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A Economia Política como uma ciência autônoma: um estudo sobre as contribuições metodológicas de John Stuart Mill

The Political Economy as an autonomous science: a study on the methodological contributions of John Stuart Mill

RESUMO

O objetivo deste artigo é investigar possíveis inconsistências entre as posições metodológicas de J. S. Mill sobre a ciência da Economia Política e a visão histórica do homem e da sociedade que ele finalmente adotou. A análise de suas principais proposições sobre o método revela que Mill era inconsistente em manter - como ele fez - a validade universal de investigar essa ciência pelo método dedutivo. Mas dois exemplos selecionados de seus Princípios mostram que, como economista político, Mill usava procedimentos metodológicos alternativos quando a ocasião exigia, sendo mais consistente como cientista do que como filósofo da ciência.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; metodologia da economia: Stuart Mill

ABSTRACT

The aim of this paper is to investigate possible inconsistencies between J. S. Mill’s methodological positions on the science of Political Economy and the historical view of man and society that he eventually embraced. The analysis of his main propositions on method reveals that Mill was inconsistent to hold - as he did - the universal validity of investigating this science by the deductive method. But two examples selected from his Principles show that, as a political economist, Mill used alternative methodological procedures when the occasion demanded, being more consistent as a scientist than as a philosopher of science.

KEYWORDS:
History of economic thought; economic methodology; Stuart Mill

INTRODUÇÃO

Em seu verbete sobre John Stuart Mill no Palgrave Dictionary of Political Economy, F. Edgeworth levanta uma questão bastante interessante sobre a consistência entre o método que Mill defendeu para a economia política e a visão histórica que ele passa a ter de homem e de sociedade:

“A combinação de raciocínio a priori a partir de proposições gerais com verificação específica, isto é, o método dedutivo direto, que provou ser tão bem-sucedido na física matemática, é prescrito para a economia política. É uma questão se esta visão foi, ou poderia ser consistentemente mantida por Mill quando ele começou a duvidar da universalidade do princípio do auto-interesse, que era considerado o alicerce do raciocínio econômico[...]” (Edgeworth, 1896EDGEWORTH, F. (1896) “John Stuart Mill”. In: Palgrave Dictionary of Political Economy. London: 757)

Apesar de encontrarmos na literatura secundária sobre Mill muitas referências a esta questão colocada por Edgeworth1 1 Podemos citar como exemplos Winch (1972: 340) que menciona Edgeworth a esse respeito e Collini (1983: 137) que também levanta o mesmo tipo de questão. , não temos conhecimento de nenhum trabalho que tenha tentado respondê-la de forma sistemática. Essa é uma lacuna que este artigo visa preencher.

Com isso em vista, em primeiro lugar reconstruiremos a visão madura de Mill sobre o método da economia política e sua relação com as demais ciências sociais, para depois investigarmos se a afirmação de Mill sobre a validade de estudar de forma dedutiva a economia política em qualquer estado de sociedade é consistente.

Concluiremos que, para manter a coerência, Mill teria que ter restringido o campo válido de aplicação do método dedutivo, e, portanto, de existência semi­autônoma da economia, a situações nas quais a busca auto-interessada de riqueza é a motivação principal e dominante nas atividades de produção e distribuição de riqueza. Se levarmos às últimas consequências as suas próprias afirmações metodológicas, veremos que situações sociais, nas quais os homens desempenham suas funções nessas e em outras atividades tendo por base motivações de outra ordem não poderiam ser investigadas dedutivamente. Nesse caso, os assuntos tradicionalmente tratados pela economia política teriam que ser investigados, ao lado dos demais fenômenos sociais, pelo método histórico ou dedutivo inverso, e a economia política perderia a sua autonomia dissolvendo-se na grande ciência social.

Observaremos também, com base na análise de dois episódios dos Princípios de Economia Política (PPE) - as discussões sobre formas alternativas de apropriação da terra e sobre socialismo - que, em sua prática enquanto economista político, Mill de fato abriu mão do método dedutivo em casos nos quais o auto-interesse econômico não preponderava, adotando outra abordagem metodológica.

A DEFINIÇÃO E O MÉTODO DA ECONOMIA POLÍTICA

Transpor o método dedutivo direto para a economia política significou isolar uma das inúmeras motivações do homem e a partir dela deduzir os resultados sociais que decorreriam caso ela fosse a única motivação em ação. Assim a ciência da economia política tomaria por base o homem”[...] somente enquanto ser que deseja possuir riqueza, e que é capaz de julgar a eficácia relativa de meios para obter tal fim” (Mill, 1967cMILL, J.S. (1967c) “On the definition of Political Economy and the Method of philosophical investigation in that science (1836)”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. IV. Toronto: University of Toronto Press.: 321), e derivaria o curso que seguiria da ação da humanidade, em um dado estado de sociedade, na suposição de que as suas motivações são restritas ao desejo de riqueza (Idem: 323).

A etapa de verificação dos resultados obtidos a partir deste processo de abstração teria mais o sentido de complementar os resultados obtidos através do processo de dedução do que de fato pôr à prova sua veracidade.2 2 Nesse sentido, é interessante a avaliação de Blaug (1993: 104) que classifica Mill sob a denominação de verificacioniosta distanciando-o da postura falseacionista. Essa postura é explicitada pelo fato de Mill denominar esses resultados de verdades abstratas, que precisariam ser complementadas por verdades de outras ciências para se aproximarem dos resultados efetivamente observados (Idem: 326-7).3 3 É nesse sentido que devemos entender a afirmação de Mill de que “o mero economista político, aquele que não estudou nenhum a ciência além da economia política, se tentar aplicar sua ciência à prática, fracassará” (Mill, 1967c: 331).

Para que a nossa compreensão da postura de Mill em relação à ciência economia política seja completa é necessário explicitarmos a sua relação com as demais ciências sociais. Só então os requisitos para que essa ciência possa ser desenvolvida pelo método dedutivo - isto é, para que possa existir enquanto ciência autônoma - ficam claros.4 4 Atribuir o método dedutivo (ou a priori) à economia política estava totalmente em consonância com a visão de ciências sociais que Mill apresentava quando escreveu o ensaio sobre o método. Com base nesse ensaio fica-se com a impressão de que as demais ciências sociais seriam igualmente dedutivas. Mill de fato faz referência a uma ciência, chamada economia social, que lidaria com “todas as partes da natureza humana no que elas influenciam a conduta ou a condição do homem em sociedade”(Mill, 1967c: 320), mas ele não lhe atribui qualquer método de investigação específico. Pelo contrário, esta ciência seria necessariamente fragmentada em diversas ciências dedutivas (para interpretações semelhantes sobre a economia social ver Burns, 1976: 71); e Mueller, 1956: 105). Mill chegou a afirmar que o método a priori seria o único legítimo nas ciências morais (Mill, 1967: 327). No entanto, como veremos a seguir, na Lógica a concepção de Mill sobre a sociedade, e sobre a forma adequada de estudá-la, modificou-se e, por conta disso, a relação entre a economia política e as demais ciências sociais também se transformou apesar de não ter havido mudança no que diz respeito diretamente à definição e ao método advogado para a ciência da economia política. É no contexto dessa inter-relação que tentaremos responder à questão colocada por Edgeworth.

O MÉTODO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS

Para Mill, cada estado de sociedade era um conjunto coeso e articulado.5 5 A visão madura de Mill sobre a sociedade e sobre o método das ciências sociais foi muito influenciada pela obra de autores que não se filiavam à filosofia radical inglesa. Entre esses pensadores podemos destacar a influência do pensamento de August Comte, que lhe ofereceu uma visão orgânica dos fenômenos sociais e um método de investigação específico para investigá-los. A relação que existiria entre cada estado social e os elementos que o compõem (instituições políticas e sociais, crenças, hábitos, gostos etc.) seria análoga àquela existente entre o corpo humano e os órgãos que o constituem:

“O que quer que afete, em grau apreciável, qualquer elemento do estado social, afeta através deste todos os outros elementos[...] Não existe nenhum fenômeno que não seja mais ou menos influenciado por todas as outras partes da condição desta sociedade, e portanto por todas as causas que estejam influenciando qualquer dos fenômenos sociais contemporâneos a este[...]” (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 87).

