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Discursos nus, discursos vazios

Nude discourses, empty discourses

ARTIGOS ORIGINAIS

Discursos nus, discursos vazios* * Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a apresentação de "tipos", ou "gêneros" de discurso em Platão e Aristóteles (aqui referimo-nos somente a Platão). Como leitura transversal dos diálogos platônicos, mostra-se fundamental acompanhar a utilização recorrente do mesmo léxico. Todavia, limitando, para uma melhor leitura do texto, a citação de palavras gregas, traduzidas ou mesmo transliteradas, perdemos em parte a possibilidade de acompanhar o uso lexical comum aos vários diálogos. (Note-se que o acento nas palavras gregas tansliteradas serve somente como auxílio à leitura.)

Nude discourses, empty discourses

Paulo Francisco Butti de Lima

Scuola Superiore di Studi Storici - Università di San Marino - 47031 - Repubblica di San Marino

RESUMO

Na dialética socrático-platônica, considerações relativas ao estilo e à forma dos discursos assumem papel paradigmático, não só na crítica à sofística e à retórica, mas também na caracterização do próprio discurso filosófico, e permitem situar o lugar da filosofia em relação a diversas práticas sociais.

Palavras-chave: Platão; retórica; estilo; ornamento; prepon; adoleschia; filosofia.

ABSTRACT

In the Socratic-Platonic dialectic, considerations about style and form of discourses have a paradigmatic rule, not only for the critic of sophistry and rhetoric, but also for the characterization of the philosophical discourse. So they allow to establish the place of philosophy in relation to social practices.

Keywords: Plato; rhetoric; style; ornament; prepon; adoleschia; philosophy.

O supérfluo e o excessivo; o afetamento, o adorno, os refinamentos; a banalidade, a bobagem; aparolagem; a baixeza, a vulgaridade; a minúcia, a meticulosidade. São tantos os modos para indicar, caracterizar ou classificar negativamente as formas de linguagem ou os tipos de discurso, sejam públicos, sejam privados - no centro da polis ou às suas margens. A retórica apresenta modelos para um estilo "adequado", a moral, normas para a "adequação" do comportamento. A atenção à linguagem pode ser vista seja em relação à boa ordem do discurso -o kosmos - seja como futilidade - o leros. O discurso "vazio" é um discurso não pertinente,1 1 A não-pertinência do discurso é freqüentemente indicada como "falar exo tou prágmatos", que é uma expressão técnica da prática jurídica ateniense e serve também para caracterizar os tratados de retórica criticados por Aristóteles (cf., por exemplo, Retórica, I, 1354M7 ss.). considerado na sua própria inconsistência. É curioso que a prosa possa chamar-se "discurso nu", psillos logos, e que o vocabulário do ornamento possa ser relacionado ao vestir-se, ou em geral ao cobrir o corpo.2 2 A relação é clara em kosmos/kosmein. Veja-se a ligação íntima entre adorno feminino e ornamento lingüístico em Eurípedes, Andrômaca, v.955-6 (com uso do verbo kosmein), e Medéia, v.576 (referido às palavras de Jasão sobre as mulheres). Pode-se talvez relacionar leros, o falar à toa, a futilidade, ao seu homônimo que indica um ornamento em ouro do vestiário feminino. Sobre a relação entre cosmética e retórica, cf., naturalmente, Górgias, 465b-c. Usar a prosa para exaltar os feitos passados pode ser expresso como "ornar com um discurso nu" (Platão, Menexeno, 239b-c), o que indica imediatamente o caráter secundário da tarefa. Uma teoria do discurso aparece assim também como teoria do estilo; as formas do estilo não se separam dos "gêneros" de discurso. Toda crítica à lexís trará consigo a contraposição à forma correta do logos, o que mostra a importância da caracterização negativa da linguagem, em particular, do "falar em excesso": este é o tema platônico que pretendemos levantar neste artigo.

