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O financiamento à infraestrutura e a retomada do crescimento econômico sustentado

Financing for infrastructure and the resumption of sustained economic growth

RESUMO

Diferentemente dos ciclos de crescimento anteriores no Brasil, o novo que completará o plano de estabilização do Real não pode mais contar com o Estado como o principal financiador e responsável pelos investimentos em infraestrutura. Isso representa uma tendência mundial, que originou o financiamento do projeto, uma maneira de financiar pesados investimentos projetados para viabilizar a parceria público-privada. O financiamento do projeto separa o risco firme do risco comercial e projeta arranjos financeiros específicos para cada projeto de investimento. No Brasil, agora que a lei que regula a concessão ao setor privado foi promulgada e o programa de privatização foi acelerado, o financiamento do projeto provavelmente constituirá o principal procedimento de financiamento para investimentos em infraestrutura. Para que o financiamento do projeto funcione, o ambiente regulatório deve ser claro e os contratos devem ter credibilidade, impedindo que o setor público seja esquecido, forçado a resgatar projetos insolventes. É apresentada uma nova proposta para o sistema BNDES - um seguro contra o risco macroeconômico nas operações de crédito. Esta proposta visa a construção de um mercado de crédito de longo prazo no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Crescimento econômico; estabilização; privatização; investimento

ABSTRACT

Unlike previous growth cycles in Brazil, the new one that will complete the Real stabilization plan can no longer count on the state as the main financier and undertaker of the infrastructure investments. This represents a world trend, that originated the project finance, a way to finance heavy investments designed to make possible the private/public partnership. The project finance separates the firm risk from the business risk, and designs finance arrangements that are specific to each investment project. In Brazil, now that the law that regulates concession to the private sector has been enacted and the privatization program has been accelerated, the project finance will probably constitute the main finance procedure for infrastructure investments. For the project finance to work, the regulatory environment should be clear, and the contracts should be credible, preventing the public sector to be put into a corner, forced to bail out insolvent projects. A new proposal for the BNDES system - an insurance against the macroeconomic risk in credit operations - is laid out. This proposal aims at building a long-term credit market in Brazil.

KEYWORDS:
Economic growth; stabilization; privatization; investment

1. PERSPECTIVAS DO PROCESSO DE ESTABILIZAÇÃO E BASES PARA A RETOMADA DO CRESCIMENTO ECONÔMICO SUSTENTADO

Neste início do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, vive-se um momento de otimismo quanto à retomada do processo de crescimento econômico, condição indispensável para a melhoria dos enormes problemas sociais brasileiros. Tal otimismo está ligado ao sucesso que obteve o Plano Real em seus primeiros trimestres. A concretização dos anseios da sociedade brasileira, de conjugação de crescimento econômico sustentado com inflação reduzida, dependerá fundamentalmente do sucesso do Plano Real no longo prazo.

Os processos de estabilização e de crescimento estão intrinsecamente relacionados. Sem o sucesso do combate anti-inflacionário, o crescimento econômico não passará de um surto efêmero, não se constituindo na verdadeira retomada do crescimento sustentado. Assim, é indispensável que não se violem as condições necessárias ao combate anti-inflacionário, dentre as quais se destaca a inexistência de déficit público até que o combate anti-inflacionário esteja consolidado. Por outro lado, é mister promover o investimento privado, base da nova fase de crescimento sustentado. Sem que as taxas anuais de crescimento do PIB atinjam níveis na faixa dos 5% a 7% de forma sistemática nos próximos anos, será difícil manter o apoio interno ao Plano Real, bem como conseguir que os investidores estrangeiros para cá canalizem suas poupanças.

O sucesso do Plano Real estará por um bom tempo associado à manutenção do câmbio em níveis baixos, isto é, abaixo da paridade de US$ l = R$ l. A equipe econômica tem anunciado que não permitirá uma desvalorização significativa do Real, porque esta fatalmente faria recrudescer a inflação, dados os mecanismos de defesa contra ela ainda existentes (indexação formal ou informal) desenvolvidos no Brasil nos anos de alta inflação.

A valorização do câmbio ocorrida no primeiro semestre do Plano Real sinaliza a geração de significativos déficits na conta corrente do balanço de pagamentos, devido à diminuição dos saldos do balanço comercial. Como o câmbio não pode mudar significativamente sem colocar em risco o sucesso do Plano Real, outras medidas terão que ser tomadas. A maior competitividade do setor exportador deve ser buscada também através da isenção de tributos (não se podem exportar tributos), bem como através da redução do “custo Brasil”.

Ainda que se façam essas necessárias mudanças, requerer-se-á um maior rigor no controle do déficit público, ou mesmo a geração de superávits. O déficit em conta corrente do balanço de pagamentos é contabilmente definido como o excesso da absorção (consumo+investimento+gastos do governo) sobre a renda nacional. Por isso, diz-se que há poupança externa quando há déficit em transações correntes no balanço de pagamentos; a poupança dos estrangeiros está financiando o hiato entre absorção e renda dos nacionais. Ou, visto através de outra identidade das contas nacionais (Simonsen & Cysne, 1989SIMONSEN, M.H., & CYSNE, R.P. (1989) Macroeconomia. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S.A., p. 130):

D é f i c i t e m T r a n s a ç õ e s C o r r e n t e s d o B a l a n ç o d e P a g a m e n t o s = D é f i c i t P ú b l i c o + I n v e s t i m e n t o P r i v a d o - P o u p a n ç a B r u t a d o S e t o r P r i v a d o

Dada a necessidade de se aumentar o investimento privado para sustentar um crescimento anual do PIB na faixa de 5% a 7%, bem como a reduzida possibilidade de se aumentar a poupança bruta do setor privado nos níveis requeridos para o financiamento do maior investimento privado, será indispensável que se reduza fortemente o déficit público ou mesmo que se gerem superávits. Isso já era verdade antes da crise mexicana, e se tomou mais imperioso agora que não se admitem déficits anuais em transações correntes do balanço de pagamentos superiores a 2% do PIB.

No que toca ao presente trabalho, a identidade macroeconômica acima ressalta pelo menos os dois aspectos fundamentais a seguir relacionados:

  1. É necessário vislumbrar formas de financiamento ao investimento em infraestrutura que não gerem aumentos do déficit público. O project finance vem exatamente ao encontro dessa necessidade.

