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A independência do Banco Central e a disciplina monetária: observações céticas

Central Bank independence and monetary discipline: skeptical observations

RESUMO

A sabedoria convencional ortodoxa relacionada à política monetária na década de 1990 apresenta a independência dos bancos centrais como condição para alcançar estabilidade de preços durável, como fez com relação à adoção de regras fixas para o crescimento monetário na década de 1980. O artigo procede a uma análise crítica dos argumentos, nos quais se conclui que, além das implicações políticas indesejáveis da proposta, a tese depende muito de conceitos ilusórios e frágeis, como a taxa natural de desemprego e o viés inflacionário supostamente inerente à proposta. Autoridades monetárias, bem como numa visão muito restrita do papel das autoridades monetárias.

PALAVRAS-CHAVE:
Política monetária; autonomia do banco central; economia política

ABSTRACT

Orthodox conventional wisdom related to monetary policy in the 1990s presents the independence of central banks as a condition for achieving durable price stability, as it did with respect to the adoption of fixed rules for monetary growth in the 1980s. The paper proceeds to a critical examination of the arguments, in which it is concluded that, besides the undesirable political implications of the proposal, the thesis is too dependent on specious and fragile concepts as the natural rate of unemployment and the allegedly inherent inflationary bias of monetary authorities as well as on a very narrow view of the role of monetary authorities.

KEYWORDS:
Monetary policy; central bank autonomy; political economy

I

Entre as propostas de mudança constitucional que serão discutidas com a posse do governo Fernando Henrique Cardoso se anuncia mais uma iniciativa de concessão de independência ou autonomia ao Banco Central na formulação de política monetária. Para alguns, a questão da autonomia é praticamente reduzida à definição de mandatos fixos para os diretores da instituição. Julga-se que tornando-se irremovíveis os responsáveis pela gestão monetária, estes não temerão adotar as políticas corretas, ainda que estas possam desagradar às autoridades do Executivo. Outros parecem temer o grau de arbítrio que assim seria concedido às autoridades monetárias e propõem que a concessão da autonomia seja acompanhada de uma definição mais precisa de suas tarefas. Este segundo grupo parece assumir que à autoridade monetária cabe um papel inequivocamente determinado, de cujo exercício ela somente se afasta pela interferência indevida ou ilegítima de outros poderes.

No debate que se anuncia, a posição que se espera vir o governo Cardoso a patrocinar poderia resumir-se à observação atribuída a Gustavo Franco, então diretor da área externa do Banco Central, ao final de 1994, de que esperava ser parte da última diretoria da instituição sem mandato fixo. De modo apenas aparentemente mais claro, segundo o prestigioso jornal Gazeta Mercantil de 11/12/1994, o então presidente do Banco Central, Pedro Malan, declarava aos novos diretores da Febraban: “Vamos propor que no texto constitucional haja uma frase apenas, que diga que a função primordial do BC é assegurar o poder de compra da moeda nacional”.1 1 Na verdade, a afirmação é mais pragmática do que parece à primeira leitura. A qualificação “primordial” deixa espaço para que o Banco Central defina também outros objetivos, algo que, como o argumento a ser desenvolvido logo a seguir tentará mostrar, é crucial. Por outro lado, se para a corrente monetarista que deu origem a esta bandeira “assegurar o poder de compra da moeda nacional” só pode significar controles quantitativos sobre a oferta de moeda, uma visão minimamente menos estreita de como se insere a moeda em uma economia moderna permite a postulação de diferentes caminhos pelos quais a estabilidade da moeda pode ser alcançada.

