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Crise financeira: antigas e novas abordagens

Financial crisis: old and new approaches

RESUMO

Este ensaio tem como objetivo delinear as discussões teóricas sobre a crise financeira. Três abordagens explicam o evento: a monetarista, a abordagem de informação assimétrica e a hipótese de instabilidade financeira. O primeiro se mostrou inadequado quando confrontado com a experiência. Os outros dois têm em comum a tentativa de incluir o mercado financeiro com todas as suas instituições na análise econômica. No entanto, eles diferem na concepção sobre o modo de funcionamento da economia.

PALAVRAS-CHAVE:
Crise financeira; história do pensamento econômico

ABSTRACT

This essay aims at outline the theoretical discussions about the financial crises. Three approaches explain the event: the monetarist, the asymmetric information approach and the financial instability hypothesis. The first one proved inadequate when confronted with experience. The other two have in common the attempt to include the financial market with all its institutions in the economic analysis. Nevertheless, they differ in the conception about the operating mode of the economy.

KEYWORDS:
Financial crisis; history of economic thought

1. INTRODUÇÃO

A eclosão dos problemas das dívidas dos países periféricos nos Estados Unidos e a grave ameaça de crise financeira sistémica que eles representaram marcaram as condições econômicas mundiais desde o início da década de 80 e apontaram para a necessidade de atualização das teorias sobre as crises financeiras. A literatura econômica que abordava o assunto, com raras exceções, era anterior à Segunda Guerra Mundial. De certa forma tratava-se de curiosidade histórica, pois se julgava o fenômeno extinto da vida econômica.

O temor de crise financeira vivido pela economia norte-americana em 1982 trouxe várias reflexões. Era o tempo no qual, após árduos debates teóricos e altos níveis de inflação, os monetaristas haviam alcançado o comando na condução da política econômica. O único enfoque teórico relevante para a crise era de cunho monetarista.

2. O ENFOQUE MONETARISTA

Na época da moeda-ouro, a crise era um evento violento e de curta duração: aparecia e se extinguia repentinamente. Era atribuída às pesadas perdas do metal relacionadas a algum evento extra econômico, tal como o esforço fiscal num quadro de guerra, ou intempéries na agricultura. Quando não se verificava perda externa de ouro, as crises eram imputadas simplesmente à expansão dos meios de pagamento papel-moeda e depósitos em relação ao estoque desse metal no país. Medir a expansão era tarefa relativamente simples, apesar dos calorosos debates sobre sua relevância. Considerava-se algum percentual, como 20% ou 30%, de ouro em relação aos meios de pagamento. O cálculo era: ouro sobre meios de pagamento (papel-moeda e depósitos). Ultrapassado o quociente tido como normal, era preciso procurar os responsáveis por esse aumento e pela consequente perda de confiança em se converter os depósitos em ouro. Essa simplicidade, entretanto, é enganosa, pois o conhecimento desse mecanismo que retrocede em pelo menos duzentos anos não evitou a ocorrência periódica e mais ou menos regular de pânicos bancários. A conta era feita sempre ex-post.

A perda de confiança na moeda manifestava-se no pânico bancário, sinônimo de crise financeira. Em pânico os agentes econômicos afluíam aos bancos demandando a conversão de seus depósitos em ouro (hard cash), provocando o colapso da oferta monetária e a falência de empresas e de bancos. Poucos eram atendidos, pois o ouro, quando muito, correspondia a 20% ou 30% dos meios de pagamento, e os bancos, temendo por sua própria sobrevivência, aumentavam suas reservas. O acréscimo das reservas bancárias, tendo em vista um estoque fixo de ouro, indica que a retenção de ouro era institucional.

O pânico, como descrito por Thom: Cash on hand decreased each day ... The fall in prices grew accentuated not only on the Stock Exchange, but in all markets ... The rate of discount and loans rose to 4 per cent a day! [ ... ] It was impossible to obtain any credit from the banks, and all securities were unsalable, unless at ruinous rates1 1 Thorn, D. A brief history of panics. New York, Aug. M. Kelley, 1966. 1a. ed., 1893, pp. 106-7. , era seguido por verdadeira liquidação dos ativos (financeiros e reais). Na sequência, a redução do crédito (e evidentemente da oferta monetária), a deflação e a contração econômica. Nesse quadro, os agentes econômicos que haviam resgatado seus depósitos em ouro poderiam realizar ótimos negócios. A função reserva de valor da moeda-mercadoria, prescindível em tempos normais, em crise financeira poderia ser chamada de “função brutal aumento de poder de compra”.

Apesar de não mais existir moeda conversível em ouro, não se notava diferença substancial na concepção teórica da moeda e da crise financeira. Ao contrário, o pânico bancário para os monetaristas surge da perda de confiança na habilidade das instituições financeiras em converter depósitos em moeda manual. Nas palavras de Friedman & Schwartz: The initial reason of runs loss of confidence in the ability to convert deposit into currency.2 2 Friedman, M. & Schwartz, A. A monetary history of the United States 1867-1960. Princeton, Princeton University Press, 1963, p. 441. Schwartz, na década de 80, interessada em reafirmar sua posição, explica a crise financeira como: A financial crisis is fuelled by fears that means of payment will be unobtainable at any price and, in fractional-reserve banking system, leads to a scramble for high-powered money. In a futile attempt to restore reserves, the banks may call loans, refuse to roll over existing loans, or resort to selling assets [ ... ] The essence of a financial crisis is that it is short-lived, ending with slackening of the publics demand for additional currency.3 3 Schwartz, A. Real and pseudo-financial crises. In Capie & Wood, eds., 1986. Financial crises and the world bonking system. New York, St. Martin Press, 1986, p. 11.

A explicação dos monetaristas para o fenômeno é simples: o pânico bancário leva a maciças retiradas de moeda manual. Em um sistema de reservas fracionárias, o aumento da moeda em poder do público resulta em múltipla contração dos depósitos, por isso: A razão depósitos/moeda tem sido de maior importância, fundamentalmente durante os períodos de dificuldades financeiras. Em cada um desses períodos a perda de confiança do público nos bancos levou ao esforço de conversão de depósitos em moeda, o que produziu apreciável declínio na relação depósitos/moeda e forte pressão de baixa no estoque da moeda”.4 4 Friedman & Schwartz, op. cit., p. 684. Mais uma fonte de contração são os bancos que, na tentativa de se proteger, aumentam suas reservas, restringindo a concessão de crédito e o estoque monetário. Cada vez que o público tem demonstrado desconfiança [ ... ] os bancos reagiram com tentativa de aumento das reservas [ ... ] o que implica redução na razão depósitos/reservas, aumentando dessa forma a pressão de baixa no estoque de moeda.5 5 Idem, p. 685. Essa atitude dos bancos, contudo, aumenta o risco de falências do setor, que são o caminho mais curto para um drástico declínio da oferta monetária e, de novo, para o aumento das falências.

Bancos mal administrados vão à falência primeiro, mas podem levar consigo alguns dos bem administrados. Assiste-se à maior contração do estoque monetário e à redução da intermediação bancária. A velocidade renda da moeda estável em tempos normais diminui em crise por causa do entesouramento dos agentes econômicos. (Esse argumento é estranho, porque a moeda se concentrava nos cofres dos bancos). O estrangulamento da oferta monetária devido à redução dos depósitos, ao aumento das reservas bancárias, à redução da velocidade renda da moeda e às falências bancárias traduz-se em diminuição da atividade econômica agregada. Ou seja, a contração da oferta monetária se encarrega da depressão.

A demanda por conversão na época do ouro se justifica, pois a moeda-mercadoria possuía um valor intrínseco, porém não havia a mínima possibilidade de ser atendida. Era, portanto, uma demanda reprimida. A causa da crise financeira, enquanto perda de confiança na habilidade de se converter os depósitos em moeda-manual, era falsa na época do ouro. Hoje é absurda, porque os depositantes não demandarão a conversão de seus depósitos num ativo sem valor intrínseco. Por outro lado, as autoridades monetárias não encontram dificuldades em imprimir moeda. Isso indica que o temor dos depositantes estará justamente na possibilidade dessa conversão.

