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Uma visão de mundo filosófica

A philosophical worldview

Resumo:

O objetivo deste artigo é apresentar uma visão de mundo filosófica, especificamente metafísica. A importância disso é justamente obter uma visão generalista da realidade, em um momento em que as discussões filosóficas se tornam cada vez mais especializadas. A visão de mundo metafísica apresentada aqui é uma perspectiva geral sobre o tempo, o espaço, a matéria, as leis da natureza, a mente e a normatividade. Para realizar esse objetivo, (1) falaremos um pouco sobre a natureza da filosofia e sobre sua relação com a construção de uma visão de mundo, (2) abordaremos alguns argumentos para tratar da natureza das entidades mencionadas, e (3) concluiremos, apresentando uma visão de mundo metafísica unificada, que leva em consideração tais argumentos.

Palavras-Chave:
Filosofia; Metafísica; Visão de mundo

Abstract:

The purpose of this paper is to present a philosophical worldview, specifically metaphysical. This is important precisely to obtain a generalist view of reality, at a time when philosophical discussions are becoming increasingly specialized. The metaphysical worldview presented here is a general perspective on time, space, matter, laws of nature, the mind and the normativity. In order to achieve such goal, (1) we will talk about the nature of philosophy and its relation to the construction of a worldview, (2) we will discuss some arguments to talk about the nature of the aforementioned entities, and (3) we will conclude by presenting a unified metaphysical worldview that takes these arguments into account.

Keywords:
Philosophy; Metaphysics; Worldview

Introdução

Cada pessoa tem a sua visão de mundo: tem certas crenças conjugadas sobre a realidade - que podem ou não estar bem justificadas. O que mais importa para a filosofia, é o quão bem justificadas estão as crenças que formam essa visão de mundo, dado que ao menos um dos objetivos da filosofia seria encontrar a visão de mundo verdadeira. Nossa intenção aqui é justamente mostrar como a reflexão filosófica pode nos levar a ter uma visão de mundo mais justificada do que a visão de mundo que temos pré-teoricamente.

A primeira coisa a tratar, então, é o que queremos dizer com “filosofia”, quando falamos dessa forma. Embora possamos adentrar inúmeros problemas sobre a natureza da filosofia e sua definição, nossa intenção, nesta parte, é meramente esclarecer os termos. Chamamos de “filosofia” uma disciplina acadêmica (uma investigação sistemática e supostamente epistemicamente virtuosa sobre uma área), que, tal como as outras, se dedica a encontrar verdades (se, de fato, encontramos verdades, isso já é outro assunto), mas em relação aos problemas filosóficos. Os problemas filosóficos são aquelas questões que só poderiam ser respondidas por argumentação, e não por experimentos ou cálculos.

É claro que há uma dificuldade nessa concepção de filosofia (ver mais sobre isso em HELVÉCIOHELVÉCIO, L.; CID, R. (org.). Problemas Filosóficos: Uma Introdução à Filosofia. Pelotas: Editora UFPel, 2020.; CID, 2020CID, R. (org.). Tópicos em Metafísica Contemporânea. Porto Alegre: Fi, 2020a., Introdução). Poderíamos dizer, talvez, que não é possível fazer uma distinção adequada entre questões solucionadas por argumentos e questões solucionadas por experimentos ou cálculos. Muitas objeções são construíveis, mas creio que ou elas pecam pelo mesmo motivo do logicismo, ao tentar identificar matemática com lógica, ou elas pecam por não atentar à diferença de papel que os experimentos empíricos têm, nas ciências empíricas, nas ciências formais e na filosofia. De todo modo, queria tomar essa noção de filosofia mais como uma caracterização do que como uma definição, dada a dificuldade que teríamos para estabelecer a definição, frente às inúmeras concepções existentes sobre a natureza da filosofia.

Muitos problemas já saíram do seio da filosofia para as ciências (como problemas cosmológicos ou meteorológicos), pois eram problemas que só podiam ser resolvidos por argumentação contingentemente, i.e., apenas por não termos os meios tecnológicos de investigar tais questões. Mas há questões necessariamente filosóficas, que só poderiam ser respondidas por argumentação, não importando o nosso nível de desenvolvimento tecnológico. Há questões tão fundamentais, que só uma reflexão sistemática e argumentativa sobre elas pode nos levar a algum lugar.

Nesse sentido, podemos dizer que a filosofia nos ajuda a construir uma visão de mundo. A filosofia lida com questões fundamentais para as quais não temos e nem temos como ter respostas científicas (formais ou empíricas). Uma visão de mundo é um conjunto de respostas a problemas filosóficos apresentada de uma maneira integrada. Ela nos diz o que é o mundo e como o ser humano se insere nele. Uma visão de mundo é uma teoria (conjunto supostamente consistente de crenças) composta de proposições sobre temas metafísicos, epistêmicos e valorativos. Ela nos diz a natureza da realidade, dizendo-nos qual é a posição do ser humano em tudo isso: somos consciências imateriais produzidas por corpos materiais? Ou somos almas imortais? Temos livre-arbítrio para decidir, independentemente de influências, as nossas ações? Ou somos completamente determinados? Há valores básicos para além das nossas escolhas pessoais e sociais? Uma visão de mundo nos fala sobre a natureza do mundo, sobre a natureza do ser humano - e da consciência de modo geral - e da sua relação com o mundo e com os outros seres conscientes.

Agora, embora nossa visão de mundo seja um conjunto de proposições que pensamos serem consistentes e verdadeiras sobre a realidade, normalmente não costumamos examiná-las a sério, procurando por boas justificações para elas. Mas se começamos a procurar justificações para a nossa visão de mundo, algumas questões só poderão ser tratadas pela reflexão filosófica. Ainda assim, é possível que, mesmo com a filosofia, nossas visões de mundo não tenham uma justificação final. Como a filosofia é uma disciplina ampla cuja atenção aos detalhes é fundamental, cada visão de mundo poderá sempre ser desafiada por uma nova objeção. Talvez o máximo que possamos fazer em filosofia seja apontar vantagens e dificuldades de cada visão, de cada argumento, e pesar as teorias, para encontrar a mais vantajosa teoricamente. Essa tarefa parece infinita, mas podemos nos aproximar desse ideal de alcançar a verdade não por meio de justificações definitivas da verdade de uma proposição, mas de modo negativo, ao mostrar erros claros de certos argumentos. Podemos acabar não alcançando plenamente a verdade, mas o movimento de reflexão dedicado a esse objetivo nos aproxima, de modo negativo, cada vez mais dela.

Dessa forma, o objetivo deste texto é apresentar uma certa visão de mundo. Como qualquer visão de mundo, ela é incompleta, mas intenciona colocar um quadro de possíveis questões em aberto, mostrando algumas razões para acreditar numa certa visão. A visão de mundo que proponho não é garantidamente verdadeira e nem está completamente justificada neste artigo; na verdade, é cheia de problemas que merecem ser melhor investigados, que não posso fazer adequadamente em um texto deste tamanho, mas que gostaria de tratar de modo integrado: problemas, teses e argumentos com relação ao Espaço, ao Tempo, às Leis da Natureza, à Matéria, à Mente, ao Livre-Arbítrio, à Ética e à Política. Como essa é uma pretensão por demais generalista e ambiciosa para tão poucas páginas, o que farei será indicar as melhores razões para crer nessa visão de mundo, sem entrar em pormenores importantes, sobre os quais o leitor está convidado a refletir e sobre os quais eu convido a todos a debater em artigos futuros.2 2 Eu vejo a filosofia como uma área composta de forças especialistas e generalistas. Uma filosofia completa toma como relevante ambos os movimentos, para construir a totalidade do conhecimento filosófico. Os especialistas nos permitem adentrar nas teorias, em suas mais vastas consequências, para sermos aptos a pesá-las entre si e, por meio do generalista, integrá-las racionalmente numa concepção geral de mundo. Queremos a compreensão mais geral e mais total da realidade, com todas as justificações que nos permitem saber cada parte de nosso conhecimento. Essa é uma tarefa hercúlea, a qual creio que conseguiremos, como uma comunidade.