A independência do Banco Central como condição para a manutenção do poder de compra da moeda parece ser a panaceia dos anos 90, como a adoção de regras quantitativas foi nos anos 70 e 80. Muitos aderem à proposta e repetem-na pela imprensa, como a receita “científica” para se obter disciplina monetária. Propõe-se que bancos centrais são instituições definidas por uma função natural: garantir a estabilidade do poder de compra da moeda. Assume-se que pressões políticas, no entanto, tendem a desviar a autoridade monetária de sua função natural, subordinando de modo não apenas ilegítimo como também ineficaz ordenação monetária a objetivos de curto prazo, como a sustentação do nível de emprego ou a promoção do crescimento que governos irresponsáveis acreditariam obter através de políticas expansionistas. O sistema monetário seria, assim, algo sério demais para ser deixado aos políticos. A independência do Banco Central asseguraria que a gestão monetária seria ·exercida acima dos jogos políticos.2 2 Advirta-se que a visão acima encapsulada não retrata necessariamente a posição específica das autoridades citadas. É, porém, a posição que informa os proponentes mais importantes da independência do Banco Central, como se verá a seguir.

II

Economistas, em sua maioria, não são suficientemente versados em ciências políticas a ponto de produzir argumentos sensíveis sobre a teoria de governo e de democracia que subjaz a tese de que há necessidade de que certas áreas de decisão em que os processos políticos normais são irremediavelmente marcados pela corrupção ou pelo oportunismo. Este autor não se proporá como exceção, deixando por isso de explorar o óbvio problema que se coloca para uma sociedade democrática, o de relegar decisões que afetam de modo crucial a todos a um pretenso grupo de sábios, cujo mandato e competência são autorreferenciados. É irresistível, contudo, lembrar, a respeito desse platonismo um tanto tosco, as observações críticas de Thomas Jefferson a respeito de outra área de decisões também subtraída ao processo democrático e atribuída a um conselho de sábios, a Corte Suprema:

A judiciary independent of a king or executive alone, is a good thing; but independence of the will of the nation is a solecism, at least in a republican government. [ ... ] To consider the judges as the ultimate arbiters of all constitutional questions [is] a very dangerous doctrine indeed, and one which would place us under the despotism of an oligarchy. Our judges are as honest as other men, and not more so. They have, with others, the same passions for party, for power, and the privilege of their corps (Jefferson, 1939JEFFERSON, T. (1939). On Democracy. Editado por S. Padover, Nova York, Mentor. , p. 64).

A analogia é óbvia, bastando a simples substituição das palavras “juízes” e “questões constitucionais” por “autoridades monetárias” e “questões monetárias”. Na verdade, podemos nos perguntar se uma sociedade incapaz de decidir sobre a gestão de sua moeda seria capaz de gerir suas finanças públicas, seu mercado cambial, suas relações comerciais com o exterior, ou, de fato, qualquer questão econômica para a qual alguém possa definir leis naturais e mecanismos inelutáveis.

A réplica mais comum não pode ser tomada a sério: um banco central independente não subtrai a política monetária ao controle democrático porque a instituição reportaria os resultados de suas políticas a algum corpo político como o Congresso, ou outro. Reportar resultados é algo completamente diverso de decidir caminhos: informar decisões e tomar decisões são opções de natureza totalmente diversa.

Outra réplica, porém, é mais promissora, ao fazer o argumento retornar para a área mais familiar da teoria econômica. A objeção à manipulação de política monetária para alcançar outras metas que não a estabilidade do poder de compra repousa na sua ineficácia de longo prazo. Aceitando-se os pressupostos da neutralidade da moeda e da taxa natural de desemprego, conclui-se que a política monetária só pode contribuir para a expansão do emprego e da renda, na melhor das hipóteses, no curto prazo, enquanto o público é incapaz de perceber a natureza inflacionária da expansão monetária. O trade-off entre inflação e desemprego, descrito na curva de Phillips, dever-se-ia seja à ilusão monetária, que o tempo desfaz, seja à carência de informações adequadas sobre o comportamento da autoridade monetária, que levaria os agentes privados a tomar uma alta generalizada de preços como uma alta de preços relativos.3 3 A curva de Phillips deixaria de ser a descrição do impacto de variações de demanda agregada sobre o produto e o emprego para se tornar a descrição da oferta agregada, nas mãos de Friedman & Lucas.