3. DE BANCO PARA BANCO

Já que o cerne das crises financeiras se resume ao estrangulamento da oferta monetária e essa é uma questão de conhecimento do funcionamento do sistema, a cura é fácil para os monetaristas. A solução, descrita por Walter Bagehot6 6 Bagehot, W. Lombard Street. London, Kegan Paul, Trench, Trubner & Co. Ltd., 1904. 1a. edição, 1873 .em 1873, ainda que sem um exame mais minucioso das explicações desse autor, é válida e pode ser sintetizada nesta expressão: em tempos de pânico, descontos livres a taxas punitivas. Atualmente, soa assim: fazer o banco central assumir seu papel de emprestador de última instância, pois ao aumentar a oferta monetária, evitará a propagação dos distúrbios do mercado monetário para a parte produtiva da economia o mercado real.

E Schwartz, em 1986, conclui: Real financial crises need not occur because there is a well-understood solution to the problem: assure that deposits can be converted at will into currency whatever the difficulties bank encounter.7 7 Schwartz, op. cit., p. 28.

A crise financeira é um momento ímpar na teoria econômica. O liberalismo econômico, tão generoso quanto à eficiência alocativa do mercado, sucumbe diante da irracionalidade dos agentes e adere à intervenção. A exogeneidade da moeda, que toma a oferta monetária anátema para a estabilidade econômica (de outro modo inerente ao sistema), em tempos de crise financeira transforma-se em uma bênção, pois é ela que permite a superação da crise e da subsequente depressão.

A irracionalidade dos agentes não se coaduna com o principal paradigma do esquema interpretativo neoclássico o homem racional, e alguns teóricos consideram necessário encontrar uma razão para o pânico bancário. Mas um comportamento racional quanto às crises financeiras questionaria a estabilidade da demanda monetária, a neutralidade da moeda, a concepção da moeda enquanto meio de pagamento em contraste com moeda umbilicalmente ligada à avaliação dos ativos, aos contratos de crédito e ao desempenho e a lucratividade dos investimentos; enfim, toda a base da análise econômica padrão. Se o comportamento dos agentes fosse sempre racional, as retiradas de moeda não seriam randômicas, a crise seria uma das possibilidades teóricas, mas, nesse caso, não existiria motivo para a intervenção. É uma formidável cilada analítica.

4. MUDANDO COM OS FATOS

O ambiente institucional no qual subsiste a moeda havia se modificado radicalmente no período em que não houve crises financeiras. Não havia mais moeda-mercadoria e muito menos bancos sem regulamentação. Os bancos centrais eram uma realidade na maioria dos países e o Estado, por intermédio das autoridades monetárias, era responsável pelo volume e valor dos meios de pagamento e pelo desempenho econômico. O peso da fé na moeda, outrora dividido entre banqueiros e Estado, passou a ser carregado apenas pelo Estado. Isso, apesar de ainda não se saber o que exatamente determina a confiança nos meios de pagamento. Pior ainda, descobriu-se que era difícil especificar o que de fato seria considerado como meio de pagamento.

Havia depósitos a vista, depósitos a diversos prazos, acordos de recompra, depósitos de poupança e uma infinidade de outros instrumentos de crédito. A primeira questão era: quais, entre eles, constituíam os meios de pagamento? As cédulas bancárias e os depósitos a vista entravam com certeza, mas seu peso e sua significância haviam diminuído fortemente. Como medir, porém, o seu aumento já que não havia o meio estável para comparação, dado antes pelo ouro? Que seja medido em relação ao produto nacional. Aqui se enfrentava mais uma complicação. Medido em relação ao produto nominal ou ao produto real? Decididamente a medida faz parte do objeto a ser medido. Como sempre, as questões filosóficas foram elididas pela urgência da decisão. Descobriu-se que a incipiente crise financeira de 1982 não poderia ter sido debelada através de um aumento genérico dos meios de pagamento, fosse qual fosse sua definição. Era necessário o aporte direto de dinheiro a bancos específicos.

A credibilidade no dólar também não estava em questão, mas teria sido abalada se não se solucionasse o problema das dívidas. As altas taxas de juros haviam contribuído para o excessivo aumento das dívidas. Era a incapacidade dos devedores externos e internos de pagar seus compromissos financeiros no vencimento que ameaçava o sistema. A credibilidade, precedida por uma questão bem real, apresentava-se como um problema de segunda ordem. Nesse quadro, um aumento geral e genérico da liquidez do sistema não teria sido uma resposta concreta para os bancos atingidos, pois com a ameaça de solvência dos bancos principais o que estava em jogo era a solvência do sistema. A crise financeira, portanto, não era apenas uma questão de liquidez geral.

Na sequência da crise da dívida em 1982 e as ameaças em 1987, 1989 e 1991, a crescente instabilidade financeira exigia constantes intervenções das autoridades monetárias. Ela apontou para o fim da breve duração teórica das crises. Ao contrário do que era observado após 1950 nos Estados Unidos, a oferta monetária em todas as suas definições deixou de apresentar relação mais ou menos estável com a renda, ou ainda com a inflação. Os gestores da moeda, céticos com a teoria, começaram a confidenciar até a jornalistas que não sabiam mais o que fazer com os malditos números monetários. O monetarismo caía em descrença porque os fatos não mais se comportavam segundo as teorias.

No âmbito da teoria monetarista a moeda é apenas um meio de troca, e a crise financeira, um grave desequilíbrio entre oferta e demanda de meios de pagamento. Os fatos demonstraram que a questão não é tão simples, porque, em primeiro lugar, na prática, não se conseguiu definir quais dos haveres financeiros eram meios de pagamento. Assim, tornava-se impossível determinar a oferta monetária relevante para a explicação e o controle do evento. Em segundo lugar, tornou-se claro que era a solvência dos devedores que afetava a solvência dos bancos. Não se tratava, enfim, de oferta monetária, em quaisquer de suas definições.

O foco da análise deslocava-se para o lado esquerdo dos balanços bancários. Percebeu-se que a moeda é (ou sempre fora?) a contrapartida dos empréstimos e investimentos (ou é o contrário?). Mais uma indagação que espera por resposta. Era necessário definir os fatores que conduziam à concentração no tempo de insolvências de empresas não-financeiras e de bancos, que levavam a uma crescente e nítida ameaça de crise financeira. A produção acadêmica voltou-se à elaboração de outros esquemas explicativos, visando a substituição da interpretação monetarista. A análise econômica incorporou mais do que a oferta monetária.

4.1 Além da oferta monetária

Os economistas que se preocupam com o esclarecimento da estrutura financeira partem do pressuposto de que o mercado financeiro se caracteriza por uma complexa inter-relação entre oferta monetária, lucros e patrimônios que, ao definir o volume e a destinação do crédito, determina a atividade econômica agregada. Entre os precursores dessa linha se destaca Irving Fisher, autor que havia recuperado a Teoria Quantitativa da Moeda no início deste século. Mais tarde, ele analisaria a Grande Depressão, chegando à conclusão de que, na onda da prosperidade anterior à crise dos anos 30, os agentes econômicos estavam muito alavancados, e esse fato havia tornado a economia norte-americana vulnerável à crise. Para ele, o extremo desequilíbrio, como o verificado em condições de crise, se caracterizaria por duas variáveis primárias: dívidas e deflação.

A deflação é um processo de redistribuição de patrimônio de devedores para credores. Seu mecanismo é perverso, pois a própria tentativa dos indivíduos no sentido de reduzir suas obrigações aumenta-as, porque o efeito de debandada em massa a fim de liquidar aumenta o valor de cada dólar devido [ ... [ {assim}, por mais que os devedores paguem, mais eles estarão devendo.8 8 Fisher, I. “The debt-deflation theory of Great Depressions”. Econometrica, n. 1, p. 344

A flexibilidade dos preços para baixo, ao reduzir o valor dos patrimônios, ao invés de levar ao equilíbrio agrava o desequilíbrio. Assim, na presença de mercado creditício e de deflação, o principal mecanismo de ajuste para a teoria econômica, o de preços, antes de ajustar as relações de produção desajusta as relações patrimoniais. Analisando esse círculo vicioso formado pela queda dos preços e dos patrimônios, Fisher conclui: na ausência de dívida e deflação os outros distúrbios são incapazes de levar a crises com a severidade daquelas de 1837, 1873, 1929-1933.9 9 Idem, ibidem, p. 354.

Numa grande guinada teórica em relação a seu trabalho anterior, Fisher abandona a oferta monetária e o nível geral dos preços enquanto variáveis que garantem o ajuste e destaca a articulação entre os elementos que compõem o mercado financeiro e seu impacto sobre a atividade econômica. A forte deflação, que ocorreu no encalço de uma extensa dívida privada contraída durante os anos 20, levou à queda do patrimônio líquido de empresas e famílias. Esse fato teve dois reflexos: um no mercado financeiro e outro na economia real. No mercado financeiro a queda dos patrimônios resultou em dificuldades de pagamento das dívidas e na concessão de crédito. Do lado produtivo, assistiu-se à redução no dispêndio corrente e a um decréscimo ainda maior da renda e dos preços, e a economia mergulhou em depressão.