A existência dessa enorme articulação entre os diversos elementos da sociedade teria como consequência o fato de não podermos “nunca entender na teoria, ou comandar na prática as condições da sociedade em qualquer aspecto particular, sem levar em conta a sua condição em todos os outros aspectos” (Idem: 87). Isso levou Mill a classificar como não filosófico o procedimento de “construir uma ciência a partir de somente algumas das agências pelas quais os fenômenos são determinados [...] Ou não devemos pretender formas científicas, ou devemos estudar de forma igualitária todas as agências determinantes” (Idem: 81).

Essa nova visão de sociedade vai colocar Mill em uma situação metodológica desconfortável, e até mesmo paradoxal. Apesar de ser um psicologista declarado, colocando as motivações humanas na base de todas as ciências morais, Mill vai declarar que o que poderia devido a essa relação parecer a forma correta de investigação nessas ciências de fato não o era.6 6 Popper faz questão de diferenciar a posição psicologista de Mill daquela dos defensores do individualismo metodológico (Popper, 1968). Lewisohn (1972: 324), por sua vez, classifica Mill entre os individualistas metodológicos. Mueller (1956: 106,110) faz uma comparação interessante entre o individualismo de Mill e a visão sistêmica de Comte. Ou seja, ele nega que “a maneira ade­ quada de construir uma ciência social positiva teria que ser através da dedução a partir de leis gerais da natureza humana, utilizando os fatos da história meramente para a verificação” (Mill, 1969MILL, J.S. (1969) “August Comte and Positivism”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. X. Toronto: University of Toronto Press.: 307).

Apesar de a ciência social ser, em princípio, dedutiva, tendo como seus elementos constitutivos os indivíduos e as circunstâncias (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 83), este não seria o método adequado à sua investigação. O proceder científico exigia a incorporação de todas as motivações humanas agindo nas mais variadas direções, e a sua interação com a situação natural e institucional existente, uma vez que todos esses fatores seriam importantes para a resultante social. A utilização do método dedutivo nas ciências sociais seria inviabilizada por ser impraticável obter a priori o efeito conjunto de todas as causas em ação. Segundo Mill, seria impossível (mesmo considerando um único estado de sociedade) partir das características psicológicas e etológicas da população e chegar dedutivamente à complexidade empírica do fenômeno social. E essa dificuldade persistiria mesmo se tivéssemos conhecimento de todas as leis da natureza humana e de suas tendências:

“Se todos os recursos da ciência não são suficientes para nos habilitar a calcular a priori, com total precisão, a ação mútua de três corpos gravitando em direção uns aos outros; pode-se avaliar com que perspectiva de sucesso devemos tentar calcular o resultado de tendências conflitantes agindo em mil direções diferentes e promovendo milhares de alterações diferentes num dado instante na sociedade[...].” (Idem: 84)

Mas como existe história, não poderíamos lidar com somente um estado de sociedade. Cada estado de sociedade seria, para Mill, fruto de estados de sociedade anteriores. As próprias leis da natureza humana não seriam imutáveis, e sim dependentes das circunstâncias às quais os homens são expostos.7 7 Para uma análise do processo através do qual as instituições alteram a natureza do homem ver Mattos (1996). Através da interação com as circunstâncias as próprias propensões iniciais dos indivíduos seriam modificadas. E esses homens diferentes modificam, por sua vez, as instituições:

“O que somos e fazemos hoje é em um grau muito pequeno o resultado das circunstâncias universais da raça humana ou mesmo de nossas circunstâncias agindo através das qualidades originais de nossa espécie, mas delas agindo basicamente através das qualidades em nós produzidas por toda a história pregressa da humanidade[...].” (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 105)

Não é possível, portanto, a partir de uma concepção abstrata de homem, deduzir, a priori, todo o caminho seguido pela humanidade.

Diante destas dificuldades, Mill introduz às suas reflexões o que ele acredita ser um dos grandes legados de August Comte: o método histórico, rebatizado de método dedutivo inverso.

Este método, na sua interpretação, partiria da realidade empírica, procuraria obter leis empíricas que, por fim, seriam “verificadas” ao serem ligadas aos princípios etológicos e psicológicos:

“[...]as leis universais da natureza humana são parte dos dados da sociologia, mas ao utilizá-los, temos que inverter o método das ciências físicas dedutivas: pois enquanto nesta o experimento específico geralmente serve para verificar as leis obtidas pela dedução, na sociologia é a experiência específica que sugere as leis, e a dedução que as verifica[...]. [Se] as leis do fenômeno social, generalizadas a partir da história podem, uma vez sugeridas, ser associadas às leis conhecidas da natureza humana; se a direção realmente tomada pelo desenvolvimento e mudanças da sociedade humana pode ser vista como sendo tal que as propriedades do homem e do meio em que habitam, tornando-as antecedentemente prováveis, as generalizações empíricas são elevadas a leis positivas, e a sociologia se torna uma ciência.” (Mill, 1969MILL, J.S. (1969) “August Comte and Positivism”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. X. Toronto: University of Toronto Press.: 307-8)

Mill frisa que o grau de confiança oferecido por este procedimento seria equivalente ao oferecido pelo método dedutivo direto. Isso porque a confiança que depositamos em uma ciência dedutiva não tem por base o raciocínio a priori, e sim a conjunção entre os métodos a priori e a posteriori. No caso do método histórico ocorreria, segundo Mill, apenas uma inversão na ordem de precedência dos dois processos (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 84-5).8 8 Ashley (1965: xvi) afirma que esta forma de apresentar as suas ideias metodológicas em certa medida camufla a contradição existente entre a posição de Mill no ensaio de 1836 e na Lógica, ao permitir que ele apresente os dois métodos corno “tipos” de dedutivos, denominando-os de dedutivo direto e dedutivo inverso. De fato Mill tenta frisar a equivalência dos dois métodos.

Todavia, para Mill, nem mesmo a verificação através de princípios etológicos e psicológicos seria totalmente eficaz. Raramente seria possível, mesmo depois de a história sugerir regularidades, demonstrar, com base no conhecimento sobre o homem, que a ordem observada seria única possível ou mesmo a mais provável. Em geral só seria viável demonstrar, a priori, a sua compatibilidade com as leis conhecidas da natureza humana (Idem: 106).

Vemos assim que esse processo de verificação é bastante frágil, mas Mill faz questão de mantê-lo. Com isso ele reafirma a precedência da psicologia na hierarquia das ciências. As leis sociais, apesar de não serem derivadas diretamente da psicologia, só assumem status de científicas após referirem-se a ela.9 9 Ryan (1990: 156), levanta a hipótese de Mill insistir tanto na dedução, mesmo onde sabia não ser possível, justamente para definir essa hierarquia que teria na base a psicologia, depois a etologia para por fim chegar às ciências do social. Afirmar a cientificidade de generalizações sobre variáveis sociais sem qualquer esforço para remetê-las às motivações humanas seria admitir o contrário.

Assim, Mill procura manter-se coerente ao mesmo tempo que estabelece o método dedutivo inverso (ou histórico) como sendo o método adequado às investigações nas ciências sociais.

A ORGANICIDADE SOCIAL E A CIÊNCIA DA ECONOMIA POLÍTICA

Deve estar claro que toda essa reflexão sobre a natureza da sociedade e do método adequado à sua investigação lança dúvidas sobre a pertinência da defesa do método dedutivo para a economia política, tal como definida acima, e torna necessária a sua justificação.

Uma vez que cada elemento é importante para a compreensão de todos os demais, e que é necessário à ciência levar em conta todas as agências envolvidas na determinação do fenômeno em questão, como defender a validade de um estudo fragmentado dos fenômenos sociais?

Como fica a situação da ciência da economia política que, além de tratar de apenas uma parcela dos fenômenos sociais, explicitamente isola uma das motivações humanas relevantes (a principal) e propositadamente ignora as demais? Ou seja, como defender a legitimidade de uma ciência que se utiliza exatamente daquele procedimento dito não filosófico?

Todavia, Mill nunca colocou em questão a definição e o método defendido para a economia no ensaio “On the Definition of Political Economy and the Method of Philosophical investigation in that science” (DPE). Ele resistiu a todas as investidas de Comte contra qualquer estudo que fragmentasse, mesmo que provisoriamente, o organismo social, e reproduziu na Lógica, a definição e o método da economia política praticamente nos mesmos termos10 10 Para a discussão desse diálogo entre Mill e Comte sobre a legitimidade do estudo da economia política, ver Ashley (1965). Para uma análise comparativa do pensamento dos dois autores ver Lewisohn (1972).

Entendemos que fatores pragmáticos explicam grande parte de sua insistência em preservar o espaço da ciência da economia política. Essa ciência seria um instrumento importante demais para o seu projeto social para ser simplesmente descartada.

