutadas: trata-se da reformulação de um enunciado histórico singular.

O esquema da Dualidade Brasileira tem um aspecto prima facie mecanicista, determinista. Acreditamos mesmo que esse aspecto foi uma das razões pelas quais os economistas em particular, e a intelectualidade em geral, não reconheceram em Ignácio Rangel o autor mais necessário para a travessia da “década perdida” - mas este é tópico para outro artigo. Na verdade, o economicismo de Rangel localiza-se nas passagens em que usa o adjetivo preterintencional, adjetivo jurídico que é uma das marcas do pensamento rangeliano. O que precisamos explicitar aqui é que esse mecanicismo deve ser compreendido como a qualidade ockhamiana (v. nota 6) do pensamento rangeliano, que sintetiza o essencial de 170 anos da história econômica brasileira em quatro simples diagramas. É verdade, por outro lado, que o fato de ele descrever a transformação de um diagrama em outro por mudanças que denomina “leis” não ajuda em nada a causa da Dualidade, pois as “leis” de desenvolvimento social necessário e inevitável do marxismo economicista há muito estão em descrédito quase que generalizado.

Mencionemos também, apenas de passagem, outra característica do texto rangeliano que dificulta a sua compreensão: Ignácio Rangel faz muito poucas citações; ele apenas apresenta-nos o resultado pronto de suas investigações, sem indicações que nos permitam retraçar o desenvolvimento de suas ideias. Comentando a Dualidade, Bresser-Pereira e Rego constatam: “nem sempre Rangel é claro a respeito”.14 14 Op.cit., p. 14. Esse texto é, até o momento, a melhor introdução à obra de Rangel.

Cada uma das duas classes que formam o pacto de poder de cada Dualidade atende a duas ordens de interesse contraditórias. A classe do polo interno tem como objeto estratégico a terra, e sobre esta organiza suas duas ordens de interesse, a saber: escravismo e feudalismo na Primeira Dualidade; feudalismo e capitalismo mercantil na Segunda e Terceira Dualidades; na Quarta Dualidade, os interesses convergem: para dentro das porteiras da fazenda, o capitalismo assalariador, para fora, o capitalismo comercial e o industrial. A classe do polo externo tem como objeto estratégico o capital, e os interesses contraditórios, que no polo interno se organizam dentro e fora da porteira da fazenda, se organizam dentro e fora do país: capitalismo mercantil no país e capitalismo industrial no exterior, na Primeira e Segunda Dualidades; capitalismo industrial no país e capitalismo financeiro no exterior, na Terceira e Quarta Dualidades.

Cada classe se transforma ao repudiar uma das suas duas ordens de interesse. Geralmente o faz por “cissiparidade”: uma parcela da classe se aferra à velha composição de interesses e com esta sucumbe, enquanto a outra parcela se renova e passa à Dualidade seguinte. Essa nova classe surge ao resolver o problema econômico que levou a velha composição de interesses à morte. Por isso, um fato econômico marca a sua ascensão ao pacto de poder. E, como é uma classe nova, inexperiente, assume a posição de sócio menor da Dualidade. Por outro lado, a classe do outro polo não se transforma economicamente, mas amadurece politicamente, e assume a condição de sócio maior. Um fato político marca a sua ascensão à hegemonia; na condição de agente hegemônico, esse fato político tem não só a aparência, mas também a essência de fato nacional.

Na Primeira Dualidade, conforme a primeira “lei”, que diz que apenas um dos polos muda a cada Dualidade, mudou o polo externo. Um fato econômico marca a entrada do capitalismo mercantil brasileiro como sócio menor no pacto de poder: a abertura dos portos. Por outro lado, um fato político marca a ascensão à hegemonia da classe dos barões/senhores de escravos, a classe do polo interno, que transcorreu incólume à mudança: a declaração da Independência. A terceira lei, que diz que um polo se transforma pela absorção, pelo seu lado interno, do modo de produção já presente no seu lado externo, nessa adaptação que acrescentamos ao esquema rangeliano (passagem Dualidade Colonial - Primeira Dualidade) pode ser expressa pelo fato de que o capitalismo mercantil, antes português, foi internalizado pelo país. No diagrama, o lado interno do polo metropolitano passa a ser o lado interno do polo externo do novo país. A quarta lei, que diz que em consequência da mudança do lado interno, o lado externo também muda, é expressa pela substituição do feudalismo português pela indústria inglesa. A quinta lei refere-se ao ciclo de longo prazo, e afirma que a transformação ocorreu na fase recessiva do primeiro ciclo de Kondratieff:

Na Segunda Dualidade, mudou também apenas um polo (primeira lei), desta vez, o polo interno, conforme preconiza a segunda lei. O fato econômico da abolição da escravatura assinalou a transformação da classe dos barões/senhores de escravos em latifundiários feudais: conforme a terceira lei, o lado interno, antes escravista, assumiu a relação de produção presente no lado externo, o feudalismo. Por sua vez, conforme a quarta lei, o lado externo, antes feudal, assimilou as funções comerciantes do lado interno do polo externo. A Proclamação da República foi o fato político que marcou a passagem da burguesia comerciante do polo externo à posição hegemônica no pacto de poder. Os latifundiários, agora internamente feudais, passaram a ser o novo sócio menor do novo pacto dual, surgido na fase recessiva do segundo ciclo de Kondratieff:

Na Terceira Dualidade, a primeira e segunda leis apontam, mudou somente o polo externo. A crise do café no fim da década de 20 foi o fato econômico que anunciou a decadência da burguesia comercial e o surgimento da burguesia industrial substituidora de importações: segundo a terceira lei, no lado interno do polo externo brotou o modo de produção industrial que antes se apresentava no lado externo, no centro dinâmico, nos países industriais. E, segundo a quarta lei, o capitalismo financeiro, principalmente americano, assumiu o lugar do capitalismo industrial no lado externo do polo externo. O novel capitalismo industrial brasileiro assumiu a posição de sócio menor no pacto de poder. Por outro lado, a Revolução de 30 marcou a ascensão do latifúndio feudal à hegemonia política, no início da fase recessiva do terceiro ciclo de Kondratieff:

Ainda não dispomos de perspectiva e evolução histórica suficientes para definir que eventos poderão ser selecionados como demarcadores da Quarta Dualidade; podemos, porém, considerá-la em vigência desde fins da década de 70. Como disse Rangel em 1981: “(A Quarta Dualidade) ... é tão atual como se já tivesse acontecido. Está presente na crise que atravessa a sociedade brasileira”.15 15 Op.cit., p. 31. A periodização retrospectiva sugere que a fase recessiva do quarto ciclo de Kondratieff iniciou-se em 1973, concomitantemente à primeira crise do petróleo. Entretanto, no mesmo parágrafo donde tiramos a citação está escrito: “A Quarta Dualidade está, obviamente, no futuro”. Estas duas afirmações contraditórias, “como se já tivesse acontecido” e “está no futuro”, significam o seguinte: a solução para a crise terminal da Terceira Dualidade, que é a privatização dos serviços públicos, já tem, no momento (1981), todas as suas precondições alinhadas, e tão logo, no futuro imediato, estas se ponham em marcha, realizando-se a privatização dos serviços públicos, a Quarta Dualidade se instaurará: se o futuro já se anuncia, é porque se realizará, “obviamente”. Neste advérbio “obviamente” concentram-se o zênite e o nadir da sabedoria de Ignácio Rangel: sabe como nenhum outro intelectual o que é mais necessário para a felicidade do povo brasileiro, mas, infelizmente, seu determinismo econômico acredita que os dirigentes, ainda que preterintencionalmente, tomarão (tomariam) as decisões que levarão (levariam), inevitavelmente, à privatização dos serviços públicos, e, consequentemente, à continuidade do desenvolvimento socioeconômico. Esse determinismo econômico implicou uma certa cegueira sociológica ...

Na Quarta Dualidade, conforme a primeira e a segunda leis, é vez de mudança no polo interno. Rangel previa um acontecimento econômico demarcador da mudança nesse polo: aconteceria algo como uma “Lei Áurea” fundiária.