  2. É necessário conceber formas de aumento da poupança privada. Dentre as medidas que se vislumbram para obter tal resultado destaca-se a reforma da Previdência, com o consequente aumento do número dos poupadores e dos montantes investidos nos fundos de pensão. Outras medidas possíveis envolvem a criação de poupanças programadas, sobretudo com o objetivo de aquisição da casa própria. Os fundos compulsórios de poupança do trabalhador, que muito ajudaram a financiar o ciclo anterior de crescimento, não devem ter papel tão destacado desta vez.

2. INFRAESTRUTURA NO BRASIL: UM APANHADO GERAL DE SEU ESTADO ATUAL

Nesta seção, apresentamos um apanhado geral do atual estado dos serviços de infraestrutura no Brasil, bem como das necessidades de urgentes investimentos. Estudos atuais detalhados sobre o assunto - nos quais esta seção está baseada - encontram-se em Ferreira (1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.) e em vários documentos elaborados no âmbito do processo de planejamento do Sistema BNDES, dos quais me foi franqueada a leitura (BNDES, 1994aBNDES (1994a) “GT infraestrutura para competitividade (energia elétrica)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos. e 1994bBNDES (1994b) “GT infraestrutura para competitividade (transporte de carga)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.).

O artigo de Ferreira (1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.) mostra que” ... não só a tendência de longo prazo (de 1970 até 1993) dos investimentos públicos em infraestrutura como proporção do produto é declinante, como esta queda vem se acelerando recentemente. Os investimentos em energia reduziram-se em dois terços nos últimos dez anos, e concentram-se quase que inteiramente em duas usinas. Os investimentos em portos e ferrovias estão em níveis que, provavelmente, não repõem o capital depreciado (o investimento na malha ferroviária é hoje 10% do que era em 1980). Menos da metade das rodovias federais estão em boas condições e todas as evidências indicam que essa situação se estende ao resto da malha rodoviária. A situação do setor de telecomunicações, embora os investimentos em termos absolutos tenham aumentado nos últimos anos, é também precária, o que é evidenciado pela escassez de linhas, pelo alto preço dos serviços e pelo atraso tecnológico”.

A Tabela 1 de Ferreira (1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.), reproduzida a seguir, mostra que os investimentos das empresas estatais federais em telecomunicações, energia e transporte caíram muito, chegando em 1993 a apenas 43% do nível total de 1980.

Tabela 1
Investimento em infraestrutura das estatais (US$ milhões)

Já na administração direta (federal, estadual e municipal), a tendência dos investimentos é ascendente, embora o crescimento seja menor do que o crescimento do PIB no período. Ressalte-se que em nível federal o investimento caiu muito, tendo a participação da União no investimento total das administrações diretas caído de 33,2% entre 1986 e 1988 para apenas 16,9% entre 1991 e 1993. Essa queda acentuada da participação da União, ocasionada pelas modificações introduzidas na Constituição promulgada em 1988, veio a contribuir para enormes gargalos nos setores de infraestrutura que dependem dos investimentos federais, como grande parte da malha rodoviária do País.

No setor de energia elétrica, projeções de crescimento do consumo indicam a formação de gargalos caso não sejam completados vários projetos em andamento, bem como iniciados outros já planejados. O Plano Decenal prevê a necessidade de implantação de 94 usinas no período 1994/2003, exigindo um investimento de US$ 43,4 bilhões, compreendendo tão-somente a geração da energia (BNDES, 1994aBNDES (1994a) “GT infraestrutura para competitividade (energia elétrica)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.).

No setor de transportes, o quadro é bastante grave em todos os seus subsetores. A queda do investimento no setor ferroviário - quer na RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.), quer na CBTU (Cia. Brasileira de Trens Urbanos) -, foi muito acentuada, chegando em 1993 a apenas 11% do nível de 1980 (Ferreira, 1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.). O estudo sobre transporte de carga feito pelo Grupo de Trabalho para Competitividade (BNDES, 1994bBNDES (1994b) “GT infraestrutura para competitividade (transporte de carga)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.) ressalta a diferença do desempenho entre as ferrovias controladas pela CVRD (Cia. Vale do Rio Doce), EFVM (Estrada de Ferro Vitória-Minas) e EFC (Estrada de Ferro Carajás) e as pouco eficientes ferrovias controladas pela RFFSA e Fepasa (Ferrovia Paulista S.A.).

Dada a importância do transporte rodoviário no Brasil (cerca de 56% do transporte de carga é feito por rodovias, contra 30% na Europa e nos EUA), a situação bastante precária de nossas rodovias tem impacto particularmente deletério sobre a atividade produtiva. No programa de investimentos rodoviários da proposta de governo do atual presidente, 35 projetos são de recuperação, dois são de construção de novas rodovias e os oito restantes são de duplicação. Para tal fim necessita-se de R$ 5,58 bilhões (Ferreira, 1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.).

Os portos representam hoje um gargalo particularmente importante, dado o processo de abertura comercial de nossa economia. Em 1993, os investimentos das estatais nos portos representaram apenas 20% do investimento no início da década passada, enquanto o volume de comércio internacional cresceu cerca de 25%. O Executivo prevê para o setor portuário investimentos de US$ 520 milhões/ano (Ferreira, 1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.).

O transporte hidroviário é o mais eficiente quanto ao consumo de energia por tonelada transportada. Portanto, é desejável que se façam os investimentos necessários tanto nas hidrovias quanto em portos fluviais, para viabilizar esse tipo de transporte em diversas bacias fluviais do País. O já citado estudo sobre transporte de carga feito pelo Grupo de Trabalho para Competitividade (BNDES, 1994bBNDES (1994b) “GT infraestrutura para competitividade (transporte de carga)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.) contém as estimativas dos investimentos necessários em hidrovias.

Às necessidades de investimento nos subsetores de transporte antes citados, adicionam-se novos investimentos em aeroportos, oleodutos e gasodutos. O setor de transporte necessita urgentemente de grandes investimentos, que permitam reduzir o custo médio de transporte de carga, no atual nível de US$ 0,02 tku, muito alto para os padrões internacionais (BNDES, 1994bBNDES (1994b) “GT infraestrutura para competitividade (transporte de carga)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.). O alto custo de transporte tem impactos nocivos tanto na competitividade internacional quanto na inflação doméstica, o que ressalta a necessidade imperiosa de tais investimentos.

O setor de telecomunicações foi o único aquinhoado com um aumento dos investimentos federais. Enquanto se investiu em média US$1,8 bilhão entre 1980 e 1984, tal montante cresceu 56% (para US$ 2,8 bilhões) entre 1991 e 1993 (Ferreira, 1994FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.). Não obstante tal crescimento, as necessidades de novos investimentos em muito excedem a capacidade do investimento público.