Gostaria de começar este texto, tratando de algumas entidades que penso serem necessárias, e que respondem, de algum modo, as questões de Leibniz de por que há algo, e não nada, e por que há as coisas que existem em vez de outras. A ideia de fundo é que se espaço, tempo e leis são necessários (e eu penso que eles são), então eles não poderiam não existir, explicando assim por que há algo, e não nada. Se, então, matéria é governada pelas leis da natureza, então também explicamos por que existem as coisas que existem, e não outras. Se dessa matéria e leis, temos mentes e estados mentais como consequências necessárias, pareceria que nossas acoes também são necessárias, dados os estados materiais e as leis. Com a ausência de responsabilidade moral, advinda de um determinismo e incompatibilismo assumidos, e com a ausência de valores morais, pareceria que o único caminho da ética seria ser anti-realista e da política seria se fundar no interesse racional ao invés de em inexistentes valores. Pretendemos agora apresentar nossas razões para tal visão de mundo.

1 Espaço e Tempo

Há certas entidades que parecem responder muito bem à questão de Leibniz sobre por que há algo, e não nada (ver os argumentos em CID, 2012CID, R. Por que há algo, e não nada. Investigação Filosófica, v. 1, n. 1, art. 1, 2012.). Em nossa visão de mundo, há certas entidades que são necessárias; e, se a existência dessas entidades é necessária, isso mostra que é impossível haver nada. Uma dessas entidades é o espaço. O espaço é determinado por ter dimensões espaciais. Se algo, como uma faca, não tem dimensões espaciais, ou seja, se pensamos em uma faca de 0x0x0cm, então não pensamos em uma faca. A mesma coisa é o caso quando pensamos no universo. Um universo sem espaço é um universo sem dimensões espaciais, isto é, um universo de 0x0x0cm. Tal como uma faca sem dimensões espaciais não pode existir, o mesmo é o caso para o universo: para qualquer universo, se ele existe, ele tem dimensões espaciais. Assim, se pensarmos em um mundo possível sem espaço, pensamos em um universo sem dimensões espaciais, o que de fato não seria um universo. Ou seja, qualquer mundo sem espaço não é um mundo. Dessa forma, para qualquer mundo realmente possível, o espaço é essencial.3 3 Pode-se argumentar aqui que estamos confundindo espaço com universo/mundo. A princípio poderia haver um mundo sem espaço, ainda que não possa haver espaço sem dimensões espaciais, tal como um mundo de formas ou conceitos platônicos. Eu posso concordar com isso e dizer que não poderia haver um mundo físico sem espaço, de modo que se um mundo físico existe, ele tem espaço, isto é, se algo não tem espaço, isso não é um mundo fisicamente possível. Então, se o mundo físico existe, ter dimensões espaciais é necessário. Assim, se existe um mundo físico, o espaço lhe é essencial. Poder-se-ia argumentar contra nós, dizendo que nós não fazemos adequadamente a distinção entre 1) haver algo e não nada e 2) o que é necessário assumindo-se que que há algo. Poder-se-ia dizer que ainda que seja plausível que não há tal coisa como um universo sem dimensões espaciais (e temporais, logo a seguir), o que realmente precisamos é de um argumento cuja conclusão seja a impossibilidade do completo nada, isto é, a impossibilidade do mundo possível em que nada há. Para responder a isso, eu diria daria o seguinte argumento por redução ao absurdo com relação à existência do nada implicar a existência do tempo: Suponha que há nada. Se há nada, então há nada por mais de zero segundo, pois se houver nada por mais de zero segundo, então não é o caso que não há nada. O problema então é que se há nada por mais de zero segundo, então há também um intervalo de tempo e, consequentemente, tempo. Então se há nada, há também tempo, o que implica que não há nada. Logo, a suposição de que há nada e de que é possível haver nada é falsa. Logo, não é possível haver nada.

O mesmo argumento, mutatis mutandis, é aplicável ao tempo: um evento ou uma entidade pode durar 1 segundo, 10 segundos, mais ou até menos tempo, mas ela não pode durar 0 segundos. Um evento ou entidade que dura por 0 segundos é simplesmente um evento ou entidade que não existe ou não ocorre, pois toda entidade existente existe por mais de 0 segundos. Se dizemos que choveu por 0 segundo, isso significa que não choveu. Assim, um universo que exista por 0 segundos simplesmente não existe, tal como uma faca que existe somente por 0 segundos. O que isso nos diz? Se a duração por mais de 0 segundos envolve pelo menos dois instantes, e a existência de dois instantes envolve a existência de tempo, então para qualquer mundo existente (que dure mais de 0 segundos), o tempo existe nesse mundo, isto é, o tempo é essencial para cada mundo possível4 4 Embora este argumento esteja presente em Cid, 2012, vale a pena ler mais sobre o tempo em Mctaggart, 1908, e em Cid, 2011. . Se, ao invés disso, o mundo existe somente por 0 segundos, isso quer dizer que ele não existe. A ideia aqui é que a única forma de um mundo não ter tempo é se esse mundo estivesse existindo a 0 segundo. Como existir por 0 segundo é o mesmo que não existir, então um mundo sem tempo é um mundo que não existe, isto é, um mundo sem tempo não é um mundo.

É argumentável que alguma forma de idealismo possa prescindir da existência do espaço na descrição de seu mundo e ter apenas mentes cartesianas imateriais num mundo meramente temporal. Eu creio que seja difícil dizer que, num mundo meramente temporal, haja mais do que uma coisa. As coisas são normalmente separadas pela sua posição espacial. Se não há posições espaciais, as diferentes coisas não podem estar em diferentes lugares, mas antes no mesmo lugar ou em lugar nenhum. Se estão no mesmo lugar ou se estão em lugar nenhum, não consigo compreender como esse seria um mundo com várias mentes cartesianas. Talvez o objetor esteja disposto a aceitar um mundo aonde tudo seja uma coisa só. Ainda que aceitássemos esse cenário extremamente extravagante de realidade, não poderíamos escapar da necessidade do tempo, dado que tal mundo, ou existe a 0 segundos, ou há mais de 0 segundos; se existe há mais de 0 segundos, então o tempo existe nesse mundo; e se existe há 0 segundos, então não existe de fato.

Tendo em vista, então, que nossa visão de mundo aceita tanto um espaço quanto um tempo absolutos como entidades necessárias e essenciais para qualquer mundo possível, temos uma explicação de por que há algo, e não nada. Há algo, e não nada, por que tem de haver espaço e tempo. Suponha, para iniciarmos a redução ao absurdo, que há um mundo que é nada. Se esse mundo existe, ele existe há 0 segundos ou há mais de 0 segundos (o mundo não pode existir há menos de 0 segundos). Se ele existe há 0 segundos, então, tal como mostramos, ele não existe, isto é, não haveria um mundo que é o nada. Se ele existe há mais de 0 segundos, então existe junto com esse nada um intervalo de tempo; portanto, junto com o nada existiria o tempo. Como se algo existe junto com o nada, o nada não é nada, então também não é possível existir o nada junto com o tempo. Se, assim, ao supormos que um mundo é nada, somos levados à conclusão de que tal mundo não existe ou que ele não é nada, temos de concluir que a suposição de que um mundo é nada é falsa necessariamente. Nossa teoria diz que há algo, pois há espaço e tempo como entidades necessárias; e como entidades necessárias não poderiam não existir, elas têm de existir, não podendo haver nada, i.e., não podendo não haver algo. Mas ainda falta explicar por que há as coisas que há, e não outras.5 5 Ainda fica por debater se tais concepções absolutistas do espaço e do tempo são compatíveis com o espaço-tempo relacional da relatividade, coisa que não devo fazer neste texto, por falta de espaço, mas que é relevante para a avaliação das vantagens e desvantagens de tal visão (como consistência interna e externa). Uma dificuldade seria que a física, na relatividade, pensa o espaço de modo relacional, surgindo apenas a partir da existência de distâncias relativas entre as coisas e sendo dependente do referencial, e parece que meu argumento pressupõe um espaço absoluto (ver HUGGETT, 2022; HOEFER, 2022, para compreender melhor os conceitos envolvidos). Se houvesse apenas uma coisa, na relatividade, não haveria espaço, e é justamente isto que o surgimento a partir de uma singularidade nos diz: que o espaço surge a partir do surgimento das coisas para além da singularidade. Mas algo que temos de nos perguntar é se essa singularidade deve possuir algum tipo de estrutura interna. Se ela não possui, é difícil entender como ela pode ter mudado do estado singular para o múltiplo. Se ela possui, então devemos descrever essa estrutura como um sistema de partes, o que envolveria a presença do espaço, interno à singularidade. Mas talvez seja difícil emular essa objeção com relação ao tempo. Se o tempo for pensado como completamente relacional, teremos de dizer que um mundo com apenas um estado de coisas imutável seria um mundo sem tempo. O tempo relacional é a medida da causalidade entre as coisas. Sem causalidade, sem tempo. O problema, nesse mundo possível vazio de causalidade, seria responder à pergunta sobre se tal mundo existe há mais de 0 segundos ou não. Essa pergunta é difícil, pois o relacionista deve dizer que tal mundo existe por 0 segundos, o que, pelo nosso argumento anterior, implica que o mundo não existe. E se ele aceitar o oposto, estará aceitando simultaneamente uma concepção substantivista (ou substantivalista) do tempo, de um tempo absoluto. Tal assunto é por demais complexo para um pequeno artigo como este, e deixo sua resposta como dependente dessa discussão.

