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A constelação pós-walrasiana

The post-walrasian constellation

RESUMO

Este artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é uma caracterização completa do conceito neoclássico de racionalidade, mostrando seus atributos constitutivos. A segunda é a apresentação de programas alternativos de pesquisa em microeconomia que se diferenciam do neoclássico porque contradizem um ou mais desses atributos. Além disso, pretende mostrar que a microeconomia é hoje um campo aberto de pesquisa e não o campo da teoria neoclássica. A propósito, microeconomia é definida como a ciência dos processos de decisão em sistemas complexos como organizações e mercados.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; complexidade

ABSTRACT

This paper has two main objectives. The first one is a full characterization of the neoclassical concept of rationality, showing its constitutive attributes. The second is the presentation of alternative research programs in microeconomics that differ from the neoclassical one because they contradict one or more of these attributes. Besides, it intends to show that microeconomics is today an open field of research and not the field of neoclassical theory. By the way, microeconomics is defined as the science of decision processes in complex systems like organizations and markets.

KEYWORDS:
History of economic thought; complexity

É bem sabido que o conhecimento, em todas as áreas, entrou num processo de fragmentação. Observa-se não só uma diversificação das ciências e de seus campos de pesquisa, mas uma multiplicação dos programas de pesquisa no interior desses campos. Aqui se examina brevemente como a explosão da estrela neoclássica mais brilhante, a economia walrasiana, resultou numa constelação de estrelas menores, cada uma delas com o seu brilho, mais ou menos intenso. Elas são muitas e estão em expansão. Porém, não se sabe ainda quais dos pontos no espaço da microeconomia representam um verdadeiro foco de luz e quais não passam de um novo ofuscamento.

Tomando como ponto de partida que a microeconomia como ciência estuda os processos de decisão dentro de certos sistemas institucionais complexos, organizações e mercados, procura-se esquadrinhar o seu campo de abrangência através do prisma da questão “racionalidade”. Após caracterizar o conceito de racionalidade da teoria neoclássica pela menção de seus atributos constitutivos, busca-se apresentar um conjunto de programas de pesquisa dela derivados, mostrando como eles se diferenciam entre si pela negação de um ou mais desses atributos. Vale a pena mencionar já aqui que a teoria neoclássica padrão cabe na definição acima de microeconomia, mas só porque trabalha com um conceito de mercado em que as instituições estão ocultas ... Aliás, a microeconomia é hoje um campo de pesquisa aberto e não somente a esfera por excelência da teoria neoclássica.

Antes, porém, é preciso mencionar que o programa de pesquisa iniciado com os Elementos de Walras, que culminou no modelo de Arrow-Debreu-Hahn, acha-se em sérias dificuldades. Segundo Frank Hahn, ele encontrou limites internos no curso de seu próprio processo de desenvolvimento. Especulando sobre o futuro da ciência econômica, esse autor, por isso, veio dizer recentemente que “a teorização do tipo ‘puro’ ( ... ) tornar-se-á menos e menos possível”. Porque, ao se procurar enfraquecer os postulados da teoria para ampliar o campo dos fenômenos explicados, os teóricos foram surpreendidos com a multiplicação dos equilíbrios possíveis, ou seja, com a emergência de crescente número de indeterminações. Em consequência, no próprio seio da análise de equilíbrio geral, tornou-se necessário apelar para supostos ad hoc: “em vez de teoremas serão necessárias simulações, em vez de axiomas simples e transparentes aparecerão provavelmente postulados históricos, sociológicos e psicológicos” (Hahn, 1991HAHN, F. “The next hundred years”. Economic Journal, vol.101, janeiro, 1991, pp. 40-4. , p. 40). Nesse caminho, ainda segundo ele, o que era “hard science” torna-se “soft science”.