Fisher estimou a dívida interna e a riqueza nacional, para 1933, em US$ 160 bilhões e US$ 150 bilhões, respectivamente, e o aumento real da dívida em 40% (em relação a 1929).10 10 Idem, ibidem, p. 354. No decorrer de 1933 o Congresso norte-americano preparou a base legal para a estabilização que se seguiria. Em janeiro de 1934 o dólar foi desvalorizado em exatamente 40%. A desvalorização implicou transferência de patrimônio, só que dessa vez de credor para devedor. As magnitudes apresentadas por Fisher permitem o cálculo aproximado dos valores envolvidos na mais contundente (e a menos enfatizada) medida do plano de estabilização conhecido como New Deal.

Com a saída da depressão, a hipótese de um endividamento excessivo perde força. A afirmação de que há algo mais entre a oferta monetária e a atividade econômica é desconsiderada. Esse “desvio” é atribuído à revolução keynesiana11 11 Ver Calomiris, C. Financial factors in the Great Depression. Journal of Economic Perspectives, v. 7, n. 2, Spring 1993, ou Gertler, 1988. e a seu desenvolvimento posterior, que desembocou na análise econômica padrão: a síntese neoclássica.

A vitória do restabelecimento da Teoria Quantitativa da Moeda12 12 A obra de Fisher do início do século foi o principal elemento de sustentação do monetarismo. Seus artigos publicados após a Depressão de 1930 foram “esquecidos” e “resgatados” apenas a partir da década de 80. , com o sucesso estatístico da moeda nas equações reduzidas do produto, ajudou a rejuvenescer a moeda enquanto agregado financeiro principal13 13 Gertler, M. “Financial structure and aggregate economic activity: an overview”. Journal of /Money, Credit and Banking, v. 20, n. 3, Part 2, p. 560, August 1988. e afastou, mais ainda, a preocupação com o vínculo entre o sistema financeiro e a atividade econômica. A importância do sistema financeiro foi reduzida à oferta monetária.

No final dos anos 70, economistas interessados no esclarecimento dos ciclos econômicos, reexaminando os dados históricos, concluíram que a oferta monetária por si só não era capaz de explicar a duração e a profundidade das depressões que seguem as crises financeiras. Alguns insistiam na instabilidade inerente ao sistema. Para a maioria, porém, permanecia em aberto a questão de como explicar os ciclos numa economia estável. Ineficiências alocativas, devidas à informação assimétrica ou privilegiada (inerente ao mercado financeiro, que é um mercado contratual), permitiriam: a magnificação dos choques, a existência teórica das crises financeiras e a estabilidade intrínseca do sistema ao mesmo tempo. O descrédito no monetarismo, entretanto, foi crucial para a hegemonia acadêmica da abordagem da informação assimétrica.

5. A ABORDAGEM DA INFORMAÇÃO ASSIMÉTRICA

O conceito foi utilizado em microeconomia e levado para o mercado financeiro, encontrando solo fértil a partir de 1983, ocasião em que o estudo se firmou. Da abordagem participam vários economistas que se dedicam a um, talvez a alguns aspectos sobretudo da crise financeira. Ainda não chegaram a um consenso, mesmo entre si, sobre os pontos analisados e não conseguiram elaborar uma teoria. O que há são esquemas interpretativos independentes, fundamentados em rigorosos modelos matemáticos. Apesar de incompleto, pela qualidade dos resultados alcançados e pelo número crescente de adeptos, seu enfoque é muito importante. Hoje uma esmagadora maioria de economistas norte-americanos vem utilizando a hipótese da assimetria de informação em seus estudos. Eles consideram seu trabalho como uma nova visão, que esclarece e complementa a monetarista. Do lado dos monetaristas tradicionais a sua pretensão não é reconhecida, e a mais forte razão para isso é que eles não conseguem chegar ao equilíbrio geral.

Ao contrário dos monetaristas, que trabalham com o lado direito do balanço bancário (o passivo ou moeda), os adeptos dessa análise identificaram o mercado financeiro com o do crédito o lado dos ativos do balanço dos bancos. O deslocamento da atenção do passivo (moeda) para os ativos (empréstimos) já subentende a aceitação da endogeneidade da moeda. Esse fato é mais uma razão para que os monetaristas não os reconheçam.

Eles definiram os bancos como os principais atores do mercado financeiro e elaboraram modelos de intermediação bancária. Os custos provenientes dos problemas de informação, que acompanham a concessão de crédito e a recuperação de quantias envolvidas, tornar-se-iam insuportáveis para os agentes econômicos individuais. Os bancos, em compensação, são instituições especializadas em processamento de informações relevantes a respeito da viabilidade de projetos de investimento. Por terem experiência na coleta de dados sobre o desempenho das empresas e por sua habilidade em manter relações no longo prazo, estão bem aparelhados para determinar a qualidade dos devedores. Eles conseguem alocar o crédito para projetos de investimento economicamente mais eficientes e com menor custo. Podem fazer arranjos, restringir e solucionar os problemas de informação seleção adversa e moral hazard, próprios à concessão de crédito a um custo menor. Isso reflete em aumento da eficiência alocativa do sistema. Nesse sentido, os bancos são instituições criadoras de valor.

Entretanto, a informação no mercado de crédito é inerentemente assimétrica. Os demandantes de crédito têm maior (isto é, melhor ou privilegiada) informação sobre seus próprios projetos do que a administração bancária que lhes concede crédito, o que exige atenção. Por outro lado, a informação dos administradores de bancos sobre o desempenho de “suas” instituições e a modificação relativa no valor dos diversos ativos é melhor que a dos depositantes. Ou seja: a qualidade da informação dos depositantes sobre o real valor de seus portfolios é inferior àquela dos administradores desses portfólios, o que confirma a necessidade de os depositantes monitorarem a performance da administração bancária.

Os custos de informação e monitoração dependerão da realidade institucional e da conjuntura econômica. Da realidade institucional, o que importa é o tamanho dos bancos, sua diversificação, a monitoração do banco central e dos próprios depositantes, como podemos ver: Em um sistema em que há muitos, pequenos e não diversificados bancos esses problemas podem assumir particular gravidade.14 14 Calomiris, C. & Gorton, G. “The origin of banking panics: models, facts, and banking regulation”. In Hubbard, G., ed. Financial markets and financial crises, NBER, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1991, p. 124. A importância da conjuntura econômica compreende o desempenho médio e individual das empresas, a sua capacidade de gerar lucros e de cumprir suas obrigações contratuais, a cotação das empresas na bolsa, a política monetária, a fiscal, e a própria performance bancária. Estes custos são fundamentais para o montante de crédito concedido e, por consequência, para o nível da atividade econômica.

Ao elaborarem um novo conceito de liquidez, os adeptos da informação assimétrica15 15 Estamos seguindo Calomiris & Gorton, op. cit. tentaram esclarecer o que ela representaria à luz da teoria monetarista. Concluíram que a liquidez para os monetaristas se refere à flexibilidade intertemporal de consumo: O agente econômico, na posse de seus recursos monetários, prefere altos a baixos retornos. Entretanto, retorno alto é característica dos empréstimos a longo prazo e o agente pode ter necessidade de consumo antes do vencimento do empréstimo.

A fundamental peculiaridade dos empréstimos para os próprios bancos é a falta de liquidez, enquanto o consumo dos agentes econômicos pode apresentar padrão randômico. Como consequência, os depositantes podem exigir seus recursos mesmo que com perda de rendimento, deixando os empréstimos descobertos. Isso acontece porque, na versão monetarista, para que os depósitos possam expressar capacidade de compra (ou servir enquanto meio de pagamento), há necessidade de eles se transformarem em moeda o que leva à constatação de que o passivo bancário não circula enquanto meio de pagamento. A impossibilidade de se transacionar os passivos bancários gera um argumento avassalador: não faria sentido os depósitos à vista, que são contrapartida de empréstimos, funcionarem enquanto moeda e serem considerados meio de pagamento. Segundo os adeptos da informação assimétrica, essa parece ser a maior fraqueza do modelo monetarista.