Em outras palavras, a inclusão da política monetária no arsenal das políticas de demanda agregada, de inspiração keynesiana, só é possível porque os agentes privados não são capazes de distinguir, em um primeiro momento, a verdadeira natureza das pressões à expansão a que podem estar sujeitos. O resultado desse procedimento, no entanto, é a crescente desorganização do sistema monetário, corroído pela inflação ascendente necessária para gerar aqueles comportamentos repetidamente. A miopia do público, que preferiria o ganho presente àquele obtido a longo prazo em resultado da estabilidade monetária, estimularia o contínuo apelo a políticas inflacionárias e justificaria a insularidade da gestão monetária em relação à pressão política expansionista.

Não cabe aqui o exame dos conceitos de taxa natural de desemprego e de neutralidade da moeda. Este é, tradicionalmente, o ponto em que a clivagem entre as visões clássica e keynesiana de operação da economia assume sua expressão mais decisiva.4 4 As escolas keynesianas mais importantes têm a não-neutralidade da moeda como seu ponto de partida. Ver, por exemplo, dentre uma vasta literatura, Hahn (1983) e Davidson (1978). A visão deste autor se encontra, entre outros, em Carvalho (1992). Basta-nos apenas apontar que, até onde uma proposição política deve apoiar-se em uma teoria econômica subjacente, a independência do Banco Central é no máximo tão sólida quanto a proposição de que o emprego em economias de mercado se caracteriza pela tendência ao repouso em um nível determinado pelas preferências do público entre trabalho e lazer e por fatores objetivos como tecnologia e fatores institucionais que afetam o funcionamento do mercado de trabalho, entre os quais a legislação de salário mínimo, restrições à dispensa de trabalhadores etc. Assim, supõe-se que a livre operação dos mercados é capaz de conduzir a economia à sua taxa natural de desemprego, isto é, ao nível desejado pelos agentes, dadas as restrições existentes, que esta posição é única e que ela não pode ser alterada por medidas de política monetária. Desse modo, na melhor das hipóteses, variações na quantidade de moeda, que é a que se reduziria em última análise a visão de política monetária dessa corrente, podem levar a economia a se desviar temporariamente de sua posição natural, mas não podem colocá-la em uma diferente trajetória.

O ponto central, assim, resume-se à ideia de que a moeda (e a política monetária) não afeta os determinantes da taxa natural de desemprego, que são as preferências e as possibilidades tecnológicas e institucionais. Se essas premissas forem aceitas, segue-se que políticas monetárias voltadas para, digamos, a sustentação do pleno emprego são inócuas senão no curto prazo (que, por hipótese, torna-se cada vez mais curto à medida que o público perceba que a moeda é objeto de manipulação). Assim, o melhor é não se valer da moeda para tais objetivos e isolar a autoridade monetária da autoridade política que possa sucumbir à tentação de se aproveitar da miopia do público para promover a inflação.

III

É sabido que o conceito de taxa natural de desemprego é, teoricamente, problemático, exigindo muitas restrições para sua validade, restrições estas que nem o mais delirante estudioso de equilíbrio geral ousaria propor ser realistas. Para estes autores, porém, não é o realismo das premissas que importa e, sim, se as previsões do modelo resistem à falsificação pelo teste empírico. A história dos testes empíricos do conceito de taxa natural de desemprego não tem sido marcada pelo sucesso, mas não é disso que queremos tratar. O ponto do argumento desenvolvido até aqui é mostrar que, longe de se apoiar na solidez da ciência econômica (se se pode dizer que algo em economia está solidamente estabelecido), o argumento em prol da independência do Banco Central repousa em bases restritas e altamente duvidosas, talvez ainda mais frágeis que aquelas que sustentaram a posição pró-regras quantitativas fixas no debate sobre política monetária dos anos 70 e 80.