O quadro geral do setor de infraestrutura é, portanto, de uma enorme necessidade de investimentos em seus diversos subsetores. Tais investimentos são de importância fundamental na redução do “custo Brasil”, a qual constitui-se em peça fundamental tanto da estabilização quanto da retomada do crescimento sustentado. Dadas as restrições de financiamento ao investimento em infraestrutura através do setor público, bem como aos ganhos de eficiência possivelmente associados à gerência privada de vários desses investimentos, a parceria público-privada se afigura como a consequência lógica.

3. O FINANCIAMENTO À INFRAESTRUTURA: UMA BREVE PERSPECTIVA INTERNACIONAL

Nesta seção, apresentamos alguns elementos fundamentais do financiamento à infraestrutura em nível internacional. Uma abordagem mais detalhada da experiência internacional está em Bernard & Garcia (1995BERNARD, A. & GARCIA, M.G.P. (1995) “Public and private provision of infrastructure and economic development”, mimeo.).

Atualmente, nos países em desenvolvimento, cerca de 90% dos financiamentos aos investimentos em infraestrutura são carreados através de agências governamentais (World Bank, 1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.). Ou seja, a situação atual ainda é tal que não só o governo majoritariamente provê o financiamento, como também detém os riscos do projeto. As dificuldades quanto à provisão do financiamento via governo deflagraram a busca da parceria com o setor privado, mas o mais importante é que essa parceria deve:

  • encorajar uma melhor partilha dos riscos envolvidos;

  • prover maior transparência;

  • possibilitar e incentivar um maior monitoramento;

  • prover uma melhor gerência dos serviços de infraestrutura.

Também internacionalmente, o desafio é canalizar poupanças privadas diretamente aos tomadores privados de risco, que farão investimentos de longo prazo em infraestrutura. Tal desafio exige novos instrumentos financeiros e novas instituições. É mister, portanto, sair do modelo de financiamento dos investimentos em infraestrutura via impostos ou dívida pública para o financiamento/patrocínio privado.1 1 Uma excelente resenha sobre os mecanismos existentes em nível internacional para possibilitar a parceria público-privada no financiamento a projetos de infraestrutura pode ser encontrada em Moreira & Carneiro (1994). O financiamento/patrocínio privado pode se dar de várias formas, dependendo dos interesses dos agentes. Por exemplo, um fundo de pensão pode apenas estar interessado em papéis de uma usina de geração de energia que possibilitem a geração de um fluxo de caixa em 15 anos, sem querer intervir na gerência do empreendimento.2 2 Pinheiro (1994) analisa a participação dos fundos de pensão no financiamento a investimentos, em especial os de infraestrutura. Já outros parceiros podem querer financiar e transferir tecnologia, envolvendo-se diretamente na operação. Para cada agente deve-se possibilitar o atendimento de suas necessidades específicas através da criação dos instrumentos e mercados financeiros relevantes.

Como já citado - segundo dados do Banco Mundial (World Bank, 1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.) - dos US$ 200 bilhões investidos anualmente em infraestrutura nos países em desenvolvimento, 90% são carreados via governo. Além dos gastos de investimento, há os gastos de manutenção, que oneram ainda mais os orçamentos públicos. O financiamento internacional (não-privado, via instituições oficiais) ao desenvolvimento tem aumentado, chegando a cerca de 12% do total, indo a maior parte para os setores de energia e transporte. Já os empréstimos privados garantidos pelo setor público decresceram nos anos recentes, enfatizando a necessidade de novas abordagens para a parceria público-privada no financiamento à infraestrutura.

O Brasil não é exceção em nível internacional quanto à existência de gargalos presentes e futuros em diversos setores de infraestrutura. A necessidade de investimentos em infraestrutura constituiu-se na mola propulsora da parceria público-privada no financiamento de tais investimentos. Dois movimentos tomaram possível a entrada do setor privado no financiamento/patrocínio de projetos de infraestrutura, quais sejam: as privatizações e as concessões.

Embora a parceria público-privada no financiamento de projetos de infraestrutura seja um fenômeno mundial, as melhores oportunidades de lucro se encontram nos países em desenvolvimento. Tais países são carentes desses investimentos, e apresentam também um crescimento do tamanho de seus mercados muito maior que o dos países desenvolvidos. Assim como o consumo de bens deverá crescer muito mais nos países em desenvolvimento do que nos países desenvolvidos - nos quais a competição entre empresas é basicamente por participação (market share) num mercado que pouco cresce em nível agregado -, também o consumo de energia, o uso de saneamento e água encanada e a utilização de estradas, apenas para citar alguns itens de infraestrutura, também deverá crescer muito mais nos países em desenvolvimento.

Alguns dos investimentos em infraestrutura em países em desenvolvimento podem, portanto, proporcionar taxas de retomo de longo prazo maiores do que aquelas que poderiam ser encontradas nos países desenvolvidos. Dado que vários dentre os países desenvolvidos se encontram numa fase na qual precisam investir a poupança de seus habitantes para financiar a aposentadoria destes no futuro, há, pelo menos em tese, um casamento entre a necessidade de recursos para financiar os investimentos em infraestrutura nos países em desenvolvimento com a necessidade de exportar poupanças de alguns países desenvolvidos. Para que tal casamento se tome realidade, possibilitando maiores taxas de crescimento econômico, é mister que se desenvolvam os instrumentos e mercados financeiros adequados ao novo grupo de atores que atua nessa parceria público-privada. Esse é o tema da próxima seção.

4. MERCADOS E INSTRUMENTOS FINANCEIROS

Na década de 90, tanto os investimentos diretos quanto os investimentos de porta-fólio em países em desenvolvimento (mercados emergentes) têm aumentado consideravelmente. Várias são as formas de acessar o mercado internacional. A tradicional captação via dívida, com a colocação de títulos de longo prazo (bond market), é um recurso que vem sendo crescentemente utilizado também por empresas de infraestrutura de países em desenvolvimento. Já existem mesmo corporações que, usando de sua experiência e reputação, fazem investimento direto financiado por lançamento de dívida de longo prazo, como no caso da General Electric Capital Corporation (World Bank, 1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.). A intermediação de uma empresa do grupo General Electric facilita e barateia a colocação de dívida, sendo uma boa opção para captação por empresas pouco conhecidas no mercado internacional.