Originalmente, a teoria walrasiana fundava-se conscientemente na filosofia cartesiana. No plano ontológico, aceitava a concepção dualista segundo a qual há dois mundos distintos: res cogitans e res extensa. No plano epistemológico, concebia o conhecimento como produto de uma razão infalível e perfeitamente transparente a si mesma: tal razão apreende o mundo, trabalha no modo geométrico e só se contenta com o distinto e o claro (Koppl, 1992KOPPL, R. “Price theory as physics: the cartesian influence in Walras”. Methodus, dezembro, 1992, pp. 17-28. ). Por isso, nos Élements, Walras distingue os fatos naturais dos humanitários. Os primeiros “têm a sua origem no jogo das forças da natureza, que são cegas e fatais”, e os últimos “têm sua origem no exercício da vontade do homem, que é uma força livre e clarividente” (Walras, 1983WALRAS, L. Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura. São Paulo, Abril Cultural, 1983. , p. 16). Considerando, então, os eventos de mercado como ocorrências transcendentes à deliberação humana, trata os valores de troca como fatos naturais, numa teoria que nunca pretendeu mais do que ser uma “física dos preços”. Porém, ele não deixa de se referir às decisões dos agentes como resultados de sua vontade livre e de sua razão individual. Cada um deles é visto como alguém que determina as suas curvas de utilidade e que busca a sua máxima satisfação, é claro. Posto isso, entretanto, tudo parece se inverter, pois essas decisões não podem deixar de se sujeitar irrevocavelmente ao mecanismo do mercado competitivo. Como os preços de mercado e as quantidades trocadas não podem ser manipulados pelos agentes, são tratados, pressuposto o dualismo cartesiano, como naturais.

De qualquer modo, a teoria neoclássica foi sendo construída durante mais de um século a partir de um certo número de suposições sobre o comportamento do agente econômico. Estas dizem respeito à sua motivação, à sua capacidade cognitiva e ao seu padrão de desempenho. Circunscrevendo tudo, encontra-se o suposto de que o agente econômico age de maneira racional, ou, especificando melhor, teleologicamente racional. Porém, o que significa isso, exatamente? O esforço que se segue para responder a essa pergunta toma por base, sem acompanhá-lo inteiramente, entretanto, um texto de Van Parijs, escrito aproximadamente com essa mesma preocupação (Parijs, 1990PARIJS, P. V. “Le modele économique dans les sciences sociales: imposture ou nécessité?”. Le Modele Économique et ses Rivaux. Paris, Droz, 1990, pp. 27-44. ).

Em primeiro lugar, a racionalidade neoclássica é iluminista e o seu iluminismo deve muito ao que Macpherson (1979MACPHERSON, C. B. A Teoria Política do Individualismo Possessivo - de Hobbes a Locke. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979. ) denominou individualismo possessivo. Nessa perspectiva emergente caracteristicamente na época moderna, o indivíduo é encarado como proprietário de sua pessoa e dono de suas próprias capacidades, nada devendo à sociedade por tê-las adquirido. Como a propriedade privada funda a sociedade capitalista moderna, ela passa a ser vista como atributo essencial do homem e como fundamento da liberdade e da autorrealização humana. Assim, os indivíduos como donos de si mesmos são considerados agentes efetivos, autossuficientes psicologicamente, capazes de agir de modo independente. Tal liberdade aparece na teoria neoclássica por meio dos supostos de que os agentes, ainda que submetidos inexoravelmente a uma ordem mecânica, são donos de suas preferências.

Esta última suposição tem sido contestada do ponto de vista conservador cristalizado no programa de pesquisa neo-austríaco. Para o mestre maior dos economistas libertários, Hayek, a ordem mercantil não é uma ordem mecânica, mas uma ordem espontânea, que se formou historicamente pela institucionalização de normas abstratas e gerais. Dentro dela, segundo ele, os indivíduos agem com base em seus propósitos, mas “ ‘propósito’ significando, nesse caso, é claro, apenas que as ações dos elementos tendem a assegurar a preservação ou a restauração dessa ordem”. Nessa perspectiva, as preferências que orientam os agentes não são mais do que “taquigrafias teleológicas”. E as regularidades de seu comportamento não são mais do que “regularidades de conduta propícias à manutenção da ordem” (Hayek, 1985HAYEK, F. A. Direito, Legislação e Liberdade. Uma Nova Formulação dos Principios Liberais de Justiça e Economia Política. São Paulo, Visão, 1985 (vol. 1). , p. 41). Eis que, por essa ótica, o celebrado indivíduo é revelado como função.