No entanto, Mill era por demais rigoroso para encampar, por razões pragmáticas, posições que ele considerasse logicamente inconsistentes. Assim, dada essa visão mais coesa do organismo social, ele passa a ter que justificar filosoficamente a possibilidade de desenvolver a ciência da economia política.

OS RAMOS SEMI-AUTÔNOMOS DA CIÊNCIA SOCIAL

Apesar de declarar, pelas razões acima desenvolvidas, que os fenômenos sociais deveriam ser investigados de forma conjunta pelo método dedutivo inverso, Mill advoga a possibilidade e defende a importância do desenvolvimento (dedutivo) de algumas disciplinas.11 11 Na verdade, estamos atrelando a validade de utilizar a abstração do homem econômico à possibilidade de estudar de forma semi-autônoma a ciência, pois essa seria a justificativa para desenvolvê-la de forma dedutiva e separada da ciência social geral. A observação de Collini reforça o argumento: “[...] o modelo do ‘homem econômico’ é certamente fundamental para a concepção de Mill da autonomia da economia política” (Collini, 1983: 138). Se a pertinência da utilização dessa abstração é colocada em questão, a própria possibilidade de existência autônoma da economia política é questionada.

Esse método dedutivo direto só seria, entretanto, adequado ao estudo de alguns poucos fenômenos sociais. Ele teria que ser limitado “àquelas classes de fatos sociais que, apesar de influenciadas, como todas as outras, por todos os agentes sociológicos, estão sob a influência imediata, ou pelo menos principal, de somente alguns.” (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 88).

Mas fenômenos desse tipo não só poderiam como deveriam ser estudados num primeiro momento, à parte:

“Apesar do consensus universal do fenômeno social, através do qual nada que ocorre em qualquer parte da operação da sociedade está isento de sua parcela de influência sobre todas as outras partes; e apesar da ascendência suprema que o estado geral da civilização e do progresso social em qualquer sociedade tem portanto que exercer sobre todos os fenômenos parciais e subordinados; não é menos verdadeiro que diferentes espécies de fatos sociais são preponderantemente dependentes, imediatamente e em primeira instância, de diferentes tipos de causas; e, portanto, não somente podem com vantagem, mas têm que ser estudados à parte.” (Idem: 88-9)

-, Mill justifica a existência de ramos separados, apesar de não independentes, de investigação sociológica. Nesses casos seria “conveniente a criação de uma ciência preliminar dessas causas, adiando a consideração de causas que agem através delas ou em concorrência com elas, para uma etapa posterior de investigação” (Idem: 93). Ele sugere que vários ramos prestar-se-iam a um estudo deste tipo, mas só cita dois: a ecologia política e a economia política.

A ecologia política seria o ramo dedutivo da ciência social relacionado às causas que determinam o tipo de caráter pertencente a um povo e a uma época. Essa classe de fenômenos exerceria, segundo Mill, imediata ou remotamente um controle supremo sobre todas as outras classes de fenômenos (Idem: 93-4). Por isso, a ciência da etologia política assume uma importância metodológica que nos interessa de perto. Mill aponta como pré-requisito para a definição de outros ramos semi-autônomos da ciência social, a independência da classe de fenômenos por eles estudados, pelo menos em primeira instância, vis-à-vis o caráter nacional:

“Só as porções do fenômeno social onde as diversidades de caráter entre diferentes nações ou épocas entrem somente em grau secundário como causas influentes, podem ser assunto, mesmo que provisório, de diferentes ramos da ciência. Aqueles fenômenos, pelo contrário, com os quais as influências do estado etológico do povo estão misturadas a cada passo (de forma que a conexão de efeitos e causas não pode ser mesmo grosseiramente demarcada sem referência a essas influências) não podem com nenhuma vantagem, nem sem grande desvantagem, ser tratados independentemente da etologia política, nem, portanto, independentemente de todas as circunstâncias pelas quais as qualidades da população são influenciadas.” (Idem: 95)

Assim, caso uma classe de fenômenos esteja intrinsecamente ligada, em todas as etapas de sua investigação, à etologia política, ela estará tão envolvida no consensus social que inviabilizaria o seu estudo à parte.

Este critério é utilizado, por Mill, para, por um lado, descartar a possibilidade de uma ciência política (science of government) separada da ciência social, e, por outro, afirmar a legitimidade do estudo da economia política como um ramo dedutivo·semi-autônomo.12 12 Para uma análise dessa questão ver Collini (1983: 142).

Ele acreditava ser incorreto tomar, como faziam Bentham e James Mill, no caso dos assuntos políticos, uma motivação humana (o auto-interesse) e chegar, a partir dela a resultados abstratos, a serem corrigidos posteriormente através da incorporação de causas modificadoras. Essa correção seria impossível por ser preciso considerar a cada passo o caráter, os hábitos e outras características do estado de sociedade em questão. Ou em outras palavras, a ação na esfera dos assuntos políticos, não decorreria principalmente de uma causa ou pequeno conjunto de causas. Sem levar em conta fatores etológicos, não seria possível chegar a resultados razoáveis a respeito desta esfera. Assim Mill conclui:

“Todas as questões referentes às tendências de formas de governo têm que fazer parte da ciência geral da sociedade, e não de qualquer ramo separado dela[...].” (Idem: 95)

O caso da economia política seria, segundo Mill, diferente. A classe de fenômenos materiais e industriais, a ser estudada pela economia política, estaria na dependência direta e imediata de uma causa específica, não sendo necessário considerar a todo momento características etológicas. Seria, portanto, vantajoso estudá-la separadamente.13 13 A respeito da posição de Mill em relação à economia política Ryan afirma: “existem alguns tipos de fatos sociais que são relativamente distintos do tecido do fato social, sendo assim influenciados em medida menor pelo consensus dos fenômenos sociais - em outras palavras, a economia não é impossível” (Ryan, 1990: 152-3). Mill afirma:

“[... j o estudo das condições da riqueza nacional como um assunto separado não é filosófico, pois todos os diferentes aspectos dos fenômenos sociais, agindo e reagindo uns sobre os outros, não podem ser corretamente entendidos à parte; o que de forma nenhuma prova que os fenômenos materiais e industriais da sociedade não sejam, mesmo quando isolados, suscetíveis de generalizações úteis, mas somente que estas generalizações têm que ser necessariamente relativas a uma dada forma de civilização e a um dado estágio de avanço social.” (Mill, 1969MILL, J.S. (1969) “August Comte and Positivism”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. X. Toronto: University of Toronto Press.: 305)

A ECONOMIA POLÍTICA COMO RAMO DEDUTIVO DA CIÊNCIA SOCIAL

O que significa afirmar que as conclusões da economia política “têm que ser necessariamente relativas a uma dada forma de civilização e a um dado estágio de avanço social” ou ainda, que o estado da civilização e do progresso social têm “ascendência suprema” sobre todos os fenômenos parciais e subordinados?

Para Mill, a ciência da economia política não teria condições de derivar todas as suas conclusões apenas da motivação busca de riqueza (Collini, 1983COLLINI, S. et al. (1983) “The tendency of things: John Stuart Mill and the philosophic method” and “Higher Maxims: happiness versus wealth in Malthus and Ricardo”. In: That Noble Science of Politics: A Study in 19th Century Intellectual History. Cambridge: Cambridge University Press.: 136-7). Faz-se necessário supor alguma forma de organização social, de regras de distribuição do produto, de sistema político e legal. Enfim, para que a economia política chegue às suas proposições, ela demanda informações a respeito do estado de sociedade em questão. Podemos citar como os principais dados necessários para se chegar aos resultados da economia ricardiana a existência de três classes envolvidas na distribuição do produto (trabalhadores, capitalistas e donos de terra), a dinâmica populacional malthusiana e lei dos rendimentos decrescentes na agricultura (que seria universal). Estas informações seriam imprescindíveis, pois é a partir delas que os resultados da ciência (através da utilização da abstração do homem econômico) seriam derivados. Caso outras condições prevalecessem, as consequências poderiam ser radicalmente diferentes.

Faz-se necessário então delimitar o campo de validade dos resultados que foram derivados para um determinado estado de sociedade.

