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Contestabilidade e integração econômica no Hemisfério Ocidental

Contestability and economic integration in Western Hemisphere

RESUMO

Este artigo discute a harmonização das políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental. Utilizando a teoria dos mercados contestáveis, apresenta uma estrutura analítica que mostra os requisitos para alcançar coerência entre as diferentes políticas que afetam o processo de concorrência. De acordo com essa teoria, os parâmetros normativos para monitorar a conduta da comunidade empresarial devem estar subordinados a algumas características especiais de cada setor, a saber, a relação custos de transação/custos de produção, a natureza das barreiras à entrada e a interação entre as tecnologias existentes e o tamanho do mercado. Essa abordagem permitiria o envolvimento imediato de todos os 34 países membros da OEA no esforço de convergência das políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental, independentemente do status das leis nacionais antitruste. De fato, o único requisito para participar desse esforço é uma base de dados confiável que descreva as condições atuais da concorrência em cada economia.

PALAVRAS-CHAVE:
Mercado contestável; concorrência; integração econômica

ABSTRACT

This paper discusses the harmonization of competition policies in the Western Hemisphere. Using the theory of contestable markets, it presents an analytical framework that shows the requirements for achieving coherence among the different policies that affect the competition process. According to that theory, the normative parameters for monitoring the conduct of the business community should be subordinated to some special characteristics of each industry, namely, the ratio transaction costs/production costs, the nature of entry barriers, and the interplay between existing technologies and the market size. This approach would allow the immediate involvement of all 34 OAS member countries in the effort toward the convergence of competition policies in the Western Hemisphere, regardless of the status of national antitrust laws. Indeed, the only requirement for participating in that effort is a reliable data base that would describe the current conditions of competition in each economy.

KEYWORDS:
Contestable market; competition; economic integration

1. INTRODUÇÃO

No Hemisfério Ocidental, a política de concorrência é uma questão na qual tanto as disparidades quanto o âmbito de convergência são momentaneamente imensos.

Contrastando com as experiências seculares do Canadá e dos Estados Unidos, que tiveram início com a Canadian Combines Investigation Act (Lei Canadense de Investigação de Cartéis), de 1889, e a Sherman Act (Lei Sherman), de 1890, nos Estados Unidos, o histórico de implementação de tais políticas nos países latino-americanos e caribenhos é virtualmente nulo. Embora alguns países, como a Argentina e o México, tenham leis antitruste desde o início do século XX, foi apenas após a onda de reformas econômicas que varreu o continente na década de 80 que a implementação de regras relativas à concorrência adquiriu status de questão relevante na região. Enquanto isso, as visões tradicionais acerca do antitruste eram contestadas nos Estados Unidos e no Canadá. Sob a influência da escola de Chicago foram introduzidas várias emendas à legislação norte-americana, tais como a National Cooperative Research Act (Lei Nacional de Pesquisa de Cooperativas), de 1984, os novos procedimentos para a avaliação de fusões e a Lei das Telecomunicações, de 1995. A Canadian Competition Act (Lei Canadense da Concorrência), de 1986, traçou novas diretrizes para a fiscalização de monopólios e oligopólios e reforçou as sanções a práticas restritivas, tais como fixação de preços, administração fraudulenta de licitações, discriminação de preços e apreçamento predatório. Ademais, na década atual os governos americano e canadense têm participado ativamente das discussões atuais sobre a convergência de políticas de concorrência entre os países integrantes da OCDE. Assim, apesar das heranças históricas muito diferentes, a política de concorrência é hoje um tópico importante na pauta de prioridades de muitos governos no Hemisfério Ocidental, e isso constitui um ponto de partida promissor para a cooperação multilateral e a inovação institucional.

O projeto de uma área hemisférica de livre comércio gera pressões no sentido da convergência das políticas de concorrência entre os países-membros, e de uma maior coesão dessas políticas com outras ações dos governos com relação ao comércio, à indústria e à estabilização macroeconômica. Essa tarefa só pode ser realizada a longo prazo, mas talvez não seja viável sob determinadas condições macroeconômicas. Por exemplo, a redução das barreiras de entrada é instrumento importante para melhorar a concorrência, e, entre os diferentes tipos de barreiras artificiais à entrada, a proteção contra importações é a que mais fortemente se destaca. Mas, em oligopólios que possuem alto nível de elasticidade na demanda, tais como os de automóveis e outros bens de consumo duráveis, a liberalização comercial pode provocar um aumento das importações que pode prejudicar os objetivos macroeconômicos de equilíbrio da balança comercial e controle da inflação. Embora seja transitório, esse tipo de conflito tende a se evidenciar em economias inflacionárias que permaneceram fechadas por muito tempo.

A tensão com relação à política industrial é mais ampla e duradoura. Em países grandes, como Estados Unidos, Canadá e Brasil, os governos são constantemente pressionados a tomar medidas no sentido de promover as indústrias de alta tecnologia e reestruturar as indústrias enfraquecidas. Enquanto isso, nos países menores, a criação de novas atividades industriais continua a funcionar como maneira atraente de enfrentar o desafio do desenvolvimento econômico. Segundo Boner e Krueger, a tensão entre política antitruste e política industrial é natural: “as políticas antitruste são criadas visando fundamentalmente proteger os compradores em um mercado, enquanto as políticas industriais geralmente visam proteger os vendedores” (Boner & Krueger, 1991BONER, R. & KRUEGER, R. (1991) The basics of antitrust policy. Washington, The World Bank., pp. 100-1). Na prática, porém, essa distinção nem sempre é válida, porque as duas políticas podem ser dominadas por grupos de interesses e se tomar objeto de atividades rent seeking, como já argumentaram vários autores (ver Bork, 1978BORK, R. (1978), The Antitrust Paradox. New York, Basic Books., Baumol & Ordover, 1985BAUMOL, W. & ORDOVER, J. (1985) “Use of antitrust to subvert competition”. Journal of Law & Economics, May., McChesney & Shugart, 1995MCCHESNEY, F., & SHUGHART, W., (eds.) (1995) The causes and consequences of antitrust. Chicago, Chicago University Press., e Rodriguez & Williams, 1995RODRIGUEZ, A., & WILLIAMS, M. (1995) “Economic liberalization and antitrust in Mexico”. Revista de Analisis Economico, Santiago, Forthcoming.).

