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Currency board: o que é e como funciona?

Currency board: what is and how does it work?

RESUMO

Este artigo examina as experiências na operação de um currency board no norte da Rússia, Hong Kong e Estônia e discute sua implementação no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Regime monetário; política monetária; emissão de moeda

ABSTRACT

This paper examines the experiences in the operation of a currency board in North Russia, Hong Kong and Estonia, and discusses its implementation in Brazil.

KEYWORDS:
Monetary system; monetary policy; money supply

O Conselho da Moeda é um órgão emissor cuja, característica principal está na obrigação de converter a moeda de sua emissão na moeda ou mercadoria, que lhe serve de lastro, a uma determinada taxa fixa de câmbio. Para garantir a conversibilidade da moeda emitida, o Conselho é obrigado a manter uma reserva de ativos financeiros realizáveis na moeda-lastro1 1 Ver Walters (1987), pp. 740-42. .

Um país que pretenda adotar o Conselho da Moeda tem cinco decisões a tomar, referentes à organização e operação desse sistema:

  1. onde localizar o Conselho no organograma administrativo do país?

  2. que obrigações (papel-moeda e depósitos) serão lastreadas?

  3. com qual cobertura?

  4. que lastro será usado e a que taxa de câmbio?

  5. quem poderá ter acesso ao Conselho?

Nas seções seguintes, iremos examinar como foram tomadas essas decisões em três experiências documentadas de implantação do sistema: no Norte da Rússia, em 1918, em Hong Kong, 1983 e na Estônia, em 1992.

Um Conselho da Moeda existiu em 1918 e 1919 no Norte da Rússia por sugestão detalhada de Keynes, então funcionário do Tesouro Britânico.2 2 Conforme Spring-Rice (1919), p. 284, Hanke e Schuler(!991b), p. 658 e Harrod (1972) p. 266. O objetivo era instituir uma moeda para facilitar os pagamentos relacionados com a ocupação das tropas aliadas na região. A experiência foi bem-sucedida. A moeda criada (apelidada de rubro inglês) manteve paridade com a libra esterlina, e somente veio a sair de circulação com a retirada das tropas aliadas, e o resultante domínio da região pelo governo bolchevista. Se não fosse isso, o Conselho teria proporcionado lucros para o governo do Norte da Rússia, segundo argumenta Hanke e Schuler (1991HANKE, S. & SCHULER K. (1991a), Currency Boards for Eastern Europe. Washington, Heritage Foundation, 1991. , p. 663).

O sistema do Conselho da Moeda foi reintroduzido em Hong Kong, no ano de 1983, com o objetivo de conter uma forte crise de confiança na moeda e no futuro do país. Essa crise decorria de um período atribulado de incerteza com o regime de taxa cambial flutuante (1974-1983), e discussões sobre o futuro político da colônia.

Uma implantação recente de um Conselho da Moeda deu-se na Estônia em 1992. Após sua independência de Moscou, essa república báltica passou a aspirar a emissão de sua moeda nacional, em substituição ao rubro.

Analisaremos a seguir a operação do Conselho da Moeda em cada um desses países, procurando subsídios para se esboçar uma proposta brasileira nessa direção. Uma preocupação estará sempre presente: tem cabimento o Brasil adotar um sistema que funcionou em pequenas economias, recém-saídas de alguma forma de colonialismo, e que não possuíam um sistema financeiro mais sofisticado como o nosso? A adoção de um Conselho da Moeda no Brasil não seria um injustificado anacronismo? Ou será que a ameaça constante da volta da alta inflação brasileira, por si só, justificaria essa abordagem de “back to basics” em economia monetária?3 3 O sistema do Conselho da Moeda assemelha-se ao do padrão-ouro, que se caracterizava pela conversibilidade da moeda a uma taxa fixa, e pela existência de uma regra monetária clara, que vinculava automaticamente a oferta da moeda nacional ao estoque de ouro.