2 Leis da Natureza

Para explicarmos por que há as coisas que há, e não outras, devemos dividir essa questão em duas: (1) saber por que as coisas que existem se comportam da forma que se comportam e (2) saber por que existem exatamente as coisas que existem. Uma questão parece se relacionar com outra, na medida em que as coisas complexas que existem parecem advir do comportamento de coisas mais simples em relação. Assim, saber da existência das coisas envolve saber sobre as propriedades das coisas mais simples que as compõem. Mas saber o que são ultimamente as coisas mais simples possíveis que compõem todas as outras talvez envolva falar das propriedades não de coisas mais simples ainda, já que não haveria nada mais simples, mas da própria coisa simples. Minha resposta para a primeira questão é que as coisas se comportam da forma como se comportam, pois há uma necessidade em elas se comportarem assim, dado que existe uma relação de necessidade metafísica conectando as propriedades que elas instanciam. Com relação à segunda questão, ela se divide em duas: (a) por que existem as leis que existem e (b) por que existem as partes fundamentais materiais que existem? A segunda questão, iremos postergar um pouco a resposta.

Mas o que é a necessidade metafísica, o que são as propriedades e o que tudo isso tem a ver com o comportamento das coisas simples e complexas? Vamos aos poucos. O mundo é composto de estados de coisas, que entram em relações causais. Os estados de coisas (de primeira ordem) são compostos de objetos particulares tendo propriedades, por exemplo, Rodrigo sendo filósofo, este sal sendo colocado nesta água etc. Parece que há um certo tipo de relação regular entre os estados de coisas, de modo que sempre que eu tenho o estado de coisas de água sendo misturada com sal em certa proporção e certas condições externas, eu tenho também o estado de coisas do sal sendo dissolvido na água. Essa explicação dessa regularidade normalmente é dita como fundada na existência da lei natural de que o sal se dissolve em água, dada certas condições.6 6 É claro que a lei de fundo é a lei de Coulomb, da qual podemos derivar que sal se dissolve em água, por causa de suas relações eletrostáticas. Mas falaremos dessa derivação como se fosse a lei, para finalidades meramente pedagógicas. A ideia de que, de estados de coisas iniciais e leis, podemos derivar estados de coisas finais é bem expressa no modelo nomológico-dedutivo. Parece que as leis naturais seriam relações de invariância entre as propriedades gerais envolvidas na causalidade. Poder-se-ia perguntar qual é o fundamento da invariância entre essas entidades platônicas, e responderíamos que é o fato de essa relação de invariância ser fundada na relação de necessitação metafísica forte que conecta as propriedades da relação de invariância. Se a pergunta sobre o fundamento da invariância, por sua vez, estiver esperando que respondamos dizendo que o fundamento das relações de invariância está na causalidade singular, não poderíamos fazer isso, por defendermos uma forma de platonismo heterodoxo no qual são as leis universais que explicam as relações de causalidade singular, e não o inverso. Sao as leis - portanto as relações universais de necessitação entre universais - que são o fundamento da causalidade, por explicar uma parte relevante da mesma, que é por que uma coisa ocorreu em vez de outra, dado as propriedades envolvidas. Não é a causalidade singular que é o fundamento das leis, mas as leis universais que são o fundamento da causalidade, pois cada propriedade universal da lei se instancia em cada propriedade particular envolvida na causalidade singular e a própria lei universal se instancia na causalidade singular. O que seria a instanciação nesse caso? Essa é uma discussão complexa, que precisaremos de muitos outros artigos, para termos completamente, mas que você pode começar a ler sobre em meu livro Leis da Natureza, de 2019, no qual tento começar a reduzir a relação de governança das leis para com a causalidade singular à relação de instanciação.

Mas o que são essas propriedades gerais e o que são essas relações de invariância? Isso permanece um debate filosófico quente, e minha posição particular - defendida em CID, 2011CID, R. McTaggart e o problema da realidade do tempo. Argumentos, v. 3, n. 5, p. 99-110, 2011., 2016CID, R. As leis da natureza e os casos de Tooley. Manuscrito, v. 36, n. 1, p. 67- 101, 2013., 2019CID, R. Leis da Natureza: uma abordagem filosófica. Macapá: Editora da UNIFAP, 2019. - é de que as propriedades gerais são, na verdade, universais platônicos, transcendentes, de propriedades descobertas pelas ciências. Essas propriedades universais se instanciam nos estados de coisas particulares, e a relação entre as propriedades é a necessidade metafísica que liga as propriedades numa lei natural, e que se instancia na causalidade singular entre estados de coisas. A lei natural seria um universal transcendente de ordem superior que conecta os universais básicos ou de ordem inferior. Minhas maiores razões para preferir essa teoria frente a outras é que ela dá conta adequadamente do problema da contrafactualidade (ver em CID, 2013CID, R. As leis da natureza e os casos de Tooley. Manuscrito, v. 36, n. 1, p. 67- 101, 2013.) e da explicação das relações entre as coisas básicas, além de não cair nos problemas que atribuo às teorias regularista de Lewis (1973LEWIS, D. Counterfatuals. Oxford: Blackwell, 1973., 1983LEWIS, D. New work for a theory of universals. Australasian Journal of Philosophy, v. 61, n. 4, p. 343-377, 1983., 1986LEWIS, D. On the plurality of worlds. Oxford: Basil Blackwell, 1986.), disposicionalista de Mumford (2000MUMFORD, S. Normative and Natural Laws. Philosophy, v. 75, p. 265- 282, 2000., 2004MUMFORD, S. Laws in Nature. London: Routledge, 2004.), governista aristotélica de Armstrong (1983) e a governista platônica ortodoxa de Tooley (1977), nas referências aos meus textos acima mencionados.

As leis são universais conectados pela necessitação, que é a necessidade metafísica forte, sendo o papel de governar os estados de coisas particulares explicado pela instanciação. As leis não governam os universais. As leis são uma relação universal entre universais que governa a causalidade singular, por meio da instanciação das suas propriedades e da relação entre elas nos estados de coisas particulares e suas relações causais singulares.

Você pode pensar que talvez aceitar poderes de particulares seja uma melhor solução, mas essa teoria talvez seja uma das mais problemáticas, tal como você pode ver nos argumentos do meu livro sobre leis naturais, anteriormente citado. Além disso, aceitar um governismo transcendente realmente necessitarista, como o meu, tem a vantagem de nos livrar do realismo dos mundos possíveis, já que toda modalidade real, metafísica, seria explicada pelas leis da natureza: só é possível o que as leis da natureza não proíbem. A existência de qualquer lei, por exemplo a lei de que sal se dissolve em água, proíbe que ocorra outra coisa que não o que diz a lei. A lei implica necessidade, e a possibilidade advém daquilo que não é proibido por lei. Não há realmente outros mundos possíveis. Há o nosso mundo e as nossas leis naturais, e toda possibilidade advém disso. Não precisamos também das misteriosas propriedades disposicionais: toda disposição, para nós, advém de propriedades categóricas governadas por leis naturais, que não passam de relações necessárias entre propriedades universais.