De qual discurso deve-se sentir vergonha? A pergunta pode ser invertida: qual o discurso sujeito à irrisão? A vergonha (aischyne) e a irrisão (katágelos/katagelasthaí) são freqüentemente relacionadas nos diálogos platônicos, indicando valores possíveis do logos. Há uma contínua transferência do lugar do "ridículo", entre o filósofo, o sofista, o orador, a cada momento sugerindo o modo adequado - to prepon - da palavra e do comportamento (cf. Górgias, 484d-e). Eulogia e euétheia são intimamente ligadas (República, III, 400d-e), e este peso moral das palavras incide também na caracterização do estilo. É, portanto, necessário "interiorizar" a vergonha, ou seja, torná-la independente de qualquer aparição pública. Mas se ser adequado diz respeito à aparência, e não constitui uma definição válida do belo (Hípias Maior, 291e ss.), há na realidade lugar para uma teoria platônica do estilo?

É, com certeza, difícil afirmar a independência ou dignidade em Platão de questões que poderíamos chamar de estilísticas em senso geral. As observações platônicas sobre o "estilo" consistem principalmente em críticas à oratória e à poesia, e na crítica da disposição do orador ou poeta para com as palavras. Mas o caráter secundário da

lexis frente ao

logos não nos deve levar a esquecer a atenção dada àquela, e sua importância para a caracterização, em termos gerais, dos vários tipos de discurso. Da exterioridade do adorno à vacuidade do falar em excesso, atribui-se a cada maneira de elocução uma densidade própria aos elementos de diferença, os quais permitem individuar o modo correto da fala (seja a nudez do discurso, seja a sua medida ou adequação).

Sócrates envergonha-se de seu primeiro discurso no Fedro, em que se contrapõe ao discurso de Lísias, lido anteriormente por Fedro. Em presença somente deste seu amigo, Sócrates cobre a cabeça e se propõe a falar, com um discurso contínuo, no modo mais breve possível (Fedro, 237a). É um Sócrates excepcional o que assim se exprime, tomado pelo delírio divino, como ele mesmo afirma (238c). Mas a vergonha de Sócrates deriva também do fato de ele se colocar no mesmo plano do discurso de Lísias, como se assumissem um significado real os efeitos de beleza, de bela apresentação, procurados pelo orador. Que sejam estes efeitos coisas de crianças, jogos, como veremos: são da mesma maneira introduzidos nos debates públicos e nas discussões sofistas, possuindo relevância também para a caracterização do discurso filosófico.

De fato, mesmo que Sócrates repita que não cuidará da própria linguagem, falando de modo casual, mesmo que atribua a outros um maior conhecimento da técnica relativa à composição oratória, a insistência com a qual apresenta as próprias considerações a respeito indica uma consciência incomum dos procedimentos criticados. Escutando o discurso de Lísias, Sócrates tinha prestado atenção somente no aspecto formal das palavras, na "retórica do discurso" (Fedro, 235a). Mesmo se havia anteriormente indicado Fedro como mais capaz neste gênero de argumentos, é ele mesmo, e não seu amigo, quem analisa a obra oratória. O discurso de Lísias parecia-lhe um discurso bem cuidado, com cada palavra bem torneada (234e); no entanto, o que o orador tinha feito era somente repetir de modo variado o mesmo tema, procurando apresentá-lo de forma cada vez melhor: uma imperfeição do orador, um procedimento imaturo (235a). A habilidade de Sócrates leva-o a distinguir retoricamente entre invenção e disposição (héuresis e diáthesis) e a avaliar o discurso segundo a variedade, poikilia (236a-b).

Mas não é só o estratagema de Lísias, a repetição, que é recurso de quem é ainda jovem e inexperiente. O cuidado mesmo com os discursos é qualificado como atividade juvenil. Sócrates em seu julgamento não tentará embelezar a própria argumentação, mas falará de modo casual, com palavras não elaboradas (Apologia, 17b-c). Não é adequado ao ambiente do tribunal "modelar" os discursos, como fazem os rapazes (17c). As palavras de Sócrates são apresentadas "casualmente", sem qualquer cuidado com a lexis, não porque falte espaço para a idéia de "adequação" do discurso, mas exatamente porque este cuidado não é "adequado" ao lugar (mas há na verdade lugar para estes discursos elaborados?).3 3 Com efeito, dificilmente a teoria aristotélica do prepon, como exposta ao longo do terceiro livro da Retórica, encontraria espaço na filosofia platônica. A ligação entre kosmos, ornamento, e paígnion, jogo, aparece no diálogo O Político (288c), e também neste caso não se recusa a "conveniência" (toprepon) do discurso, mas procura-se distingui-la da forma, em particular do comprimento ou brevidade da elocução, ligados ao prazer (286c-d).