UMA AUTORIDADE MONETÁRIA INDEPENDENTE

Uma vez decidida a implantação do Conselho da Moeda, a primeira decisão a se tomar é sobre sua localização no quadro institucional. O debate no Brasil sobre a independência do Banco Central pode iluminar a questão. Um ex-presidente desta instituição, Francisco Gros, argumenta que “a independência do Banco Central será tão mais ampla quanto mais restrito e claramente definido for o seu escopo de atuação” (Gros, 1992GROS, Francisco “A independência do Banco Central”, Jornal do Brasil. 19 e 20 de outubro de 1992. ). Um Banco Central independente é para ele “uma instituição que recebe um mandato claro da sociedade no sentido de preservar a estabilidade da moeda do país acima de quaisquer outras prioridades concorrentes”, tais como o crescimento econômico e a geração de empregos.

Uma forma de delimitar o escopo de atuação do Banco Central é através da criação de um Conselho da Moeda em outra instituição separada, como na Inglaterra do século passado ou na Estônia de hoje, dentro de uma Diretoria de Emissão (Issue Department) autônoma do Banco da Inglaterra ou do Banco da Estônia.

No Norte da Rússia, o Conselho da Moeda - denominado “Emission Caísse” - pertencia ao governo provisório, tendo sido instalado com o auxílio da Inglaterra, que fez o primeiro dirigente. Um banqueiro inglês presidiu a Caisse por cinco meses.

O Conselho da Moeda de Hong Kong - o “Exchange Fund” - é um órgão governamental num país que nunca teve um banco central4 4 As discussões sobre a possível criação de um banco central em Hong Kong provocaram o seguinte comentário de um economista nativo: “The case against a central bank also lies in the fear that it would provide additional channels for bureaucrats and interest groups to influence the allocation of credit and to manipulate the exchange rate; and if a central bank is meant to provide monetary stability, history shows that it is neither necessary nor sufficient” (Fai, 1986, p. 162). , Dois bancos comerciais privados - o Hong Kong Bank e o Chartered Bank - têm funções de emitir cédulas bancárias, agir como banqueiro do governo, como câmara de compensação de todos os bancos, e como emprestadores de última instância. As tarefas de supervisão e regulação ficam com um “Commissioner of Banking”, e as de gerência monetária, com o secretário de assuntos monetários, que é o dirigente do “Exchange Fund”.

Na hipótese da criação de um Conselho da Moeda no Brasil, ele provavelmente se localizaria no Banco Central, que - por dispositivo constitucional - detém o monopólio da emissão monetária (art. 164). A decisão do Banco Central do Brasil de passar a divulgar uma versão mais detalhada de seus demonstrativos contábeis, abre caminho para uma maior transparência das suas operações ativas, e para a eventualidade de se criar um Conselho da Moeda. Nesse caso, o modelo da Estônia pode ser útil.

O Banco da Estônia foi dividido em duas diretorias: uma diretoria de emissão e uma diretoria bancária. A primeira opera o Conselho da Moeda. No seu passivo estão o papel-moeda e os depósitos em “kroon” na instituição, e no ativo as reservas internacionais em marco alemão, que é a moeda-lastro do “kroon”. Os ganhos de senhoriagem são repassados à diretoria bancária5 5 Os ganhos de senhoriagem referem-se à diferença entre os juros auferidos do investimento das reservas internacionais e as despesas administrativas do Conselho, tais como a impressão de cédulas e a cunhagem de moedas metálicas. . Essa diretoria detém as reservas internacionais excedentes, e é responsável por outras funções de um banco central como, por exemplo, a assistência financeira ao sistema bancário. A divisão de responsabilidade entre as duas diretorias visa assegurar que essa assistência financeira não vá além das reservas excedentes, o que poria em risco a credibilidade da moeda emitida.