Em termos de história, por outro lado, o argumento também se mostra frágil ou mesmo mistificador. Bancos centrais não foram criados com a função de estabilizar a moeda, nem mesmo naqueles países onde foram tornados independentes, com a exceção mais importante da Alemanha do pós-guerra, por razões historicamente compreensíveis, mas nem por isso generalizáveis. Certamente, este não é o lugar para a discussão da história dos bancos centrais, mas algumas observações são suficientes para alimentar ceticismo ainda mais profundo com relação à proposição de independência.5 5 Uma excelente introdução à história de alguns dos principais bancos centrais do Ocidente encontra-se em Toniolo (1988) em que, aliás, se dá especial ênfase à questão da independência da autoridade monetária. É nessa obra que baseamos o argumento seguinte.

A noção de que bancos centrais foram criados com a função de estabilização do poder de compra da moeda não tem qualquer fundamento. Na verdade, essas instituições foram criadas para relaxar restrições sobre o crédito e a circulação monetária colocadas pelos padrões de moeda-mercadoria. As instituições mais antigas, das quais o Banco da Inglaterra é o exemplo mais importante, mas cujas linhas gerais são válidas também para o Banco da França e os bancos centrais alemães do século XIX, surgiram com a função de aliviar as restrições sobre os gastos do setor público. Em troca desse serviço, esses bancos receberam privilégios de emissão que acabaram por tornar suas notas um ativo de reserva para os outros bancos comerciais, evoluindo-se para uma situação em que aquelas instituições se tornaram “bancos dos bancos”. A institucionalização dessa função formalizou um dos papéis mais importantes dos bancos centrais modernos, e que existem para dar segurança à operação de instituições bancárias, tornando a oferta de ativos monetários elástica e não o seu contrário.

Dar elasticidade à oferta de ativos monetários foi a função específica de muitos dos modernos bancos centrais. O preâmbulo do Ato de criação do Federal Reserve System, por exemplo, criado aliás para ser formalmente independente do poder executivo, estabelece seus poderes como sendo:

To provide for the establishment of Federal Reserve Banks, to furnish an elastic currency, to afford means of rediscounting commercial paper, to establish a more effective supervision of banking in the United States, and for other purposes. (citado em Eijffinger & Schalling, 1993EIJFFINGER, S. & SCHALLING, E., (1993). “Central bank independence in twelve industrial countries”, Banca Nazionale dei Lavoro, Quarterly Review, março. , p. 83, grifo meu).

Em tempo: o Ato é de 1913, certamente ainda livre de influências keynesianas indevidas! No excelente levantamento de Eijffinger & Schalling (1993EIJFFINGER, S. & SCHALLING, E., (1993). “Central bank independence in twelve industrial countries”, Banca Nazionale dei Lavoro, Quarterly Review, março. , apêndice6 6 Os países estudados são: Suécia, Reino Unido, França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Japão, Itália, Suíça, Austrália, Estados Unidos e Canadá. ) vê-se que, considerados doze países industrializados, nos casos em que funções são especificadas para os bancos centrais, apenas na Alemanha e na Holanda há uma determinação mais explícita de que a função da autoridade monetária se resume à defesa da estabilidade do poder de compra da moeda. Mesmo no caso da Suíça, normalmente citado como caso favorável à tese da correlação independência do banco central/estabilidade de preços, a função do banco central tem sido interpretada como regulação do poder de compra da moeda, já que o palavreado da lei relevante é excessivamente vago (Eijffinger & Schalling, p. 81). Não obstante a necessidade de uma pesquisa histórica mais rigorosa para se comparar as duas hipóteses, a visão de que bancos centrais foram criados para que a oferta de ativos líquidos se tornasse mais flexível ao invés de mais rígida, evitando-se as altas de juros e as baixas de atividade que normalmente acompanhavam os períodos de auge nas economias do padrão-ouro, é, no mínimo, mais compatível com a evidência histórica disponível que com o apriorismo da posição oposta, qual seja a de que bancos centrais teriam sido desvirtuados de sua função precípua, a de estabilizar preços.

IV

Se a definição de um mandato para o banco central é ambígua, a noção de independência o é ainda mais. Os estudos empíricos do desempenho das autoridades monetárias de diversos países com relação à inflação, tentando correlacioná-lo ao grau de independência usufruído, são surpreendentemente frágeis quando se pensa no número de economistas que parecem convencidos com a tese de que a autonomia é fator determinante da extensão em que os preços são estáveis.