A suposição de que as preferências são autônomas tem sido criticada também de um ponto de vista crítico do capitalismo. Elster, por exemplo, que afirma ter simpatia pelo argumento liberal de que as pessoas sabem o que é melhor para elas, não reluta em criticar o liberalismo por negligenciar a questão crucial da “endogeneidade das preferências”. Procedendo assim, tal tradição impede que se perceba a falta de liberdade que cerca os indivíduos, já que as condições sociais existentes limitam severamente as escolhas que eles podem efetivamente fazer. Por isso, o programa de pesquisa que propõe parte da teoria da escolha racional para se afastar cuidadosamente dela, com o fim de examinar e discutir a formação das crenças cognitivas e dos desejos dos indivíduos. A ideia reguladora que orienta esse programa é libertar o homem, descobrindo “as forças causais que modelam e pervertem as suas intenções” (Elster, 1978ELSTER, J. Logic and Society. Contradictions and Possibles Worlds. Nova York, John Wiley & Sons, 1978. , p. 158). Surge assim, no campo pós-walrasiano, um programa de pesquisa “intruso”, que se pode denominar microeconomia radical.

Em segundo lugar, a racionalidade da teoria neoclássica concerne em exclusivo ao modo de dispor de meios para alcançar fins determinados. Ela vem a ser, por isso, cognitiva e instrumental. O agente é descrito como um ser que se encontra informado por um saber empírico. Por isso, ele é encarado como alguém capaz de analisar suficientemente o mundo objetivo existente e de fazer uso das leis que o governam, adequadamente. A partir de uma situação inicial e dentro das condições aí encontradas, o agente busca a realização de um fim possível de ser alcançado. Para tanto, emprega os meios disponíveis de um modo correto. Assim, a situação inicial é transformada em final, e o objetivo procurado é efetivamente realizado.

Esse modo de conceber o agente exclui da esfera do racional o comportamento regulado por normas que responde a demandas vindas da sociedade e o comportamento auto expressivo que busca exteriorizar os conteúdos da subjetividade individual. Ademais, elimina também a possibilidade de que se venha considerar como racional a ação voltada para o entendimento (Prado, 1993PRADO, E. F. S. “Conceitos de ação racional e os limites do enfoque econômico”. Revista de Economia Política 13(1), jan.-mar. 1993. ): E isso tem consequências: assim é privilegiado abstratamente um modo de coordenar as ações humanas, qual seja aquele que se baseia na compatibilidade possível das preferências individuais, tomando-as como dadas, estáveis ou mesmo fixas. Se a racionalidade é entendida de modo mais amplo, emergem outros modos de coordenar as ações, seja porque os agentes seguem normas compartilhadas, seja porque expressam valores comuns, seja porque buscam um entendimento comunicativo. Nesse último caso, o que procuram é a mudança e a convergência das preferências individuais por meio da interação dialógica, ou seja, pela caminho da argumentação racional.

Em terceiro lugar, é preciso mencionar que a racionalidade neoclássica pressupõe que o agente econômico é um ser egocêntrico. Ele não apenas age intencionalmente com base em suas próprias preferências, mas busca tão-somente, de modo crucial, o seu auto interesse. Por ser egocêntrico, o comportamento aí tipificado é estreitamente consequencialista, ou seja, está motivado unicamente pelas consequências que as suas ações possíveis terão para a própria satisfação do agente. Ele pode ser egoísta (se somente a satisfação direta conta) ou altruísta (se a satisfação de outros conta para a própria satisfação). Entretanto, mesmo sendo orientado pelas preferências do agente, ele não pode ser sociocêntrico. Porque na teoria neoclássica não pode haver explicação para um comportamento como “fazer greve exclusivamente por solidariedade”. Essa teoria não admite que o interesse individual possa estar em contradição com um interesse entendido como geral e que este possa ser posto em primeiro lugar numa ordenação feita pelo indivíduo racional.

O egocentrismo encontrado nos modelos neoclássicos tem sido criticado por Etzioni (1988ETZIONI, A. The Moral Dimension-Toward a New Economics. London, The Free Press, 1988. ). Esse autor tem sugerido que os economistas devem esforçar-se, junto com ele, para desenvolver um novo programa de pesquisa, “socioeconômica”, cujo objetivo é corrigir a unidimensionalidade dos agentes da economia neoclássica. Mesmo trabalhando com um conceito restrito de racionalidade cognitiva, ele quer provar “( ... ) os méritos da atribuição de um papel-chave aos valores morais, às emoções e aos vínculos sociais no estudo do comportamento econômico” (Etzioni, 1988ETZIONI, A. The Moral Dimension-Toward a New Economics. London, The Free Press, 1988. , p. X). A teoria neoclássica, ao conceber o indivíduo como alguém que maximiza utilidade, filia-se à tradição da ética utilitarista. Ele julga necessário incorporar, por isso, elementos da ética deontológica na explicação do comportamento econômico. E dá exemplos: as pessoas não poupam só para consumir na velhice, mas também porque têm vergonha de depender dos filhos ou do governo no futuro; as pessoas pagam impostos não só porque têm medo de punições, mas porque consideram o governo como uma instituição necessária.