OBRIGAÇÕES A LASTREAR

Um corolário na criação de um Conselho da Moeda é que a aquisição da moeda emitida somente pode ser feita com ouro ou moeda estrangeira. O rubro do Norte da Rússia era trocado por libra esterlina, o dólar de Hong Kong pelo dólar dos Estados Unidos, e o “kroon” da Estônia pelo marco alemão.

Uma outra decisão a ser tomada na implantação de um Conselho da Moeda refere-se à extensão da conversibilidade sobre as obrigações monetárias. Quais serão as obrigações a serem lastreadas? Em Hong Kong e no Norte da Rússia, como na maioria dos Conselhos da Moeda, somente a moeda-papel e a moeda metálica foram lastreadas. A conversibilidade não atingia, portanto, os depósitos bancários e outros ativos financeiros. Se uma pessoa tem um depósito bancário e quer obter moeda estrangeira, ela deve primeiro converter o depósito em moeda do Conselho para então trocá-la pela moeda estrangeira.

Já na Estônia, decidiu-se estender o lastro para os depósitos de reserva dos bancos comerciais, por duas razões, segundo Bennett (1993BENNETT, Adam G. G. “The operation o fthe Estonian Currency Board”, IMF Staff Papers, v. 40, nº 2, junho 1993. , p. 402): pela ausência de uma efetiva compensação interbancária fora do Banco da Estônia, e porque se quer forçar os bancos a manter saldos de precaução (acima da reserva em caixa) contra um eventual fluxo inesperado de saques.

A GARANTIA DA CONVERSIBILIDADE

Uma terceira decisão a ser tomada na criação de um Conselho da Moeda diz respeito à cobertura do lastro. O caso mais frequente é de, pelo menos, 100 % de cobertura da moeda reserva que serve de lastro para a emissão da moeda do Conselho. O objetivo dessa cobertura total é garantir recursos para a conversibilidade. Mas caso o país não disponha de lastro suficiente, uma solução apontada por Osband e Villanueva (1993OSBAND, K. & VILLANUEVA, D. “Independent Currency Authorities”, IMF Staff Papers . v. 40, nº 1, março 1993. , p. 205) é dar cobertura a uma fração do estoque inicial de moeda, cobrindo 100% das emissões subsequentes.

Outra solução seria a circulação paralela de duas moedas nacionais: a antiga e a nova, sendo esta emitida pelo Conselho à medida que ele vai adquirindo unidades da moeda lastro numa paridade fixa. Desta forma, o Conselho acumula reservas internacionais independentemente daquelas existentes no Banco Central.

O Conselho da Moeda da Estônia iniciou suas operações com uma cobertura de 90%, graças à restituição de uma dívida em ouro do Banco da Inglaterra.

A “Emission Caísse” do Norte da Rússia ofereceu uma baixa cobertura de apenas 75% de reservas em libra esterlina. O restante foi completado com títulos do governo provisório. Segundo Hanke e Schuler (1991b)KANKE, S. & SCHULER K. (1991b), “Ruble Reform: a Lesson from Keynes”, Cato Journal. v. 10, nº 3, 1991. , este foi o único defeito do Conselho da Moeda do Norte da Rússia, pois ele foi à falência devido à perda de valor desses títulos públicos.6 6 “When we consider how difficult the circumstances that faced the Caisse were, we must conclude that the scheme worked well. In consequence, the Caisse’s performance deserves a close look today. Indeed, its experience suggests how the USSR could make the ruble a conversible currency.” (Hanke & Schuler, 1991 b, p. 664.)

A MOEDA LASTRO E A FIXAÇÕES DO CÂMBIO

A escolha da moeda lastro é determinada, principalmente, pela posição de força da moeda e pelas relações comerciais do país.

Os fluxos comerciais da Estônia favoreciam a escolha da moeda da Finlândia ou da Suécia. A escolha, porém, recaiu sobre o marco alemão por causa de sua “força e respeitabilidade”, segundo Bennett (1993BENNETT, Adam G. G. “The operation o fthe Estonian Currency Board”, IMF Staff Papers, v. 40, nº 2, junho 1993. , p. 453). A taxa cambial do “kroon” foi fixada em torno da taxa de câmbio marco/rubro, que prevalecia por ocasião da reforma monetária.