Para entendermos o que seria essa “Lei Áurea”, temos que expor a lógica do que Rangel denomina de quarta renda da terra. Essa quarta renda da terra advém do fato de que a propriedade fundiária tem embutida em si a expectativa de elevação nominal ou mesmo real de seu preço. Por isso, pode funcionar como reserva de valor numa economia inflacionária. Assim que se criassem na economia novas oportunidades de inversão verdadeiramente lucrativas, os detentores de títulos imobiliários que não tivessem ocupação produtiva para suas terras as venderiam para levantar recursos para aqueles investimentos; em consequência, a propriedade fundiária baratearia, tomando-se acessível a milhões de brasileiros, destruindo o componente feudal do latifúndio.16 16 Rangel, Ignácio. “Questão Agrária e Agricultura”. In Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, nº 7. Evidentemente, essa “Lei Áurea” não ocorreu, mas antes que se critique o raciocínio da quarta renda, atentemos para o fato de que a privatização dos serviços públicos é que criaria, na concepção de Rangel, as novas oportunidades de investimento que poriam em movimento o preço da terra como função inversa da taxa de lucro da economia.

No mais, o desígnio da terceira lei se cumpriu: as relações mercantis que existiam no lado externo do polo interno se generalizaram para o lado interno, na forma de semi-salariado (supomos que Rangel qualifique o salariado como semi-salariado porque parte da mão-de-obra agrícola recebe, além do salário, o usufruto de moradia, ou até mesmo de cultivo para fins próprios, na terra que trabalha). Podemos também ressaltar, embora Rangel não o faça, que a quarta lei também funciona na Quarta Dualidade: a indústria presente no lado interno do polo externo se espraiou para o lado externo do polo interno, pois hoje as principais explorações agrícolas podem ser classificadas de agroindústria. Rangel preferiu ressaltar o caráter semicapitalista da agricultura, pois esta, além do lucro, também gera a renda da terra.

Agora, exporemos a modificação na Quarta Dualidade anunciada acima: é preciso enunciar algo como uma “lei especial de encerramento da Dualidade”, que diria: “na Quarta e última Dualidade, a terceira lei funciona para os dois polos, o interno e o externo, com ambos os lados internos absorvendo o modo ou a forma de produção presente em seus lados externos: o lado interno do polo interno, antes feudal, absorve o capitalismo de seu lado externo; o lado interno do polo externo, antes apenas industrial, absorve o capitalismo financeiro de seu lado externo”.

Rangel, provavelmente para manter a elegante simetria de suas “leis”, não atentou para o que ele mesmo anuncia em Recursos ociosos e política econômica: “Não pretendo que o capitalismo financeiro brasileiro esteja à volta da primeira esquina, mas a um passo importante em sua direção ... é iminente, não por efeito de preconceitos ou motivações ideológicas ... (mas por causa da) necessidade imperativa de engendrar demanda para a capacidade ociosa acumulada em importantes elementos constitutivos do Departamento Ida economia brasileira, no ato de suprir recursos para o rompimento dos pontos de estrangulamento da área dos grandes serviços de utilidade pública.”17 17 Rangel, Ignácio. Recursos Ociosos e Política Econômica. São Paulo, Hucitec, 1980, p. 138. Em suma, a reestruturação das finanças nacionais, preparando-as para captar recursos outros que não os fiscais e os onerosos do exterior - como foram os recursos que financiaram os serviços públicos de que hoje dispomos - para o financiamento da infraestrutura que nos falta, criará o capitalismo financeiro brasileiro. Essa reestruturação do setor financeiro deveria ter ocorrido no bojo de fatos políticos que seriam, na aparência e na essência, fatos nacionais, mas que trariam embutida a ascensão do capitalismo industrial do polo externo à hegemonia política - transformado em capitalismo financeiro, conforme a “lei especial de encerramento”. Temos então a Quarta Dualidade Brasileira:

Dissemos anteriormente que o determinismo e a ortodoxia de Rangel implicam uma certa cegueira sociológica. Contudo, a sua excelência teórica o resgata parcialmente: diz ele que a nova classe que surge como sócio menor de cada Dualidade “é politicamente inexperiente, não obstante ser portadora de grande dinamismo”.18 18 Op.cit. na nota (7). Na década de 80, a classe latifundiária foi a única a se apresentar com seu próprio candidato à Presidência da República, defendendo exclusivamente seus interesses, através da UDR. Essa nova classe tem dinamismo suficiente para gerar tal candidatura, mas, por outro lado, não é hegemônica, não sabe falar pelo interesse de todo o país. Ressalte-se que na UDR representavam-se as duas ordens de interesse latifundiário, tanto a que deve perecer, o resquício feudal, como a economicamente progressista, a propriedade capitalista da terra. Se os políticos da época tivessem identificado o sábio Rangel, poderiam ter tomado a seguinte diretiva: suponhamos o antigo MDB; a cúpula do partido procuraria atender aos interesses da classe industrial hegemônica da forma mais conveniente ao interesse da população em geral. Como linha secundária, criaria uma ala ruralista, que, ao contrário de alas do tipo “feminina”, ou “jovem”, que significam que estes têm pouca importância, teria toda a importância. Dessa forma, o monstrengo político que foi a UDR não viria a existir, porque o dinamismo de seu setor progressista - progressista no sentido econômico, é bom frisar - encontraria melhor canal de expressão.

Das diversas manifestações da sociedade civil brasileira durante as décadas de 70 e 80, das quais a Constituinte foi o ponto culminante, uma deve ser ressaltada: o manifesto de oito dos principais empresários privados brasileiros, em 1978. Nesse documento, a liderança do capitalismo industrial se posiciona como mais um dos setores da sociedade civil a reclamar a redemocratização do país, e não como o principal setor, o setor hegemônico. A rigor, sua condição hegemônica implicaria a difusão de seu posicionamento no seio de outras manifestações da sociedade civil. Essa debilidade política de se posicionar como apenas mais um dos setores da sociedade civil, e não como o seu setor hegemónico, é a contrapartida de sua debilidade empresarial. Conforme dissemos no primeiro parágrafo, não pretendemos abordar aqui a razão sociopolítica de termos perdido a década passada em termos econômicos; apenas diremos que, por não ter tido garra política suficiente para evocar para si o que lhe era - e ainda é - de direito, o investimento em novos serviços públicos, o empresariado privado falhou na sua tarefa de liderar o povo brasileiro na consecução daquilo que mais queremos, de que mais precisamos: a prosperidade econômica.

A visão ideológica (ideológica no sentido marxista de falsa consciência) da crise diz que esta é o resultado de excesso de Estado. A verdade é o oposto: não há excesso de Estado, pois este cuida mal e porcamente de seus encargos atuais; o que realmente causa a crise é a carência de empresários privados. E quando falamos em empresários, não nos referimos a empresários de pequenas e médias empresas, falamos daqueles que têm capacidade de arregimentar recursos para grandes projetos e para administrá-los, tais como ferrovias, rodovias, telecomunicações, energia, infraestrutura em geral. Infelizmente, apenas o Estado tem demonstrado competência para esse tipo de empreendimento.

Temos então que, na Quarta Dualidade, o modo de produção capitalista atinge a todos os setores da economia, e, assim, “a economia e a sociedade se hegemonizam, prenunciando o fim do próprio fenômeno da Dualidade”19 19 Op. cit., p. 33. . A teoria dual de Rangel tem a virtude de propor a seguinte periodização da história brasileira: Brasil Colonial (1500-1822), Brasil Dual (1822-?), e um novo Brasil, uma nova etapa histórica, que surgirá a partir da privatização dos serviços públicos. Quando o poeta pop canta:

“Brasil, mostra a tua cara!”, nós, discípulos de Rangel, entendemos: “Brasil, mostra a tua nova cara!” Nesse sentido, Rangel se distingue de quase todos os outros intelectuais brasileiros, que se aferram ao estribilho de que “nada muda, tudo é sempre a mesma coisa!”

Agora, repetimos a pergunta que iniciou este artigo: poderia essa crise da “década perdida” ter sido prevista? Sim, respondemos, essa crise poderia ter sido prevista em toda a sua dimensão, se se atentasse para a profundidade da transformação que estamos sofrendo: passamos pelo “trabalho de parto” de uma nova identidade nacional, uma identidade não dual, uma quadra histórica que só se compara a 1822 e a ... 1500! E qual a solução para a crise? O sábio Rangel nos alerta desde 1978: a solução para a crise é a privatização dos serviços públicos.