O conceito de liquidez esclarece o papel dos bancos para a teoria monetarista. Essas instituições atendendo às preferências dos agentes econômicos (de prazo e rentabilidade) oferecem passivos com diferentes prazos de maturação e diferentes taxas de retorno e providenciam seguro contra risco de consumo prévio em relação aos prazos dos empréstimos. Sob esta ótica, o crédito é concedido enquanto função das preferências intertemporais de consumo dos agentes.

Os adeptos dessa abordagem contrapõem o seu conceito de liquidez, que se refere à facilidade de avaliação dos títulos e certificados emitidos pelos bancos, imprescindível para a circulação e a troca do passivo bancário. Os empréstimos bancários, ilíquidos por natureza, são passíveis de substituição por passivos que oferecem opção de troca. O que se tem nessa operação são negociações e troca de posições entre os participantes do mercado financeiro. A noção de liquidez que eles elaboram corresponde à ideia de que os passivos bancários têm propriedades especiais que os tornam adequados enquanto meios de troca, porque os bancos criam certificados cujas propriedades são a ausência de risco e a facilidade de avaliação.

A falta de risco é possível porque os bancos asseguram a qualidade dos empréstimos que fundamentam os passivos. Banks can design a riskless security by creating liabilities which are, first of all, debt [ ... ] Debt contracts reduce the variance of the securitys price [ ... ] it is bank which issue trading securities, such as demand deposits [ ... ] Bank liabilities have unique properties making them suitable as circulating medium.16 16 Idem, ibidem, p. 129. Nesse enfoque a razão para a existência dos bancos deve-se a sua capacidade de financiar ativos não-líquidos através da criação de passivos que oferecem opção de compra, circulando enquanto meios de pagamento.

Na teoria monetarista os bancos asseguram as necessidades randômicas de consumo dos agentes econômicos: Thus, the insurance feature of the bank contract is interpreted as a provision of liquidity.17 17 Idem, ibidem, p. 128. A atenção da administração bancária deveria residir nas reservas que protegerão o banco contra necessidades inesperadas de consumo dos agentes.

Com a liquidez referindo-se à facilidade de avaliação dos passivos bancários graças à qualidade dos empréstimos, a variável sobre a qual recai a decisão da administração bancária é a qualidade dos empréstimos e investimentos. É um aspecto crucial para se passar da concepção da irracionalidade subjacente ao pânico bancário própria à teoria monetarista para a visão do pânico enquanto evento racional, provocado pela percepção de perda patrimonial.

Gorton & Pennachi18 18 Ver Gorton, G., & Pennacchi. G. Financial intermediation and liquidity creation. Journal of Finance 45(l): 49-72, 1990. elaboraram modelos de intermediação bancária nos quais o passivo circula enquanto meio de troca. Existem dois mercados para essa circulação. O primeiro é o mercado secundário, no qual o preço revelará os riscos específicos dos bancos que emitem títulos, incentivando a boa administração. A troca de posições leva à concepção da circulação do passivo bancário enquanto meio de pagamento. A segunda possibilidade é a compensação bancária. Nesse caso, por não haver observação pública de preço de mercado, há assimetrias informativas adicionais.

O foco nos ativos enfatiza a visão dos juros enquanto custo dos empréstimos. Isso torna imprescindível a criação (no agregado) de um valor maior do que aquele que originou o crédito. Somente o investimento tem a capacidade de produzir esse valor. Assim, o crédito visa o investimento e não o seguro às necessidades de consumo dos agentes.

A ênfase na administração dos empréstimos leva a concluir que a concessão de crédito não depende apenas da oferta monetária, mas ainda de outros fatores, tais como o desempenho econômico, o lucro das empresas, a política fiscal e a variação do risco dos negócios. É o cuidado com os ativos (empréstimos) que transforma os passivos desejáveis enquanto meios de pagamento, evitando a redução do seu valor e a corrida bancária. O balanço dos bancos torna-se “simétrico”, não apenas em termos contábeis, mas fundamentalmente enquanto expressão de relações econômicas. O valor (com isso a credibilidade) dos meios de pagamento depende do resultado dos empréstimos.

O mercado de crédito é dividido em tomadores e credores. É necessária a avaliação da qualidade do devedor, pois há bons e maus pagadores. Distingui-los envolve custos. Somente os devedores possuem informação perfeita sobre seus planos de investimento, tendo vantagens sobre os credores. Os credores, com dificuldades de avaliar o risco dos empreendimentos particulares, concedem empréstimos a uma taxa média de risco. Os que demandam crédito, avaliando seus riscos particulares, aceitam-na ou não. Os que têm projetos que apresentam um risco menor do que o sinalizado pela taxa média de risco não investirão. Trata-se de seleção adversa de devedores em que o risco de inadimplência aumenta e a eficiência alocativa do sistema é reduzida.

Aumento na taxa de juros provoca acréscimos na seleção adversa, porque os investidores com projetos de investimento mais arriscados, mesmo com uma taxa de juros mais alta, não desistem do empréstimo. Conclusão: a quantidade de empreendimentos arriscados financiados pelos bancos aumenta.

A motivação subjacente à demanda e à oferta de crédito difere. Por isso a oferta de crédito pode não coincidir com sua demanda. Elevação na taxa de juros aumenta os riscos e custos do crédito. Se o credor não identificar os agentes que demandam crédito e ao mesmo tempo apresentam projetos compatíveis com as exigências do momento, os empréstimos serão reduzidos por ação deliberada do credor. Com a assimetria de informação, a concessão de crédito pode ser arbitrariamente negada pela falta de informação sobre o devedor (alto custo de informação). Mesmo com excesso de demanda de crédito, o aumento na taxa de juros não significa equilíbrio, porque os acréscimos adicionais na taxa de juros podem provocar decréscimos na oferta de crédito, agravando o excesso de demanda.

Um aumento na taxa de juros por demanda de crédito aquecida, declínio nos lucros ou na oferta monetária pode piorar dramaticamente os problemas relacionados à assimetria de informação, seleção adversa e moral hazard, e resultar num brutal decréscimo na concessão de crédito. A redução do volume de crédito acena para a queda do investimento e da atividade econômica. Mankiw19 19 Mankiw, G. The allocation of credit and financial collapse. Quarterly Journal of Economics, v. 101, pp. 455-70, August 1986 demonstra que pequenos acréscimos na taxa de juros dos investimentos de baixo risco podem levar a amplos decréscimos na concessão do crédito e até a um colapso no mercado.

O aumento da incerteza no mercado financeiro é mais um fator de extrema importância, porque, dificultando a percepção (informação) dos bancos sobre a qualidade dos devedores, aumenta os custos de informação e baixa o valor líquido esperado dos ativos reais, provocando o rápido crescimento da seleção adversa. Este acena para o aumento das atitudes de moral hazard, o que reduz a eficiência do mercado financeiro e a do sistema econômico. O interesse conflitante entre devedores e credores (o problema de agenciamento) indica que o empréstimo e o investimento poderão situar-se em um nível abaixo do ótimo.

Dado o quadro acima, uma das manifestações da crise financeira será o substancial aumento na taxa de juros e no diferencial de risco (spread) exigido pelos bancos. Há empresas de excelente qualidade e com ótimo ou notório desempenho, conhecido pelo mercado financeiro. Nesses casos o custo de informação é baixo, o risco é menor, assim o spread cobrado será menor. E há aquelas que apresentam altos custos de informação e que só receberão crédito com alto spread. O aumento do diferencial de risco indicará o momento da aproximação da crise.

A concessão de crédito depende do uso, explícito ou não, de colaterais. Os adeptos da informação assimétrica incluíram em seus modelos os colaterais e notaram que, com eles, a qualidade do devedor perde relevância. Bons colaterais são garantia suficiente para se obter crédito, independentemente da qualidade do projeto de investimento ou do devedor. Para o credor, é o que basta. O uso de colaterais reduz os custos de agenciamento, mas sua importância sugere mais um mecanismo que pode conduzir a distúrbios na atividade financeira e afetar negativamente a atividade econômica: a redução do valor dos próprios colaterais.

Os modelos enfatizam que um profundo decréscimo na valorização dos ativos bolsa em queda reduz o valor dos colaterais, agravando o problema da seleção adversa para os credores. Mostram que o problema patrimonial pode ser estendido para o valor descontado do lucro futuro. Ou seja, a cotação das ações cai por causa da expectativa de queda na renda esperada, ou por um aumento na taxa de juros que diminui o valor presente do fluxo de renda esperada. Nos dois casos há redução na geração de fluxo de caixa e na capacidade de o devedor pagar as dívidas. Aumentam os problemas de informação e o risco do credor; com isso há alta variação do diferencial de risco (spread).