A moeda lastro do dólar de Hong Kong é o dólar norte-americano, e a taxa cambial foi fixada, segundo Greenwood (1983GREENWOOD, John G. “The stabilization of the Hong Kong Dollar”, Asian Monetary Monitor. v. 7, nº 6, 1983. , p. 23), por um julgamento pessoal do secretário de finanças.

Partindo de uma proposta britânica, a moeda lastro do rubro do Norte da Rússia não podia deixar de ser a libra esterlina, cotada a 40 novos rubros. Essa taxa foi escolhida porque a cotação do velho rubro estava entre 45 e 48, conforme Spring-Rice (1919SPRING-RICE, D. “The North Russian Currency”, The Economic Journal, Set. 1919., p. 285). Hanke e Schuler (1991bKANKE, S. & SCHULER K. (1991b), “Ruble Reform: a Lesson from Keynes”, Cato Journal. v. 10, nº 3, 1991. , p. 661) informam que as autoridades monetárias britânicas fixaram a taxa cambial em 48 rubros velhos para 40 rubros novos, e que o governo provisório e o Banco Estatal do Norte da Rússia (que haviam emitido muitos rubros) tentaram - sem sucesso - elevar a taxa do velho rubro para 45. É que o financiamento da guerra civil levava os governos a elevadas emissões monetárias. A cotação do velho rubro manteve-se em 48, de novembro de 1918 até abril de 1919, quando caiu para 56, e depois para 64 no início de maio e 72 em meados do mesmo mês, chegando a 80 em junho. Enquanto isso, a cotação do rubro novo em relação à libra manteve-se na paridade fixada. É interessante observar que a fixação da taxa cambial não é problemática nos casos em que há circulação paralela da moeda nova conversível com a antiga. A inflação residual, porventura existente, contamina apenas a moeda antiga. A dificuldade de fixação da taxa cambial surge nos casos em que se busca fazer a substituição total e imediata da moeda velha. Pois qualquer erro maior na paridade fixa determinada pode resultar no dilema da sobrevalorização cambial.

ACESSO AO CONSELHO

Geralmente, o Conselho da Moeda não tem um relacionamento direto com o público, mas apenas com o sistema bancário. Em Hong Kong, por exemplo, os bancos com autoridade para emitir moeda submetem os dólares norte-americanos ao Conselho. Os outros bancos efetuam as conversões do câmbio junto aos bancos emissores à taxa oficial fixada. O setor não-bancário compra e vende os dólares americanos no mercado de câmbio, onde a taxa cambial oscila em torno da taxa oficial, por ação das forças da concorrência, da intervenção do governo, e da arbitragem.7 7 “ln the same way as the gold standard allowed for small deviations in exchange rates - the so-called “gold points” - beyond which it became profitable to ship gold and arbitrage the deviations, so under a currency board small deviations from the currency board rate can occur in the foreign exchange market (for bank deposits ). “ (Bennett, 1933, p. 459) Ou seja, a conversão à taxa oficial entre o dólar de Hong Kong e o dólar americano não inclui o setor não-bancário.

Na Estônia e no Norte da Rússia não houve restrições ao acesso do público ao Conselho da Moeda, com o claro intuito de angariar credibilidade para a nova moeda.

Convém indicar agora as circunstâncias especiais que vieram a favorecer a aceitação pelo público da moeda nova. No Norte da Rússia, o governo britânico adquiriu 100 milhões dos novos rubros para servir de reservas iniciais do Conselho.8 8 A circulação dos outros rubros era estimada em 600 milhões. A circulação dos chamados rubros ingleses foi facilitada pelos gastos das tropas de ocupação (10 mil soldados) e pela dependência da região de produtos básicos importados.