Como se apresentará então o filósofo, qual a expressão da qual não se deve envergonhar, sem os adornos e cuidados da oratória? Qual a possibilidade de um discurso sem retórica? O discurso "nu" é a própria prosa, como vimos, em geral concebida como um discurso contínuo: o que dizer então da "forma" da filosofia, ou da elocução socrático-platônica, o diálogo? A filosofia deve ser um discurso livre das coerções de tempo e argumento, segundo o Teeteto (172d-e), e também livre dos limites de comprimento: deve seguir o que é apropriado, to prepon, que pertence à arte da medida, a metretíké, e que justifica não a forma definida, mas a extensão variável e até mesmo a circularidade (Político, 286c-87a). Mas a filosofia não é só negação das normas impostas pela "retórica", ela é também "forma", mesmo se o contrário da "bela forma" oratória: a apresentação de Sócrates pode assumir os contornos de um discurso "baixo". Assim ele se refere no tribunal a quanto deve dizer sobre o período dos Trinta Tiranos: palavras phortiká kai dikaniká, mas verdadeiras (Apologia, 32a); e assim Cálicles caracteriza os próprios temas socráticos: phortiká kai demegoríká (Górgias, 482e). Mas trata-se também de um discurso que descuida das argumentações sutis (kompseiai) (Fédon, 101c), às quais concernem (prepeí) as discussões sofistas, como afirma Laques (Laques, 197d-e): trata-se de sutilidades relativas às distinções de palavras e que indicam uma capacidade próxima à de Lisias na preparação de seu discurso (Fedro, 227c: kekómpseutai). Incapaz dos requintes sofistas, com um raciocínio "pesado" (pacheos), Sócrates não pode evitar de se dirigir a seu interlocutor de modo "rude" (phortikóteron) (Eutidemo, 286e).

Apesar destas críticas, não é porém a ausência de ornamento, a nudez, e tampouco a baixeza ou o caráter pouco sutil da linguagem a fornecer a imagem mais recorrente da filosofia. Não a nudez do discurso, mas o seu esvaziamento. Falar sem dizer nada: adoleschein, lerein, phlyarein, Mein. Disto é preciso se envergonhar, estão de acordo Sócrates e seus críticos (Hípias e Cálicles). Estes referem-se à vergonha de uma atividade que não honra as práticas comuns, públicas. Sócrates, ao invés, considera a vergonha em face de si mesmo, ator e público: assim no Hípias Maior (218b), a respeito de uma das definições de belo dadas por Hípias. Para o sofista, ao invés, a natureza da atividade crítica socrática e o tagarelar coincidem. Hípias recusa a forma breve da elocução socrática: as coisas pequenas, as minúcias, os "pedacinhos de discursos" (304a), que ele confronta com o discurso público no tribunal, na assembléia, frente aos magistrados. As formas de apresentação pública, que podem ter por conseqüência a salvação pessoal do orador, fazem aparecer os temas socráticos como sutilidades sem sentido (e Hípias fala de smikrologiai, leroi, phlyariai: 304b). Na sua resposta, Sócrates retoma esta caracterização da dialética filosófica - coisas pequenas e de nenhum valor -, mas afirma sua vergonha ante o discurso público (304c-d). Mesmo se ao "avesso" do discurso de Hípias, a conclusão socrática mantém o quadro distintivo geral, entre discurso longo e breve, função pública e privada, conversação séria e vaniloquio.