Mill critica diversas vezes os economistas políticos por nem sempre terem consciência do caráter relativo de suas hipóteses. Para Mill, quando “não combatida constantemente, é uma tendência quase irresistível da mente humana tornar-se escrava de suas próprias hipóteses, e ao tornar-se habituada a raciocinar, sentir, e conceber, sob certas condições arbitrárias[...] tomá-las por leis da natureza[...]” (Mill, 1967bMILL, J.S. (1967b) “Miss Martineau’s Summary of Political Economy”. ln: Collected Works of John Stuart Mill, vol. IV. Toronto: University of Toronto Press.: 226). E era exatamente isso que, segundo ele, ocorria com os economistas políticos ingleses. De tanto girarem em torno da situação existente na Inglaterra, eles acabavam encarando a divisão social entre capitalistas, donos de terra e trabalhadores “como se fosse uma ordenação divina (one of Gods ordinances), e não dos homens, e como se estivesse tão fora de controle humano como a divisão entre o dia e a noite” (Idem: 227).

Mas o fato de Mill associar os resultados obtidos pelos economistas políticos ingleses a seu estado de sociedade não significa que ele acreditasse que a ciência da economia política só teria validade sob esta forma específica de organização social. Pelo contrário, ele é bastante enfático ao afirmar a possibilidade de aplicar universalmente este método:

“Apesar de muitas das suas conclusões serem somente localmente verdadeiras, o seu método de investigação é aplicável universalmente; e da mesma forma que quem quer que tenha resolvido um certo número de equações algébricas pode, sem dificuldade, resolver outras do mesmo tipo, quem conhece a economia política da Inglaterra ou mesmo de Yorkshire, conhece aquela de todas as nações efetivas ou possíveis, desde que ele tenha bom senso o suficiente para não esperar que as mesmas conclusões decorram de premissas diferentes.” (Idem: 226, grifos nossos).14 14 Em outra passagem, Mill repete a afirmação sobre a aplicação da economia política a estados de sociedade diferentes: “apesar de ter sido um erro bastante comum dos economistas políticos derivar conclusões a partir dos elementos de um estado de sociedade e aplicá-las a outros nos quais vários elementos são diferentes, não é difícil, mesmo neste caso, seguindo os passos na ordem inversa, e introduzindo novas premissas nos lugares corretos, fazer com que o mesmo curso geral de argumentação que serviu para o primeiro caso sirva para os outros também” (Mill, 1987: 92, grifos nossos). Argumentaremos que Mill exagerou ao afirmar a validade universal do método da economia política.

A economia política poderia tomar como ponto de partida outro estado de sociedade e, a partir de suas circunstâncias gerais, utilizar a abstração do homem econômico para chegar a verdades abstratas a ele referentes.

Mas de qualquer forma, para chegar a verdades concretas referentes aos fenômenos econômicos seria necessário incorporar as outras motivações do ser humano. Essas informações, fornecidas pela etologia, ajudariam na avaliação do grau de adequação das hipóteses a respeito de desejos e motivações das quais parte a economia política:15 15 Ashley afirma que, ao tratar dos departamentos das ciências sociais, Mill tinha a economia política em mente e que foi com vistas à sanar as suas imperfeições que ele criou a etologia política e a etologia (Ashley, 1965: xvii). Não concordamos inteiramente com a sua posição. Vimos que Mill não estava disposto a abrir mão da economia política por considerá-la útil ao progresso, e acreditamos que, por vezes, ele forçou o argumento no sentido de legitimá-la. Mas discordamos da pouca importância atribuída por Ashley à ecologia. Essa ciência, no nosso entender, era fundamental para Mill. Antes de escrever os PPE, Mill tentou escrever um livro sobre etologia. Apesar de não ter sido bem-sucedido nesta tentativa, Mill nunca deixou de considerá-la essencial. Ver Leary (1982), para uma análise dos motivos que levaram ao fracasso deste projeto, e Feuer (1976) para uma análise do projeto milliano de construir uma etologia.

“A etologia está numa posição controladora em relação à economia [...] não que a economia seja deduzida da etologia, pois isto sugeriria que a economia seria um ramo da etologia, e sim que a etologia informa-nos sobre quão plausíveis são as suposições a respeito das necessidades e desejos das quais a economia parte, e pode por isto, nos dar alguma ideia sobre onde as nossas expectativas provavelmente não serão preenchidas.” (Ryan, 1990RYAN, A. (1990) The Philosophy of John Stuart Mill. New Jersey: Humanities Press International.: 157)

Para Mill, a avaliação da forma pela qual suas conclusões são afetadas por considerações etológicas seria a parte mais imperfeita dos ramos da ciência social investigados separadamente. Mas ele afirma que isso não seria um defeito deles como ciência, mas viciaria suas aplicações práticas como ramos de uma ciência social global (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 94).

A UNIVERSALIDADE DO MÉTODO DA CIÊNCIA DA ECONOMIA POLÍTICA POSTA EM QUESTÃO

Mill sustentou, então, não só que a ciência da economia política deveria ser investigada pelo método dedutivo direto, como também que esse método seria universalmente aplicável. Os argumentos utilizados para afirmar a validade, em alguns estados de sociedade, de uma ciência semi-autônoma da economia política, são, na nossa avaliação, convincentes. No entanto, a afirmação de sua universalidade não nos parece razoável diante da concepção de homem, de sociedade e de progresso que ele adotou na maturidade.16 16 Para uma análise sobre a visão de Mill sobre perfectibilidade humana e dos elementos envolvidos no progresso social ver Mattos (1996). E com esta discussão começamos a responder a questão levantada por Edgeworth sobre a consistência da postura metodológica de Mill.

Na base do status privilegiado dado por Mill à economia política está a visão de que o homem é predominantemente movido na esfera econômica pela busca de riqueza.17 17 Apesar de Mill afirmar que esta é uma definição arbitrária de homem, no entanto, é evidente que a escolha está pautada na avaliação das causas que são mais plausíveis e significativas na explicação dos fenômenos na esfera econômica. Só faz sentido escolher uma hipótese que tenha algum poder explicativo na esfera de fenômenos a ser estudada pela ciência (Collini, 1983: 136). “[Existiriam] alguns departamentos dos assuntos humanos em que a aquisição de riqueza é o objetivo principal e reconhecido. É somente destes que a economia política toma conhecimento. O modo em que ela necessariamente procede é aquele de tratar o objetivo principal e reconhecido como se fosse o único, que de todas as hipóteses igualmente simples é a mais próxima à verdade [...] Dessa forma, uma melhor aproximação à ordem dos assuntos humanos neste departamento é obtida, do que seria de outra forma praticável” (Mill, 1987: 91, grifos nossos). Entretanto, Mill passou a questionar a universalidade desta motivação na esfera dos fenômenos econômicos.

Ele passou a conceber situações nas quais o que forneceria a dinâmica, mesmo na esfera da produção e distribuição de riqueza, seria a força, a tradição, a religião, a legislação, algum sentimento de justiça, sentimentos altruístas e comunitários etc.

Nessas circunstâncias não se poderia considerar a busca de riqueza como sendo a motivação dominante para o esforço envolvido nessa esfera dos fenômenos sociais. Investigaremos, a seguir, em que medida a economia política poderia continuar a ser tratada como ciência autônoma em situações nas quais o homem não se comporta, nem longinquamente, como um homem econômico.

O HOMEM “NÃO-ECONÔMICO”

Mill admite a existência de estados de sociedade onde a vontade de enriquecer tem pouca força. Existiriam situações nas quais”...a concorrência não entra para nada, sendo as respectivas transações determinadas ou pela força bruta ou pelo costume consolidado” (Mill, 1965MILL, J.S. (1965) Principles of Political Economy with some their Applications to Social Philosophy. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. II e III. Toronto: University of Toronto Press.: 244)18 18 Mill se refere nos PPE a sistemas escravocratas e autoritários, e chega mesmo a justificar a sua existência para casos nos quais a população é tão primitiva que só trabalharia diante de coerção por parte da natureza (sobrevivência) ou de outros homens. Ver Mill (1965: 247).

Essas situações não seriam restritas a estados de sociedade primitivos. Nos PPE, Mill discute também situações de países mais avançados na escala de evolução social, mas onde, apesar de serem sociedades já em alguma medida mercantilizadas, os hábitos e tradições imperariam na determinação de variáveis que na Inglaterra eram determinadas pela competição. Esses não seriam casos de imperfeições de mercado, e sim de formas diferentes de sociabilidade: “[são] casos em que não há nada que limite a concorrência, nenhum obstáculo a ela, nem na natureza do caso nem na forma de obstáculos artificiais, e no entanto, o resultado não é determinado pela concorrência, senão pelo costume ou uso, sendo que a concorrência ou simplesmente não vem ao caso, ou então produz seu efeito de uma forma bem diferente daquela que normalmente se supõe ser-lhe natural” (Mill, 1965MILL, J.S. (1965) Principles of Political Economy with some their Applications to Social Philosophy. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. II e III. Toronto: University of Toronto Press.: 239).