Aceitando-se a visão platonista heterodoxa das leis que defendo (heterodoxa por ser platônica e fortemente necessitarista metafisicamente), temos um mundo de estados de coisas, compostos de objetos concretos e suas propriedades, em causalidade particular no espaço e no tempo, governado por leis transcendentes (CID, 2019CID, R. Leis da Natureza: uma abordagem filosófica. Macapá: Editora da UNIFAP, 2019.). Mas a dúvida que há - imagino - é a seguinte: ainda que a relação entre as propriedades seja necessária, seria a própria lei necessária, num sentido que explicaria a questão de Leibniz de por que há algo, e não nada? Há alguma razão para pensarmos que ao menos alguma lei tem de existir? Se aceitamos que as leis governam toda a causalidade singular, então se leis existem, as básicas não poderiam surgir, pois o surgimento é uma causalidade singular a partir da relação entre certas propriedades, e teria de ser explicada por meio de alguma lei mais básica que explica o surgimento de leis. Da mesma forma como as leis básicas não podem surgir, elas também não podem ser destruídas, pois sua destruição é uma causalidade singular, que exigiria a existência de uma lei básica sobre a destruição de leis, esta indestrutível. Assim, ao menos alguma lei tem de existir. E ainda que não saibamos quais leis são as leis básicas que têm de existir, seja lá quais elas forem atualmente, são essas que elas têm de ser, dado não haver surgimento ou destruição possíveis para uma lei básica, de modo que ela não poderia ter sido diferente (para ver esse argumento mais aprofundado, ler CID, 2019CID, R. Leis da Natureza: uma abordagem filosófica. Macapá: Editora da UNIFAP, 2019.).

Mas poderia o mundo não ter lei alguma ou ainda ter outras leis? Num sentido lógico, até poderia; mas num sentido real, metafísico, parece que não, dado que para ter outras leis, seria necessário que pudessem ter surgido outras leis, mas como elas não podem surgir ou se destruir, não poderiam ter surgido outras leis. Por outro lado, se não houvesse lei alguma, não haveria algo que teria de acontecer a partir da relação, por exemplo, de duas partículas elementares, i.e., poderia ocorrer qualquer coisa. Um mundo como esse seria um mundo completamente aleatório. Se rejeitamos os mundos completamente aleatórios e os tomamos como logicamente possíveis, mas metafisicamente impossíveis, só teríamos mundos com leis como realmente possíveis, que, ao menos as básicas, não poderiam não existir (CID, 2019CID, R. Leis da Natureza: uma abordagem filosófica. Macapá: Editora da UNIFAP, 2019., p. 168-182). Daí chegamos ao outro ponto: como as leis são um sistema de derivação em que as menos básicas são derivadas das mais básicas, se as leis básicas forem necessárias, parece se seguir que as menos básicas também o são. Então, se temos certas leis de surgimento ou destruição de leis que são necessárias, então as leis deriváveis delas serão também necessárias. Mas e as leis com relação às coisas concretas e materiais? Seriam essas leis deriváveis das leis básicas necessárias? Essa pergunta talvez seja uma das mais difíceis, e sua resposta depende de quais são as leis que pensamos serem básicas e as razões pelas quais pensamos que elas são básicas. De todo modo, ao menos algumas leis têm de existir, tal como o espaço e o tempo, e isso explica ao menos a primeira questão de Leibniz. Com relação à segunda, se as leis básicas contiverem também as leis com relação às entidades materiais básicas, então poderemos também responder por que existem as coisas que existem, e não outras. Essa questão é difícil e creio não conseguir abordá-la completamente aqui, mas queria, de todo modo, fornecer uma razão para pensarmos que as leis básicas contém as leis com relação ao funcionamento básico do espaço e do tempo, já que tempo e espaço seriam necessários e não podem ocorrer caoticamente sem deixarem de ser o que são. Se leis sobre o espaço e suas pontos já existem de modo básico, analogamente podemos pensar que as leis sobre a partícula fundamental também o é. Isso fica ainda mais aceitável, se mostrarmos que a partícula fundamental não poderia deixar de ser da forma que é (não poderia deixar de ter as propriedades categóricas que tem).

Se há leis básicas da matéria, essas leis seriam leis com relação às propriedades das partes mais básicas e simples da matéria. Mas o que seria a matéria e o que seriam essas partes ontologicamente básicas e simples?

3 Matéria

Talvez um dos maiores problemas, para além das entidades que são supostamente necessárias para o mundo - como espaço, tempo e leis naturais, que são para mim entidades concretas imateriais - é que há algumas entidades que não parecem ser necessárias e que estão em contato com o mundo da causalidade e da mudança de modo mais direto, que são as entidades concretas e materiais. Mas o que é a matéria e como pensar ontologicamente sobre ela? Nossa hipótese é a de que a matéria é fundamentalmente constituída de pontos materiais em relação. Quando pensamos realmente sobre a matéria e sobre o que precisa haver no mundo para que tenhamos essa experiência da matéria, chegamos em resultados filosoficamente interessantes.

A primeira coisa que podemos pensar é que temos de rejeitar o monismo e aceitar o pluralismo, para explicarmos as coisas. Se há diferentes coisas manifestadas para nós, isso só pode se explicar pela existência de pelo menos duas coisas diferentes (nós e a coisa, ou pelo menos duas partes da coisa), com manifestações diferentes. Uma única coisa não manifestaria diversas, a não ser que tivesse uma constituição interna, que permitisse múltiplas manifestações e, portanto, não fosse uma única coisa, mas algo composto de coisas mais fundamentais em relação. Assim, aceitando o pluralismo, i.e., a tese de que existe mais do que uma coisa, perguntamo-nos sobre o que são essas coisas que existem. Já falamos um pouco sobre o espaço, o tempo e as leis. Queríamos agora falar sobre esse outro existente que é a matéria.

O que chamamos de “matéria” aqui são as entidades que ocupam o espaço. As entidades que ocupam o espaço, nós percebemos terem uma característica muito interessante, que é a de serem contínuas, i.e., de ocuparem um intervalo do espaço. Por exemplo, uma pessoa não é um ponto, mas um intervalo de pontos, quando a pensamos representada no gráfico cartesiano. Mas como explicar que os objetos materiais são contínuos no espaço? Normalmente dizemos que o que constitui a continuidade das entidades materiais é a relação entre as entidades materiais mais básicas que são suas partes próprias. Mas não podemos explicar fundamentalmente a continuidade da matéria sem cairmos ou num infinitismo de sua constituição, ou numa entidade fundamental sem partes (ver CID, 2011cCID, R. Dois tipos de possibilidades metafísicas. Revista Índice, v. 2, p. 86- 93, 2010c.). A história dessa questão (e talvez de outras) se funda na divergência entre atomistas (como Leucipo e Demócrito) e sinequistas (como AristótelesARISTÓTELES (384-322 A.C.). Concerning indivisible lines. In: SMITH J. A.; ROSSE, W. D. The Works of Aristotle; parte 2. Londres: Oxford, 1908.) (ver mais sobre o atomismo em CHALMERS, 2005CHALMERS, A. (2005 ). Atomism from the 17th to the 20th Century. In: ZALTA, E. N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição do Outono de 2008 - correções menores). Disponível em: Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/atomism-modern/ Acesso em: 24 set. 2010.
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; BARRYMAN, 2005BERRYMAN, S. (2005). Ancient Atomism. In: ZALTA, E. N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição do Outono de 2008 - correção substantiva). Disponível em: Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/fall2008/entries/atomism-ancient . Acesso em: 24 set. 2010.
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). Os atomistas acreditavam na existência de entidades fundamentais indivisíveis, enquanto os sinequistas creem que certas entidades são infinitamente divisíveis, sendo assim ontologicamente contínuas. Os infinitistas, como teóricos contemporâneos do continuísmo (sinequismo), trouxeram-nos a noção de infinitesimal, mas esse conceito ainda é ontologicamente problemático e não sabemos bem o que seria uma entidade com uma extensão que seja maior que 0 e menor do que qualquer outra (BELL, 2005BELL, J. (2005). Continuity and Infinitesimals. In: ZALTA, E. N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição do Outono de 2008 - correção substantiva). Disponível em: Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/fall2010/entries/continuity/ . Acesso em: 24 set. 2010.
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; VARZI, 2009VARZI, Achille (2009). Mereology . In: ZALTA, E. N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição da Primavera de 2010 - correções menores ). Disponível em:Disponível em: http://plato.stanford.edu/archives/spr2010/entries/mereology/ . Acesso em: 24 set. 2010.
http://plato.stanford.edu/archives/spr20...
). Esses infinitesimais teriam um tamanho constante ou variável, de acordo com a teoria metafísica aceita. Qualquer resposta é problemática. Se é variável, então poderia ser menor do que é, de modo que a diferença de tamanho implica diferença de extensão e, portanto, implica continuidade, que precisaria ser explicada. Se, por outro lado, esse infinitesimal é constante, então tem uma magnitude específica e, assim, poderia ser dividida. Como entender, então, a continuidade dos objetos materiais?