Outra potencial fonte de pressões no sentido da convergência das políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental deriva da agenda comercial multilateral a ser debatida na Organização Mundial do Comércio (OMC), que deverá tomar-se o principal fórum para a regulamentação do intercâmbio entre políticas comerciais, industriais e de concorrência. Esse intercâmbio inclui as seguintes questões relevantes: i) barreiras nacionais à entrada podem distorcer os fluxos de comércio; ii) as transnacionais podem conseguir esquivar-se das leis antitruste nacionais; iii) antidumping, salvaguardas, leis de propriedade intelectual e outros mecanismos de proteção permitidos pela OMC podem desbancar as normas implementadas pelas leis antitruste (ver Hoekman & Mavroidis, 1994HOEKMAN, B. & MAVOIDS, P. (1994) “Competition, competition policy and the Gatt”. World Economy, v. 17, pp. 121-50.).

Apesar da magnitude dos desafios a enfrentar, tanto as experiências vividas pelos países integrantes da OCDE, em seus recentes esforços de harmonização das políticas de concorrência, quanto as da União Europeia, na tentativa de conciliar promoção industrial com integração econômica, mostram que projetos semelhantes seriam viáveis no Hemisfério Ocidental. Assim, este documento visa duas coisas: em primeiro lugar, apresentar um contexto analítico que mostre os pré-requisitos para a obtenção de coerência entre as diferentes políticas que afetam o processo de concorrência; em segundo, tratar das especificidades de uma possível convergência de políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental. O argumento é organizado da seguinte maneira: a seção 2 apresenta a teoria dos mercados contestáveis, discute as prescrições normativas que podem ser derivadas dessa teoria e indica os vínculos entre política de concorrência e política industrial. Na seção 3 esses conceitos são aplicados à busca de instrumentos que permitam a convergência de políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental. Na seção 4 são feitas algumas observações finais.

2. MERCADOS CONTESTÁVEIS E POLÍTICA DE CONCORRÊNCIA

“O interesse dos intermediários em qualquer ramo específico de comércio ou manufatura”, disse Adam Smith, “é sempre diferente, em alguns aspectos, ou mesmo o oposto, daquele do público. Ampliar o mercado e restringir a concorrência é sempre do interesse dos intermediários. Ampliar o mercado pode frequentemente ser bastante útil ao interesse do público; mas restringir a concorrência deve sempre ser contrário a ele, e só pode servir para capacitar os intermediários, ao elevar seus lucros acima daquilo que seria natural, a cobrar, para seu próprio benefício, um imposto absurdo do restante de seus concidadãos” (Smith, 1776SMITH, A. (1976) The wealth of nations. Chicago, Chicago University Press, edition 1976., p. 278).

Essa famosa afirmação gerou uma abordagem amplamente aceita à política de concorrência, que perdurou por duzentos anos. Nessa abordagem, as diretrizes normativas derivam do modelo de concorrência perfeita e, consequentemente, o principal alvo a ser vigiado é a grande empresa, cujo comportamento suposto está sempre pronto a prejudicar o interesse público. Assim, os governos precisam estar preparados para punir todas as ações prejudiciais a um ambiente econômico competitivo e a promover, sempre que possível, a descentralização dos mercados.

Essa abordagem possui uma peculiaridade interessante. Apesar do avassalador prestígio intelectual de que vem gozando durante toda a história do capitalismo industrial, ela nunca chegou a ser integralmente implementada. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Lei Antitruste Sherman de 1890 foi decretada sob a influência de um forte movimento nacional contrário à “grande empresa”. No entanto, como observou McCraw, durante os primeiros quarenta anos da implementação da lei antitruste seus principais alvos não foram grandes empresas, e sim as associações de pequenas empresas: “Segundo o que pude determinar por uma contagem preliminar, cerca de seis em cada sete dos trezentos e poucos processos antitruste instaurados nos anos anteriores ao New Deal foram movidos contra pequenas empresas e suas associações. Os alvos constantes dos implementadores da lei antitruste incluíram companhias situadas em indústrias descentralizadas, tais como a da madeira e serrarias, produção agrícola, materiais de construção e comércio varejista” (McCraw, 1986MCCRAW, T. (1986) “Mercantilism and the market: antecedents of American industrial policy”. In Claude E. Barfield & William A. Schambra, eds., The Politics of industrial policy, Washington, American Enterprise Institute of Public Policy Research., pp. 44-5).

Assim, mesmo que intuitivamente, os implementadores da legislação antitruste não seguiam a visão econômica predominante e permitiam o desenvolvimento de todos os tipos de configurações industriais que resultam naturalmente da interação entre tecnologia e dimensões de mercado. De modo geral, quando as funções de custo deixavam implícito que a configuração mais eficiente seria um oligopólio, nem o Departamento de Justiça nem a Comissão Federal de Comércio se dispunham a estimular uma descentralização artificial da indústria. Já nas indústrias naturalmente descentralizadas, porém, a lei foi devidamente aplicada contra cada conluio, cartelização e outros tipos de tentativa de obter domínio do mercado.