Uma outra forma tradicional de financiamento é aquela via mercado acionário, com a colocação de ações das empresas em bolsas de valores internacionais. Os mecanismos que possibilitam tal colocação são os ADRs (American Depositary Receipts) e GDRs (Global Depositary Receipts), que permitem que ações de empresas em países estrangeiros sejam negociadas sem o procedimento padrão, muito exigente e demorado, de listagem dessas empresas nas bolsas. No Brasil, por exemplo, a Cemig (Centrais Elétricas de Minas Gerais) tem feito uso desses instrumentos (Gazeta Mercantil, 26/9/94) para se financiar.

Há que se ressaltar que, mesmo com o setor privado assumindo a execução de projetos em alguns setores de infraestrutura - notadamente energia, telecomunicações e transporte-, o setor público não pode deixar de exercer algumas funções, tais como:

  • regulação;

  • investir ou prover subsídios3 3 O Banco Mundial (World Bank, 1994) sugere que subsídios sejam dados de forma a não interferir no cálculo marginal de rentabilidade do projeto e a alterar o mínimo possível a provisão eficiente do serviço de infraestrutura. Por exemplo, uma doação pelo setor público de terras adjacentes a uma nova estrada (land grants) a ser construída pela iniciativa privada é preferível a se garantir uma rentabilidade mínima ao projeto. O primeiro subsídio, quando julgado indispensável para garantir uma rentabilidade mínima do projeto, não interfere nas decisões sobre investimento e operação do projeto. Já o segundo subsídio pode provocar ineficiência produtiva, por retirar alguns dos incentivos para a provisão eficiente do serviço. Por exemplo, caso o projeto não obtenha a rentabilidade assegurada, o contratante privado pode deixar de se interessar em promover melhorias (dado que o poder público assegura a rentabilidade mínima), provendo um serviço de baixa qualidade. para alguns setores (estradas vicinais, água e esgoto, transporte urbano etc.);4 4 O relatório sobre o financiamento de serviços públicos (BNDES, 1994c) propõe que a clivagem seja feita entre os projetos “geradores de caixa” (compreendendo aqueles empreendimentos capazes de gerar um retorno mensurável num fluxo de caixa que demonstre a capacidade de o projeto amortizar um financiamento) e os projetos “não geradores de caixa” (compreendendo empreendimentos que geram caixa em montante insuficiente para que haja equilíbrio entre a receita tarifária e os custos operacionais e de investimento ou que geram recursos de forma indireta, sendo muito difícil, no entanto, demonstrar esse acréscimo de receita através de um fluxo de caixa do projeto).

  • seguro quanto aos riscos induzidos pela política econômica.

Novos atores e novos instrumentos

No âmbito da infraestrutura, a parceria público-privada tem crescido fundamentalmente baseada numa nova forma de financiamento a projetos específicos. Formam-se corporações específicas para a execução e/ou operação do projeto, as assim chamadas SPCs (Special-Purpose Corporations)5 5 Maiores detalhes sobre as SPCs podem ser encontrados em World Bank (1994) ou em Moreira & Carneiro (1994). . Além de prover financiamento, tais corporações são objeto de monitoramento adicional pelos mercados financeiros. Tal monitoramento provê incentivos a um maior esforço para se evitarem atrasos e estouros de orçamento, bem como para se manter um elevado padrão de qualidade. Naturalmente, o binômio preço-qualidade depende da estrutura de mercado, bem como dos mecanismos de regulação do setor em questão.

A nova área criada pela necessidade da parceria público-privada no setor de infraestrutura foi denominada project finance. O project finance permite que os patrocinadores dos projetos de infraestrutura levantem fundos baseados no fluxo de caixa do projeto, sem vinculação com as empresas e instituições que possam estar envolvidas no patrocínio ou investimento. Devido a essa característica o project finance é ideal para projetos que não têm história pregressa de sucesso nem ativos para oferecer como garantias que possam respaldar seu acesso aos mercados financeiros.

Em geral, o financiamento pode ser nonrecourse, quando só há acesso ao fluxo de caixa e ativos do projeto, ou limited recourse, quando há também acesso aos ativos dos patrocinadores e investidores. A questão-chave é se o governo deve comprometer recursos fiscais para assegurar tais projetos. O número de projetos com limited recourse tem crescido bastante, bem como o volume de financiamento através deles, mostrando a força dessa tendência para a parceria público-privada. Em nível internacional, o setor de transportes (sobretudo rodovias com pedágio) é o setor com maior participação no volume total de investimentos sob essa forma, sendo o setor de geração de energia o que apresenta as maiores perspectivas de expansão nos anos vindouros. Atualmente, o continente Asiático atrai o maior volume de recursos (World Bank, 1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.).

Um ponto fundamental na elaboração do project finance é a confiabilidade dos contratos celebrados. Inicialmente, é necessária uma lei de concessões que defina claramente os direitos e deveres das partes envolvidas. A regulação deve ser também a mais clara possível, para que haja confiança entre os parceiros público e privado. Uma cláusula frequentemente utilizada para dirimir inevitáveis problemas não antecipados pelos contratos é recorrer à arbitragem judicial de terceiros. Um problema é que tal cláusula pode não ser viável em face de algumas legislações nacionais.

O outro ponto fundamental é a repartição dos riscos envolvidos. Em se tratando de projetos de longo prazo, o grau de incerteza envolvido é muito grande, o que toma particularmente difícil conceber contratos que possam levar o investimento a bom termo, com o atendimento dos requisitos das partes envolvidas. Um problema frequente é que a parte privada, diante de possíveis dificuldades na fase de investimento, pode pressionar o governo por maiores concessões, ameaçando não completar um investimento, acarretando elevadas perdas associadas aos recursos já consumidos no projeto e também à não-operação do projeto. Nesses casos, o contrato deve ser crível, no sentido de fazer crer à parte privada que o governo não será obrigado a conceder ao ser posto sob pressão. Project finance é, portanto, uma arte que exige o estudo de cada caso em separado, sempre atendendo aos princípios gerais da transparência dos direitos e deveres, da confiança mútua e da repartição dos riscos envolvidos. Passemos agora à análise deste último item.

Repartição dos riscos

A repartição dos riscos diz respeito não só à repartição dos riscos entre a(s) parte(s) pública(s) e as partes privadas, como também entre as diversas partes privadas envolvidas. O importante é que o contrato estabeleça de forma clara os riscos que cabem a cada parte. Na discussão que se segue, dois agentes adquirirão especial importância, a saber:

  • as companhias classificadoras de risco; e

  • as companhias seguradoras dos diversos riscos envolvidos no project finance.