Nessas sociedades (e mesmo na Inglaterra em regiões distantes dos centros), muitas vezes nem os preços eram determinados pela competição:

“[Neles] a concorrência age - se é que age - como uma influência perturbadora ocasional; o regulador habitual é o costume, modificado de tempos em tempos por determinadas noções de equidade e justiça existentes nas cabeças de compradores e vendedores.” (Idem: 243)

Apesar de Mill ser um ricardiano no que tange à teoria sobre a determinação da renda da terra, ele admite que essa teoria não tem validade universal. Ele trata de vários casos nos quais a renda é determinada pela tradição (sistema de metayer, ou casos onde dois terços da produção ficam com o produtor e o restante com o dono da terra). Em relação a estas situações Mill afirma:

“O costume do país é a norma universal; ninguém pensa em aumentar ou diminuir os aluguéis, ou de arrendar terras em outras condições que não sejam as costumeiras. A concorrência, como regulador do aluguel, não existe.” (Idem: 242)

As questões que essas situações suscitam são: até que ponto podemos dizer que em situações como estas o fenômeno estudado está em dependência direta e imediata da motivação busca de riqueza? Será possível afirmar a independência desta classe de fenômenos, mesmo em primeira instância, vis-à-vis a etologia política?

Um segundo caso a ser pensado - aquele que motivou Edgeworth a levantar a questão a ser respondida por este artigo - relaciona-se ao futuro que Mill antevia para a humanidade.19 19 Edgeworth problematiza o método da economia política pelo fato de que na maturidade “Mill passou a olhar adiante para um tempo em que ‘não seria impossível, nem tão pouco visto como tal, que os seres humanos se esforcem vigorosamente na busca de benefícios que não sejam exclusivamente auto­referentes’” (Edgeworth, 1896: 757).

Mill depositava grandes esperanças em relação à possibilidade de o homem modificar seus desejos, tornando-se “ melhor”. Apesar de Mill mostrar-se bastante cuidadoso, e por vezes até conservador, quando se tratava de mudanças concretas em sua época, no que se referia às possibilidades longínquas da humanidade ele foi bastante ambicioso e utópico. Essa visão “perfectibilista” da natureza humana levou-o a criticar os economistas políticos por não levarem isso em conta e encararem “a sua experiência presente da humanidade como tendo validade universal, tomando fases temporárias ou locais do caráter humano pela natureza humana; não tendo nenhuma confiança na maravilhosa flexibilidade da mente humana; julgando impossível, apesar das fortes evidências existentes, que a Terra possa produzir seres humanos de um tipo diferente daquele com que estão familiarizados em sua época e mesmo em seu país” (Mill, 1969MILL, J.S. (1969) “August Comte and Positivism”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. X. Toronto: University of Toronto Press.: 306, grifos nossos).

Para ele, a predominância do auto-interesse observada em sua época derivaria não de algo constitutivo da natureza humana, e sim do tipo de arranjo social então existente20 20 “[...] o egoísmo profundamente enraizado que constitui o caráter geral do existente estado de sociedade, só é tão profundamente enraizado porque todo o curso das instituições sociais tende a promovê-lo” (Mill, 1989: 176). :

“A educação, o hábito, e o cultivo dos sentimentos, farão com que um homem comum teça ou cave por seu país tão prontamente quanto luta por ele [...] o obstáculo não está na constituição essencial da natureza humana. Interesse no bem comum é no presente uma motivação tão fraca no geral, não porque nunca possa ser de outra maneira, mas porque a mente não está acostumada a estender-se nisto como está em estender-se da manhã à noite em coisas que tendem somente para a vantagem pessoal[...].” (Mill, 1989MILL, J.S. (1989) Autobiography. London: Penguin Books.: 176)

E de fato Mill acreditava que haveria uma tendência histórica no sentido de reverter essa situação de predominância do auto-interesse. No futuro por ele vislumbrado, o espaço ocupado por motivações auto-centradas seria reduzido e a preocupação com o bem estar da comunidade passaria a ocupar um lugar proeminente. Não só a esfera material assumiria uma importância cada vez menor na vida de cada indivíduo como as motivações nesse campo das ações humanas seriam também diferentes em um estado em que o homem tivesse atingido um nível de aperfeiçoamento moral e intelectual superior.21 21 Nesse sentido Duncan afirma: “Mill enfatizou que o altruísmo e sentimentos fraternais e sociais eram fortalecidos ao longo do curso normal da civilização, e poderiam ser ainda mais incentivados e promovidos através de meios políticos e educacionais. Assim, as bases para uma teoria otimista sobre a ordem social estavam disponíveis [were at hand]” (Duncan, 1973: 218). Para maiores detalhes sobre a visão que Mill tinha sobre o futuro do homem e da sociedade ver Mattos (1996).

Ao comentar a filosofia social de Mill, Robson afirma que “a vitória última do altruísmo [...] tornará a maior felicidade do maior número o objetivo normal, ainda que adquirido, do homem civilizado” (Robson 1968ROBSON, J.M (1968) The Improvement of Mankind: The Social and Political thought in John Stuart Mill. Toronto: University of Toronto Press and Routledge & Kegan Paul.: 136).

Nesse contexto do futuro - em que a busca da riqueza perde muito de sua força - faz sentido questionarmos novamente se as condições estabelecidas por Mill para justificar o estudo autônomo da economia política são respeitadas.

OS LIMITES À UTILIZAÇÃO DA CIÊNCIA DA ECONOMIA POLÍTICA

A análise de tipos de organização social diferentes daquele existente na Inglaterra do século XIX levanta, então, questões metodológicas que demandam respostas. Como fica a situação da economia política em circunstâncias nas quais a busca da riqueza individual, apesar de ser uma motivação do ser humano, não é o objetivo principal e reconhecido da ação na esfera do fenômeno econômico? O que fazer quando a abstração do homem econômico não mais fornece resultados próximos à ordem (concreta) dos fenômenos nesses departamentos? Ainda assim haveria sentido utilizá-la para fundar a ciência da economia política?

Mill parecia acreditar que a situação social e institucional onde os homens perseguem com menos perturbação o seu interesse econômico, é aquela na qual as variáveis da esfera dos fenômenos materiais são determinadas num mercado competitivo. Para ele, “é somente através do princípio da concorrência que a economia política tem qualquer chance de ter foros de ciência [...] Supondo-se que a concorrência seja o único fator que regule estes elementos, pode-se estabelecer princípios de grande generalidade e precisão científica” (Mill, 1965MILL, J.S. (1965) Principles of Political Economy with some their Applications to Social Philosophy. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. II e III. Toronto: University of Toronto Press.: 239).

Ao comentar esta afirmação de Mill, Whitaker afirma: “Estou sugerindo que por ‘ciência’ Mill realmente quis dizer ‘ciência independente”’ (Whitaker, 1975WHITAKER, J. (1975) “J.S. Mill’s methodology”, Journal of Political Economy, vol. 83, n. 5, pp. 1030-47.: 1043). De fato, seria possível estudar cientificamente situações econômicas onde a tradição, a legislação, os costumes, e outros traços de caráter entrem com muita força, mas não pelo método dedutivo direto.

É evidente que situações que desviem um pouco da competição perfeita - situações nas quais existam entraves institucionais, ou onde outras motivações entrem, ao lado da busca da riqueza, na determinação dessas variáveis - podem ser tratadas utilizando a experiência e sagacidade do cientista para incluir as devidas correções. Seriam situações passíveis de tratamento dedutivo pela ciência (semi­ autônoma) da economia política. Mas no nosso entender, se formos fiéis às pregações metodológicas de Mill, existiriam limites a esse procedimento. Em algumas circunstâncias o procedimento dedutivo deixaria de ser científico.

No caso das sociedades tradicionais, por exemplo, o hábito, o apego às normas, o temor de ser desprezado por seus semelhantes, o medo (no caso em que a força bruta domina) seriam motivações mais explicativas, na esfera dos fenômenos materiais, do que a busca de riqueza.

Assim, nenhum dos requisitos que Mill impõe para legitimar o estudo dedutivo da economia política é respeitado. Isto é, a busca da riqueza não é a causa principal determinante da ação na esfera dos fenômenos em questão, e as outras motivações não poderiam fornecer uma base para uma ciência econômica dedutiva - com outro fundamento comportamental - uma vez que elas seriam inseparáveis, mesmo em primeira instância, da etologia política.