Essas atitudes foram finalmente conciliadas com a teoria econômica em 1982, quando Baumol, Panzar e Willig apresentaram sua teoria dos mercados contestáveis, argumentando que a estrutura industrial é determinada endógena e simultaneamente com os vetores de produto e preços industriais. Essa teoria focaliza as conexões existentes entre três classes de fatores: as características das tecnologias atuais, o tamanho do mercado e a potencial concorrência. Para cada conjunto disponível de técnicas de produção só existe uma configuração industrial que constitui a maneira mais eficiente de suprir o vetor de produto que seja consistente com as dimensões do mercado que se está servindo. Uma vez identificada a configuração eficiente (por exemplo, a distribuição das empresas incumbentes em termos de número e tamanho e seus respectivos vetores de produto e participações no mercado), o padrão de concorrência daquela indústria irá resultar não apenas das estratégias adotadas pelas empresas incumbentes, mas também do poder dos potenciais concorrentes que possam eventualmente entrar no mercado.

Na década de 90 a ideia dos mercados contestáveis passou a ser amplamente aceita como a meta final da política de concorrência (ver, inter alia, Hoekman & Mavroidis, 1994HOEKMAN, B. & MAVOIDS, P. (1994) “Competition, competition policy and the Gatt”. World Economy, v. 17, pp. 121-50.; Lawrence, 1995LAWRENCE, R. (1995) “Toward globally contestable markets”. TD/RD (95)4, Paris, OECD Trade Directorate.; Sauvé & Zampetti, 1995SAUVÉ, P., & ZAMPETTI, A. (1995) “Onwards to Singapore: the international contestability of markets and the new trade agenda”. Paris, OECD Trade Directorate.). Os documentos da OCDE ilustram bem essa tendência: “A promoção de uma maior contestabilidade dos mercados tomou-se, assim, um novo tema que, pode-se prever, irá permear boa parte dos processos futuros de criação de políticas e regras, em nível internacional” (OCDE, 1995aOECD (1995a) “The Uruguay Round agreement on subsidies: a forward-looking assessment”, TD/TC/WP (95)13, Paris., p. 3). “A liberalização comercial e a política de concorrência internacionais compartilham o objetivo comum de promover mercados abertos (‘contestáveis’) e a concorrência sem distorções” (OCDE, 1994aOECD (1994a) “Competition policy aspects of the Uruguay Round”, TD/TC/WP (94) 32, Paris., p. 3). “Manter um mercado doméstico internacionalmente contestável é, em última análise, do interesse da comunidade nacional, e assim cai dentro do âmbito da política pública nacional e, especificamente, da legislação e da política de concorrência” (OCDE, 1995bOECD (1995b) “Anticompetitive practices in a globalizing world economy: a policy issues paper”, TD//RD (95)15, Paris., p. 4).

A expressão promover a contestabilidade é frequentemente utilizada simplesmente como sinônimo de reduzir barreiras à entrada. No entanto, ela possui outra implicação de longo alcance: a criação de um quadro preciso para lidar com a interface entre política industrial e política de concorrência. Essa interface é discutida resumidamente nas próximas seções.

2.1. O quadro analítico

Um mercado é perfeitamente contestável quando não há sunk costs nem barreiras de entrada, no sentido adotado por Stigler. “Sunk costs são aquela parte do investimento inicial que seria perdida se o investidor tivesse que sair do mercado antes de o investimento ser inteiramente depreciado” (Ordover, 1990ORDOVER, J. (1990) “Economic foundations of competition policy”. In W.S. Comanor and others, Competition policy in Europe and North America: economic issues and institutions, New York, Harwood Academic Publishers.). Segundo Stigler, existe liberdade de entrada quando os potenciais concorrentes têm os mesmos custos médios de longo prazo que os custos das firmas incumbentes (ver Stigler, 1968STIGLER, G. (1968) The organization of industry. Chicago, Chicago University Press., cap. 6). Em outras palavras, não há segredos tecnológicos em mercados perfeitamente contestáveis, e as empresas que competem neles podem facilmente sair a qualquer momento.

A utilidade desse conceito não depende de sua relevância empírica. Como observou Baumol, na vida real a contestabilidade total é tão rara quanto a concorrência total, mas é mais geral do que esta: “um mercado perfeitamente competitivo necessariamente é perfeitamente contestável, mas não vice-versa” (Baumol, 1982BAUMOL, W. (1982) “Contestable markets: an uprising in the theory of industry structure”. American Economic Review, March., p. 4). Entretanto, a noção de contestabilidade não inclui os pressupostos usuais relativos à atomicidade do mercado, homogeneidade de produtos e independência entre os processos decisórios dos concorrentes, nem implica qualquer relacionamento direto entre eficiência de custos e o número de empresas que atendem ao mercado. Na realidade, essa teoria sugere que monopólios e oligopólios não apenas tendem a ser frequentes no capitalismo contemporâneo, como também, na maioria dos casos, constituem as melhores soluções do ponto de vista do bem-estar social.