Em quarto lugar, a racionalidade neoclássica é dita perfeita, pois se supõe sempre que o agente considera que sabe tudo o que precisa saber para tomar decisões corretas de seu próprio ponto de vista. Admite-se que ele conhece as suas dotações, todos os bens trocados nos mercados e os preços em que são aí transacionados. Daí resulta que é sempre capaz de chegar a uma escolha ótima. Dito de outro modo, dadas as restrições a que está sujeito, o agente é sempre capaz de maximizar, ou seja, de fazer uma opção em que obtém a maior satisfação possível. O agente neoclássico é racional em sentido forte; ele nunca cai em contradição, mas só porque na sua formulação se ignora completamente o processo cognitivo.

Essa suposição foi contraditada, como se sabe, por Simon (1976SIMON, H. “From substantive to procedural rationality”. In LATSIS, S.J. (ed.) Method and Appraisal in Economics. Cambridge, Cambridge University Press, 1976. ). Esse autor sugeriu já há algumas décadas uma nova linha de pesquisa em economia, caracterizando-a pela adoção do conceito de racionalidade limitada ou, para ressaltar outro aspecto, de racionalidade procedimental. Ela é dita limitada porque se passa a considerar que as informações não estão livres, ou seja, que custam. É dita procedimental, por sua vez, porque envolve deliberação em processo, ou seja, racionalidade processual. Em suas palavras: “a sua racionalidade procedimental depende do processo em que é gerada” (Simon, 1976SIMON, H. “From substantive to procedural rationality”. In LATSIS, S.J. (ed.) Method and Appraisal in Economics. Cambridge, Cambridge University Press, 1976. , p. 131). Nesse programa de pesquisa aparece, assim, um agente que não sabe tudo o que se encontra envolvido na tomada de decisão e que, para tomá-la, segue regras práticas simplificadas de comportamento. Surge aí um agente que se adapta de modo prudente diante de um mundo excessivamente complexo em relação a sua capacidade cognitiva, alguém que sabe que muito ignora. Em consequência, Simon deixa de trabalhar com o conceito de maximização, para empregar o de satisfação limitada (satisficing). Para ele, “o sistema de processamento de informação” de que se trata, ou seja, o homem, não busca “soluções ótimas”, mas apenas “soluções boas”.

Em quinto lugar, a racionalidade neoclássica é objetivista, e isso implica, desde logo, que ela não é uma teoria neutra epistemologicamente. Admite não só que o agente sabe tudo o de que necessita para tomar decisões, mas também que o seu saber é correto, no sentido de que corresponde exatamente aos fatos. Se o consumidor, por exemplo, toma decisão com base num preço, este é exatamente o preço de mercado. Se ele atribui uma probabilidade a um estado do mundo, esta probabilidade é a probabilidade real da ocorrência desse estado do mundo. Essa suposição faz do agente um ser quase onisciente, mas ela parece ser necessária para que um equilíbrio seja um equilíbrio. Em caso contrário, um equilíbrio individual ex-ante vem a ser um erro pessoal ex-post, do que resulta, obviamente, um desequilíbrio geral. Esse atributo, entretanto, pode ser modificado parcialmente quando se interpreta o equilíbrio em modelos em que nem todos os mercados a termo existem como equilíbrio temporário