Bernanke & Gertler20 20 Bernanke, B. & Gertler, M. Agency cost, collateral, and business fluctuations. American Economic Review, v. 79, pp. 14-31, March 1989. demonstram que a redução no valor dos colaterais aumenta o problema de agenciamento, porque o tomador de crédito tem menos a perder com seu engajamento em atitudes de moral hazard. Considerando esse fato, os bancos dificultam a concessão de crédito. Assim, decréscimos no valor dos colaterais levam à diminuição nos empréstimos, no investimento e, eventualmente, a contração cíclica.

Mais um fator relevante é o endividamento das empresas. Bernanke & Gertler21 21 Idem, ibidem. mostram que a capacidade creditícia das empresas depende de seu balanço contábil: da relação entre o valor dos ativos e o endividamento. Na concessão de crédito, o que importa é a cotação da empresa em bolsa. Queda da bolsa implica aumento de índice de endividamento da empresa, mesmo sem novos créditos. A cotação afeta a estimativa do valor presumido de empresas que não possuem ações negociadas em bolsas.

O grau de endividamento das empresas é importante fator em relação a seu gasto com investimento e este com a atividade econômica. Um baixo nível geral de endividamento é relacionado à menor taxa de juros, porque os bancos estão atentos à qualidade dos devedores e o spread que exigem será proporcional ao grau de endividamento das empresas em particular. Um alto índice de endividamento sinaliza dificuldades para o fluxo de caixa e maior risco de inadimplência. Na melhor das hipóteses, será reduzido o acesso da empresa ao crédito, e, na pior, os bancos lhe negarão crédito.

Em suma, a capacidade creditícia das empresas depende do preço dos ativos, do fluxo esperado de renda a eles associado e da taxa de juros. O inter-relacionamento entre esses elementos não se dá de forma linear. Cada um exerce impacto na capacidade creditícia das empresas e é levado em conta na concessão de empréstimos.

Considerando inaceitável a explicação do pânico bancário na teoria monetarista a qual denominaram pejorativamente de a teoria das retiradas randômicas, os adeptos da abordagem da informação assimétrica concentram-se na identificação das condições em que os agentes poderão mudar racionalmente sua opinião sobre o risco dos bancos. Demonstram que o pânico bancário tem uma função positiva, porque monitora a performance de um empreendimento no qual existe informação assimétrica.

Argumentam que a falta de liquidez dos empréstimos e a restrição inerente ao serviço sequencial tornam o passivo bancário ótimo. Explica-se: a corrida dos depositantes bem-informados ao banco é a maneira através da qual se cria informação sobre a qualidade dos portfólios. Por temer a corrida e a sorte dos negócios, a administração bancária tem incentivo para manter alto padrão de desempenho. Caso não consiga, pode engajar-se em atividades de moral hazard. Entre estas atividades, destacam-se as fraudes contábeis e os desfalques que têm acompanhado as crises financeiras na história econômica, chegando a ser responsabilizados pelo próprio evento.

Os pânicos, porém, são o caminho mais direto para a desintermediação bancária. Os depositantes, receando pelo valor e pela segurança de seus recursos, promovem retiradas, causando a contração dos depósitos e a contração múltipla dos empréstimos. A assimetria de informação é, de novo, a fonte do problema, porque os depositantes não conseguem distinguir os bancos solventes dos insolventes. Para se proteger, os bancos aumentam suas reservas e reduzem a concessão de crédito.

Em pânico o custo da intermediação financeira aumenta brutalmente, porque a liquidez é reduzida, a taxa de juros eleva-se e as empresas veem seu patrimônio líquido diminuir. Nesse cenário, cada uma dessas variáveis potencializa a outra, contribuindo para uma alta geral de riscos financeiros e de custos na concessão de crédito. Seguem-se redução do investimento e declínio da atividade econômica.

A deflação originada pelo decréscimo do crédito e da oferta monetária é mais um dos fatores que agravam os problemas do agenciamento, que se encarregam do declínio do investimento e da atividade econômica agregada. A deflação não-antecipada repassa renda de devedores para credores. Essa redistribuição dá-se via aumento do valor real das dívidas e redução do patrimônio do devedor. Notícias sobre desempenho econômico adverso podem anteceder o pânico, pois sinalizam para um aumento do risco de queda no preço dos ativos e dos problemas de informação na intermediação bancária. Os agentes econômicos podem se antecipar a esse movimento.

O maior problema para a política econômica decorrente dessa abordagem consiste no seguinte: por desconsiderar o pânico bancário enquanto comportamento irracional, não se recomenda a imediata intervenção do banco central no mercado financeiro. A intervenção pode levar a ineficiências na intermediação bancária. Ela incentiva o descuido dos bancos na administração dos ativos, contribui para o aumento do risco assumido por alguns bancos e pode ser interpretada como prêmio por um desempenho indesejável. A certeza de que haverá assistência financeira incondicional pode levar a ineficiências na concessão de crédito e ao engajamento da administração bancária em atitudes de moral hazard, reduzindo a eficiência alocativa do sistema.

Ao lado de seus modelos estritamente formais, os adeptos desse enfoque desenvolvem um reexame empírico das principais crises financeiras à luz das hipóteses por eles levantadas. O ponto de partida é a não-aceitação da explicação monetarista sobre a Depressão de 1930 e a insignificância da queda da bolsa para justificar a onda de falências bancárias. Eles questionam a rigidez de preços e salários enquanto variáveis que explicam a prolongada depressão, que acompanhou a redução da oferta monetária na década de 30. Não aceitam a síntese neoclássica e sua principal ferramenta de análise, o esquema IS-LM. Para eles, esse esquema por considerar a oferta monetária e apenas um substituto da moeda é inerentemente incapaz de capturar as complexas relações que ligam o sistema financeiro à atividade econômica. As variáveis explicativas dos adeptos da informação assimétrica juros, spread, redução dos patrimônios, altas seguidas por quedas nas bolsas adaptam-se melhor aos eventos que acompanham as crises financeiras.

Num artigo marcante, Ben Bernanke22 22 Bernanke, B. Non-monetary effects of the financial crises in the propagation of the Great Depression. American Economic Review, 73(3): 257-76, 1988. , após examinar os dados da década de 30 e aplicá-los a um modelo formal, afirma que a explicação de Friedman & Schwartz, baseada na moeda, é parcial. Isso porque não existe teoria de efeitos monetários sobre a economia real que possa explicar tamanha duração da não-neutralidade da moeda, e a redução na oferta monetária nesse período parece quantitativamente insuficiente para explicar a subsequente queda no produto.23 23 Idem, ibidem, p. 257.

No período de 1931-1933, cerca da metade dos bancos norte-americanos havia falido. Esse choque da oferta monetária não deixa de ser importante, mas, por si só, não justifica a duração da Depressão, que foi devida à modificação das estruturas institucionais de crédito. Nessas estruturas os bancos e a oferta monetária são um dos lados; o outro, o que deixou de ser considerado, é o patrimônio líquido das empresas. A avaliação do patrimônio relaciona-se com a capacidade de os devedores pagarem as dívidas e com a capacidade creditícia das unidades econômicas. A flexibilidade dos preços para baixo, na forma de deflação não-antecipada, reduz os patrimônios líquidos, provoca perdas patrimoniais, eleva os custos da transação e de informação e leva a posterior redução na eficiência alocativa do mercado financeiro.

Bernanke conclui: Economic institutions, rather than being a ‘veil’, can affect cost of transactions and thus market opportunities and allocations. Institutions which evolve and perform veil in normal times may become counterproductive during periods when exogenous shocks or policy mistakes drive the economy off course.24 24 Idem, ibidem: p. 275.

Alguns economistas, a exemplo dos monetaristas, mantêm a visão da crise financeira enquanto fruto de choques aleatórios adversos, potencializados por problemas na concessão de crédito. Porém, alguns pontos os separam. Enquanto os monetaristas se satisfazem com ajustes na oferta monetária para debelar a depressão, eles são céticos quanto a esses ajustes, justamente porque há outras variáveis entre a oferta monetária e a atividade econômica agregada.