Sócrates recusa assim a definição de belo dada por Hípias, com medo de falar sem dizer nada (lerein); mas também para Hípias o procedimento de Sócrates consiste em tagarelice e bobagens (leroi kaiphlyariai). A crítica socrática responde a uma precisa caracterização do discurso filosófico, como veremos, mas por sua vez indica cada aspecto e cada lugar da comunicação na cidade. Os cidadãos mesmos, os atenienses, ocupados em suas atividades públicas, tornaram-se laloi, tagarelas, graças a Péricles (Górgias 515e), e nisso podem-se confrontar com eles os lacedemônios, de fala breve e sábia (Protágoras, 342e; cf. Leis, I, 641e). As reuniões concorridas nas quais se viam "filósofos" que discursavam sobre política (mas, precisa Sócrates, não exatamente filósofos, e sim pessoas que se colocam no meio, entre a filosofia e a política, que cuidam mais da aparência do que da verdade) são descritas por Crítão no Eutidemo (304d ss). Quantos aí se apresentavam "discorriam sobre nada", sobre argumentos "sem nenhum valor" (304e): pareciam gente ordinária (phauloi) e ridícula (katagélastoi) (305a). Por outro lado, já Ctesipo, no mesmo diálogo, tinha caracterizado a discussão desses estrangeiros como devaneio (paralerein) (288b). Não só, porém, nas discussões públicas, nem somente nas apresentações dos sofistas, mas também nos piores banquetes fala-se sem dizer nada. Recusando que Protágoras continue a comentar poesias, Sócrates refere a imagem das reuniões nas quais pessoas vulgares, incapazes de manter por si mesmas a conversação, convidam outros, músicos e dançarinas, a se apresentar enquanto bebem: ele e seu interlocutor, ao invés, sem contar com estas tagarelices e infantilidades (leroiepaidiai), deveriam conduzir "com a própria voz" o diálogo (Protágoras, 347c-e). Sócrates identifica assim a audição e visão de cantos e danças ao comentário poético, que seria como um falar por meio de outros.

Mas o próprio diálogo socrático pode aparecer em modo semelhante a este constante lerein na cidade. Como vimos, o filósofo fala "casualmente" também no tribunal, porque recusa a bela disposição das palavras (Apologia, 17b-c). Por outro lado, esta é a característica do discurso filosófico, "livre", sem limites externos, não se apresentando em lugares públicos como os tribunais (Teeteto, 172d ss; Hípias Maior, 304c-d), exposto ao perigo de repetições e digressões (Teeteto, loc. cit.), sem necessidade de uma adequação "exterior" do logos, pois não submetido ao prazer (Político, 286d; Sofista, 225d). Assim o risco de aporia na investigação filosófica pode ser visto exatamente como parolagem, adoleschia, como o "conduzir para cima e para baixo o discurso, sem ficar convencido e sem se livrar de cada argumento", segundo a definição dada no Teeteto (195c).