  • 1
    Ignácio Rangel, na última sentença do posfácio que preparou em 1978 para a terceira edição de seu livro A Inflação Brasileira, afirmava: “Parece prenunciar(-se) uma reestruturação no pacto fundamental de poder da sociedade brasileira, em substituição ao de 1930”. Referia-se ele ao advento, em sua terminologia, da Quarta. Dualidade Brasileira. E também afirmava: “O novo pacto de condomínio deverá, necessariamente, abrir o setor dos serviços de utilidade pública aos investimentos privados”. Rangel, Ignácio (1963). A Inflação Brasileira. São Paulo, Bienal, 1986, pp. 150 e 136
  • 2
    Marx, Karl, & Engels, Friedrich. Textos, v. 3, São Paulo: Edições Sociais. Manifesto Comunista. 1847, pp. 21-2.
  • 3
    Srour, Robert H. Modos de Produção: Elementos da Problemática. Rio de Janeiro, Graal, 1978, pp. 121-2.
  • 4
    Essa metodologia não é apenas marxista, é científica no sentido mais amplo: “dar uma explicação causal decerto evento específico equivale a deduzir um enunciado em que se descreve o evento, a partir de duas espécies de premissas: algumas leis universais e alguns enunciados singulares ou específicos, que podemos chamar condições iniciais específicas”. In Popper, Karl. A Miséria do Historicismo. São Paulo, Cultrix, 1991, p. 95. A citação de Srour está na op.cit., p. 58.
  • 5
    Srour define formas de produção como modalidades de um modo de produção. Op.cit., p. 129.
  • 6
    Econômico no sentido ockhamiano: a ordem melhor é a que realiza o máximo resultado com o mínimo de esforço. Albagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia, São Paulo, Mestre Jou, 1982, verbete economia.
  • 7
    Neste artigo, utilizamos como referência a versão do modelo exposta em Rangel, Ignácio. “A história da Dualidade Brasileira”. Revista de Economia Política 1(4), out.-dez. 1981.
  • 8
    Luiz Carlos Bresser-Pereira e José Márcio Rego denominam “feudalismo mercantil” o lado externo desse polo, em “Um mestre da economia brasileira: Ignácio Rangel”.Revista de Economia Política 13(2), abr.-jun. 1993.
  • 9
    De fato, Robert Reich diz que os Estados Unidos são uma dualidade, com os 20% mais ricos de sua população fazendo parte de uma economia e comunidade globais, do tipo “lado externo”, e cada vez mais ricos e prósperos, e mais desidentificados e separados dos outros 80%, que trabalham a economia e habitam a comunidade “interna”, cada vez mais insulados e relativamente mais pobres. The Work of Nations. Nova York, Vintage Books, 1992.
  • 10
    Kondratieff, Nikolai. The Long Wave Cycle. Nova York, Richardson & Snyder, 1984, p.81
  • 11
    Kondratieff delimita assim os ciclos de longo prazo:
    Primeiro ciclo:
    1. Onda de alta: dos anos finais dos anos 80 e anos iniciais dos anos 90 do séc. XVIII a 1810-17.
    2. Onda de baixa: de 1810-17 a 1844-51.
    Segundo ciclo:
    1. Onda de alta: de 1844-51 a 1870-75.
    2. Onda de baixa: de 1870-75 a 1890-96.
    Terceiro ciclo:
    1. Onda de alta: de 1890-96 a 1914-20.
    2. Onda de baixa: provável início em 1914-20.
    Pode-se extrapolar que a onda de baixa do terceiro ciclo se encerrou ao fim da segunda Guerra Mundial (1949). Dessa época até 1973 teríamos tido então a fase de alta do quarto ciclo. Estamos, consequentemente, vivendo a fase de baixa desse ciclo, cujo fim deverá coincidir, grosso modo, com o fim do século.
  • 12
    Op.cit., p. 13.
  • 13
    Popper, Karl. Op.cit., p. 90.
  • 14
    Op.cit., p. 14. Esse texto é, até o momento, a melhor introdução à obra de Rangel.
  • 15
    Op.cit., p. 31.
  • 16
    Rangel, Ignácio. “Questão Agrária e Agricultura”. In Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979, nº 7.
  • 17
    Rangel, Ignácio. Recursos Ociosos e Política Econômica. São Paulo, Hucitec, 1980, p. 138.
  • 18
    Op.cit. na nota (7).
  • 19
    Op. cit., p. 33.
  • 20
    JEL Classification: B31; B24.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1994
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