A introdução do “kroon” na Estônia foi favorecida, conforme já vimos, pela restituição do ouro que estava em poder do Banco da Inglaterra.

Resende (1992RESENDE, André L. “O Conselho da Moeda: Um Órgão Emissor Independente”, Revista de Economia Política. v. 12, nº 4, out./dez. 1992. , p. 119) sugere que “para facilitar e apressar a introdução da moeda conversível (no Brasil), seria desejável que o Banco Central alocasse uma fração das reservas internacionais disponíveis, digamos 25%, para comprar a moeda emitida pelo Conselho. Com a moeda adquirida junto a este, o Banco Central poderia recomprar parte da base monetária emitida em cruzeiros e, assim, pôr em circulação a moeda emitida pelo Conselho.”

AS CONTAS DO SISTEMA MONETÁRIO

Para uma melhor compreensão do funcionamento do Conselho da Moeda, vamos considerar os balancetes contábeis típicos de um sistema monetário sem o Conselho, como no Brasil, e verificar as modificações que iriam ocorrer nesses balancetes com a introdução do Conselho.


BALANCETES DO BANCO CENTRAL E DOS BANCOS COMERCIAIS NA AUSÊNCIA DO CONSELHO DA MOEDA BANCO CENTRAL


BANCOS COMERCIAIS

Vamos supor agora a criação de um Conselho da Moeda, que poderia funcionar como uma diretoria autônoma do Banco Central responsável pela emissão e resgate da nova moeda. O restante do Banco Central ficaria encarregado das demais funções de um Banco Central típico.


CONSELHO DA MOEDA


BANCO CENTRAL


BANCOS COMERCIAIS

Comparando agora os dois conjuntos de quadros contábeis, verificamos algumas diferenças. Uma delas merece ser destacada. É o desaparecimento da rubrica “carteira de títulos” no ativo do Banco Central, quando se introduz o Conselho da Moeda. Isso ocorre porque este Conselho não pode emprestar ao governo, uma vez que a credibilidade da moeda conversível emitida por ele depende de um lastro em moeda forte, e não em títulos públicos. Em outras palavras, a criação do Conselho da Moeda, na sua forma mais pura, pressupõe equilíbrio nas contas do setor público.

Caso o modelo de Conselho da Moeda a ser implantado contemple a circulação paralela de duas moedas nacionais, o balancete do Banco Central poderia continuar exibindo uma carteira de títulos públicos, a qual poderia ir gradualmente se reduzindo até desaparecer por completo com o resgate total. Existe, obviamente, a possibilidade do não desaparecimento dessa carteira de títulos públicos, caso a estabilidade dos preços venha a permitir uma volta segura ao atual modelo de Banco Central.

Convém assinalar ainda que o sistema do Conselho da Moeda não implica que o governo não possa vir a incorrer em déficits orçamentários, a serem financiados pela colocação de títulos no mercado. O que o Conselho da Moeda busca impedir é o financiamento inflacionário do governo.

PRINCIPAIS VANTAGENS E DESVANTAGENS

A justificativa para a criação de Conselhos da Moeda nos regimes coloniais era permitir que os governos locais capturassem a senhoriagem da emissão monetária. O Conselho operaria com lucro, pois suas reservas de moeda estrangeira seriam aplicadas no mercado, rendendo juros, ao passo que não são pagos juros sobre a moeda emitida.

A robustez de um Conselho da Moeda irá depender da estrita observância das chamadas regras do jogo, sendo a mais importante delas a existência de moeda lastro suficiente para resgatar a moeda de emissão do Conselho. Em outras palavras, toda e qualquer emissão de moeda conversível somente pode ocorrer com o aumento das reservas internacionais que lhe servirão de lastro.