Diante do recrudescer das perguntas de Sócrates, é esta, com efeito, a reação dos sofistas: coisas "vãs e supérfluas" (leroi e phlyaríai), segundo Hípias (304b); "tagarelas" (laleis), responde Dionisodoro ao filósofo (Eutidemo, 287d), e mais tarde repete: "dizes bobagens" (phlyareis) (295c); "bobagem" (phlyaría), retoma Trasímaco na República (1, 336c) e o reitera várias vezes Cálicles, no Górgias (490c; 490e; cf. 497a). O mesmo Cálicles, além do mais, oferece a descrição geral da atividade filosófica, da qual é preciso envergonhar-se, se não se limita a um interesse juvenil e transitório (Górgias, 484a ss.). O político e o filósofo tornam-se ridículos quando invertem seus papéis (484d-e), mas é a atividade pública que dá dignidade aos cidadãos. Cálicles arremata com a imagem de um Sócrates que foge do centro da cidade, põe-se nos cantos, sussurrando, com três ou quatro jovens: não uma fala livre, grande e digna (485d-e), como diante dos tribunais. É a figura social do filósofo que se afirma pela idéia do logos inútil, da irrelevância presumida de sua fala para a cidade. O homem que deseja somente honras, o philótimos, considera "bobagem" o aprendizado de uma ciência que não contribua à sua reputação (República, IX, 581d). A maior parte das pessoas, afirma Parmênides, diz ser esta "ginástica" dos discursos adoleschia, tagarelice (Parmênides, 135c), uma ginástica que distancia das percepções sensíveis para indagar sobre as "formas" e na qual incentiva o jovem Sócrates a prosseguir. E com o mesmo termo o jovem Sócrates vai ser considerado por seus críticos, a começar por Aristófanes, que o acusa de "tagarelar" (adoleschein) (Fédon, 70b) e de dizer "bobagens" (phlyaría), "caminhando no ar" (Apologia, 19c). E assim a imagem se completa: o filósofo não só não ocupa os lugares sociais "dignos", como os tribunais, não só fala de coisas sem valor: mas fala de coisas "distantes" dos homens, sem se ocupar do que interessa à maioria. Dado seu desprezo pelas preocupações comuns - os elogios e as vanglorias dos homens -, das quais ri, é visto pelos outros como um estulto (lerodes) (Teeteto, 174d). Adoleschia e meteorologia, uma fala vazia e distante, caracterizam assim o discurso socrático, mas também o do bom comandante do navio, deixado às margens pela multidão, que adula ao invés o capitão cego e surdo, para poder governar em seu lugar (República, VI, 488a-489a; 489c). Na cidade que tentasse determinar as competências por meio da política, quem procurasse ser comandante ou médico além da lei seria considerado um sofista meteorólogos e adolesches (Politico, 299b), como de fato foi chamado Sócrates. E, de fato, assume o filósofo, adoleschia e meteorologia sobre a natureza são necessários para elevar a mente e para atingir a perfeição da obra (Fedro, 269e-70a). Com efeito, o procedimento socrático parece identificar-se com o adoleschikon, que na definição dada no Sofista (225a ss.) se opõe aos longos discursos jurídicos e à erística sofista.

O conselho de Parmênides ao jovem Sócrates poderia nos levar a considerar estas imagens na sua diacronia: assim, em seqüência, a imagem do filósofo com a cabeça no ar (como Tales), a crítica efetiva de Aristófanes, e enfim a elaboração da figura do filósofo marginalizado como vemos na República4 4 Não se deve em todo caso ver o meteorologein exclusivamente em relação a um interesse pela cosmogonia, como recusa o próprio Sócrates na Apologia (19c), mas também em relação à reflexão de Parmênides, com o seu caráter "abstrato". Em um contexto diferente, no Crátilo (401b), a expressão meteorologoi kai adoleschai tines não se liga ao discurso sobre os astros, sucessivo (408d ss), mas aos indivíduos que nomearam em primeiro lugar os deuses. Com efeito, não é somente nas opiniões atribuídas aos sofistas pelo próprio Platão que constatamos a exterioridade dos termos à argumentação socrática. Nas Nuvens, Aristófanes tinha se referido à adoleschia (v.1480); Isócrates falava do desprezo pelos argumentos dos "erísticos", considerados adoleschia e mikrologia (Contra os sofistas, 8).5 5 Veja-se, também, Eupolis, fr. 352 (Kock) (de Olimpiodoro), o qual se refere a Sócrates como ptochós adolesches. Mas, na sobreposição das imagens, o texto platônico não oferece somente uma "resposta" às críticas ou uma "defesa" de Sócrates. Pelos traços e palavras comuns, pela aceitação irônica da caracterização crítica, delimitam-se lugar e forma do discurso/diálogo filosófico, na cidade e diante dos outros logoi. Palavras vazias, palavras das quais se envergonhar: vemo-las em toda parte nos diálogos, atribuídas a todos por todos, medida comum de diferenciação. Como se, mesmo com a inversão ou ambigüidade das atribuições, fossem no entanto estes os parâmetros que permitem dar ordem ao logos e indicar a sua diferença.