As companhias classificadoras de risco cumprem o papel fundamental de difundir as informações relativas aos riscos envolvidos. As companhias seguradoras proveem recursos necessários para a diversificação de muitos dos riscos envolvidos. Sem o desenvolvimento desses dois agentes toma-se muito mais difícil e cara a realização de projetos com o concurso da iniciativa privada.

O primeiro risco relevante é o da moeda (currency risk). Investidores estrangeiros calculam o retomo de seus investimentos em moeda estrangeira; assim, desvalorizações da moeda doméstica diminuem o retomo em moeda estrangeira. Investimentos de curto prazo podem ser cobertos em mercados futuros, como o existente na Bolsa de Mercadorias & Futuros, em São Paulo. Entretanto, investimentos cujos fluxos de caixa se darão vários anos à frente não têm, ainda, mercados futuros (futures markets) ou mercados a termo (forward markets) líquidos que permitam a diversificação do risco cambial.6 6 Mercados futuros e mercados a termo são aqueles nos quais se acerta, na data presente, o preço a ser pago por um bem a ser entregue contra o pagamento acertado, numa data futura. No caso em questão, o bem é a moeda estrangeira. Ou seja, tais mercados permitem que estrangeiros, investindo no Brasil, possam ter assegurado um dado retomo em moeda estrangeira. Isso porque, através desses contratos, o preço da moeda doméstica recebida do fluxo de caixa do empreendimento já foi fixado em moeda estrangeira. Tais contratos, entretanto, não existem para os prazos mais longos relevantes para investimentos em infraestrutura. (A diferença entre mercados futuros e a termo é analisada em Cox, Ingersoll & Ross, 1981).

Mesmo que tais mercados existissem para coberturas do risco cambial de lon­go prazo, o prêmio que um agente privado exigiria para correr tal risco, provavel­mente, inviabilizaria economicamente o projeto. A razão pela qual o preço do risco cambial seria exorbitante é que, além da grande incerteza envolvida na determina­ção da taxa cambial num futuro longínquo, a determinação do câmbio é um instru­mento de política do governo, estando fora do controle dos agentes privados. Esta última característica faz com que não haja ganhos de eficiência quando se reparte o risco cambial com as partes privadas. (Voltaremos a abordar essa questão na última seção deste estudo.) Alguns governos têm oferecido formas de se segurar contra o risco cambial, por contratos a termo ou garantia de tarifas em moeda estrangeira. Tais medidas são muitas vezes necessárias para permitir o investimento de capitais externos.

O segundo risco relevante é o risco comercial, o qual envolve tanto a produção quanto a demanda. Nos custos de produção, a experiência internacional mostra que o Estado tem conseguido passar o risco aos patrocinadores ou demais agentes privados, tais como as empreiteiras. A assunção do risco de produção pelas partes privadas tem sido obtida através de diferentes tipos de arranjos contratuais, como por exemplo:

  • multas por atraso;

  • multas por não atender uma especificação previamente acordada (por exemplo, no caso de uma usina de geração de energia, não oferecer uma dada potência especificada durante um período determinado);

  • contratos “chave na mão”.

Ressalte-se que muitos projetos de infraestrutura se revestem de condições físicas únicas, algumas vezes nunca antes encontradas em outros projetos, mesmo em nível mundial. Assim, o risco de não terminar a obra no tempo determinado ou com o desempenho exigido permanecerá sempre sendo bastante grande para tais projetos. Nesses casos, é pouco provável que as partes privadas assumam o risco de produção ou que companhias seguradoras privadas ofereçam seguros a preços viáveis.7 7 Agradeço a Aloísio Asti por esse comentário.

Quanto à demanda, o problema é mais difícil, sobretudo em se tratando de projetos envolvendo altos custos fixos. O importante é desenhar um mecanismo crível que impeça que o governo se veja obrigado a “salvar” empreendimentos insolventes. Caso contrário, não haverá de fato transferência de risco, pois volta-se ao conhecido esquema de prejuízo público e lucro privado.

Em alguns setores, há medidas que podem incentivar os parceiros privados a assumirem os riscos de demanda. Redes de transmissão de energia integradas, como o Sintrel8 8 Sistema Interligado de Transmissão de Energia Elétrica, operado pelas Centrais Elétricas de Furnas. , possibilitam que geradores locais tenham acesso a mercados muito mais amplos, diminuindo o risco de não haver demanda para a energia gerada.

A evidência internacional demonstra que a transferência do risco comercial ao setor privado aumenta a eficiência produtiva dos investimentos em infraestrutura, diminuindo atrasos e estouros de orçamento. Também em nível internacional, têm-se verificado que algumas formas de risco comercial têm sido seguradas por seguradoras privadas, cabendo ao governo incentivar a formação desse mercado (World Bank, 1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.).

A terceira classe de riscos relevantes inclui aqueles relacionados com a política setorial em questão. Por exemplo, no setor de energia elétrica, quem compra a energia gerada é tipicamente uma unidade de transmissão governamental. Diante do risco de não encontrar demanda suficiente para a energia gerada, a parte privada patrocinadora de um projeto de geração quererá se proteger. Uma forma de fazê-lo é através de contratos “tome ou pague”, nos quais o setor público se compromete a garantir uma demanda mínima às tarifas acertadas. Uma outra forma, já utilizada no Brasil, é a de contratos de pré-venda de energia, que é preferível à primeira por não comprometer recursos fiscais.

O risco de redução do valor real das tarifas ao longo do tempo, sobretudo num país com a história inflacionária do Brasil, é um grande obstáculo ao investimento do setor privado que visa atender ao mercado. Dado que as tarifas de serviços de infraestrutura são tipicamente determinadas por agências públicas, não parece haver outra forma de se segurar tal risco senão o estabelecimento pelo setor público de tarifas mínimas.

Os riscos-país (country risks) são uma classe de risco que mais preocupa os investidores estrangeiros; por exemplo, o risco de uma moratória unilateral que impeça a remessa das rendas dos projetos patrocinados para o exterior. Tais riscos persistem mesmo se o governo garantir demanda mínima, tarifa e conversibilidade, pois em situações críticas os governos tipicamente repudiam tais compromissos. Países com reputação construída nos mercados financeiros internacionais têm menos necessidade de se assegurar contra tal risco.9 9 A boa reputação pode muitas vezes ser enganosa, como no caso recente do México. Em finais de 1993, jornais registravam que a Petróleo Mexicanos (PEMEX) havia colocado junto a investidores norte-americanos US$ 250 milhões de títulos de 30 anos. Sobre a operação, dizia um importante executivo do Long Term Credit Bank do Japão: “Essa operação é um marco, e mostra o tipo de financiamento de longo prazo que se torna disponível para as empresas quando os governos conseguem fazer os ajustes de suas economias” (Gazeta Mercantil, 22/11/93).