Para que uma estrutura industrial seja eficiente é preciso que sua configuração seja viável e sustentável. A noção de viabilidade é trivial: significa que as tecnologias disponíveis permitem às empresas incumbentes atender à demanda do mercado aos preços atuais, sem incorrer em perdas. A noção de sustentabilidade é mais restritiva: ela impõe que, sob os preços atuais, nenhum concorrente potencial pode obter lucros ingressando naquele mercado. Esses conceitos podem ser afirmados mais precisamente da seguinte maneira. Uma configuração industrial pode ser descrita pelo vetor (n, y1, ..., yn, p), em que n é o número de empresas incumbentes, Y; o vetor de produto produzido pela firma i, p o vetor de preço; D(p) é a função de demanda do mercado e c(yi) é a função de custo da foma i. Essa configuração é viável se Σyi=D(p); yi0 e se py;c(yi)0; para i=1,....,n; e ela será sustentável se, além de satisfazer essas condições, os preços atuais forem tais que peye-c(ye)0 para todos pep e yeD(pe). Assim, um mercado perfeitamente contestável se encontra em equilíbrio quando sua configuração é estável.

As configurações sustentáveis podem ser altamente transitórias, pois os avanços técnicos, o crescimento econômico e as políticas públicas redefinem constantemente os parâmetros de sustentabilidade. O papel desempenhado pelo progresso técnico engloba três mecanismos principais: economias de escala, economias de âmbito e a razão entre custos de transação e custos de produção. Existem economias de escala a serem exploradas sempre que a razão entre custo médio e custos marginais for maior que a unidade; e haverá economias de âmbito sempre que for mais barato combinar duas ou mais linhas de produção em uma única empresa do que distribuir o vetor de produto entre produtores especializados. Os efeitos conjuntos das economias de escala e de âmbito determinam a relação entre custos de transação e custos de produção, ou seja, os vínculos insumo/produto da empresa. Como é bem sabido, esta última definição já havia sido dada por Coase em seu artigo clássico de 1937 sobre a natureza da empresa, e foi recentemente reformulada por ele nos seguintes termos: “embora a produção possa ser realizada de maneira totalmente descentralizada por meio de contratos entre indivíduos, o fato de que custa alguma coisa para entrar nessas transações significa que vão surgir firmas para organizar o que, de outro modo, seriam transações de mercado, toda vez que seus custos forem inferiores aos custos de realização dessas transações por meio do mercado. O limite do tamanho da firma é estabelecido quando seus custos de organização de uma transação se tornam iguais ao custo de realização da mesma transação por meio do mercado. Isso define o que a firma compra, produz e vende” (Coase, 1988COASE, R. (1988) The firm, the market and the law. Chicago, Chicago University Press., p. 7).

2.2 Prescrições normativas

O quadro analítico traçado na seção precedente contém uma mensagem normativa clara: a promoção da contestabilidade ultrapassa a simples retirada das barreiras à entrada e implica, fundamentalmente, o estabelecimento de configurações industriais sustentáveis. De fato, a importância das barreiras à entrada como instrumento da política de concorrência já havia sido enfatizada por Bain há quatro décadas. “Como a condição de entrada constitui uma dimensão da estrutura do mercado que pode exercer um impacto distinto sobre o caráter e a operacionalidade da concorrência, parece razoável supor que uma política antitruste, ou sob a legislação vigente ou sob uma legislação nova, possa prestar uma atenção mais sistemática que aquela que havia sido dada anteriormente às revisões da condição de entrada capazes de mais efetivamente favorecer a concorrência, e à prevenção de mudanças nas condições de entrada que possam exercer efeito prejudicial sobre a operacionalidade da concorrência.” (Bain, 1956BAIN, J. (1956) Barriers to new competition, Harvard University Press., p. 205).

Ao acrescentar à análise de Bain a noção de sustentabilidade, a teoria dos mercados contestáveis criou uma meta unificada para as políticas de concorrência e industrial. Se um governo nacional adotar as diretrizes fornecidas por essa teoria, o alvo permanente da política industrial a ser buscado nesse país seria assegurar condições de sustentabilidade para todos os setores da economia. Uma afirmação alternativa desse alvo seria maximizar a competitividade agregada do sistema industrial, que é uma função direta do número de configurações sustentáveis operando em seu interior. Quando uma indústria local possui uma configuração desse tipo, as empresas incumbentes não precisam de tarifas, subsídios, controles administrativos ou qualquer outra forma de apoio governamental para poderem enfrentar a concorrência externa na economia doméstica. Assim, a sustentabilidade é uma forma de proteção estrutural do mercado, mais eficiente que o protecionismo convencional porque não absorve recursos públicos, não gera rent-seeking nem provoca distorção de preços.

Outra prescrição normativa é que a teoria dos mercados contestáveis não apoia a visão de que a liberalização comercial constitui pré-requisito para a harmonização internacional das políticas de concorrência. Hoekman e Mavoids, por exemplo, argumentaram que “as negociações devem concentrar-se primeiramente na obtenção das condições necessárias - livre acesso ao mercado ou, pelo menos, acesso substancialmente mais livre - antes que a busca da harmonização do antitruste venha a constituir uma proposta realista” (Hoekman & Mavoids, 1994HOEKMAN, B. & MAVOIDS, P. (1994) “Competition, competition policy and the Gatt”. World Economy, v. 17, pp. 121-50., p. 129). Há pouca ou nenhuma contestabilidade nas economias fechadas, mas a promoção de configurações sustentáveis acabará com a resistência interna à liberalização comercial. Assim, nas situações que não permitem que se atinjam os dois objetivos simultaneamente, é de fato mais realístico começar pela harmonização das políticas de concorrência e avançar para a reforma comercial quando o governo estiver mais bem preparado para enfrentar os lobbies protecionistas. Como já apontaram Guasch e Rajapatirana (1994GUASCH, J., & RAJAPA TIRANA (1994) “The interface of trade, investment, and competition policies”. Policy Research Working Paper 1393, Washington, The World Bank.), a política de concorrência é sempre um complemento positivo à política comercial, mesmo sob condições comerciais restritas.