O mesmo tipo de argumento pode ser desenvolvido em relação ao futuro que Mill vislumbrava para o homem. Diante de um “novo” homem, motivado na esfera econômica por outros motivos além do desejo de enriquecer, a afirmação de Mill sobre a universalidade da utilização do método dedutivo direto na ciência da economia política deve ser repensada.22 22 Ver também Winch (1972: 340).

Por não ser possível isolar uma causa (ou uma classe de causas) que seja determinante para a explicação deste departamento da vida social, e que seja relativamente independente da etologia política, a ciência da economia política perde a sua autonomia. Ela submerge na ciência geral da sociedade e os fenômenos anteriormente a ela pertinentes passam a ter que ser investigados pelo método dedutivo inverso.

Acreditamos que Mill exagerou ao defender a universalidade do método da economia política. Para ser coerente ele teria que ter delimitado melhor o campo em que seria legítimo desenvolver uma ciência autônoma da economia política. Talvez não fosse necessário limitar sua utilização a situações sociais e institucionais idênticas, ou mesmo parecidas com a da Inglaterra do século XIX, mas seria essencial que a manifestação concreta da natureza humana fosse similar pelo menos no que tange à intensidade do desejo de riqueza.23 23 Em seu livro The Scope and Method of Political Economy, Neville Keynes comenta que Bagehot encarava a doutrina da economia política como sendo aplicável somente a situações nas quais o comércio fosse altamente desenvolvido e que tivessem tido um desenvolvimento similar ao da Inglaterra. As premissas desta ciência somente relacionar-se-iam aos hábitos econômicos e às instituições de uma época e país. Senior, por outro lado, é caracterizado como defensor da posição de que as premissas da economia política seriam “naturais” e, salvo pequenas qualificações, independentes do país e época (Keynes, 1955: 15). A posição que defendo aqui é que, se levarmos às últimas consequências as proposições metodológicas de Mill, sua posição aproxima-se mais da de Bagehot do que da de Senior. Sobre a proximidade entre Mill e Bagehot ver Winch (1972: 340).

OS PRINCÍPIOS DE ECONOMIA POLÍTICA

Até agora discutimos a coerência da postura de Mill enquanto “metodólogo”. Argumentamos que ele não poderia manter de forma consistente uma visão mais histórica da natureza do homem e da sociedade e ao mesmo tempo advogar a universalidade da aplicação do método dedutivo à economia política. Mas será que essa inconsistência metodológica se refletiu na sua prática enquanto economista político? Ou seja, será que Mill tentou de fato tratar pelo método dedutivo situações que não cumpriam os requisitos que ele explicitou como necessários para legitimar esse tipo de tratamento metodológico?

O fato de Mill não ter imposto explicitamente limites à possibilidade de estudo autônomo da economia política não significou, no nosso entender, uma utilização inadequada do método dedutivo nos PPE. Argumentaremos que em situações nas quais a busca de riqueza não era a principal determinante do resultado na esfera econômica a análise de Mill fundamentou-se basicamente em material empírico. Ele fez farta utilização de relatos de viagem, de dados obtidos em relatórios para o Parlamento, ou mesmo de dados coletados por outros economistas políticos e, a partir dessas informações “empíricas”, chegou a generalizações sobre a fixação das variáveis em questão e sobre as suas prováveis consequências.24 24 Note bem que não tomamos como base para o nosso argumento o fato de, como aponta Schumpeter (1954: 542), comentando a estrutura do PPE, a porção factual ocupar mais de 2/3 do livro enquanto menos de 1/3 consiste de aparato analítico. Na verdade, o objetivo de Mill nunca foi escrever um compêndio especificamente sobre a ciência da economia política, e sim um tratado que mesclasse as proposições da ciência com as suas aplicações, e explicitasse as contribuições que essas análises poderiam dar às principais questões da filosofia social de sua época. E ainda que o livro só tratasse dos princípios abstratos e de suas aplicações, haveria necessidade de lançar mão de material empírico para a verificação de sua aplicabilidade, e da introdução de elementos de outras ciências, como, por exemplo, da etologia política, para transformar verdades abstratas em verdades concretas. Assim, a fartura de material “empírico” seria totalmente compatível com a utilização universal do método dedutivo na análise dos fenômenos econômicos. Argumentamos sim que este material empírico assumiu, por vezes, um papel diferente daquele de verificar ou ajudar a corrigir os resultados abstratos.

A discussão feita nos PPE sobre as diferentes formas de ocupação da terra e sobre o socialismo ilustram bem, no nosso entender, o alcance e os limites da aplicação do método dedutivo aos assuntos econômicos.

Em várias passagens dos PPE, Mill discute as diferentes formas sob as quais o cultivo da terra ocorre. Com vistas a mostrar a postura metodológica de Mill, escolhemos analisar o caso da Inglaterra, o caso da determinação da renda da terra através do costume, e o caso da Irlanda.

Ao lidar com situações semelhantes à da Inglaterra, em que o produto divide-se entre três classes e onde a competição é a principal determinante de suas respectivas remunerações, Mill utiliza o aparato ricardiano que faz (implicitamente) uso da abstração do homem econômico.

Na abordagem de casos nos quais a renda da terra é determinada com base no hábito ou costume, Mill adota um procedimento metodológico misto. Uma vez que a estrutura institucional é distinta daquela da Inglaterra, Mill utiliza premissas diferentes das usualmente adotadas pelos economistas políticos ingleses. Ele observa empiricamente quais são as classes envolvidas na divisão do produto e que regras o costume impõe para esta distribuição. Com base nestas informações, Mill prossegue no sentido de deduzir os resultados na suposição de que a motivação busca de riqueza impera. Deduz, por exemplo, que o nível de investimento por parte de quem cultiva a terra no sistema de metayer não será muito grande, pois a metade do que for obtido por esta via é paga em renda da terra, e assim por diante. Na segunda etapa de seu raciocínio Mill está implicitamente utilizando o método dedutivo.

A situação da Irlanda, onde o cultivo era feito em sistema de cottier, é tratada por Mill de maneira diferente. Praticamente toda a sua análise fundamenta-se em material histórico. Mill constata que, sob este sistema, a renda oferecida pelo uso da terra nitidamente transcendia o que era passível de ser obtido pelo seu cultivo. Esse resultado é explicado utilizando traços de caráter dos trabalhadores em questão (que teriam um baixo nível educacional e seriam moralmente inconsequentes). Analisando a situação, Mill atribui a ineficiência no cultivo e o problema crônico de miséria na Irlanda (ambos observados empiricamente) à ausência de qualquer tipo de motivação ao trabalho. Segundo ele, no sistema de cottier não existiria nem a motivação do homem livre (a vontade de melhorar a sua condição) nem a motivação do escravo (o medo). Observamos, então, que na análise deste sistema Mill praticamente só utiliza o método dedutivo inverso.25 25 Para uma visão alternativa ver Persky (1995). Entendemos que isso decorre do fato de a motivação que fundamenta a ciência da economia política estar ausente. O tratamento que Mill dá à questão do socialismo e comunismo também é ilustrativo.26 26 Mill aborda esse tema com profundidade nos PPE e nos “Chapters on Socialism”. Mill achava problemática a implantação, em sua época, de um critério de distribuição da produção que desvinculasse totalmente remuneração e produtividade. Essa postura teria por base a sua crença de que os seus contemporâneos agiriam de forma auto-interessada, trabalhando o mínimo possível e procurando obter o máximo em termos de remuneração. Em suma, Mill faz uso da abstração do homem econômico para apontar os prováveis resultados de uma forma institucional totalmente diferente daquela existente na Inglaterra e conclui: “forçar uma população despreparada a integrar-se a sociedades comunistas, mesmo que uma revolução política fornecesse o poder para se fazer tal tentativa, iria acabar em desapontamento” (Mill, 1967aMILL, J.S. (1967a) “Chapters on Socialism”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. V. Toronto: University of Toronto Press.: 746).