Assim, ao lado de toda forma de linguagem "excessiva" - que deriva do ornamento, dos refinamentos, das repetições por amor à bela elocução, das minúcias6 6 Sobre a minúcia em Platão, cf. Leis, I, 642a; V, 746e. Sobre a "precisão" vista como aspecto negativo, ver Teeteto, 184e. deve-se também considerar a adoleschia, parolagem, em Platão: repetir o mesmo, ou ir para cima e para baixo com as palavras sem atingir o fim proposto. A crítica da filosofia como tagarelice traz, porém, um sentido novo: uma fala diferente, distante dos lugares cívicos, distante do sensível - uma fala não comum. Platão retoma e inverte a crítica, ou pela aceitação irônica do atributo, ou aplicando-o a seus críticos: quem fala sem dizer nada são não somente os sofistas, mas os próprios atenienses, nas suas atividades públicas: tribunais, assembléias, teatros; e privadas: as discussões sofistas, os simpósios.

O que se delineia na seqüência de imagens platônicas é ao mesmo tempo uma crítica de elementos estilísticos e a afirmação do logos filosófico diante dos demais logoi: a inerência do discurso pela sua estranheza. Constituir, conformar a própria elocução por meio de confrontos com as várias formas - em particular as formas comuns, koiná - do falar (e do agir pela palavra). Neste contexto, o modo apropriado do discurso - como afirma o Teeteto e o Político - não possui os limites exteriores da oratória "pública": continuidade, duração, prazer. É, assim, também pela consideração do "estilo" que se apresenta a crítica da retórica e da política: fundamental, pois, para a "localização" de um discurso filosófico.

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    Este artigo faz parte de uma pesquisa mais ampla sobre a apresentação de "tipos", ou "gêneros" de discurso em Platão e Aristóteles (aqui referimo-nos somente a Platão). Como leitura transversal dos diálogos platônicos, mostra-se fundamental acompanhar a utilização recorrente do mesmo léxico. Todavia, limitando, para uma melhor leitura do texto, a citação de palavras gregas, traduzidas ou mesmo transliteradas, perdemos em parte a possibilidade de acompanhar o uso lexical comum aos vários diálogos. (Note-se que o acento nas palavras gregas tansliteradas serve somente como auxílio à leitura.)
  • 1
    A não-pertinência do discurso é freqüentemente indicada como "falar
    exo tou prágmatos", que é uma expressão técnica da prática jurídica ateniense e serve também para caracterizar os tratados de retórica criticados por Aristóteles (cf., por exemplo,
    Retórica, I, 1354M7 ss.).
  • 2
    A relação é clara em
    kosmos/kosmein. Veja-se a ligação íntima entre adorno feminino e ornamento lingüístico em Eurípedes,
    Andrômaca, v.955-6 (com uso do verbo
    kosmein), e
    Medéia, v.576 (referido às palavras de Jasão sobre as mulheres). Pode-se talvez relacionar
    leros, o falar à toa, a futilidade, ao seu homônimo que indica um ornamento em ouro do vestiário feminino. Sobre a relação entre cosmética e retórica, cf., naturalmente,
    Górgias, 465b-c.
  • 3
    Com efeito, dificilmente a teoria aristotélica do
    prepon, como exposta ao longo do terceiro livro da
    Retórica, encontraria espaço na filosofia platônica.
  • 4
    Não se deve em todo caso ver o
    meteorologein exclusivamente em relação a um interesse pela cosmogonia, como recusa o próprio Sócrates na
    Apologia (19c), mas também em relação à reflexão de Parmênides, com o seu caráter "abstrato". Em um contexto diferente, no
    Crátilo (401b), a expressão
    meteorologoi kai adoleschai tines não se liga ao discurso sobre os astros, sucessivo (408d ss), mas aos indivíduos que nomearam em primeiro lugar os deuses.
  • 5
    Veja-se, também, Eupolis, fr. 352 (Kock) (de Olimpiodoro), o qual se refere a Sócrates como
    ptochós adolesches.
  • 6
    Sobre a minúcia em Platão, cf.
    Leis, I, 642a; V, 746e. Sobre a "precisão" vista como aspecto negativo, ver
    Teeteto, 184e.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Nov 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1996
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