Nossa solução, conforme dissemos, é que só quando apelamos para pontos, discretos, que podemos fundamentar de modo basilar a continuidade. Por outro lado, há uma série de argumentos antigos, da época de Zenão e de Aristóteles, no aristotélico Concerning Indivisible LinesARISTÓTELES (384-322 A.C.). Concerning indivisible lines. In: SMITH J. A.; ROSSE, W. D. The Works of Aristotle; parte 2. Londres: Oxford, 1908., contra a possibilidade de as coisas serem formadas por pontos e contra a ideia de que existe uma pluralidade determinada de coisas. O argumento de Zenão que nos diz respeito aqui é o seguinte (CID, 2011cCID, R. Dois tipos de possibilidades metafísicas. Revista Índice, v. 2, p. 86- 93, 2010c., p. 5):

Suponha que as coisas são completamente divisíveis. (2) Se as coisas são completamente divisíveis, então da divisão completa não pode restar alguma magnitude, pois esta seria divisível. (3) Se da divisão completa de uma coisa não resta magnitude alguma, então tal coisa é constituída de nada ou de pontos. (4) Se uma coisa é constituída de nada, cabe explicar como algo (como a aparência de uma coisa extensa) pode advir do nada, pois prima facie algo não pode advir do nada. (5) Se uma coisa é constituída de pontos, ela não possui magnitude, já que uma soma de coisas sem magnitude não pode resultar em alguma coisa com magnitude. Logo, (6) Como o nada não poderia constituir algo e como as coisas têm magnitudes, elas não poderiam ser constituídas de nada e nem de pontos. (7) Contradição encontrada em (3) e (6). (8) Reductio ad absurdum: As coisas não são completamente divisíveis.

A ideia desse argumento que levaremos em conta e que discutiremos é que se as coisas são formadas de pontos, elas não teriam extensão, pois os pontos não têm extensão. Minha objeção a esse argumento é que é bastante óbvio que os pontos modificam a extensão das coisas, fornecendo-as mais extensão. Repare que aqui não negarei simplesmente a tese, mas mostrarei um contra-exemplo, que indica que, ainda que pontos sejam conceitualmente sem extensão, eles modificam no tamanho das formas em que se inserem. Por exemplo, se temos um intervalo com uma quantidade de pontos n e adicionamos mais um ponto ao intervalo, então temos um intervalo de n+1 pontos. Neste sentido, n+1 é maior que n, pois n está contido em n+1, mas n+1 não está contido em n. Se, dessa forma, a adição de um ponto em dois intervalos de mesmo tamanho torna um intervalo maior, então a adição de pontos interfere na extensão dos intervalos. Se as coisas materiais são como intervalos, então a adição de um ponto de matéria interfere em sua extensão. Mas disso não precisamos concluir que os pontos têm magnitude, pois disso se seguiria que eles são ao menos conceitualmente divisíveis - algo que não podemos aceitar e que a definição de ponto não aceita. Seria adequado, antes, dizer que os pontos de matéria são o fundamento da magnitude e da extensão material, tal como os pontos do espaço são o fundamento da extensão do espaço, mas não têm eles mesmos extensão. Poderíamos perguntar ainda por que dizer que pontos não possuem extensão em vez de dizer que possuem extensão metafisicamente indivisível? Minha resposta a essa pergunta é que dizer que “uma extensão é metafisicamente indivisível” é dizer que não é possível metafisicamente (dada a totalidade dos mundos metafisicamente possíveis, tomando-os anti-realisticamente) dividir aquela extensão, o que pode ser o caso por dois motivos: (1) pela coisa ser o fundamento da extensão e, portanto, indivisível, ou (2) por não ser possível metafisicamente criar um aparato capaz de dividir tal objeto básico. Como eu penso que apenas 1 responderia a questão sobre qual o fundamento da continuidade dos objetos, eu tentei já dizer a razão pela qual eu penso que pontos são metafisicamente indivisíveis: por serem conceitualmente indivisíveis, dado serem o fundamento da extensão. E ainda que não tenham uma magnitude específica, eles fazem diferença nas coisas que constituem, tal como mostrei com o contra-exemplo dos pontos nos intervalos e sua analogia com os objetos materiais. Os pontos do espaço não têm eles mesmos extensão, mas fundam toda a extensão espacial e fundam também a diferença de tamanho entre intervalos pensados como conjuntos de pontos, que podem conter uns aos outros.7 7 É claro que poderíamos ainda perguntar como pontos de matéria sem extensão poderiam formar coisas com extensão. Se essa pergunta é meramente filosófica, espero já ter respondido, dando um exemplo claro de como pontos sem extensão interferem na extensão de objetos matemáticos com extensão. Agora se a pergunta é saber exatamente como o processo ocorre, então essa já seria uma pergunta talvez para o físico responder, por meio de suas experimentações e teorizações, e não o filósofo, penso eu.

Ter extensão, nesse sentido, é ser formado por blocos básicos de extensão, i.e., pontos. Imagine um objeto material tangenciando uma reta. O ponto em que esse objeto tangencia a reta é exatamente um ponto de matéria desse objeto. Mas não precisamos defender que podemos dividir a matéria praticamente até chegar aos seus pontos constituintes. Pode ser que as coisas não sejam praticamente divisíveis a pontos, mas são ao menos conceitualmente divisíveis a eles. Mas é isso consistente com nossa melhor ciência para a investigação das menores entidades concretas e materiais, a física? A física nos diz que as coisas são feitas de quarks e outras partículas fundamentais, que têm um comportamento diferente entre si (por exemplo, um elétron e um neutrino se comportam diferentemente) e bastante estranho (como a existência de estados de superposição e comportamento ondulatório-particular). Com relação a isso, talvez nossa teoria diga que se há diferentes comportamentos para diferentes partículas fundamentais, parece que nossa investigação não chegou no final, pois a diferença de comportamento, se não for explicada pela diferença de constituição interna, acaba ficando como um fato bruto, sem explicação. Temos diferentes átomos na tabela periódica, pois eles são diferentes composições dos mesmos tipos de partículas. Mas e essas “partículas” mais fundamentais, como elas poderiam ser diferentes? A explicação tem de ser a mesma. Elas são diferentes por serem formadas diferentemente de partes mais fundamentais. Em última instância, não poderia haver diferença entre as partículas mais fundamentais da realidade, dado que elas seriam simples, não podendo ter diferentes composições internas. Os pontos, pela sua simplicidade, teriam todos as mesmas características e, portanto, as mesmas propriedades, sendo a diversidade criada a partir somente das leis naturais que governam a relação entre as propriedades básicas desses pontos. Se o fundamento da matéria mais básico tem de ser os pontos, e os pontos são todos iguais, então todos têm as mesmas propriedades e, assim, as leis sobre eles seriam sempre as mesmas. Assim, se os pontos são essenciais para que exista matéria, sendo portanto necessários num mundo material, suas leis seriam igualmente necessárias por já existirem em qualquer mundo em que um mundo material é acessível.

Ainda que aceitemos essa teoria da matéria como composta de pontos, há ainda muitas outras coisas por explicar, como: como a matéria surgiu, se é que surgiu, e como o movimento que a relaciona se iniciou, se é que se iniciou. As próprias leis poderiam gerar matéria a partir da passagem do tempo no espaço, se tomarmos a passagem do tempo como causalmente eficaz (algo que defendo em CID, 2011bCID, R. A necessidade, a possibilidade e as leis da natureza. Investigação Filosófica, v. 1, n. 1, art. 1, 2010b., a partir do famoso argumento do Shoemaker pela possibilidade de passagem de tempo sem movimento). Essa é uma pergunta bastante difícil, e não podemos respondê-la sem uma extensa investigação filosófica. Nossa visão de mundo, por enquanto, nos diz o que fundamentalmente é a matéria, mas não como ela surge ou se sempre existiu. Deixamos em aberto a resposta a tal pergunta, mas não sem indicar que precisamos respondê-la para completarmos nossa visão de mundo e que temos os meios de respondê-la, por exemplo, pelas leis transcendentes atuando na passagem do tempo no espaço.