Várias agências multilaterais proveem formas de segurar o risco soberano. O Banco Mundial opera vários esquemas de garantia, como as garantias para mercados de capitais (World Bank’s capital-market guarantees), que aumentam o prazo de empréstimos internacionais disponíveis, inclusive para infraestrutura. O Banco Mundial, através da Extended Cofinancing Facility (ECO), presta garantias para cobrir o risco soberano associado a projetos de infraestrutura. Uma outra agência do grupo Banco Mundial - a Multilateral Investment Guarantee Agency (MIGA) - também provê garantias para projetos de infraestrutura.

5. UMA PROPOSTA DE NOVO INSTRUMENTO PARA O BNDES: O SEGURO DO RISCO MACROECONÔMICO DE CRÉDITO

Na seção anterior enfatizaram-se os papéis de agências classificadoras de crédito e de seguradoras dos riscos envolvidos no project finance. As agências classificadoras de crédito geralmente analisam empresas. Como se ressaltou, a característica essencial do project finance é a separação do risco das empresas patrocinadoras/investidoras do risco do negócio. Assim, convém haver empresas que saibam avaliar e difundir informações sobre projetos de infraestrutura.

O sistema BNDES é claramente a instituição que tem melhores condições no País de analisar projetos de infraestrutura, atestando viabilidade econômica e financeira, identificando os riscos envolvidos e classificando os diversos projetos. Os procedimentos de análise de projetos usados pelo sistema BNDES podem com poucas adaptações servir para que investidores privados tenham uma avaliação do binômio retomo-risco envolvido em projetos de infraestrutura. Tal esforço viria ao encontro dos desenvolvimentos já realizados pelo BNDES em credit rating.

Para que a estabilização representada pelo Plano Real possa vingar é imprescindível que se façam os investimentos em infraestrutura de que o País necessita. Para tanto, será necessário mobilizar todas as formas de canalização de poupanças para financiarem tais investimentos. No que tange à atração de poupança privada interna e externa, uma classe de riscos que pode comprometer a formação de um mercado privado de crédito de longo prazo é a do risco macroeconômico.

No curso da estabilização, tipicamente são necessários ajustes de curso de curto prazo, como elevações substanciais da taxa de juros de curto prazo sob controle do· Banco Central. Caso instituições financeiras tenham decidido emprestar recursos de longo prazo para projetos de infraestrutura, a elevação das taxas de curto prazo fará com que amarguem severos prejuízos, dado o típico descasamento entre aplicações ativas (de longo prazo) e captações passivas (de curto prazo). Esse é o risco típico que advém da transformação de maturidades realizada por instituições financeiras. O mesmo ocorreria com fundos mútuos que houvessem emprestado no mercado de crédito de longo prazo. Apenas instituições que tivessem uma captação de longo prazo não estariam descasadas, como é o caso dos fundos de pensão. Mesmo no caso dos fundos de pensão, contudo, estes não aplicariam em arriscados empréstimos de longo prazo tendo disponível a opção de altas taxas de juros em papéis de curto prazo. Assim, para que se viabilize um mercado de crédito de longo prazo com taxas de juros não-proibitivas - possivelmente flutuantes ou indexadas à moeda estrangeira ou a outro indexador - é imprescindível que:

  • se reduzam as taxas de juros de curto prazo, de modo que haja o surgimento de uma curva de rendimentos (yield curve) positivamente inclinada, com taxas longas compatíveis com a rentabilidade marginal do capital;

  • haja algum mecanismo que proteja os financiadores do risco de verem seus custos de captação se elevarem por conta de uma decisão de política monetária muito acima de suas taxas de aplicação em financiamentos a projetos de infraestrutura.

Prover um mecanismo de proteção ao setor privado contra elevações da taxa de juros eventualmente requeridas pelo processo de estabilização é do interesse público, porque sem tal mecanismo não se carrearão as poupanças para os indispensáveis investimentos em infraestrutura. A não-realização de tais investimentos fatalmente gerará gargalos setoriais que obstarão o processo de crescimento econômico, agravando as tensões sociais e pondo em risco o esforço de estabilização.

Por outro lado, segurar o setor privado contra um risco sobre o qual ele não tem qualquer controle (elevação pelo Banco Central das taxas de juros de curto prazo) não interfere na eficiência do investimento. Garantir uma rentabilidade mínima ao projeto pode gerar ineficiência na medida em que tal seguro de rentabilidade mínima venha a diminuir o esforço da parte privada para melhorar o desempenho. Não há análogo a esse exemplo no caso do seguro de risco macroeconômico do crédito, uma vez que não há aqui o problema de perigo moral (moral hazard).

No caso do seguro de rentabilidade mínima é impossível saber se a rentabilidade mínima não foi obtida devido a fatores não-controláveis ou devido a fatores controláveis pela parte privada. Se esta for incompetente, ela deve ser punida com os prejuízos que vier a sofrer. O seguro de rentabilidade mínima impede que isso ocorra.

Já o seguro macroeconômico de crédito só é ativado quando uma circunstância totalmente fora do controle da parte privada ocorrer, a saber, a elevação dos juros de curto prazo pela política monetária. Assim, a ineficiência que potencialmente advém do seguro de rentabilidade mínima não ocorre nesse caso.

A forma de se implementar tal seguro, conforme a sugestão de Carneiro, Werneck & Garcia (1993CARNEIRO, D.D., WERNECK, R.L.F. & GARCIA, M.G.P. (1993) “Strengthening the financial sector in the Brazilian economy”. Texto para Discussão n. 307. Departamento de Economia, PUC-Rio.), seria através de um redesconto oferecido pelo sistema BNDES a títulos financiadores de projetos de longo prazo. Para que se evitem fraudes, o processo de classificação dos projetos descrito acima poderia ser usado para qualificar os títulos que fariam uso desse redesconto. Apenas financiamentos a projetos previamente qualificados pelo sistema BNDES poderiam ser por este temporariamente refinanciados, enquanto a política monetária tivesse que manter as taxas de curto prazo em nível incompatível com o financiamento de projetos de infraestrutura.