Vamos assumir as condições mais favoráveis à tese da independência, desconsiderando as objeções de que a inflação verificada em uma dada economia possa resultar de outras causas que não o comportamento do banco central. Esta literatura tipicamente oferece posições teóricas, ou mesmo ideológicas, por fatos, mas vamos aceitar sua petição de princípios para efeito desta discussão. Sugere-se, então, que quanto maior a independência da autoridade monetária, menor a inflação sofrida. Mas o que significa independência?

Independência é, antes de mais nada, uma qualidade. É possível pensar em graus de independência, como é possível pensar em termos nocionalmente quantitativos outras qualidades, como a capacidade de dar prazer ou satisfação. Estudos econométricos exigem, contudo, abordagens mais precisas, de noções mais objetivas de independência, que sejam mensuráveis e comparáveis. Nesse ponto, a literatura de defesa da tese da independência encontra suas maiores (e frequentemente reconhecidas) fragilidades.7 7 A discussão mais rigorosa dessa literatura é feita pelo autor em Carvalho (1994). A medida mais universalmente utilizada diz respeito a características quase administrativas dos bancos centrais. Se os diretores têm mandato fixo, se o poder executivo tem voz na escolha destes diretores, se há representantes do poder executivo no seu corpo de diretores. É inevitável que medidas dessa natureza sejam largamente insuficientes para sustentar qualquer conclusão mais firme. Mandatos fixos não impedem que haja renúncias. A inexistência de representantes formais do poder executivo na diretoria não esgota os canais de influência que o governo pode ter sobre as suas decisões. A duração dos mandatos efetivamente exercidos pode significar tanto que o poder executivo não tem poderes para substituir diretores do banco central quanto que diretores são tão subservientes que não surge a necessidade de substituí-los.

A grande dificuldade em se valer de elementos puramente formais como esses é a de que seu conteúdo substantivo é essencialmente ambíguo. Como se vê no já citado apêndice a Eijffinger & Schalling (1993EIJFFINGER, S. & SCHALLING, E., (1993). “Central bank independence in twelve industrial countries”, Banca Nazionale dei Lavoro, Quarterly Review, março. ), em vários casos, novamente com exceção da Alemanha, há mecanismos de contato e convergência entre o poder executivo e a autoridade monetária. Mesmo nos casos de independência formal do banco central, preveem-se circunstâncias de conciliação com o Poder Executivo, normalmente em termos do estabelecimento, em favor deste último, do poder de emitir “instruções” para a autoridade monetária. Esse poder, nos casos estudados, não foi usado em tempos modernos. Qual o significado disso? O de que o Poder Executivo reconhece a independência de fato do banco central e não ousa se valer de um mecanismo formal de influência? Ou o de que o banco central, mesmo independente, não ousa, em última análise, levar seu eventual conflito com o Poder Executivo às últimas consequências?

Na verdade, mais do que à visão simplista da literatura da independência, o exame do comportamento efetivo dessas instituições nos leva a um quadro diferente com relação aos fatores operativos realmente decisivos no relacionamento entre o poder executivo e os bancos centrais. Em primeiro lugar, o grau de consenso social em torno da estabilidade. Em segundo, a importância de personalidades e conjunturas específicas na determinação do comportamento da autoridade monetária. Bancos centrais independentes comportam-se de modo, senão subserviente, certamente convergente em conjunturas em que suas diretorias são fracas e/ou o poder central é exercido por lideranças fortes. Os casos de Arthur Burns no Federal Reserve e Nixon na presidência, ou o de Johnson durante a guerra do Vietnã são exemplos de como a identificação política entre as lideranças políticas e a autoridade monetária ou a “necessidade nacional” certamente suprime a independência mesmo se sua formalidade permanece.8 8 Do mesmo modo como ninguém falaria de independência da autoridade monetária para fixar políticas monetárias em tempo de guerra. Ver Toniolo (1988).