4 Mente e Livre-Arbítrio

Independentemente de se a matéria é ou não formada de pontos de matéria, alguns compostos materiais parecem ter mente. E isso é intrigante, pois não sabemos direito o que seria a mente: se seriam ou não compostos materiais, ou como se relacionariam com os compostos materiais. Talvez a maior dificuldade com a mente é que existem estados qualitativos que temos acesso internamente, de modo privativo. Por exemplo, ter fome, sentir dor, imaginar uma bicicleta são todos estados mentais, puramente compostos de sensações e imagens mentais. A dificuldade em explicar tais estados é que eles não parecem ser plenamente redutíveis a estados concretos materiais. Uma pessoa imagina uma bicicleta verde, mas se estudarmos fisicamente o corpo dessa pessoa, não encontramos bicicleta verde alguma em seu corpo material. Encontramos apenas células em relação. Como não pensamos que essas características mentais possam ser adequadamente reduzidas a características materiais, temos de postular na realidade um outro tipo propriedade para a matéria: algo de imaterial e consciente surge a partir dela.

Aceitar a existência de propriedades mentais de um modo forte significa aceitar que existem propriedades (pensamentos, sentimentos) ou entidades (mentes individuais) concretas, porém imateriais. Assim, aceitar tal coisa é se comprometer com alguma forma de dualismo. Mas não defendemos o dualismo interacionista do estilo cartesiano (mas antes um epifenomenalismo de superveniência, como indico num manuscrito do Philpapers8 8 Disponível em: https://philpapers.org/rec/CIDFSP. Acesso em: 25 ago. 2022. ), pois é difícil explicar como algo meramente mental e imaterial poderia ter efeito no mundo material, já que a causalidade tem um aspecto cinemático difícil de ser explicado por algo imaterial. São duas principais dificuldades: algo imaterial, por ser imaterial, não teria efeito com relação ao movimento das coisas, caso o movimento tenha sua origem nas forças físicas conhecidas; não podendo, assim, explicar, a origem dos nossos movimentos corpóreos. Além disso, há um problema de sobredeterminação, a saber, qualquer estado concreto material é completamente explicado pelo estado concreto material anterior, de modo que se a mente tivesse algum efeito na matéria, esse efeito seria uma sobredeterminação, já que a matéria é completamente determinada pela matéria. Isso tem uma implicação estranha, que é a de que não são os nossos estados mentais que movem nosso corpo e, assim, não é a nossa fome que nos move para comer, mas é o nosso próprio corpo material, de modo que parece que os estados mentais são supérfluos. Dessa forma, para lidar simultaneamente com o problema da sobredeterminação e da natureza dos estados mentais, preferimos aceitar o epifenomenalismo ao invés do interacionismo.

Ainda que seja o corpo material que cause os efeitos do corpo material, parece claramente que há uma relação entre o corpo material e a mente, de modo que ações no corpo causam efeitos na mente, como, por exemplo, furar o pé causa dor. Dessa forma, ainda que não consigamos compreender a relação do mental para o material, a relação do material para o mental parece menos problemática.

Assim, a teoria que aceitamos para dar conta desses estados mentais e da relação necessária do cérebro para a mente é um dualismo, mas não um dualismo interacionista nem espiritualista. Para nós, não é provável que haja alma, mas sim uma mente imaterial superveniente ao corpo material.9 8 Disponível em: https://philpapers.org/rec/CIDFSP. Acesso em: 25 ago. 2022. Essa é uma forma de epifenomenalismo, pois é dualista e rejeita a interação do mental para o físico. E isso parece ter uma relação direta com nosso livre-arbítrio, pois nos vê como epifenômenos de corpos completamente determinados pelos processos físicos materiais ocorrendo nesses corpos. Dessa forma, essa visão, embora nos dê uma mente, parece não nos dar livre-arbítrio algum. Outras visões são possíveis e defensáveis, mas preferimos manter o determinismo incompatibilista junto com o epifenomenalismo, e deixamos a defesa mais substantiva dessas teses para outros textos já referidos ou por ainda escrever.

Realmente eu não vejo muito espaço, ontologicamente, para a existência do livre-arbítrio, se não aceitarmos deus e a alma. Ainda que o mundo não fosse completamente determinístico e houvesse partes que fossem decisões indeterminísticas, isso não salvaria o livre-arbítrio (como nos lembra SOBER, 2008SOBER, E. Freedom, determinism, and causality. In: SOBER, E. Core Question in Philosophy: A Text with Readings. 5. ed. New Jersey: Prentice Hall, 2008. p. 293-302.), pois realizar decisões de modo indeterminístico é decidir aleatoriamente, e decisões aleatórias estão longe de serem livres. Como decisões determinadas e indeterminadas não salvariam o livre-arbítrio, parece que apenas apelar para uma causalidade livre incausada poderia salvá-lo. E só podemos aceitar tal coisa, parece-me, se aceitarmos uma alma imaterial com poderes causais, ação e movimento no mundo físico. E não temos ideia de como isso se daria, dada a imaterialidade e a sobredeterminação.10 10 É argumentável aqui que esse problema também acometeria nossas leis imateriais transcendentes que governam a causalidade singular. Eu responderia a essa objeção, dizendo que a ação de governança ocorre por meio da instanciação de propriedades, e não por meio de alguma movimentação que uma entidade imaterial teria de causar. Uma escolha e ação livres seriam completamente causadas por uma consciência imaterial livre que controla talvez misticamente os movimentos do corpo. Essa dificuldade com a imaterialidade não afeta a governança das leis imateriais transcendentes. Como não pretendemos esgotar os argumentos pela nossa posição e nem contra o livre-arbítrio, nossa intenção foi apenas motivá-la por meio da apresentação de algumas razoes que preservam nosso quadro conceitual em que todos os estados de coisas de primeira ordem são particulares tendo propriedades governadas por leis da natureza, que determinam o que ocorre a seguir. Mas essa visão natural e epifenomenal da realidade nos leva a caminhos intrigantes em nossa teoria do valor.

5 Ética e Política

O que toda essa visão traz para nossa moralidade? Se, tal como em nossa visão de mundo, somos apenas máquinas biológicas com consciências epifenomênicas, imateriais, determinadas pelas nossas partes materiais, submetidas a governança pelas leis naturais no espaço e no tempo, e se não temos controle último sobre as relações materiais que determinam nossas propriedades mentais imateriais, não temos controle sobre nossas decisões e nem mesmo sobre nossas ações, de modo que não é possível traçar responsabilidade moral alguma aos sujeitos, e isso exterminaria nossa moralidade e, em última instância, nossa sociedade. Essa é uma das ideias mais comuns como colocadas como consequência de uma visão de mundo determinística e incompatibilista como a que estamos aqui apresentando.

Eu penso que essas últimas conclusões são um pouco alarmistas. Realmente perdemos a responsabilidade moral num mundo em que mentes são epifenômenos; tudo que poderemos fazer é traçar a relação de causalidade de atos considerados negativos até certas pessoas, e afastar tais pessoas do convívio, pelo perigo que representam para o corpo social. Isso nada tem a ver com as pessoas serem seres autônomos e moralmente responsáveis por suas ações. Segundo a nossa visão de mundo nomológico-determinista e epifenomenalista, não somos responsáveis por nossas ações, mas isso não impede a sociedade de afastar do convívio as pessoas que estão causando problemas para o trato social, sejam essas pessoas moralmente responsáveis ou não. Podemos rejeitar a responsabilidade moral e, mesmo assim, fundar nossas ações sociais de aprisionamento, expulsão, tratamento etc.

Um problema aqui é que se rejeitamos a responsabilidade moral, pareceria para alguns que rejeitamos a própria ética. Eu diria aqui que não rejeitamos a ética, mas podemos estar rejeitando o realismo moral. Pois se somos deterministas e incompatibilistas, tal como aqui nos mostramos, e se não somos senhores de nossas ações, i.e., se não há sujeito autônomo e responsabilizável, então não pode haver certo e errado, dever e proibição moral.11 11 Há, é claro, defesas articuladas de que é possível haver responsabilidade moral mesmo sem livre-arbítrio. Para fins de construção da visão de mundo proposta, tomo o mundo como não tendo livre-arbítrio e nem responsabilidade moral, que seria o caso mais difícil para essa visão, e tento dar uma resposta a ele. Entretanto, a razão que nos levou a rejeitar o realismo moral a princípio não foi essa, mas foi nossa concepção metafísica de quais são as propriedades realmente existentes. As propriedades morais e a verdade moral para o realismo parecem se fundar em fatos morais (existência de valores ou de ações com propriedades morais), porém rejeitamos essa forma de realismo mais ingênua, por aceitarmos os argumentos metaéticos de Mackie (1990MACKIE, J. Ethics: inventing right and wrong. 2. ed. London: Penguin Group, 1990.) de que (1) os fatos morais seriam fatos muito estranhos, que (2) exigiriam uma faculdade própria de intuição cheia de divergência entre as pessoas e que (3) demandariam uma realidade moral que servisse de veridador para tais fatos. Fatos morais seriam estranhos, pois teriam um caráter avaliativo que nenhum fato natural possui. Além disso, a propriedade atribuída pelos fatos morais “ser bom” ou “ser correto” são todas propriedades sujeitas à questão em aberto de Moore.