No entanto, ao discutir a possibilidade de implantação futura de arranjos socialistas ou comunistas - supondo uma forma diferente de manifestação da natureza humana - Mill diz-se incapaz de chegar a uma conclusão sobre o seu funcionamento. Para ele, seria uma questão em aberto se, diante desse “novo” homem, a energia do trabalho seria de fato diminuída pelo estabelecimento do comunismo (Mill, 1965MILL, J.S. (1965) Principles of Political Economy with some their Applications to Social Philosophy. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. II e III. Toronto: University of Toronto Press.: 205). Nesse novo estado de sociedade, somente a análise conjunta de todas as motivações envolvidas na esfera de produção (que poderia incluir o senso de dever, medo de contrariar a opinião pública etc.) possibilitaria a estimação do efeito que decorreria de sua implementação. O método a ser utilizado neste caso seria o das ciências sociais.

Enfim, dependendo das características do caso em questão, Mill apela para uma abordagem diferente. A escolha do método faz-se de acordo com a natureza do objeto a ser tratado, revelando assim que, na sua prática enquanto economista político, Mill revelou uma coerência metodológica que ele não conseguiu manter no seu discurso sobre a ciência.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • WINCH, H. (1972) “Marginalism and the Boundaries of Economic Science”, HOPE, 1972, vol. 4, n. 2.
  • 1
    Podemos citar como exemplos Winch (1972WINCH, H. (1972) “Marginalism and the Boundaries of Economic Science”, HOPE, 1972, vol. 4, n. 2.: 340) que menciona Edgeworth a esse respeito e Collini (1983COLLINI, S. et al. (1983) “The tendency of things: John Stuart Mill and the philosophic method” and “Higher Maxims: happiness versus wealth in Malthus and Ricardo”. In: That Noble Science of Politics: A Study in 19th Century Intellectual History. Cambridge: Cambridge University Press.: 137) que também levanta o mesmo tipo de questão.
  • 2
    Nesse sentido, é interessante a avaliação de Blaug (1993BLAUG, M. (1993) Metodologia da economia ou como os economistas explicam. São Paulo: EDUSP.: 104) que classifica Mill sob a denominação de verificacioniosta distanciando-o da postura falseacionista.
  • 3
    É nesse sentido que devemos entender a afirmação de Mill de que “o mero economista político, aquele que não estudou nenhum a ciência além da economia política, se tentar aplicar sua ciência à prática, fracassará” (Mill, 1967cMILL, J.S. (1967c) “On the definition of Political Economy and the Method of philosophical investigation in that science (1836)”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. IV. Toronto: University of Toronto Press.: 331).
  • 4
    Atribuir o método dedutivo (ou a priori) à economia política estava totalmente em consonância com a visão de ciências sociais que Mill apresentava quando escreveu o ensaio sobre o método. Com base nesse ensaio fica-se com a impressão de que as demais ciências sociais seriam igualmente dedutivas. Mill de fato faz referência a uma ciência, chamada economia social, que lidaria com “todas as partes da natureza humana no que elas influenciam a conduta ou a condição do homem em sociedade”(Mill, 1967cMILL, J.S. (1967c) “On the definition of Political Economy and the Method of philosophical investigation in that science (1836)”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. IV. Toronto: University of Toronto Press.: 320), mas ele não lhe atribui qualquer método de investigação específico. Pelo contrário, esta ciência seria necessariamente fragmentada em diversas ciências dedutivas (para interpretações semelhantes sobre a economia social ver Burns, 1976BURNS, J.H. (1976) “The light of reason: philosophical history in the two Mills”. In: James and John Stuart Mill: Papers on the Centenary Conference. Toronto: University of Toronto Press.: 71); e Mueller, 1956MUELLER, I.W. (1956) John Stuart Mill and French Thought. University of Illinois Press: Urbana.: 105). Mill chegou a afirmar que o método a priori seria o único legítimo nas ciências morais (Mill, 1967MILL, J.S. (1967c) “On the definition of Political Economy and the Method of philosophical investigation in that science (1836)”. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. IV. Toronto: University of Toronto Press.: 327). No entanto, como veremos a seguir, na Lógica a concepção de Mill sobre a sociedade, e sobre a forma adequada de estudá-la, modificou-se e, por conta disso, a relação entre a economia política e as demais ciências sociais também se transformou apesar de não ter havido mudança no que diz respeito diretamente à definição e ao método advogado para a ciência da economia política.
  • 5
    A visão madura de Mill sobre a sociedade e sobre o método das ciências sociais foi muito influenciada pela obra de autores que não se filiavam à filosofia radical inglesa. Entre esses pensadores podemos destacar a influência do pensamento de August Comte, que lhe ofereceu uma visão orgânica dos fenômenos sociais e um método de investigação específico para investigá-los.
  • 6
    Popper faz questão de diferenciar a posição psicologista de Mill daquela dos defensores do individualismo metodológico (Popper, 1968POPPER, K. (1968) “The autonomy of Sociology”. In: Mill: A Collection of Critical Essays. London: Schneewind, J. B.). Lewisohn (1972LEWISOHN, D. (1972) “Mill and Comte on the Methods of Social Sciences”. In: Journal of the History of Ideas, vol. XXXIII, n. 2.: 324), por sua vez, classifica Mill entre os individualistas metodológicos. Mueller (1956MUELLER, I.W. (1956) John Stuart Mill and French Thought. University of Illinois Press: Urbana.: 106,110) faz uma comparação interessante entre o individualismo de Mill e a visão sistêmica de Comte.
  • 7
    Para uma análise do processo através do qual as instituições alteram a natureza do homem ver Mattos (1996MATTOS, L.V. (1996) Economia Política e Mudança Social - A Filosofia Econômica de John Stuart Mill. Tese de doutoramento apresentada à FENUSP.).
  • 8
    Ashley (1965ASHLEY, W.J. (1965) “Introduction”. In: J.S. Mill Principles of Political Economy. New York: August M. Kelley.: xvi) afirma que esta forma de apresentar as suas ideias metodológicas em certa medida camufla a contradição existente entre a posição de Mill no ensaio de 1836 e na Lógica, ao permitir que ele apresente os dois métodos corno “tipos” de dedutivos, denominando-os de dedutivo direto e dedutivo inverso. De fato Mill tenta frisar a equivalência dos dois métodos.
  • 9
    Ryan (1990RYAN, A. (1990) The Philosophy of John Stuart Mill. New Jersey: Humanities Press International.: 156), levanta a hipótese de Mill insistir tanto na dedução, mesmo onde sabia não ser possível, justamente para definir essa hierarquia que teria na base a psicologia, depois a etologia para por fim chegar às ciências do social. Afirmar a cientificidade de generalizações sobre variáveis sociais sem qualquer esforço para remetê-las às motivações humanas seria admitir o contrário.
  • 10
    Para a discussão desse diálogo entre Mill e Comte sobre a legitimidade do estudo da economia política, ver Ashley (1965ASHLEY, W.J. (1965) “Introduction”. In: J.S. Mill Principles of Political Economy. New York: August M. Kelley.). Para uma análise comparativa do pensamento dos dois autores ver Lewisohn (1972LEWISOHN, D. (1972) “Mill and Comte on the Methods of Social Sciences”. In: Journal of the History of Ideas, vol. XXXIII, n. 2.).
  • 11
    Na verdade, estamos atrelando a validade de utilizar a abstração do homem econômico à possibilidade de estudar de forma semi-autônoma a ciência, pois essa seria a justificativa para desenvolvê-la de forma dedutiva e separada da ciência social geral. A observação de Collini reforça o argumento: “[...] o modelo do ‘homem econômico’ é certamente fundamental para a concepção de Mill da autonomia da economia política” (Collini, 1983COLLINI, S. et al. (1983) “The tendency of things: John Stuart Mill and the philosophic method” and “Higher Maxims: happiness versus wealth in Malthus and Ricardo”. In: That Noble Science of Politics: A Study in 19th Century Intellectual History. Cambridge: Cambridge University Press.: 138). Se a pertinência da utilização dessa abstração é colocada em questão, a própria possibilidade de existência autônoma da economia política é questionada.
  • 12
    Para uma análise dessa questão ver Collini (1983COLLINI, S. et al. (1983) “The tendency of things: John Stuart Mill and the philosophic method” and “Higher Maxims: happiness versus wealth in Malthus and Ricardo”. In: That Noble Science of Politics: A Study in 19th Century Intellectual History. Cambridge: Cambridge University Press.: 142).
  • 13
