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Comentário ao artigo “Esclarecimento e dominação masculina”

Referência do texto comentado:SILVA, P. da1. SANTOS Patrícia da Silva. Esclarecimento e dominação masculina. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3 p. 313 –334, 2020.. Esclarecimento e dominação masculina. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 313-334, 2020.

Há, pelos menos, dois postulados fundamentais e incontornáveis - portanto, que se impõem ao pensamento -, quando alguém se ocupa de uma obra filosófica como a de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer. O primeiro deles é a primazia do objeto. Isto é, qualquer pensamento que não esteja disposto a abdicar de sua necessária criticidade não pode simplesmente partir de uma teoria para, em função dela, “entender” o que está acontecendo. O próprio desdobramento da realidade, ao invés disso, precisa ser rigorosamente acompanhado, para que seja possível estabelecer algo como uma teoria. Dito de outro modo, a teoria não é a finalidade da filosofia. É apenas o resultado provisório do exercício, sempre em curso, de compreender. Por mais óbvio que isso possa parecer, compreender esse ponto é condição para uma atitude crítica para com os textos.

Se, por um lado, a teoria é a instância necessária para que não nos entreguemos de maneira resignada a uma aceitação da realidade tal como ela é, por outro lado, essa mesma teoria nunca pode se afastar tanto da realidade, a ponto de não mais ser “tocada” por esta. A teoria, em outras palavras, é uma força ativa que nos ajuda a pensar as contradições das lógicas que estruturam a realidade e, portanto, a potência que pode orientar nossa prática.

O segundo postulado fundamental dessa filosofia, profundamente conectado com o primeiro, é o caráter temporal da verdade. Os conceitos filosóficos não são marcadores intemporais. Estão, isto sim, carregados pela história neles sedimentada. Não são os conceitos filosóficos que estão no tempo, mas, sim, o tempo que é a substância dos conceitos filosóficos. Nesse sentido, ainda que a dinâmica da dominação, conceito-chave do artigo que ora comentamos, possa ser observada em diferentes épocas e seja bastante tentador abstrair uma lógica intemporal de como isso acontece, é preciso não perder de vista a configuração concreta dessa lógica e de seus termos em nossa época.

O estudo de Patrícia da Silva Santos tem o mérito de acompanhar, com muito cuidado e rigor, a lógica própria da obra com que se propõe trabalhar, ao mesmo tempo em que a confronta com o problema da dominação masculina. Faz, assim, justiça a essa obra, na medida em que não se reduz a uma repetição litúrgica de seus enunciados. Ao invés disso, propõe-se pensar com ela e a partir dela. A obra com a qual se ocupa não é apresentada como garantia de verdade e de inteligibilidade. A referida teoria é muito mais uma pista, inspira um modo peculiar de leitura e de abordagem que pode ser promissor.

O texto principal que orienta a análise é Dialética do Esclarecimento, esse livro singular que, conforme nos mostra a autora, na sua maior parte, foi resultado das anotações feitas por uma mulher. Enquanto os homens pensavam, alguém precisava se ocupar das notas, a fim de que não fossem interrompidos. O livro, por conseguinte, revela-se uma tentativa de pensar um problema filosófico, embora esteja fincado num momento histórico que o torne parte, em muitos aspectos, da própria dinâmica denunciada.

No entanto, sabemos que esse livro, escrito no exílio durante uma das maiores catástrofes humanas que foi a Segunda Guerra, se tornou um clássico, pelo fato de destoar da maioria das leituras filosóficas que eram feitas até então. De acordo com a maior parte dessas leituras, a fé no progresso, no projeto moderno que prometia nos tornar “senhores”, se mantinha intacta, apesar da sucessão de eventos bárbaros que o século XX mostrava. Via-se a superação desses instantes de irracionalidade como uma pedagogia da razão, no caminho para um mundo racional e emancipado.

A consequência filosófica disso é uma percepção dualista do mundo, como se a razão fosse o contrário da irracionalidade. Hitler e todos os bárbaros eram apresentados como o oposto da razão, como pontos fora da curva, os quais mostravam o quão urgente era recuperar o caminho certo. Adorno e Horkheimer, por sua vez, destruíram essa leitura ingênua e equivocada. O que mostraram foi o entrelaçamento entre a racionalidade moderna e a mitologia. Evidenciaram, assim, que o mito nunca foi o oposto da razão esclarecida, porém, a sua primeira manifestação, bem como o seu destino. A lógica totalitária de eliminar tudo o que é diferente, onde nada pode restar de desconhecido, lógica esta de uma dominação total da natureza interna e externa, é a mitologia da razão esclarecida. O genocídio nazista, em outras palavras, não é apenas um momento de ausência da razão, mas sua manifestação mais extrema.

Os impactos dessa nova forma de argumentação se fizeram sentir imediatamente, no mundo da filosofia. E é a esta leitura não simplificadora da realidade que recorre o artigo de Patrícia, para nos mostrar que, para pensar questões de gênero e o lugar da mulher, em nossa sociedade, não se pode abdicar do trabalho de reconstruir a história dessa dominação. Em outras palavras, a mitologia liberal que deixa transparecer que a mulher será naturalmente “emancipada”, quando assumir postos de trabalho nessa sociedade, parece ignorar que essa sociedade é o resultado de um histórico processo de dominação masculina. A saída não é simplesmente racionalizar a sociedade, ressaltando que homens e mulheres são iguais. É a própria racionalidade em sua formação histórica que carrega consigo a lógica da dominação sexista.

Confirma-se, logo, a máxima de que não há vida verdadeira no interior do falso. No entanto, ainda que o artigo assuma de forma séria a impossibilidade de pensar algum tipo de emancipação, sem que a sociedade seja emancipada como um todo, a autora nos apresenta a potencialidade crítica contida no ato de pensar a condição da mulher, nas sociedades contemporâneas. Estas, as mulheres, ao longo da história de formação da racionalidade ocidental, nunca foram totalmente integradas nesse processo eminentemente masculino. Sempre foram postas na condição de “não-sujeitos”, uma condição negativa, todavia, por isso mesmo, uma condição não totalmente determinada pela identidade masculina que lhes era imposta. São o não-idêntico personificado e, enquanto tais, contribuem, nas palavras de Santos (2020, p. xx) “[...] na denúncia da falácia desse sujeito universal, idêntico a si mesmo, que a racionalidade ocidental se esforçou a duras penas para construir.”

Referencias

  • 1
    SANTOS Patrícia da Silva. Esclarecimento e dominação masculina. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3 p. 313 –334, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Maio 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Jul 2020
  • Aceito
    23 Jul 2020
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