Embora uma posição compatibilista ou uma posição realista sofisticada pudessem ser defendidas, mesmo tendo em vista os argumentos de Mackie, nossa posição ética é ontologicamente antirrealista, teórica do erro, como Mackie (1990MACKIE, J. Ethics: inventing right and wrong. 2. ed. London: Penguin Group, 1990.): todos os juízos morais são falsos, pois tentam descrever uma realidade moral que não existe. Nossa ideia é a de que as leis da natureza governam as propriedades dos estados de coisas submetidos à causalidade singular, e só existem as propriedades governadas pelas leis naturais. Como as propriedades morais e suas relações não implicam nenhuma ocorrência na causalidade singular (não são causa e nem efeito), não está claro para nós que deveríamos considerá-las como propriedades metafisicamente existentes. É claro que tais predicados morais terão algum significado em nossa teoria, mas não referirão entidades metafisicamente existentes.

Tal posição nos exige então explicar a prática moral, nosso uso dos predicados morais, já que estaríamos constantemente falando falsidades. Para essa função - a de explicar a prática moral - eu não tenho nada melhor que o quase realismo do Blackburn (1993BLACKBURN, S. Essays in Quasi-Realism. Oxford: Oxford University Press, 1993.; e In: COPP, 2006COPP, D. (org.). The Oxford Handbook of Ethical Theory. New York: Oxford University Press, 2006.; e mais em MILLER, 2003POJMAN, L. P. Philosophy of Religion: An Anthology. Belmont: Wadsworth, 2003., cap. 4), que pensa a prática moral de modo expressivista, como antes tentando influenciar o comportamento das pessoas do que tentando descrever uma realidade moral. Isso se adequaria bastante a uma realidade de seres conscientes e não livres, vivendo deterministicamente uma realidade mental que é fruto da causalidade física, tentando influenciar uns aos outros. Assim, embora eu pense que a ética é uma tentativa falha de descrever uma realidade moral inexistente, o que eu acho que as pessoas realmente estão fazendo quando moralizam é influenciar o comportamento das pessoas, por meio da expressão das suas atitudes com relação às várias ações moralmente avaliáveis, tendo em vista a consistência ou inconsistência de suas sensibilidades morais. De fato, essa visão não mantém a realidade da normatividade, mas apenas a sua aparência, entretanto nos permite falar ao menos da consistência ou inconsistência das sensibilidades morais (conjuntos supostamente integrados de juízos morais), a partir de uma noção ampliada de bivalência, sem aceitar a existência de uma realidade moral para além da nossa realidade natural e sem aceitar que a moralidade trata realmente de verdades metafísicas.

Assim, a ideia é que a ética é parte de nossas relações sociais, que é complementada por nossos acordos políticos. Como não há realidade moral, não há como nenhuma concepção moral ou concepção de bem se mostrar como verdadeira; elas apenas podem influenciar umas às outras. E nessa sociedade moralmente plural e não livre em que vivemos, que tipo de justificação para a política pode haver?

Como não haveria realidade moral, portanto também não haveria valores básicos. Se não há valores básicos, não há uma concepção objetivista da política que a funde num certo valor. Assim, o que pode haver é apenas o interesse de cada um. Assim, creio que em nossa visão de mundo, a fundamentação do Estado e da política poderia se dar bastante adequadamente em termos de auto-interesse racional. Queremos a política, pois não queremos ser dominados por outras pessoas e porque queremos sair desse estado de perigo e de medo, que parece ser natural a um grupo de pessoas não organizado, pensando hobesianamente. Uma sociedade que politicamente justifique nosso autointeresse, levando em consideração uma tentativa de paz entre as diversas concepções morais, é uma sociedade aonde as diversas concepções de bem não são restritas umas pelas outras, i.e., são todas razoáveis (no estilo de RAWLS, 2001RAWLS, J. O Direito dos Povos. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001., e CID, 2010CID, R. Reduzindo as desigualdades sociais: as capacidades na manutenção da segurança humana. Revista Páginas de Filosofia: v. 2, n. 2, p. 107-137, 2010a. [Republicada em: MACIEL, S. F. et al. Política Prática. Macapá: Editora da UNIFAP, 2020.], In: MACIEL et al, 2020, p. 65-96), ou, ao menos, obrigadas a serem razoáveis pelo leviatã, dado que se não forem, serão punidas pela violência que cometem. Apenas vale a pena racionalmente entrar num Estado quando ele não é mínimo e nem máximo, e quando ele leva em consideração o interesse dos mais fracos e dos mais fortes (por favor, leia CID, 2020aCID, R. (org.). Tópicos em Metafísica Contemporânea. Porto Alegre: Fi, 2020a., para uma justificação mais completa dessa concepção política, que faz a razoabilidade fazer parte do nosso interesse racional).

Mas qual a forma política que deveríamos seguir? Isso é difícil, mas as pessoas se reúnem numa sociedade, pois, além de escapar do estado de natureza social, querem viver bem, com tranquilidade e, na medida do possível, com uma ampliação progressiva da sua qualidade de vida (i.e., o desenvolvimento), medida em termos de uma ampliação progressiva do conjunto capacitatório das pessoas (conjunto de capacidades para realizar funcionamentos que temos razões para realizar - para uma melhor compreensão dos termos técnicos, ver o trabalho de SEN, 2000SEN, A. Social Exclusion: Concepts, Application, and Scrutiny. Manila, Asian Development Bank, 2000b. e 2001SEN, A. Why Human Security? In: INTERNATIONAL SYMPOSIUM ON HUMAN SECURITY, 2001b.). Assim, só uma sociedade preocupada com o aumento da qualidade de vida é uma sociedade política que realmente satisfaz o nosso autointeresse, por evitar as inseguranças sociais, econômicas e políticas, com mecanismos de prevenção de desastres nessas áreas (SEN, 2000aSEN, A. Desenvolvimento como Liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2000a., 2001aSEN, A. Desigualdade Reexaminada (trad. Ricardo Doninelli Mendes). Rio de Janeiro, Record, 2001a.; CID, 2020aCID, R. (org.). Tópicos em Metafísica Contemporânea. Porto Alegre: Fi, 2020a.). Isso é importante, pois é do nosso autointeresse ter uma sociedade que se afaste do estado de natureza em qualquer uma dessas áreas. Portanto, ainda que nossa ética seja ontologicamente antirrealista e de prática moral expressivista, tentamos fundar a política não numa ética realista, a qual não temos, mas no autointeresse e contratualismo, que prescinde de uma realidade moral. Sabemos que talvez nossa concepção política seja a mais frágil desse texto, pois não está claro o caminho do auto-interesse racional. Há ainda muito que se discutir, para que tenhamos uma visão de mundo completa e sistemática. Esperamos ter começado um caminho para discussões ainda mais profundas, as quais não podemos ter com profundidade neste texto, dado o tamanho do objetivo que nos demos para o número de páginas que dispomos.

Considerações finais: uma visão de mundo

Dessa forma, em nossa visão de mundo, somos máquinas biológicas, com uma consciência concreta e imaterial, epifenomenal, superveniente às relações entre os pontos da matéria que ela focupa, que são governados por leis da natureza que ocupam o espaço-tempo. Tais pontos são o fundamento de toda a extensão e têm suas propriedades categóricas de modo necessário (sua forma pontual, sua simplicidade interna, seu tamanho de ser o fundamento da extensão). As leis da natureza necessárias determinam as relações entre as propriedades desses pontos e, de modo derivado, das propriedades dos conglomerados desses pontos, pontos que existem num espaço e num tempo absolutos e necessários. Não existem propriedades disposicionais: as aparências de disposições são somente propriedades categóricas governadas por leis naturais. E nem existem realmente mundos possíveis: [algumas] necessidades metafísicas são determinadas por leis naturais e possibilidades são determinadas pelo que não viola as necessidades do mundo atual, o único que nos parece realmente possível. Mas saber como surgiram esses pontos de matéria ou se eles sempre existiram, isso foi algo que, embora importante, não respondemos e deixamos como uma questão em aberta, a ser respondida, talvez pela eficácia causal da passagem do tempo submetida a leis. Seja qual for a resposta, ela vai ser problemática.