O consenso em torno das virtudes da estabilidade parece ser o elemento fundamental explicando a trajetória de economias como a alemã, em que o banco central é independente e a inflação é baixa, e a japonesa, em que o banco central não tem uma sombra de independência e a inflação também é baixa. Os proponentes da independência parecem inverter os mecanismos realmente operativos, imaginando que uma simples formalidade legal seria capaz de forçar uma efetiva camisa-de-força sobre as forças geradoras de inflação em uma economia como a brasileira.9 9 Novamente, o agora ministro Malan certamente seria absolvido dessa crítica. Em sua palestra na Febraban, citada, Malan teria declarado, ainda segundo a Gazeta Mercantil, que “é ingênuo imaginar que basta uma lei que diga que o Banco Central é autônomo e independente, se todo o resto não contribuir para a credibilidade e a estabilidade da moeda”. Os membros do Bundesbank também não parecem compartilhar da visão ingênua de que é a independência da instituição alemã, e não o consenso anti-inflacionário gerado pelas crises do passado, que garante a estabilidade (cf. Schlesinger, 1982). Como resumiu a revista The Economist em seu suplemento especial sobre a Alemanha (21/5/1994): “Consensus is all” (p. 5).

V

A tese da independência é, assim, uma posição fundamentalmente derrotista, seja porque supõe que a estabilidade seja algo a se forçar garganta abaixo, seja porque se imagine que processos democráticos são intrinsecamente irresponsáveis e desintegradores. Essa tese, porém, nem de longe esgota as possibilidades a ser consideradas dentro de uma estratégia de estabilização. Em particular, se não há dúvida de que a estabilidade exige a recuperação da crença na moeda nacional, e isso não pode ser obtido se alguma disciplina monetária não for recuperada, é também improvável que essa recuperação se dê por meio da adoção de um padrão de gestão monetária que reproduza a operação de um padrão moeda-mercadoria com as autoridades monetárias agindo como se fossem simples depositárias de reservas metálicas. Esses padrões foram sepultados e devem continuar em suas covas, pois impunham métodos irracionais de controle da atividade econômica, que por sua vez impunham movimentos adversos das taxas de juros e eclosões periódicas de desemprego e recessões.