Os autores da escola de Chicago vêm insistindo, desde a década de 70, que a política de concorrência deve focalizar a promoção do bem-estar dos consumidores e a eficiência produtiva. Porém, como observou Easterbrook, “a marca registrada da abordagem de Chicago ao antitruste é o ceticismo. Duvidar que conheçamos a organização ótima de indústrias e mercados. Duvidar que os governos pudessem utilizar esses conhecimentos, se existissem, para melhorar as coisas, dados os sempre presentes ajustes privados que tão frequentemente derrotam os planos públicos, de tal modo que quando o conhecimento é finalmente utilizado, o mundo já avançou além dele” (Easterbrook, 1992EASTERBROOK, F. (1992) “Ignorance and antitrust”. In Thomas M. Jorde & David J. Teece, eds., Antitrust, Innovation, and competitiveness, Oxford University Press., p. 119). A teoria dos mercados contestáveis oferece uma visão menos pessimista. Segundo os conceitos discutidos no item 2.1, é possível obter diretrizes normativas claras para monitorar a conduta da comunidade empresarial, por meio de uma abordagem em duas etapas. Primeiramente examinamos as condições de sustentabilidade que emergem da interação entre tamanho do mercado e razão custos de transação/custos de produção, e comparamos o resultado com o padrão atual da estrutura industrial que está sendo analisada. A seguir, consideramos as barreiras vigentes à entrada e diferenciamos os regulamentos governamentais das barreiras criadas pelo desempenho inovador das empresas incumbentes.

Além do caso ideal de mercados sustentáveis e contestáveis, esse exercício pode levar a quatro situações relevantes:

  • (i) Configurações insustentáveis e incontestáveis que operam sob condições dadas por barreiras à entrada que já duram muito tempo, originárias ou de determinados regulamentos, como aqueles relacionados à saúde pública e ao meio ambiente, que o governo não se dispõe a revogar, ou de fatores geográficos. Essa é a situação típica em que as velhas dúvidas levantadas por Posner permanecem válidas, devido ao “fracasso dos tribunais e dos órgãos de execução da lei, e em última análise dos advogados e economistas antitruste, tanto acadêmicos quanto praticantes, em criar instrumentos para determinar quando um grupo de vendedores está mantendo um preço que é superior ao nível competitivo” (Posner, 1976POSNER, R. (1976) Antitrust law: an economic perspective. Chicago, Chicago University Press., p. 166). Nessa mesma linha, Ordover observou recentemente que “o problema-chave da política de concorrência, desde o ponto de observação propiciado pela economia, é, a meu ver, a identificação apropriada de exceções notáveis e o traçado de regras simples e funcionais que capacitariam aqueles que buscam informações e as instâncias decisórias a encontrar um ponto de equilíbrio razoável entre as metas conjuntas de incentivar e manter a concorrência e assegurar a alocação eficiente de recursos econômicos escassos” (Ordover, 1990ORDOVER, J. (1990) “Economic foundations of competition policy”. In W.S. Comanor and others, Competition policy in Europe and North America: economic issues and institutions, New York, Harwood Academic Publishers., p. 11).

Sob tais circunstâncias indesejáveis, o governo pode adotar pelo menos três tipos de ação. A primeira é calcular a elasticidade de preço da demanda, cujo inverso (1/e) é conhecido como Índice Lerner de poder de mercado, ou seja, o poder que possuem as empresas incumbentes de elevar os preços acima de níveis competitivos sem enfrentar novos competidores.1 1 Para uma discussão das limitações metodológicas do Índice Lerner, ver Ordover (1990). Estimativas empíricas das elasticidades de preço nunca são precisas, mas fornecem um indício dos potenciais prejuízos que as empresas incumbentes podem impor ao interesse público. A segunda é estabelecer limites para as estratégias de apreçamento das empresas, como sugerem Baumol & Sidak (1994BAUMOL, W. & SIDAK, J. (1994) Toward competition in local telephony, MIT Press.). A partir das cifras de custo da indústria atual, é possível afirmar o teto de preço que prevaleceria numa configuração estável de longo prazo e o patamar de preços que protegeria os potenciais entrantes contra o apreçamento predatório realizado pelas incumbentes. A terceira, e possivelmente mais importante, ação a adotar é promover investimentos em pesquisas e desenvolvimento que possivelmente gerem novas técnicas de produção, capazes de levar a uma configuração sustentável. Como disse Areeda, “às vezes as mudanças tecnológicas possibilitam a concorrência onde ela antes era impossível” (Areeda, 1992AREEDA, P. (1992) “Antitrust law as industrial policy: should judges and juries make it?”. In Thomas M. Jorde & David J. Teece, eds., Antitrust, Innovation, and competitiveness, Oxford University Press., p. 31).

  • (ii) Configurações insustentáveis criadas por políticas protecionistas. Esta situação difere do caso anterior em apenas um aspecto: as barreiras à entrada são, em princípio, temporárias. As recomendações de políticas a seguir seriam as mesmas, com uma emenda de menor monta. O governo deveria divulgar relatórios periódicos contendo dados completos sobre a distribuição de rendas entre as indústrias protegidas e a correspondente distribuição de custos entre o restante da economia. Esses relatórios deveriam incluir: a) uma avaliação setorial da tendência anti-exportações provocada pelas medidas vigentes de política comercial; b) um desempenho comparativo de instrumentos vigentes, ou seja, se um misto diferente de subsídios, tarifas e regulamentos garantiria níveis semelhantes de proteção a custos domésticos inferiores; e c) os custos de lidar com os conflitos entre a política comercial vigente e a manutenção de um ambiente competitivo. Além de aumentar a transparência das políticas públicas, esses relatórios forneceriam a perspectiva adequada para uma discussão nacional de questões relativas ao comércio externo.