Brunner e Meltzer, monetaristas, tidos como tradicionais, expressam melhor a principal crítica a essa abordagem: Aceitamos a ênfase de Bernanke no papel da crise da dívida como importante componente do mecanismo de propagação. Não aceitamos a análise de Bernanke da crise da dívida como choque independente e exógeno [ ... ] Permanece a questão [ ... ] As corridas aos bancos são resultado do declínio cíclico ou ... ?25 25 Brunner, K. & Meltzer, A. Money and credit in the monetary transmission process. American Economic Review, 78(2): 448-9, May 1988. Uma das possíveis respostas para a questão é dada pela hipótese da instabilidade financeira.

6. A HIPÓTESE DA INSTABILIDADE FINANCEIRA

O investimento é o·elemento-chave para a explicação da crise, mas os seus determinantes se encontram na encruzilhada formada por dois enigmas da teoria econômica: o ciclo econômico e o mecanismo de financiamento. A hipótese de Minsky fundamenta-se na tentativa de incluir o mecanismo do financiamento.

O ponto de partida da análise econômica é a definição da finalidade da produção, que, para Minsky assim como para os empresários, está no lucro. O lucro justifica a produção de bens e seu consumo, determinando o investimento, a demanda agregada e as condições do financiamento. O lucro, portanto, define a atividade econômica.

As oscilações da demanda agregada são reflexo das variações no nível de investimento. Por outro lado, as variáveis financeiras determinam as flutuações do investimento, e essa ordem, estabelecida por Keynes, aponta o mercado financeiro enquanto o principal determinante da atividade econômica. A elucidação do funcionamento do mercado financeiro exige, primeiramente, a inclusão desse mercado com todas as suas instituições: moeda, bancos e bolsas de valores na análise econômica e, na sequência, a determinação de sua inter-relação com o capital produtivo e o investimento.

A razão da crise é a redução do investimento agregado. E há apenas uma situação na qual o investimento passado pode interromper os investimentos presente e futuro: quando os lucros obtidos com investimento financiado no passado não corresponderem às expectativas. Nesse caso é interrompido o processo de financiamento de investimento e a demanda agregada passa a não ser adequada para aquele nível de atividade econômica, afetando os lucros futuros. Menor volume de lucro compromete a demanda agregada, os pagamentos de dívidas, o investimento, as condições financeiras e o lucro futuro.

O mercado financeiro para Minsky é um espaço de mobilização de patrimônios em prol de lucro. A divergência entre o lucro esperado e o realizado fonte de constantes reavaliações dos patrimônios envolvidos torna esse local o reino da incerteza. A obtenção de lucro diverso do esperado gera conflito de interesses a ser resolvido no mercado financeiro. No mundo de completa previsibilidade como no modelo da síntese neoclássica não há divergência entre o lucro esperado e o obtido, nem interesses conflitantes. As trocas são diretas: bens por bens e a moeda, que não reúne as condições de modificar o valor relativo dos bens, é apenas meio de troca. No mercado financeiro real, a moeda afeta os lucros, a valorização do capital e o investimento.

E se a moeda tem poder de afetar a taxa de lucro, o objetivo ou a finalidade do sistema não pode ser neutra, nem exógena. A moeda para Minsky é criada à medida que os bancos adquirem ativos e é destruída quando os devedores cumprem suas obrigações [ ... ] O processo financeiro essencial da economia capitalista está centrado na maneira através da qual se financia o investimento.26 26 Minsky, H. The financial-instability hypothesis. In Kindleberger & Laffargue eds. Financial crises-theory, history, and policy. Cambridge, Cambridge University Press, 1982, p. 17. Nesse esquema a moeda é “o produto final de arranjos financeiros”. Para entender a economia, seria importante examinar a técnica utilizada pelos bancos no financiamento dos ativos de capital e da produção. Portanto, mais importante que a oferta monetária é a análise dos contratos de financiamento e do funcionamento dos bancos.

Os contratos financeiros são firmados com a previsão de um dado cenário, e aquele que toma o empréstimo deverá encontrar renda suficiente para seu pagamento. A receita esperada deve-se à participação do devedor no processo de criação e distribuição de bens. Minsky chama essa receita de renda primária (q), que é a receita total menos o custo variável total esperado. As fontes secundárias de renda incluem eventuais empréstimos que geram uma saída de caixa (c) - e a renda proveniente da venda de ativos mantidos para ocasião de contingências, que incluem moeda e outros ativos com elevada liquidez (l). E, por fim, há o valor dos ativos da empresa. A renda do credor é aquela produzida pelo ativo penhorado na concessão do empréstimo (c).

Se a renda primária do devedor não cobrir as exigências legais do empréstimo, há duas maneiras para se sair da situação: emprestar mais ou vender algum ativo. Quando houver redução no produto ou no preço dos ativos, o pagamento das dívidas torna-se incerto. O acesso ao crédito é igualmente incerto, pois não depende apenas da oferta monetária, mas das condições de avaliação dos ativos e do peso relativo das dívidas. Essas considerações apontam para a importância das condições de financiamento e de precificação dos ativos. O mecanismo financeiro entra na determinação do investimento porque afeta os preços dos ativos de capital, os custos de produção, a renda e a alavancagem financeira das empresas. A valorização dos ativos financeiros pode definir os movimentos do investimento e, dessa forma, a taxa de lucro e a atividade econômica agregada.

Segundo Minsky, a economia capitalista compreende dois preços básicos: o da renda corrente e o dos ativos de capital (PK). Esses preços são interdependentes, mas a sua determinação diverge; envolvem, também, horizontes diversos de tempo. Para a renda corrente o tempo relevante é o curto prazo. Os preços dos ativos dependem da visão presente sobre os lucros futuros: o tempo relevante, nesse caso, é o longo prazo.

Nas economias que contam com mercado financeiro, o capital tem dois tipos de valoração. O primeiro é o capital visto pela ótica da firma individual contábil ou de reposição, o capital presente nos modelos cujo valor não se modifica em função do lucro obtido pelo seu emprego. O segundo é o capital em forma de ativos financeiros, que, ao contrário do capital contábil, modifica seu valor.27 27 Na teoria econômica padrão, nota Minsky, o valor dos ativos de capital independe da geração de lucro. Nela o capital tem sempre a mesma dimensão, via de regra o preço contábil ou de reposição. Na economia real o empreendimento que não consegue gerar lucro suficiente para o pagamento das exigibilidades financeiras pode passar a valer menos. Mesmo o capital das empresas que obtiveram lucro compatível com o planejado sofre modificação de valor quando esse lucro diferir do lucro médio.

O mercado financeiro ao avaliar, os ativos segundo os lucros obtidos, modifica o valor relativo das várias formas de capital, as condições de crédito e, consequentemente, a decisão de investir. A valorização relativa do capital depende da realização do projeto de investimento e do lucro esperado. O lucro efetivamente obtido, ao modificar a valorização do capital, afeta as condições financeiras atuais, determinando o investimento e a atividade econômica agregada.

Além da dupla avaliação do capital produtivo, tem-se a dupla posse e dupla maximização. As empresas produtivas têm a posse de seu capital, mas esse mesmo capital na forma de ativos financeiros, que servem de colaterais para as dívidas assumidas é posse dos bancos. Assim, há duas instituições que maximizam lucro sobre o mesmo capital produtivo. Uma produz e vende bens, seus lucros devem-se a essa atividade. A outra possui ativos financeiros, seus lucros provêm da produção e da venda de dívidas. Há que se supor que, nesse arranjo, existe conflito de interesses, que poderá resultar na limitação ou mesmo na frustração da maximização de uma das partes. A maximização sob hipótese de interesses conflitantes leva à pergunta: quem maximiza, ou quem maximiza mais e em que condições?

A análise econômica não chegou a elucidar o funcionamento da economia, porque em vez de estar focada na finalidade do sistema, que é o lucro, está centrada nos meios para a obtenção de lucro que consistem na produção e na distribuição de bens. Uma vez aceito o lucro como objetivo, segue-se que a compreensão do funcionamento da economia só é possível com o estudo da geração e da alocação dos lucros.

Como produtora de lucros, a economia consiste em balanços contábeis nos quais os ativos geram o fluxo de caixa (q) e os pagamentos das exigibilidades financeiras (e). As variáveis-chave dessa análise mais relevantes são: o volume de lucros e sua alocação, a dimensão das dívidas e a parcela dos lucros necessária para pagar os compromissos financeiros e o impacto da modificação do preço dos ativos sobre o investimento. Essas são as variáveis que, junto com a oferta monetária, regem a dinâmica do mercado financeiro.