Diversos programas de pesquisa existentes hoje em microeconomia trabalham com a suposição de racionalidade subjetiva (com ou sem pretensão de objetividade). Empregam-na todas as formulações teóricas que supõem, de um modo ou de outro, que o agente econômico, ao enfrentar a complexidade do mundo, apresenta para si um problema de interpretação que não pode ser resolvido de modo definitivo. Dito de outro modo, são formulações que concebem os indivíduos como seres necessariamente falíveis. Em consequência, essas teorias têm de operar com processos de decisão envolvendo boas razões, mas referidos a situações em que há incerteza e ignorância. Nesse caso, as ações humanas não prescindem de conjecturas e de regras práticas, as quais guardam em si a pretensão de serem verdadeiras ou meramente adequadas, respectivamente. Se a formação de expectativas racionais fortes ou fracas (Arida & Lara Resende, 1978ARIDA, P. & LARA-RESENDE, A. A Note on Rational Expectations. Cambridge, Ma, MIT, 1978. ) for uma impossibilidade, já que o agente pode não saber como superar a sua ignorância em certas circunstâncias, então, é possível supor que ele adota, como sugeriu Keynes, uma convenção fraca: “( ... ) que a situação existente nos negócios continuará por tempo indefinido, até que tenhamos razões concretas para esperar uma mudança” (Keynes, 1983KEYNES, J. M. “Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. Keynes”. Coleção Os Economistas. São Paulo, Abril Cultural, 1983. , p. 110).

Em sexto lugar, a racionalidade neoclássica é, fazendo uma homenagem ao maior matemático da Antiguidade, arquimediana. Pois o sábio grego já dizia que, se ele encontrasse um único ponto fixo, seria capaz de mover o mundo. Ora, a teoria neoclássica padrão parece ter encontrado um tal fulcro: a utilidade (ou a indiferença). Sabe-se que os bens que entram nas preferências têm muitas dimensões e que são avaliáveis, portanto, sob muitos critérios: a laranja é doce e o limão é azedo, mas o consumidor que habita os livros, no intuito de maximizar a sua satisfação, sempre aceita trocar um tanto de laranja por um tanto de limão. Invariavelmente ... mesmo se a laranja for uma hóstia sagrada e o limão for o ouro ... A teoria neoclássica padrão, como se sabe, supõe sempre que as dimensões dos bens são comensuráveis entre si, ou seja, que os diferentes critérios de avaliação são redutíveis a um único critério.

Esse suposto foi desafiado, como se sabe, pela teoria da escolha lexicográfica, que se baseia na existência de critérios irredutíveis. Hersztajn-Moldau, entre outros, tem-se esforçado para mostrar que a violação do suposto de redutibilidade não é tão crucial como parece à primeira vista. Segundo ele, “a existência de critérios irredutíveis a um denominador comum é consistente com os resultados extraídos da teoria convencional, gerando um comportamento semelhante ... [ao do agente que] maximiza uma função representativa de suas preferências” (Herstztajn-Moldau, 1988HERSZTAJN-MOLDAU, J. A Teoria da Escolha com Objetivos Irredutíveis e suas Implicações. São Paulo, IPE/USP, 1988. , p. 15). Isso parece querer dizer, entre outras coisas, que a negação do suposto arquimediano não tem consequências subversivas para a microeconomia. Entretanto, à medida que representa um afastamento adicional em relação à ética utilitarista, tal transgressão tem de ser examinada melhor. Se não é por redução, como o agente estabelece a hierarquia dos critérios?

Em sétimo lugar, a racionalidade neoclássica é paramétrica. E por isso se entende que o agente econômico considera tudo o que pertence ao ambiente como dado, ou seja, como esfera do natural e do indiferente, mesmo se nele se encontram outros agentes. Isto é, ele raciocina e calcula as consequências de sua ação como se não estivesse se defrontando com outros agentes racionais que buscam prever o curso de sua própria ação, com o fim de levá-la em conta nos seus próprios cálculos. Essa suposição aparece na teoria quando aí se diz que os agentes são tomadores de preço. Pois, se esse é o caso, eles não só não influem nos preços, mas agem supondo que os preços não podem ser influenciados intencionalmente por outros agentes.

A alternativa à racionalidade paramétrica é a racionalidade estratégica. Nesse caso, cada agente trata os outros agentes como rivais capazes de calcular as consequências de suas ações, levando em conta as reações possíveis de todos os outros, inclusive as suas próprias. Esse tipo de racionalidade, como se sabe, aparece na teoria dos jogos, hoje um campo muito fértil de pesquisa em economia. Aí, opera-se com uma concepção racionalista de homem, supondo-o completa e objetivamente informado, de tal modo que o estilo de modelagem neoclássico é conservado. Entretanto, a teoria dos jogos parece poder extrapolar esses limites, passando a considerar certos problemas que aparecem nos modelos de racionalidade procedimental e limitada. Nesse caso, muitas de tais “fricções” podem ser aí consideradas.