  • (iii) Configurações sustentáveis, porém incontestáveis. Esta situação é frequente em indústrias que têm altos índices de inovação endógena, em que as melhores tecnologias disponíveis foram inventadas pelas próprias empresas incumbentes. Nessas indústrias, as participações no mercado das firmas inovadoras dependem em grande medida de sua reputação, que constitui um mecanismo espontâneo - embora parcial - de preservação do bem-estar dos consumidores e de eficiência produtiva. Aqui a autoridade antitruste tem um papel restrito a desempenhar, excetuando a promoção da transparência por meio de relatórios periódicos sobre o desempenho dessas indústrias, a análise de seus gastos com pesquisas e desenvolvimento, seus preços relativos, suas margens de lucro e seu impacto macroeconômico. Como os direitos de propriedade intelectual podem criar uma barreira à entrada adicional, porém supérflua, o apoio governamental às pesquisas e desenvolvimento talvez constitua uma maneira mais adequada de lidar com os fatores externos gerados pelo progresso técnico, corno sugerem Ostry & Nelson (1995OSTRY, S., & NELSON, R. (1995) Techno-nationalism and techno-globalism: conflict and cooperation. Washington, The Brookings Institution.).

  • (iv) Configurações contestáveis, porém insustentáveis. Ironicamente, este caso é frequente nas indústrias descentralizadas em que a liberdade de entrada simula o ideal da concorrência perfeita. O problema básico desse tipo de indústria é a falta de respeito pelos consumidores. Como apontou Rashid, “se a indústria é composta por grande número de empresas transitórias, por que elas deveriam importar-se com a visão que os consumidores têm da qualidade de seu produto?” (Rashid, 1988RASHID, S. (1988) “Quality in contestable markets: a historical problem?”. Quarterly Journal of Economics, February., p. 245). Obviamente a política imediata a seguir para restringir tal atitude é a aplicação rígida da legislação que protege os direitos dos consumidores. A longo prazo, porém, o apoio às pesquisas e desenvolvimento pode, eventualmente, gerar novos padrões de produção que incluam a reputação como estratégia competitiva obrigatória.

Cada política antitruste derivada da teoria dos mercados contestáveis é acompanhada por uma sugestão complementar sobre a promoção de gastos com pesquisas e desenvolvimento que possam levar a configurações sustentáveis. Assim, a legislação antitruste é apenas um substituto temporário dos mecanismos de mercado que se esperam a longo prazo, resultantes da política industrial. As pesquisas e desenvolvimento constituem o mecanismo preferido porque, diferentemente das tarifas de importação, cotas, subsídios, contratos de compra pelo governo e outros instrumentos de política industrial, não criam barreiras comerciais e, consequentemente, não elevam a razão custos de transação/custos de produção. Quando essa razão é elevada artificialmente, resulta numa tendência desnecessária à concentração econômica, que, por sua vez, leva a configurações industriais insustentáveis.

3. A CONVERGÊNCIA DE POLÍTICAS DE CONCORRÊNCIA NO HEMISFÉRIO OCIDENTAL

A Suécia tem um histórico singular de aplicação da legislação antitruste, que data de 1946. Naquele ano entrou em vigor uma nova lei que continha dispositivos surpreendentes: o governo era responsável por investigar práticas restritivas e divulgar os resultados de suas investigações, mas não tinha autoridade punitiva nenhuma. Como comentou Bourdet: “Não se podiam impor multas a empresas envolvidas em práticas restritivas com efeitos danosos, e não havia nenhum dispositivo legislativo que conferisse às autoridades o poder de forçar empresas a pôr fim a acordos contendo práticas restritivas. Considerava-se que divulgar publicamente as informações relativas a essas empresas e seu comportamento bastava para convencê-las a respeitar a legislação e a adotar a camisa-de-força competitiva” (Bourdet, 1992BOURDET, Y. (1992) “Policy toward market power and restrictive practices”. In Yves Bourdet, ed., Internationalization, market power and consumer welfare, London, Routledge., p. 301).

A lei sofreu emendas posteriores, em 1952, 1956 e 1982, e algumas regras de aplicação foram introduzidas gradativamente. Mas como as autoridades antitruste não adotaram nenhuma ação agressiva, muito poucos casos chegaram a ser levados à justiça. Segundo Bourdet, esse fato reflete a visão do governo “de que uma política mais conciliatória de negociar com empresas que violaram a legislação referente a práticas restritivas trará efeitos mais positivos para a sociedade do que seria o caso se elas fossem levadas ao tribunal” (Bourdet, 1992BOURDET, Y. (1992) “Policy toward market power and restrictive practices”. In Yves Bourdet, ed., Internationalization, market power and consumer welfare, London, Routledge., p. 314).

A experiência sueca ilustra muito vividamente o papel da transparência enquanto instrumento de política competitiva. Os recentes esforços no sentido da convergência das políticas desse tipo entre países integrantes da OCDE se inspiraram, até certo ponto, nessa experiência. Como é amplamente sabido, a meta da OCDE não é a uniformidade das leis antitruste, e sim melhorar as condições da concorrência internacional por meio de uma partilha conjunta intergovernamental de informações, experiências e enfoques analíticos. Como afirmou a Comissão de Concorrência, “a política de concorrência deve refletir o quadro institucional e de políticas de cada país-membro. O Comitê trabalha em cima de um processo de convergência que preserva a flexibilidade e o âmbito para inovações” (OCDE, 1994bOECD (1994b) “Interim report on convergence of competition policies”, OECD Working Papers nº 79, Paris., p. 4). Essa cooperação já resultou numa melhora notável da transparência nos últimos dez anos, por meio de publicações regulares da OCDE sobre políticas industriais e de concorrência, que oferecem informações precisas sobre os planos, ações e procedimentos atuais dos diferentes governos e suas respectivas consequências nos países-membros.