Para Minsky, a economia funciona em ciclos e estes são caracterizados por mudanças cumulativas nas relações financeiras. Durante o período de expansão prolongada e boom econômico, as características estruturais do sistema financeiro se modificam no sentido de redução do domínio da estabilidade do sistema.28 28 Minsky, H. Can it happen again?, New York, M. E. Sharpe, Inc., 1982, p. 118. A redução da estabilidade explica-se pela formação de uma estrutura de dívida (passivos ou exigibilidades) tal que o fluxo de renda das empresas não permite a validação de suas operações financeiras. Esse fato torna a economia financeiramente frágil, propensa a crises financeiras. Assim, a fragilidade financeira é fruto do funcionamento normal da economia no decorrer do ciclo econômico.

O volume das dívidas e a taxa de juros aumentam no decorrer do ciclo. Cresce, com eles, a parcela da renda operacional (q) destinada ao pagamento de dívidas (c). Uma alta na taxa de juros provoca o seguinte encadeamento: (1) aumenta o custo total variável das empresas, (2) na tentativa de manter o valor real de sua renda operacional elas repassam esse aumento para os preços, (3) segue-se aumento nas taxas de inflação.29 29 Minsky parte da existência do ciclo econômico e aceita as constatações empíricas referentes às fases do ciclo. Na fase de expansão, há sempre inflação. Mesmo assim, as receitas e os lucros das empresas caem, porque enquanto as receitas crescem a uma taxa normal, as despesas com as dívidas, dado o efeito conjunto das taxas de juros e do volume das dívidas, apresentam uma taxa crescente de aumento.

Essas considerações exigem uma explicação de porque não se verifica redução concomitante no investimento agregado. Para Minsky, o investimento depende do cálculo financeiro entre os preços dos bens de capital (PI) (que são os preços correntes de bens físicos de investimento) e a valorização dos ativos de capital (PK). Durante a fase de expansão econômica, verifica-se aumento dos preços dos ativos de capital (PK). Um aumento em (PK) suficiente para que este fique acima de (PI) encoraja o endividamento que visa o investimento, pois reduz, na margem, a taxa de juros envolvida no empréstimo. Preço em alta dos ativos de capital, do lado dos bancos, é garantia suficiente para a recuperação das quantias envolvidas na concessão dos empréstimos. Inovações financeiras permitem a sustentação do investimento e a do preço dos ativos de capital.

Entretanto, o aumento na alavancagem das empresas torna-as mais vulneráveis em relação a um aumento nas taxas de juros ou quanto aos efeitos de um choque econômico adverso. A parcela destinada ao pagamento das dívidas (e) sobe, comprometendo os lucros e, dependendo do caso particular, a renda operacional. Com a redução dos lucros diminui a fonte interna de financiamento os lucros retidos e aumenta a possibilidade de queda na avaliação das empresas em bolsa. A redução da cotação aumenta os índices de endividamento, mesmo sem empréstimo adicional.

Taxa de juros em alta por reduzir o valor presente do fluxo de caixa esperado e, com isso, o retorno do investimento elimina os projetos menos rentáveis, reduzindo o nível de investimento. Declínio do investimento provoca declínio na renda (q) das empresas e, consequentemente, nos lucros. Todos esses fatores levam ao aumento do risco dos bancos, que podem dificultar o crédito. Em primeiro lugar é dificultada a concessão de crédito às empresas mais endividadas, que, destinando o total de sua renda para o pagamento das dívidas, param de investir. Parte das empresas endivida-se ainda mais, de forma que o fluxo de renda de suas operações não consegue mais cobrir sequer os juros de suas dívidas. Tornam-se empresas Ponzi financiadas. O aumento do peso das empresas nessa situação torna a economia financeiramente frágil.

O acréscimo no risco do credor e o declínio no volume dos lucros transformam-se em alta na taxa de juros e aumento no custo operacional das empresas. A inflação acelera-se. Inflação alta, e em aceleração, dificulta o cálculo financeiro, aumentando a incerteza no sistema. Os bancos dificultam o crédito; as autoridades monetárias, preocupadas com os índices de inflação, reduzem a oferta monetária. A taxa de juros aumenta mais ainda. Um acréscimo adicional na taxa de juros ou uma queda da atividade econômica, que já se vislumbra por causa da redução do investimento, provoca aumento na parcela de empresas Ponzi financiadas. À medida que os bancos enfrentam dificuldades cada vez maiores em recuperar os valores envolvidos nos empréstimos, sua situação financeira sofre deterioração também.

Em algum ponto desse movimento as empresas endividadas passam a vender ativos. Os bancos pressionados seguem o mesmo caminho. Generalizada venda de ativos implica queda de seu preço. A crise financeira é identificada por Minsky com esse momento. Acentuada queda no preço dos ativos coloca maiores dificuldades para os bancos, pois os índices de endividamento, já substanciais, aumentam. O investimento se reduz ainda mais e a economia pode enfrentar uma espiral dívidas/deflação, mergulhando na depressão.

Para Minsky, a crise financeira é um evento devido às modificações, paulatinas mas sistemáticas, na estrutura das dívidas durante o ciclo econômico. A evolução normal das relações econômicas leva à fragilidade financeira. Quando instalada a fragilidade, um evento que não tem alcance ou duração fora do comum pode desencadear uma pronunciada reação financeira”30 30 Minsky, op. cit., p. 118. . Entretanto, somente na presença de fragilidade financeira, um choque reunirá as condições para a precipitação da crise.

Como o modelo básico utilizado pelos monetaristas e keynesianos que aderem à síntese neoclássica é o do Equilíbrio Geral que não contempla crise ou depressão enquanto possibilidades teóricas, as explicações estão centradas em variáveis externas ao sistema. A explicação monetarista da Grande Depressão afirma que esta foi resultado dos erros e das omissões do Federal Reserve. A teoria keynesiana sustenta que foi resultado do declínio das oportunidades de investimento exogenamente determinado, ou de um anterior e não explicado declínio do consumo.31 31 Idem, ibidem, p. 16.

Apenas a falta de lógica faz com que se culpe alguma força extra sistema pela depressão. Não será razoável pensar que grande parcela de economias de um ou de mais continentes possa ser vítima de erros de política econômica ao mesmo tempo e por simples coincidência. Não há a mínima possibilidade de concentração no tempo de maus administradores como na explicação monetarista, unschooled in the practices that preclude such a development32 32 Schwartz, op. cit., p. 12. assumindo o destino econômico de seus países. A capacidade de um erro de política macroeconômica causar o desenlace de uma crise financeira é decorrência de condições objetivas, presentes e atuantes. Uma vez existentes, a crise financeira pode ser devida até a decisões erradas. Mas, segundo Minsky, somente no contexto de fragilidade financeira as decisões de política econômica podem transformar-se em crise financeira.

Observando o desempenho das economias no tempo, vê-se que as condições mudam, e em ciclos no mesmo sentido. As crises financeiras e a depressão que as seguem são parte do ciclo econômico, e este característica marcante da experiência econômica inclui as seguintes fases: (i) inflação em aceleração; (ii) crise financeira; (iii) brusca queda na renda; (iv) intervenção (automática e discricionária) do governo através de déficit fiscal e ações do banco central como emprestador de última instância; (v) súbita interrupção da queda da renda; e (vi) expansão.

A economia em expansão retorna ao estágio (i). Em sua passagem para o estágio (ii), assiste-se à ampla redução da demanda de financiamento para investimento. Seguem-se dificuldades na obtenção de crédito, necessidade de venda generalizada de ativos, queda em seu preço e crise financeira. Na sequência, declínio na taxa de emprego, baixa utilização da capacidade produtiva, queda de salários e preços do produto e do capital produtivo. A crise financeira leva à crise econômica quando o investimento declina tanto que há declínio dos lucros seguido pelo da renda, do emprego e dos salários.33 33 Minsky, H. The financial instability hypothesis: a clarification. In Feldstein, M. ed. The risk of economic crises. New York, NBER, 1991, p. 165.

Intervenções habilidosas podem abortar a crise em dois pontos: através do refinanciamento das empresas, quando há necessidade de se vender ativos, ou sustentando os lucros através de déficit fiscal. Os grandes déficits fiscais que sustentam os lucros explicam por que não tem havido crises com intervalos como as do passado, mas essa situação exige cuidados quanto à aceitação do déficit nos portfólios nacionais e internacionais.

O aumento da oferta monetária impede a generalização da queda no preço dos ativos. Ao refinanciar os bancos, o banco central cumpriria sua função de emprestador de última instância. Minsky alerta para se ter cuidado na determinação do momento do refinanciamento, que deverá ocorrer somente se houver percepção da iminência de crise. A instabilidade financeira é a fragilidade transformada em ação das autoridades monetárias no sentido de evitar a plena eclosão da crise financeira.