Os sistemas monetários modernos não têm esses freios internos que tinha, ao menos em tese, o padrão-ouro. A experiência generalizada de relaxamento monetário no pós-guerra não implica necessariamente a condenação à morte da gestão monetária ativa, mas mostra, sim, a necessidade de ajustes e a existência de limites ao arbítrio que, se rompidos, podem instabilizar o sistema monetário e, eventualmente, destruí-lo. O reconhecimento de que os sistemas monetários são estruturalmente mais frágeis que os anteriores, preço a pagar pela maior elasticidade obtida na criação de ativos líquidos, necessários para se evitar crises de liquidez e as deflações de débitos descritas por Irving Fisher, conduz a que se considere a necessidade de diminuir as pressões sobre eles. É preciso, nessa visão, construir mecanismos de disciplinamento que eliminem pressões inflacionárias antes que elas se materializem, em vez de deixá-las evoluir esperando que o sistema monetário atue como linha de resistência. Isso dá grande importância à obtenção de equilíbrio fiscal, ao menos como tendência através das flutuações cíclicas, e à criação de mecanismos de coordenação de preços, inclusive de fatores, através de políticas de rendas. Esses mecanismos só se viabilizam a partir da criação de um consenso social pró-estabilidade. Isso, por si só, seria uma vantagem decisiva sobre proposições que imaginam obter a estabilidade através de medidas puramente formais e paternalistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • CARVALHO, F. (1992). Mr. Keynes and the Post-Keynesians. Cheltenham, Edward Elgar.
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  • SCHLESINGER, H. (1982), “The setting of monetary objectives in Germany”. In P. Meek (ed.), Central Bank Views on Monetary Targeting, Nova York: The Federal Reserve Bank of New York.
  • TONIOLO, G., (ed.), (1988) Central Banks’ Independence in Historical Perspective. Berlin, Walter de Gruyter.
  • 1
    Na verdade, a afirmação é mais pragmática do que parece à primeira leitura. A qualificação “primordial” deixa espaço para que o Banco Central defina também outros objetivos, algo que, como o argumento a ser desenvolvido logo a seguir tentará mostrar, é crucial. Por outro lado, se para a corrente monetarista que deu origem a esta bandeira “assegurar o poder de compra da moeda nacional” só pode significar controles quantitativos sobre a oferta de moeda, uma visão minimamente menos estreita de como se insere a moeda em uma economia moderna permite a postulação de diferentes caminhos pelos quais a estabilidade da moeda pode ser alcançada.
  • 2
    Advirta-se que a visão acima encapsulada não retrata necessariamente a posição específica das autoridades citadas. É, porém, a posição que informa os proponentes mais importantes da independência do Banco Central, como se verá a seguir.
  • 3
    A curva de Phillips deixaria de ser a descrição do impacto de variações de demanda agregada sobre o produto e o emprego para se tornar a descrição da oferta agregada, nas mãos de Friedman & Lucas.
  • 4
    As escolas keynesianas mais importantes têm a não-neutralidade da moeda como seu ponto de partida. Ver, por exemplo, dentre uma vasta literatura, Hahn (1983HAHN, F. (1983). Money and Inflation. Cambridge. The MIT Press. ) e Davidson (1978DAVIDSON, P. (1978). “Why money matters”. Journal of Post-Keynesian Economics, Fall. ). A visão deste autor se encontra, entre outros, em Carvalho (1992CARVALHO, F. (1992). Mr. Keynes and the Post-Keynesians. Cheltenham, Edward Elgar. ).
  • 5
    Uma excelente introdução à história de alguns dos principais bancos centrais do Ocidente encontra-se em Toniolo (1988TONIOLO, G., (ed.), (1988) Central Banks’ Independence in Historical Perspective. Berlin, Walter de Gruyter.) em que, aliás, se dá especial ênfase à questão da independência da autoridade monetária. É nessa obra que baseamos o argumento seguinte.
  • 6
    Os países estudados são: Suécia, Reino Unido, França, Holanda, Bélgica, Alemanha, Japão, Itália, Suíça, Austrália, Estados Unidos e Canadá.
  • 7
    A discussão mais rigorosa dessa literatura é feita pelo autor em Carvalho (1994CARVALHO, F. (1994). “The independence of central banks: a critical assessment of the arguments”. Anais do XXII Encontro Nacional de Economia, ANPEC (em publicação no Journal of Post Keynesian Economics). ).
  • 8
    Do mesmo modo como ninguém falaria de independência da autoridade monetária para fixar políticas monetárias em tempo de guerra. Ver Toniolo (1988TONIOLO, G., (ed.), (1988) Central Banks’ Independence in Historical Perspective. Berlin, Walter de Gruyter.).
  • 9
    Novamente, o agora ministro Malan certamente seria absolvido dessa crítica. Em sua palestra na Febraban, citada, Malan teria declarado, ainda segundo a Gazeta Mercantil, que “é ingênuo imaginar que basta uma lei que diga que o Banco Central é autônomo e independente, se todo o resto não contribuir para a credibilidade e a estabilidade da moeda”. Os membros do Bundesbank também não parecem compartilhar da visão ingênua de que é a independência da instituição alemã, e não o consenso anti-inflacionário gerado pelas crises do passado, que garante a estabilidade (cf. Schlesinger, 1982SCHLESINGER, H. (1982), “The setting of monetary objectives in Germany”. In P. Meek (ed.), Central Bank Views on Monetary Targeting, Nova York: The Federal Reserve Bank of New York. ). Como resumiu a revista The Economist em seu suplemento especial sobre a Alemanha (21/5/1994): “Consensus is all” (p. 5).
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    Este texto se origina de discussões desenvolvidas no âmbito do projeto sobre Moeda e Instituições Financeiras do IEI/UFRJ. O suporte do CNPq às pesquisas do autor é aqui reconhecido.
  • 11
    JEL Classification: E58; E52.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1995
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