O exemplo sueco pode ser ainda mais inspirador para o Hemisfério Ocidental. Atualmente apenas nove países latino-americanos e caribenhos possuem leis antitruste (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Jamaica, México, Peru e Venezuela), e está previsto que outros três adotem novas legislações em breve (Bolívia, República Dominicana e El Salvador).2 2 Para uma discussão das políticas antitruste na América Latina, ver Coate, Bustamante & Rodriguez (1992). Ademais, quase nenhum país da região concluiu as reformas econômicas iniciadas na década de 80, e uma importante tarefa ainda por fazer é exatamente o fortalecimento do quadro institucional que regulamenta a concorrência. Em vista dessas circunstâncias, Rodriguez e Williams questionam até que ponto as políticas antitruste tradicionais são apropriadas para a região: “Quando a liberalização tiver sido completada é possível que as pressões políticas exercidas pelos grupos de interesse mudem, mas não irão desaparecer. Como a indústria antes protegida vê suas rendas monopólicas ameaçadas tanto pela concorrência externa quanto pela doméstica, seus grupos de interesse (tanto proprietários quanto trabalhadores) farão lobby junto a seus patronos políticos, na tentativa de impedir a liberalização. Assim, a eliminação de tarifas não resultará automaticamente em livre comércio. Na realidade, existem potencialmente inúmeros meios pelos quais um governo pode interferir com o fluxo comercial sem recorrer à mudança das políticas tarifárias. (...) O rent-seeking vai reduzir muitos dos potenciais benefícios das reformas e, na realidade, o bem-estar econômico global de uma sociedade pode ver-se reduzido com a liberalização” (Rodriguez & Williams, 1995RODRIGUEZ, A., & WILLIAMS, M. (1995) “Economic liberalization and antitrust in Mexico”. Revista de Analisis Economico, Santiago, Forthcoming., p. 6).

Num contexto de reformas inacabadas, com poucos mecanismos para a verificação da responsabilidade pelas políticas públicas, a aprovação de uma nova lei antitruste pode apenas implicar novas oportunidades para atividades rent-seeking. Assim, em lugar da abordagem tradicional, Rodriguez & Williams (1994RODRIGUEZ, A., & WILLIAMS, M. (1994) “The effectiveness of proposed antitrust programs for developing countries”. The North Carolina Journal of International Law and Commercial Regulation, v. 19, pp. 209-32., 1995RODRIGUEZ, A., & WILLIAMS, M. (1995) “Economic liberalization and antitrust in Mexico”. Revista de Analisis Economico, Santiago, Forthcoming.) vêm argumentando que, pelo menos durante um período transitório, deve-se priorizar uma defesa da concorrência que desafie as barreiras à entrada geradas pelo governo e aumente a coerência entre as diferentes políticas públicas. Segundo a taxionomia utilizada no item 2.2, a defesa da concorrência significa, em essência, identificar as indústrias que funcionam na situação (ii) (configurações insustentáveis geradas por políticas protecionistas) e aplicar as recomendações políticas correspondentes. Além disso, deve ser feita uma avaliação das regulamentações que afetam as situações (i) e (iii). Isto pode, eventualmente, ser útil para averiguar a eficácia das políticas atuais nas áreas de saúde pública, meio ambiente e direitos de propriedade intelectual. A abordagem da defesa da concorrência também possibilitaria o imediato envolvimento de todos os 34 países-membros da OEA no esforço pela convergência das políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental, independentemente do status das leis antitruste nacionais.

De fato, o único pré-requisito para a participação nesse esforço é um banco de dados confiável que descreva as condições atuais da concorrência em cada economia, conforme indicado no Quadro 1. As informações podem ser organizadas em nove grupos de séries de tempo reportando à evolução das indústrias nacionais, conforme definidas pelos códigos de quatro dígitos do padrão internacional de classificação industrial (ISIC).3 3 Embora seja extremamente detalhado, o código de quatro dígitos do ISIC nem sempre reflete os mercados reais. Por exemplo, um produtor de bens de capital pode competir num mercado que inclui vários grupos da Divisão 38 (produtos metalúrgicos, maquinários e equipamentos), enquanto o mercado relevante para uma empresa que produza apenas impressoras para computadores será apenas uma fração do Grupo 3825 (manufatura de máquinas para escritórios, computação e contabilidade). Além disso, nos grandes países uma indústria pode ser descentralizada em nível nacional, mas operar como oligopólios regionalmente segmentados. Aplicando os conceitos discutidos na seção 2, é possível tirar desse banco de dados um perfil de cada estrutura industrial nacional, segundo suas condições de sustentabilidade e contestabilidade.