7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ciência econômica não conta ainda com uma teoria sobre a complexa dinâmica que marca o vínculo entre o sistema financeiro e a atividade econômica agregada. Há pontos relevantes que esperam por uma interpretação. De fato, a preocupação com o assunto é recente, pois o esforço para compreender a articulação entre os elementos que compõem o mercado financeiro e seu impacto sobre a atividade econômica vem do final dos anos 70. A ênfase no sistema financeiro coincide com as dificuldades teóricas em explicar as modificações da atividade econômica a partir da mudança na oferta monetária, e o surgimento de problemas financeiros na maior parte das economias centrais e periféricas.

Apesar dos calorosos debates e da falta de consenso entre os teóricos de diversas linhas analíticas, assim como entre os economistas de uma mesma corrente, a crise financeira não é mais tratada enquanto um simples problema de desajuste entre a demanda e a oferta de meios de pagamento. Considera-se a presença de condições objetivas que levam à ameaça de perda de direitos patrimoniais. O meio acadêmico chegou ao termo de que a abordagem teórica da crise financeira exige ponderações sobre as complexas relações do mercado financeiro do qual o mercado monetário é apenas parte. Nesse panorama a crise financeira será originada pela explicitação de que a estrutura contratual que caracteriza o sistema financeiro e une os direitos às obrigações não se sustenta. Há nela, nesse período, mais direitos do que obrigações ou as obrigações não podem ser cumpridas de forma a sustentar os direitos.

A crise financeira aniquila parte da riqueza nacional e sua solução dá-se via reavaliação e redistribuição do patrimônio restante. A intervenção das autoridades monetárias, a fim de sustentar o capital dos bancos principais e organizar a absorção das perdas, consegue restringir o alcance do prejuízo, mas ela encerra um grande potencial para a redistribuição aleatória de riqueza e não consegue evitar a depressão. A crise financeira torna necessário o uso de poder discricionário, que é prerrogativa do Estado. Só o aparato jurídico do Estado pode garantir a ordem, a elaboração e a aceitação das regras de exceção. O Estado, que era do povo, aparece como guardião dos interesses de parte dele, abrindo uma discussão sobre sua própria legitimidade. Não é por acaso que cada crise financeira é, ao mesmo tempo, crise do Estado. Após cada crise financeira verifica-se a reorganização do mercado financeiro, da sua estrutura e legislação, que é uma recomposição das condições para o desenvolvimento sustentado ou da acumulação do capital.

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  • 3
    Schwartz, A. Real and pseudo-financial crises. In Capie & Wood, eds., 1986. Financial crises and the world bonking system. New York, St. Martin Press, 1986, p. 11SCHWARTZ, A. (1986) Real and pseudo-financial crises. In Capie & Wood, eds. (1986) Financial crises and the world banking system. New York, St. Martin Press..
  • 4
    Friedman & Schwartz, op. cit., p. 684.
  • 5
    Idem, p. 685.
  • 6
    Bagehot, W. Lombard Street. London, Kegan Paul, Trench, Trubner & Co. Ltd., 1904. 1a. edição, 1873BAGEHOT, W. (1904) Lombard Street. London, Kegan Paul, Trench, Trubner & Co. Ltd. 1a. ed., 1873.
  • 7
    Schwartz, op. cit., p. 28.
  • 8
    Fisher, I. “The debt-deflation theory of Great Depressions”. Econometrica, n. 1, p. 344FISHER, I. (1933) The debt-deflation theory of Great Depressions. Econometrica, n. 1.
  • 9
    Idem, ibidem, p. 354.
  • 10
    Idem, ibidem, p. 354.
  • 11
    Ver Calomiris, C. Financial factors in the Great Depression. Journal of Economic Perspectives, v. 7, n. 2, Spring 1993, ou Gertler, 1988CALOMIRIS, C. (1993) Financial factors in the Great Depression. Journal of Economic Perspectives, v. 7, n. 2, Spring..
  • 12
    A obra de Fisher do início do século foi o principal elemento de sustentação do monetarismo. Seus artigos publicados após a Depressão de 1930 foram “esquecidos” e “resgatados” apenas a partir da década de 80.
  • 13
    Gertler, M. “Financial structure and aggregate economic activity: an overview”. Journal of /Money, Credit and Banking, v. 20, n. 3, Part 2, p. 560, August 1988GERTLER, M. (1988) Financial structure and aggregate economic activity: an overview, Journal of Money, Credit and Banking, v. 20, n. 3, part 2, August..
  • 14
    Calomiris, C. & Gorton, G. “The origin of banking panics: models, facts, and banking regulation”. In Hubbard, G., ed. Financial markets and financial crises, NBER, Chicago and London, The University of Chicago Press, 1991, p. 124CALOMIRIS, C. & GORTON, G. (1991) The origin of banking panics: models, facts, and banking regulation. In Hubbard, G., ed. (1991) Financial markets and financial crises, NBER, Chicago and London, The University of Chicago Press..
  • 15
    Estamos seguindo Calomiris & Gorton, op. cit.
  • 16
    Idem, ibidem, p. 129.
  • 17
    Idem, ibidem, p. 128.
  • 18
    Ver Gorton, G., & Pennacchi. G. Financial intermediation and liquidity creation. Journal of Finance 45(l): 49-72, 1990GORTON, G., & PENNACCHI, G. (1990). Financial intermediation and liquidity creation. Journal of Finance 45(1)..
  • 19
    Mankiw, G. The allocation of credit and financial collapse. Quarterly Journal of Economics, v. 101, pp. 455-70, August 1986MANKIW, G. (1986) The allocation of credit and financial collapse. Quarterly Journal of Economics, 101, August.
  • 20
    Bernanke, B. & Gertler, M. Agency cost, collateral, and business fluctuations. American Economic Review, v. 79, pp. 14-31, March 1989BERNANKE, B. & GERTLER, M. (1989) Agency cost, collateral, and business fluctuations. American Economic Review 79, March..
  • 21
    Idem, ibidem.
  • 22
    Bernanke, B. Non-monetary effects of the financial crises in the propagation of the Great Depression. American Economic Review, 73(3): 257-76, 1988BERNANKE, B. (1983) Non-monetary effects of the financial crises in the propagation of the Great Depression. American Economic Review, 73, N 3..
  • 23
    Idem, ibidem, p. 257.
  • 24
    Idem, ibidem: p. 275.
  • 25
    Brunner, K. & Meltzer, A. Money and credit in the monetary transmission process. American Economic Review, 78(2): 448-9, May 1988BRUNNER, K. & MELTZER, A. (1988) Money and credit in the monetary transmission process. American Economic Review, v. 78, n. 2, May..
  • 26
    Minsky, H. The financial-instability hypothesis. In Kindleberger & Laffargue eds. Financial crises-theory, history, and policy. Cambridge, Cambridge University Press, 1982, p. 17MINSKY, H. (1982) The financial-instability hypothesis. In Kindleberger & Laffargue eds. (1982) Financial crises-theory, history, and policy. Cambridge, Cambridge University Press..
  • 27
    Na teoria econômica padrão, nota Minsky, o valor dos ativos de capital independe da geração de lucro. Nela o capital tem sempre a mesma dimensão, via de regra o preço contábil ou de reposição. Na economia real o empreendimento que não consegue gerar lucro suficiente para o pagamento das exigibilidades financeiras pode passar a valer menos. Mesmo o capital das empresas que obtiveram lucro compatível com o planejado sofre modificação de valor quando esse lucro diferir do lucro médio.
  • 28
    Minsky, H. Can it happen again?, New York, M. E. Sharpe, Inc., 1982, p. 118MINSKY, H. (1982) Can it happen again?. New York, M. E. Sharpe..
  • 29
    Minsky parte da existência do ciclo econômico e aceita as constatações empíricas referentes às fases do ciclo. Na fase de expansão, há sempre inflação.
  • 30
    Minsky, op. cit., p. 118.
  • 31
    Idem, ibidem, p. 16.
  • 32
    Schwartz, op. cit., p. 12.
  • 33
    Minsky, H. The financial instability hypothesis: a clarification. In Feldstein, M. ed. The risk of economic crises. New York, NBER, 1991, p. 165MINSKY, H. (1991) The financial instability hypothesis: a clarification. In Feldstein, M., ed. (1991) The risk of economic crises. New York, NBER..
  • 34
    JEL Classification: E32; G28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1997
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