Em último lugar, a racionalidade neoclássica é formalmente monológica. Para entender o que isso significa, pode-se lembrar de Aristóteles, tal como tem sido feito na literatura crítica da noção moderna de ciência. O filósofo da Antiguidade chamava de praxis a atividade ética e política dos cidadãos, os quais se consideravam sobretudo como membros da cidade-estado. Como tais, considerava que eles são homens que buscam manter uma conduta virtuosa, com a finalidade última de alcançar o bem da polis. O conhecimento necessário à praxis era dito dialektikos, e requeria a virtude da fronesis. Já a atividade de contemplar o cosmos, para apreender a sua ordem e a sua natureza, Aristóteles denominava de theoria. Ao contrário do agente anterior, que não podia aspirar mais do que ter uma compreensão falível capaz de propiciar uma orientação prudente sobre o que fazer nas situações cambiantes da vida, este último podia pretender o caráter de um conhecimento apodítico sobre uma ordem eterna. A característica desse saber teórico era a busca do exato, do perfeito e do certo.

Essa antiga distinção de Aristóteles, atravessando mais de dois milênios, reflete-se na distinção moderna entre hard science e soft science. A primeira dessas duas palavras corresponde evidentemente à theoria e a segunda corresponde ao saber dialético. Quais são suas caraterísticas?

O filósofo grego distinguia três tipos de conhecimento: os científicos, que aspiram à certeza, os falsos, que apenas refletem as aparências das coisas, e os dialéticos, que só podem alcançar a condição de prováveis. Na lógica, separava, então, a sofística, que estuda os raciocínios aparentemente verdadeiros e que visam enganar; a analítica, que trata dos raciocínios demonstrativos através dos quais se chega a um saber rigoroso; e a dialética, que é a parte da lógica que estuda a argumentação sobre o que pode ser ou não ser, o meramente provável. Os raciocínios analíticos, estabelecia, obedecem estritamente às regras da lógica da identidade e aspiram à clareza e à precisão. Já os raciocínios dialéticos trabalham com as oposições, com as imprecisões e com as dúvidas para chegar, no máximo, à boa opinião, ao provavelmente certo. A análise, por isso, é vista como inerentemente monológica (dependente só da evidência e da demonstração), enquanto a dialética é, sendo aqui redundante, dialógica (dependente do jogo das opiniões interpretativas) e retórica (dependente da força persuasiva dos argumentos).

A teoria da decisão econômica neoclássica, tal como outras assemelhadas, encontra-se, portanto, numa situação paradoxal: por um lado, ela se encontra no campo do saber dialético (pensando aqui no sentido aristotélico do termo), mas, por outro, tem a forma do saber analítico. Está na esfera do saber dialético porque trata da ação humana, e esta se inscreve no âmbito do possível, do que pode ou não ser, e não na esfera do determinado. Logo, ela também não pode pretender ser um conhecimento necessário, verdadeiro e certo. Ao contrário, como a ação humana é atividade intencional que tem significado, não só ela tem de se basear numa interpretação falível do que se encontra previamente interpretado, como tem de se envolver com a mediação entre o que é e o que deve ser.

Por outro lado, em especial na versão walrasiana dominante nas últimas décadas, a teoria neoclássica se desenvolve numa forma estritamente demonstrativa. Para tanto, no princípio, descreve o homem por meio de um conjunto de axiomas: da comparabilidade, da consistência, da continuidade etc. Esses axiomas, em conjunto, estabelecem um fundamento primeiro, fazem uma afirmação dura sobre o que é ser homem na esfera econômica. Eles implicam também uma opção bem restritiva sobre o que vem a ser a racionalidade humana. Mas isso não lhe é suficiente. A sua forma axiomática e dedutiva e o seu preciosismo matemático mostram que trata o homem como objeto, ainda que como objeto estranhamente racional. Em resumo, a teoria neoclássica move-se numa contradição: é soft science que se apresenta como hard science (Prado, 1991PRADO, E. F. S. Economia como Ciência. São Paulo, IPE/USP , 1991. , p. 218-22). Nesse sentido, como aliás toda teoria da decisão, ela nunca se despede do normativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • 1
    JEL Classification: B13; B22.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1994
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