Para minimizar o comprometimento de recursos, o refinanciamento poderia ser substituído por um subsídio ao empréstimo que permitisse ao emprestador arcar com os maiores custos de captação causados pela elevação temporária das taxas de juros pelo Banco Central. Tal mecanismo não tem os mesmos defeitos da malfadada experiência anterior de pré-fixação da correção monetária feita pelo BNDE na década de 70 (v. Najberg, 1989NAJBERG, S. (1989) “Privatização de recursos públicos: os empréstimos do sistema BNDES ao setor privado nacional com correção monetária parcial”. Dissertação de Mestrado. Departamento de Economia, PUC-Rio, mimeo.). Naquela oportunidade, o mecanismo acabou gerando signifi­cativos ganhos aos mutuários do BNDE. No caso do seguro macroeconômico de crédito, o mecanismo deve ser desenhado de forma a impedir perdas oriundas de elevações de juros. Não há ganhos oriundos de juros altos como no caso da prefixação da correção monetária, que tornava os mutuários do BNDE sócios da inflação, na medida em que os valores de suas dívidas com o BNDE caíam na razão direta da inflação.

Ressalte-se que os recursos necessários para a implementação de seguro do risco macroeconômico de crédito devem preferencialmente originar-se no orçamento da União, cabendo ao BNDES tão-somente a gerência dos recursos e dos seguros prestados.

O mercado de crédito deverá se constituir ainda no principal mecanismo de alocação de poupanças a projetos de investimento na economia brasileira. Portanto, é necessário que se criem mecanismos que revitalizem o segmento de crédito de longo prazo. O seguro do risco macroeconômico de crédito é uma ideia nesse sentido. Entre outras vantagens, ele permite ao sistema BNDES alavancar os recursos destinados a esse programa, uma vez que, sob condições normais, o financiamento será integralmente realizado por capitais privados, os quais, na ausência do seguro, não se disporiam a financiar projetos de longo prazo em infraestrutura. Essa última característica vai ao encontro da necessidade imperiosa de não pressionar o déficit público.

Por fim, cabe mencionar que a implementação não só desse mecanismo de seguro macroeconômico de crédito, mas de outros já muito usados em nível internacional, como as performances bonds10 10 Performance bond é um seguro que protege o segurado contra o risco de não se obterem os resultados constantes de um contrato. , dependem de uma radical mudança da legislação brasileira que rege os seguros. Nossa legislação é extremamente restritiva, impedindo a introdução dos produtos de seguros necessários a investimentos em infraestrutura, bem como a promoção de maior competição no setor.11 11 Agradeço a Aloísio Asti por esse comentário.

6. CONCLUSÃO

O sucesso do esforço de estabilização representado pelo Plano Real significa manter a inflação reduzida nos anos vindouros, bem como promover a retomada do crescimento sustentado. Para que essa conjugação de baixa inflação e crescimento econômico seja possível, é indispensável que se realize um amplo programa de recuperação dos investimentos em infraestrutura, bem como um elevado volume de novos investimentos.

Tal necessidade decorre do fato de os serviços de infraestrutura serem essenciais para a atividade produtiva. Vários estudos recentes têm corroborado a importância dos investimentos em infraestrutura no crescimento econômico das economias desenvolvidas. No caso brasileiro, em que se preveem num futuro próximo gargalos significativos em diversos setores - como os de energia elétrica, transportes e telecomunicações -, a importância de investimentos em infraestrutura fica ainda mais magnificada.

Ademais, com a recente reversão do panorama favorável no setor externo da economia, torna-se ainda mais imperioso reduzir o “custo Brasil”. Tal redução é fundamental tanto para promover a competitividade de nossas exportações, quanto para possibilitar menores preços internos (menor inflação).

O esforço de estabilização impede que os investimentos sejam financiados via déficit público. Também se tem observado em nível internacional uma crescente participação da gerência privada de projetos de infraestrutura, com diversos resultados encorajadores.

No Brasil, vários setores de infraestrutura contam com grande interesse do setor privado para realizar e gerir os investimentos. A perspectiva é realizar maciços investimentos em infraestrutura sem mais contar com o Estado como principal agente executor e financiador. Essa é uma tendência mundial, que originou o project finance, modalidade de financiamento que viabiliza a parceria público-privada em projetos de infraestrutura. O project finance separa o risco da empresa do risco do negócio, desenhando-se operações de financiamento exclusivas para projetos determinados.

No Brasil, sobretudo após a aprovação da lei de concessões e com a aceleração do programa de privatizações, tal forma de financiamento à infraestrutura deve ser largamente utilizada. Para que a repartição de riscos exigida pela parceria público-privada se efetive é necessário que haja clareza quanto à regulação da atividade e que os contratos sejam críveis, impedindo que o setor público tenha que “salvar” investimentos eventualmente insolventes.

Um dos mecanismos mais importantes de financiamento a projetos de infraestrutura é o mercado de crédito privado de longo prazo, atualmente inexistente no Brasil. Para viabilizar a criação de um mercado de crédito de longo prazo com taxas de juros não-proibitivas - possivelmente flutuantes ou indexadas à moeda estrangeira ou a outro indexador - é imprescindível que:

  • se reduzam as taxas de juros de curto prazo, de modo que haja o surgimento de uma curva de rendimentos (yield curve) positivamente inclinada e com taxas longas compatíveis com a rentabilidade marginal do capital;

  • haja algum mecanismo que proteja os financiadores do risco de verem seus custos de captação se elevarem por conta de uma decisão de política mone­tária muito acima de suas taxas de aplicação em financiamentos a projetos de infraestrutura.

Para dar conta do segundo problema, propõe-se que o BNDES institua um seguro do risco macroeconômico de crédito. Tal seguro seria implementado sob a forma de um redesconto oferecido pelo sistema BNDES a títulos financiadores de projetos de longo prazo. Para evitar fraudes, o BNDES faria o credit rating dos projetos para qualificar os títulos que poderiam fazer uso desse redesconto. Apenas financiamentos a projetos previamente qualificados pelo sistema BNDES poderiam ser por este temporariamente refinanciados enquanto a política monetária tiver que manter as taxas de curto prazo em nível incompatível com o financiamento de projetos de infraestrutura.

Tal redesconto permitiria ao sistema BNDES alavancar os recursos destinados à infraestrutura, uma vez que, sob condições normais, o financiamento será integralmente realizado por capitais privados. Estes, na ausência do seguro, não se disporiam a financiar projetos de longo prazo em infraestrutura. Por isso, a ideia do seguro macroeconômico de crédito magnifica as possibilidades de se realizarem investimentos em infraestrutura com uma pressão significativamente menor sobre o déficit público. Outra vantagem é que se poderia acoplar tal programa aos programas de garantia atualmente oferecidos pelas empresas do grupo do Banco Mundial.