A observância dessa regra significa uma despolitização do sistema monetário do país, e suas consequências são óbvias, mas também desagradáveis. Primeiro, os governantes habituados às indisciplinas fiscal e monetária não poderão mais contar com o financiamento das autoridades monetárias. Segundo essas autoridades não poderão efetuar operações no open-market para esterilizar ingressos de divisas, o que implica total perda de controle sobre a taxa de juros. O sistema do Conselho da Moeda tem como elemento importante o sistema de taxa de câmbio fixa (como aliás é conhecido em Hong Kong), no qual as operações no mercado aberto e, por conseguinte, a esterilização são proibidas.9 9 Ver Bennet (1993), p. 457.

Em terceiro lugar, o Conselho não pode agir como banqueiro dos bancos comerciais, ou seja, como emprestador de última instância. A escala da assistência financeira aos bancos está limitada pelas reservas excedentes de divisas fora do Conselho.

Finalmente, existem os riscos de ataques especulativos contra a taxa de câmbio fixa, tal como ocorreu em Hong Kong, em meados de 1985, com o enfraquecimento do dólar dos Estados Unidos. Capitais especulativos imediatamente ingressaram no país, pressionando ainda mais a valorização esperada do dólar de Hong Kong. O governo, todavia, rechaçou as pressões para alterar a taxa cambial a fim de garantir a estabilidade dos preços e desencorajar futuros movimentos especulativos desestabilizadores.10 10 Conf. Fai (1986), p. 158.

Cabe ainda ressaltar que o atrelamento da moeda nacional a uma moeda externa envolve os riscos de se importar a inflação dessa moeda. O Conselho, no entanto, tem a vantagem da flexibilidade de trocar a moeda de ancoragem, caso isso seja necessário.

CONCLUSÃO

Examinamos as experiências de funcionamento do Conselho da Moeda em três países, e procuramos oferecer considerações sobre a adoção pelo Brasil dessa forma de organização e de operação do sistema monetário.

Há, pelo menos, três pontos capazes de gerar controvérsias nessa proposta de criação, no Brasil, de uma moeda emitida por um Conselho da Moeda. Por que atrelar a nova moeda a uma moeda estrangeira? Por que a autoimposição de restrições tão severas sobre o exercício da política econômica? A proposta funcionaria num país de dimensões continentais, como é o Brasil?

Uma moeda estrangeira, como o dólar norte-americano, tem sido usada como referência e unidade de conta em muitas transações no país. Sua penetração, porém, não alcançou o estágio da Argentina e de outros países atingidos por hiperinflação. Por que, então, não usar como lastro da moeda conversível o ouro ou outros ativos físicos e financeiros do setor produtivo? A resposta é simples. A nova moeda deve ser vista como confiável, e para isso é fundamental que possa ser trocada por algo que seja considerado de valor equivalente. Entre os vários padrões de troca possíveis (ouro, soja, café, moedas estrangeiras etc.), o dólar se apresenta aos brasileiros como o mais conhecido e o de maior transparência.

Quanto à questão das restrições que são impostas sobre a política econômica, elas constituem um corolário da adoção do sistema do Conselho da Moeda. Assim para assegurar a conversibilidade da nova moeda, é imperativo que se dê prioridade, ainda que temporariamente, à acumulação da moeda reserva e, é claro, à austeridade fiscal. Isso implica que o governo abra mão por algum tempo de seu papel de promotor do desenvolvimento econômico. Não resta dúvida de que se veste uma camisa de força, mas essa é a expressão mais clara da prioridade que se está conferindo à obtenção da estabilidade monetária. Convém acrescentar ainda que as alternativas à proposta aqui esboçada ou envolvem maiores riscos (como no caso argentino), ou causam um prolongamento da estagnação econômica, como tem sido o caso brasileiro.