    A respeito da posição de Mill em relação à economia política Ryan afirma: “existem alguns tipos de fatos sociais que são relativamente distintos do tecido do fato social, sendo assim influenciados em medida menor pelo consensus dos fenômenos sociais - em outras palavras, a economia não é impossível” (Ryan, 1990RYAN, A. (1990) The Philosophy of John Stuart Mill. New Jersey: Humanities Press International.: 152-3).
  • 14
    Em outra passagem, Mill repete a afirmação sobre a aplicação da economia política a estados de sociedade diferentes: “apesar de ter sido um erro bastante comum dos economistas políticos derivar conclusões a partir dos elementos de um estado de sociedade e aplicá-las a outros nos quais vários elementos são diferentes, não é difícil, mesmo neste caso, seguindo os passos na ordem inversa, e introduzindo novas premissas nos lugares corretos, fazer com que o mesmo curso geral de argumentação que serviu para o primeiro caso sirva para os outros também” (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 92, grifos nossos). Argumentaremos que Mill exagerou ao afirmar a validade universal do método da economia política.
  • 15
    Ashley afirma que, ao tratar dos departamentos das ciências sociais, Mill tinha a economia política em mente e que foi com vistas à sanar as suas imperfeições que ele criou a etologia política e a etologia (Ashley, 1965ASHLEY, W.J. (1965) “Introduction”. In: J.S. Mill Principles of Political Economy. New York: August M. Kelley.: xvii). Não concordamos inteiramente com a sua posição. Vimos que Mill não estava disposto a abrir mão da economia política por considerá-la útil ao progresso, e acreditamos que, por vezes, ele forçou o argumento no sentido de legitimá-la. Mas discordamos da pouca importância atribuída por Ashley à ecologia. Essa ciência, no nosso entender, era fundamental para Mill. Antes de escrever os PPE, Mill tentou escrever um livro sobre etologia. Apesar de não ter sido bem-sucedido nesta tentativa, Mill nunca deixou de considerá-la essencial. Ver Leary (1982LEARY, D. (1982) “The fate and influence of J.S. Mill’s proposed science of ethology”. In: Journal of the History of Ideas, vol. XVIII, n. 3.), para uma análise dos motivos que levaram ao fracasso deste projeto, e Feuer (1976FEUER, L.S. (1976) “John Stuart Mill as a sociologist: the Unwritten Ethology”. In: James and John Stuart Mill: Papers of the Centenary Conference. Toronto: University of Toronto Press.) para uma análise do projeto milliano de construir uma etologia.
  • 16
    Para uma análise sobre a visão de Mill sobre perfectibilidade humana e dos elementos envolvidos no progresso social ver Mattos (1996MATTOS, L.V. (1996) Economia Política e Mudança Social - A Filosofia Econômica de John Stuart Mill. Tese de doutoramento apresentada à FENUSP.).
  • 17
    Apesar de Mill afirmar que esta é uma definição arbitrária de homem, no entanto, é evidente que a escolha está pautada na avaliação das causas que são mais plausíveis e significativas na explicação dos fenômenos na esfera econômica. Só faz sentido escolher uma hipótese que tenha algum poder explicativo na esfera de fenômenos a ser estudada pela ciência (Collini, 1983COLLINI, S. et al. (1983) “The tendency of things: John Stuart Mill and the philosophic method” and “Higher Maxims: happiness versus wealth in Malthus and Ricardo”. In: That Noble Science of Politics: A Study in 19th Century Intellectual History. Cambridge: Cambridge University Press.: 136). “[Existiriam] alguns departamentos dos assuntos humanos em que a aquisição de riqueza é o objetivo principal e reconhecido. É somente destes que a economia política toma conhecimento. O modo em que ela necessariamente procede é aquele de tratar o objetivo principal e reconhecido como se fosse o único, que de todas as hipóteses igualmente simples é a mais próxima à verdade [...] Dessa forma, uma melhor aproximação à ordem dos assuntos humanos neste departamento é obtida, do que seria de outra forma praticável” (Mill, 1987MILL, J.S. (1987) The Logic of moral science (uma reimpressão do livro VI A System of Logic). Londres: Ducksworth.: 91, grifos nossos).
  • 18
    Mill se refere nos PPE a sistemas escravocratas e autoritários, e chega mesmo a justificar a sua existência para casos nos quais a população é tão primitiva que só trabalharia diante de coerção por parte da natureza (sobrevivência) ou de outros homens. Ver Mill (1965MILL, J.S. (1965) Principles of Political Economy with some their Applications to Social Philosophy. In: Collected Works of John Stuart Mill, vol. II e III. Toronto: University of Toronto Press.: 247).
  • 19
    Edgeworth problematiza o método da economia política pelo fato de que na maturidade “Mill passou a olhar adiante para um tempo em que ‘não seria impossível, nem tão pouco visto como tal, que os seres humanos se esforcem vigorosamente na busca de benefícios que não sejam exclusivamente auto­referentes’” (Edgeworth, 1896EDGEWORTH, F. (1896) “John Stuart Mill”. In: Palgrave Dictionary of Political Economy. London: 757).
  • 20
    “[...] o egoísmo profundamente enraizado que constitui o caráter geral do existente estado de sociedade, só é tão profundamente enraizado porque todo o curso das instituições sociais tende a promovê-lo” (Mill, 1989MILL, J.S. (1989) Autobiography. London: Penguin Books.: 176).
  • 21
    Nesse sentido Duncan afirma: “Mill enfatizou que o altruísmo e sentimentos fraternais e sociais eram fortalecidos ao longo do curso normal da civilização, e poderiam ser ainda mais incentivados e promovidos através de meios políticos e educacionais. Assim, as bases para uma teoria otimista sobre a ordem social estavam disponíveis [were at hand]” (Duncan, 1973DUNCAN, G. (1973) Marx and Mill: two views on social conflictand social harmony. London: Cambridge University Press.: 218). Para maiores detalhes sobre a visão que Mill tinha sobre o futuro do homem e da sociedade ver Mattos (1996MATTOS, L.V. (1996) Economia Política e Mudança Social - A Filosofia Econômica de John Stuart Mill. Tese de doutoramento apresentada à FENUSP.).
  • 22
    Ver também Winch (1972WINCH, H. (1972) “Marginalism and the Boundaries of Economic Science”, HOPE, 1972, vol. 4, n. 2.: 340).
  • 23
    Em seu livro The Scope and Method of Political Economy, Neville Keynes comenta que Bagehot encarava a doutrina da economia política como sendo aplicável somente a situações nas quais o comércio fosse altamente desenvolvido e que tivessem tido um desenvolvimento similar ao da Inglaterra. As premissas desta ciência somente relacionar-se-iam aos hábitos econômicos e às instituições de uma época e país. Senior, por outro lado, é caracterizado como defensor da posição de que as premissas da economia política seriam “naturais” e, salvo pequenas qualificações, independentes do país e época (Keynes, 1955KEYNES, J.N. (1955) The Scope and Method of Political Economy. New York: Kelley & Millman.: 15). A posição que defendo aqui é que, se levarmos às últimas consequências as proposições metodológicas de Mill, sua posição aproxima-se mais da de Bagehot do que da de Senior. Sobre a proximidade entre Mill e Bagehot ver Winch (1972WINCH, H. (1972) “Marginalism and the Boundaries of Economic Science”, HOPE, 1972, vol. 4, n. 2.: 340).
  • 24
    Note bem que não tomamos como base para o nosso argumento o fato de, como aponta Schumpeter (1954SCHUMPETER, J.A. (1954) History of Economic Analysis. New York: Oxford University Press.: 542), comentando a estrutura do PPE, a porção factual ocupar mais de 2/3 do livro enquanto menos de 1/3 consiste de aparato analítico. Na verdade, o objetivo de Mill nunca foi escrever um compêndio especificamente sobre a ciência da economia política, e sim um tratado que mesclasse as proposições da ciência com as suas aplicações, e explicitasse as contribuições que essas análises poderiam dar às principais questões da filosofia social de sua época. E ainda que o livro só tratasse dos princípios abstratos e de suas aplicações, haveria necessidade de lançar mão de material empírico para a verificação de sua aplicabilidade, e da introdução de elementos de outras ciências, como, por exemplo, da etologia política, para transformar verdades abstratas em verdades concretas. Assim, a fartura de material “empírico” seria totalmente compatível com a utilização universal do método dedutivo na análise dos fenômenos econômicos. Argumentamos sim que este material empírico assumiu, por vezes, um papel diferente daquele de verificar ou ajudar a corrigir os resultados abstratos.
  • 25
    Para uma visão alternativa ver Persky (1995).
  • 26
    Mill aborda esse tema com profundidade nos PPE e nos “Chapters on Socialism”.
  • 28
    JEL Classification: B12; B31; B41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1999
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