REFERÊNCIAS BBIBLIOGRÁFICAS

  • BERNARD, A. & GARCIA, M.G.P. (1995) “Public and private provision of infrastructure and economic development”, mimeo.
  • BNDES (1994a) “GT infraestrutura para competitividade (energia elétrica)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.
  • BNDES (1994b) “GT infraestrutura para competitividade (transporte de carga)”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.
  • BNDES (1994c) “GT financiamento de serviços públicos”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.
  • CARNEIRO, D.D., WERNECK, R.L.F. & GARCIA, M.G.P. (1993) “Strengthening the financial sector in the Brazilian economy”. Texto para Discussão n. 307. Departamento de Economia, PUC-Rio.
  • FERREIRA, P.C. (1994) “Infraestrutura no Brasil: alguns fatos estilizados.” EPGE, Ensaios Econômicos n. 251. Fundação Getúlio Vargas.
  • MOREIRA, T. & CARNEIRO, M.C.F.C. (1994) “A parceria público-privada na infraestrutura econômica”. Revista do BNDES 2: 27-46.
  • NAJBERG, S. (1989) “Privatização de recursos públicos: os empréstimos do sistema BNDES ao setor privado nacional com correção monetária parcial”. Dissertação de Mestrado. Departamento de Economia, PUC-Rio, mimeo.
  • PINHEIRO, A.C. (1994) “Os fundos de pensão e o financiamento do desenvolvimento: o papel do BNDES”. Revista do BNDES 2: 47-75.
  • SIMONSEN, M.H., & CYSNE, R.P. (1989) Macroeconomia. Rio de Janeiro, Ao Livro Técnico S.A.
  • WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.
  • 1
    Uma excelente resenha sobre os mecanismos existentes em nível internacional para possibilitar a parceria público-privada no financiamento a projetos de infraestrutura pode ser encontrada em Moreira & Carneiro (1994MOREIRA, T. & CARNEIRO, M.C.F.C. (1994) “A parceria público-privada na infraestrutura econômica”. Revista do BNDES 2: 27-46.).
  • 2
    Pinheiro (1994PINHEIRO, A.C. (1994) “Os fundos de pensão e o financiamento do desenvolvimento: o papel do BNDES”. Revista do BNDES 2: 47-75.) analisa a participação dos fundos de pensão no financiamento a investimentos, em especial os de infraestrutura.
  • 3
    O Banco Mundial (World Bank, 1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.) sugere que subsídios sejam dados de forma a não interferir no cálculo marginal de rentabilidade do projeto e a alterar o mínimo possível a provisão eficiente do serviço de infraestrutura. Por exemplo, uma doação pelo setor público de terras adjacentes a uma nova estrada (land grants) a ser construída pela iniciativa privada é preferível a se garantir uma rentabilidade mínima ao projeto. O primeiro subsídio, quando julgado indispensável para garantir uma rentabilidade mínima do projeto, não interfere nas decisões sobre investimento e operação do projeto. Já o segundo subsídio pode provocar ineficiência produtiva, por retirar alguns dos incentivos para a provisão eficiente do serviço. Por exemplo, caso o projeto não obtenha a rentabilidade assegurada, o contratante privado pode deixar de se interessar em promover melhorias (dado que o poder público assegura a rentabilidade mínima), provendo um serviço de baixa qualidade.
  • 4
    O relatório sobre o financiamento de serviços públicos (BNDES, 1994cBNDES (1994c) “GT financiamento de serviços públicos”. Sistema Permanente de Planejamento - Subcomissão de Usos.) propõe que a clivagem seja feita entre os projetos “geradores de caixa” (compreendendo aqueles empreendimentos capazes de gerar um retorno mensurável num fluxo de caixa que demonstre a capacidade de o projeto amortizar um financiamento) e os projetos “não geradores de caixa” (compreendendo empreendimentos que geram caixa em montante insuficiente para que haja equilíbrio entre a receita tarifária e os custos operacionais e de investimento ou que geram recursos de forma indireta, sendo muito difícil, no entanto, demonstrar esse acréscimo de receita através de um fluxo de caixa do projeto).
  • 5
    Maiores detalhes sobre as SPCs podem ser encontrados em World Bank (1994WORLD BANK (1994) World Development Report. Oxford, Oxford University Press.) ou em Moreira & Carneiro (1994MOREIRA, T. & CARNEIRO, M.C.F.C. (1994) “A parceria público-privada na infraestrutura econômica”. Revista do BNDES 2: 27-46.).
  • 6
    Mercados futuros e mercados a termo são aqueles nos quais se acerta, na data presente, o preço a ser pago por um bem a ser entregue contra o pagamento acertado, numa data futura. No caso em questão, o bem é a moeda estrangeira. Ou seja, tais mercados permitem que estrangeiros, investindo no Brasil, possam ter assegurado um dado retomo em moeda estrangeira. Isso porque, através desses contratos, o preço da moeda doméstica recebida do fluxo de caixa do empreendimento já foi fixado em moeda estrangeira. Tais contratos, entretanto, não existem para os prazos mais longos relevantes para investimentos em infraestrutura. (A diferença entre mercados futuros e a termo é analisada em Cox, Ingersoll & Ross, 1981).
  • 7
    Agradeço a Aloísio Asti por esse comentário.
  • 8
    Sistema Interligado de Transmissão de Energia Elétrica, operado pelas Centrais Elétricas de Furnas.
  • 9
    A boa reputação pode muitas vezes ser enganosa, como no caso recente do México. Em finais de 1993, jornais registravam que a Petróleo Mexicanos (PEMEX) havia colocado junto a investidores norte-americanos US$ 250 milhões de títulos de 30 anos. Sobre a operação, dizia um importante executivo do Long Term Credit Bank do Japão: “Essa operação é um marco, e mostra o tipo de financiamento de longo prazo que se torna disponível para as empresas quando os governos conseguem fazer os ajustes de suas economias” (Gazeta Mercantil, 22/11/93).
  • 10
    Performance bond é um seguro que protege o segurado contra o risco de não se obterem os resultados constantes de um contrato.
  • 11
    Agradeço a Aloísio Asti por esse comentário.
  • 12
    JEL Classification: H30; O40.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 1996
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