Quadro 1
Séries de tempo sobre estatísticas industriais: 34 países-membros da OEA, grupos industriais de quatro dígitos (ISIC)

O grupo A da série de tempo indica o tamanho da indústria e a importância de suas transações com o restante da economia, conforme definidos pelo método Cella de medição de forward and backward input/output linkages (ver Cella, 1984CELLA, G. (1984) “Input-output measurement of interindustry linkages”. Oxford Bulletin of Economics and Statistics, 46 (1).). O grupo B traz alguns indicadores convencionais de competitividade internacional: a presença de bens importados no mercado doméstico, o desempenho exportador da indústria nacional e a vantagem comparativa revelada do país.4 4 A vantagem comparativa revelada é medida pela parcela das exportações da indústria nas exportações totais do país, dividida pela parcela equivalente da economia mundial. O grupo C contém outros indicadores de competitividade: preços domésticos, índices de produtividade, lucratividade e salários. O grupo D trata da formação de capital, utilização da capacidade e emprego. O grupo E mostra o desempenho tecnológico da indústria em termos de investimentos em pesquisas e desenvolvimento e inovações patenteadas. Os grupos F e G mostram os indicadores usuais de estrutura industrial: número de empresas, suas expectativas de vida e distribuição por tamanho e os índices de concentração do mercado. Os grupos H e I apresentam as estruturas de custo e elasticidades de demanda necessárias para a discussão da contestabilidade e da sustentabilidade. Todas as séries de tempo devem ser atualizadas anualmente, exceto os índices de ligação, que só estariam disponíveis no caso das economias que compilam tabelas de insumo e produto, e os grupos H e I, que seriam baseados em sondagens especiais a serem realizadas possivelmente a cada cinco anos.

A maioria dos países-membros da OEA possui as capacidades técnicas necessárias para formar esse banco de dados e começar a implementar a abordagem sueca à política antitruste, isto é, utilizar a transparência, tanto em nível nacional quanto internacional, como instrumento para assegurar condições justas de concorrência no Hemisfério Ocidental. Na Venezuela, por exemplo, a Pro-Competencia - a Superintendência para a Promoção e Proteção da Livre Concorrência - já está operando um banco de dados que possui, para o período 1987-1991, virtualmente todas as informações acima citadas (ver Relatório Anual Pro-Competencia, 1994). Alguns países talvez precisem de uma assistência técnica inicial para chegarem a esse estágio, assistência essa que poderia facilmente ser fornecida pelas autoridades antitruste de outros países, por organizações multilaterais ou por firmas de consultoria. Como o processo da OCDE, a convergência das políticas de concorrência no Hemisfério Ocidental deveria ser baseada em publicações regulares sobre o assunto, com a possível inovação de descrever as indústrias nacionais segundo a taxionomia sugerida no item 2.2.

4. CONCLUSÃO

A criação de uma área de livre comércio no Hemisfério Ocidental depende de dois pressupostos fundamentais: que os grandes países da região vão conseguir manter dentro de suas fronteiras nacionais os custos gerados por suas próprias políticas industriais, e que os países latino-americanos e caribenhos vão conseguir concluir as reformas iniciadas na década de 80. Este documento sugeriu uma abordagem à política de concorrência que é benéfica para ambos esses pressupostos. Como vimos, os parâmetros normativos para o monitoramento da conduta da comunidade empresarial devem subordinar-se a algumas características especiais de cada indústria, ou seja, a razão entre custos de transação e custos de produção, a natureza das barreiras à entrada e a interação entre tecnologias existentes e dimensões do mercado. Mas em muitos casos as metas últimas de eficiência produtiva e bem-estar dos consumidores só poderão ser atingidas a longo prazo, depois que o progresso técnico tiver criado as condições para a existência de configurações sustentáveis. Assim, segundo a teoria dos mercados contestáveis, as leis antitruste e as políticas industriais compartilham, em princípio, objetivos que se reforçam mutuamente, sob a condição de que as restrições ao comércio sejam excluídas do conjunto de opções de políticas.

Para os países grandes, essa interface implica um desafio atraente. Os governos desses países sofrem pressões constantes para adotar políticas industriais, não apenas pelas razões aqui discutidas, mas também porque, dada a presença de oligopólios, pequenos incentivos podem gerar grandes efeitos sobre os padrões de produção e comércio, conforme apontado pela literatura referente às políticas comerciais estratégicas (ver Brander, 1995BRANDER, J. (1995) “Strategic trade policy”. NBER Working Paper 5020, Cambridge, February.). Felizmente, como já argumentei em outro lugar, a Ronda Uruguai de Negociações Multilaterais sancionou várias formas de proteção que não prejudicam a manutenção de um sistema comercial aberto (ver Tavares de Araújo, 1995TAVARES DE ARAÚJO, J. (1995) “The political economy of protection after the Uruguay Round”, CEPAL Review, 55, April.). Embora essa questão possa ser relevante também para países pequenos, os benefícios mais importantes que eles podem auferir da abordagem sugerida nas seções precedentes são a possibilidade de medir os ganhos que poderiam obter a partir da harmonização internacional das políticas antitruste, e a identificação das medidas necessárias a serem adotadas em âmbito nacional com vistas à obtenção desses ganhos.

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  • 3
    Embora seja extremamente detalhado, o código de quatro dígitos do ISIC nem sempre reflete os mercados reais. Por exemplo, um produtor de bens de capital pode competir num mercado que inclui vários grupos da Divisão 38 (produtos metalúrgicos, maquinários e equipamentos), enquanto o mercado relevante para uma empresa que produza apenas impressoras para computadores será apenas uma fração do Grupo 3825 (manufatura de máquinas para escritórios, computação e contabilidade). Além disso, nos grandes países uma indústria pode ser descentralizada em nível nacional, mas operar como oligopólios regionalmente segmentados.
  • 4
    A vantagem comparativa revelada é medida pela parcela das exportações da indústria nas exportações totais do país, dividida pela parcela equivalente da economia mundial.
  • 5
    JEL Classification: F15; L13.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1996
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