Por último, paira um certo receio de que o sistema do Conselho da Moeda funcionaria apenas em países pequenos, como os aqui examinados: Norte da Rússia (população de 600 mil), Hong Kong (5.7 milhões) e Estônia (1.6 milhão). Não nos parece que haja algum fundamento nessa apreensão, tendo-se em vista os relatos das condições adversas enfrentadas na implantação do Conselho da Moeda do Norte da Rússia, e o inquestionável êxito alcançado.11 11 Conf. Spring-Rice (1919) e Hanke e Schuler(1991b).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WALTERS, Alan “Currency Boards”, in J. Eatwell, M. Milgate and P. Newman, The New Palgrave -A Dictionary of Economics. Londres, Mac MiIIan Press, 1987.
  • 1
    Ver Walters (1987)WALTERS, Alan “Currency Boards”, in J. Eatwell, M. Milgate and P. Newman, The New Palgrave -A Dictionary of Economics. Londres, Mac MiIIan Press, 1987. , pp. 740-42.
  • 2
    Conforme Spring-Rice (1919)SPRING-RICE, D. “The North Russian Currency”, The Economic Journal, Set. 1919., p. 284, Hanke e Schuler(!991b)KANKE, S. & SCHULER K. (1991b), “Ruble Reform: a Lesson from Keynes”, Cato Journal. v. 10, nº 3, 1991. , p. 658 e Harrod (1972)HARROD, R. F. The Life of John Maynard Keynes. Great Britain, Penguin, 1972. p. 266.
  • 3
    O sistema do Conselho da Moeda assemelha-se ao do padrão-ouro, que se caracterizava pela conversibilidade da moeda a uma taxa fixa, e pela existência de uma regra monetária clara, que vinculava automaticamente a oferta da moeda nacional ao estoque de ouro.
  • 4
    As discussões sobre a possível criação de um banco central em Hong Kong provocaram o seguinte comentário de um economista nativo: “The case against a central bank also lies in the fear that it would provide additional channels for bureaucrats and interest groups to influence the allocation of credit and to manipulate the exchange rate; and if a central bank is meant to provide monetary stability, history shows that it is neither necessary nor sufficient” (Fai, 1986FAI, Luk Y. “The Monetary System and Banking Structure”, in J. Y. S. Cheng (ed.), Hong Kong in Transition. Oxford University Press, Oxford, 1986. , p. 162).
  • 5
    Os ganhos de senhoriagem referem-se à diferença entre os juros auferidos do investimento das reservas internacionais e as despesas administrativas do Conselho, tais como a impressão de cédulas e a cunhagem de moedas metálicas.
  • 6
    “When we consider how difficult the circumstances that faced the Caisse were, we must conclude that the scheme worked well. In consequence, the Caisse’s performance deserves a close look today. Indeed, its experience suggests how the USSR could make the ruble a conversible currency.” (Hanke & Schuler, 1991 bKANKE, S. & SCHULER K. (1991b), “Ruble Reform: a Lesson from Keynes”, Cato Journal. v. 10, nº 3, 1991. , p. 664.)
  • 7
    “ln the same way as the gold standard allowed for small deviations in exchange rates - the so-called “gold points” - beyond which it became profitable to ship gold and arbitrage the deviations, so under a currency board small deviations from the currency board rate can occur in the foreign exchange market (for bank deposits ). “ (Bennett, 1933, p. 459)
  • 8
    A circulação dos outros rubros era estimada em 600 milhões.
  • 9
    Ver Bennet (1993), p. 457.
  • 10
    Conf. Fai (1986)FAI, Luk Y. “The Monetary System and Banking Structure”, in J. Y. S. Cheng (ed.), Hong Kong in Transition. Oxford University Press, Oxford, 1986. , p. 158.
  • 11
    Conf. Spring-Rice (1919)SPRING-RICE, D. “The North Russian Currency”, The Economic Journal, Set. 1919. e Hanke e Schuler(1991b)KANKE, S. & SCHULER K. (1991b), “Ruble Reform: a Lesson from Keynes”, Cato Journal. v. 10, nº 3, 1991. .
  • JEL Classification: E42; E52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Out 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1995
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