De toda forma, parece que seres humanos não têm livre-arbítrio, dado nosso determinismo nomológico e epifenomenalismo; mas, mesmo assim, ainda que não tenhamos a responsabilidade moral, podemos justificar nossa prática punitiva, por meio da proteção contra pessoas às quais se pode traçar um ato de causalidade politicamente proibida. Sem livre-arbítrio, numa sociedade anárquica, vivemos em medo, terror e domínio dos mais fortes. Usamos nossos juízos morais para influenciar o comportamento uns dos outros nesse cenário; no entanto eles não têm normatividade real e não conseguem descrever a irreal realidade moral que intencionam. Acaba que a prática moral serve para interferir nos sentimentos, pensamentos, atitudes e comportamentos das pessoas, a fim de fazermos fazê-las o que gostaríamos que elas fizessem. Mas o que gostaríamos que elas fizessem, disso não temos controle, dado os nossos desejos serem determinados pelas leis naturais governando nosso corpo.

Como não há realidade moral, há uma persistente e provavelmente não solucionável divergência moral na sociedade entre diversos grupos de pessoas. Tal divergência só pode ser “solucionada” num domínio político em que criamos normas para regulamentar as relações entre as pessoas e as diferentes concepções de bem. E esse domínio político é justificado não por questões morais, sobre as quais somos antirrealistas, mas por meio do autointeresse. Como já defendi antes (CID, 2010CID, R. Reduzindo as desigualdades sociais: as capacidades na manutenção da segurança humana. Revista Páginas de Filosofia: v. 2, n. 2, p. 107-137, 2010a. [Republicada em: MACIEL, S. F. et al. Política Prática. Macapá: Editora da UNIFAP, 2020.], 2020bCID, R. (org.). Refutações: ensaios em política, economia, ética e arte. Porto Alegre: Fi, 2020b.), uma sociedade do nosso autointeresse é uma na qual o Estado não é mínimo nem máximo, mas aprimora progressivamente nossa qualidade de vida, sendo razoável com todas as concepções de bem razoáveis, dando-nos o direito de mudar de concepção de bem razoável sem problemas legais. Uma sociedade do nosso autointeresse racional é uma sociedade na qual temos segurança, e uma segurança pensada de modo abrangente (como SEN, 2001aSEN, A. Desigualdade Reexaminada (trad. Ricardo Doninelli Mendes). Rio de Janeiro, Record, 2001a., 2002SEN, A. Basic Education and Human Security. Kolkata: Commission on Human Security, UNICEF, the Pratichi Trust, Harvard University, 2002.), envolvendo a nossa proteção social, mas também proteção econômica e política - fatores essenciais para a manutenção de uma sociedade que seja do nosso autointeresse.

Ainda que a nossa visão de mundo não seja completa e precise sempre de alguma reformulação, quando em contato, por equilíbrio reflexivo, com as ciências, apresentamos um modo de ver a realidade que parte dos seus constituintes mais fundamentais, os pontos de matéria, até os seus conglomerados mais intrigantes, que são os seres humanos e os grupos sociais, e como eles se inserem nesse mundo.

Muitas questões são ainda formuláveis sobre os tópicos abordados (veja-se um pouco mais em CID, 2020aCID, R. (org.). Tópicos em Metafísica Contemporânea. Porto Alegre: Fi, 2020a., e em IMAGUIRE; CID, 2020IMAGUIRE, G.; CID, R. (org.). Problemas de Metafísica Analítica. Pelotas: Editora UFPel, 2020.), que puderam, neste texto, apenas ser tocados de modo breve e um tanto superficial. Muitos dos pontos aqui apresentados foram discutidos em outros lugares, porém o que é mais valioso desse artigo é antes a tentativa de uma visão geral da realidade, uma visão de mundo possível, com algumas razões a seu favor. Longe de ser definitivo, esse artigo pretende abrir espaço para discussões mais amplas e tentativas de integrar detalhes teóricos numa visão mais geral de mundo. Por exemplo, nada falamos sobre como as mentes obtêm conhecimento e sobre o que é o conhecimento sobre o mundo; não discutimos a verdade do nominalismo, nem avaliamos as versões realistas não intuicionistas mais contemporâneas da ética. O que tentamos fazer foi integrar nossas melhores conclusões de vários problemas que já discutimos anteriormente, para construir uma visão de mundo unificada e logicamente aceitável. O que temos que fazer agora é (a) ou integrar nossas respostas de outras questões filosóficas a tal visão de mundo e nos perguntar sobre sua consistência, mantendo um equilíbrio reflexivo entre mudar nossa visão de mundo ou nossas melhores respostas filosóficas e científicas disponíveis para cada área específica, (b) ou construir uma nova visão filosófica de mundo.

Referências

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    » http://plato.stanford.edu/archives/spr2010/entries/mereology/
  • 2
    Eu vejo a filosofia como uma área composta de forças especialistas e generalistas. Uma filosofia completa toma como relevante ambos os movimentos, para construir a totalidade do conhecimento filosófico. Os especialistas nos permitem adentrar nas teorias, em suas mais vastas consequências, para sermos aptos a pesá-las entre si e, por meio do generalista, integrá-las racionalmente numa concepção geral de mundo. Queremos a compreensão mais geral e mais total da realidade, com todas as justificações que nos permitem saber cada parte de nosso conhecimento. Essa é uma tarefa hercúlea, a qual creio que conseguiremos, como uma comunidade.
  • 3
    Pode-se argumentar aqui que estamos confundindo espaço com universo/mundo. A princípio poderia haver um mundo sem espaço, ainda que não possa haver espaço sem dimensões espaciais, tal como um mundo de formas ou conceitos platônicos. Eu posso concordar com isso e dizer que não poderia haver um mundo físico sem espaço, de modo que se um mundo físico existe, ele tem espaço, isto é, se algo não tem espaço, isso não é um mundo fisicamente possível. Então, se o mundo físico existe, ter dimensões espaciais é necessário. Assim, se existe um mundo físico, o espaço lhe é essencial. Poder-se-ia argumentar contra nós, dizendo que nós não fazemos adequadamente a distinção entre 1) haver algo e não nada e 2) o que é necessário assumindo-se que que há algo. Poder-se-ia dizer que ainda que seja plausível que não há tal coisa como um universo sem dimensões espaciais (e temporais, logo a seguir), o que realmente precisamos é de um argumento cuja conclusão seja a impossibilidade do completo nada, isto é, a impossibilidade do mundo possível em que nada há. Para responder a isso, eu diria daria o seguinte argumento por redução ao absurdo com relação à existência do nada implicar a existência do tempo: Suponha que há nada. Se há nada, então há nada por mais de zero segundo, pois se houver nada por mais de zero segundo, então não é o caso que não há nada. O problema então é que se há nada por mais de zero segundo, então há também um intervalo de tempo e, consequentemente, tempo. Então se há nada, há também tempo, o que implica que não há nada. Logo, a suposição de que há nada e de que é possível haver nada é falsa. Logo, não é possível haver nada.
  • 4
    Embora este argumento esteja presente em Cid, 2012CID, R. Por que há algo, e não nada. Investigação Filosófica, v. 1, n. 1, art. 1, 2012., vale a pena ler mais sobre o tempo em Mctaggart, 1908MCTAGGART, J. M. E. The Unreality of Time. Mind, v. 17, n. 68, p. 457-474, 1908., e em Cid, 2011CID, R. McTaggart e o problema da realidade do tempo. Argumentos, v. 3, n. 5, p. 99-110, 2011..
  • 5
    Ainda fica por debater se tais concepções absolutistas do espaço e do tempo são compatíveis com o espaço-tempo relacional da relatividade, coisa que não devo fazer neste texto, por falta de espaço, mas que é relevante para a avaliação das vantagens e desvantagens de tal visão (como consistência interna e externa). Uma dificuldade seria que a física, na relatividade, pensa o espaço de modo relacional, surgindo apenas a partir da existência de distâncias relativas entre as coisas e sendo dependente do referencial, e parece que meu argumento pressupõe um espaço absoluto (ver HUGGETT, 2022HUGGETT, N.; HOEFER, C.; READ, J. Absolute and Relational Space and Motion: Post-Newtonian Theories. In: ZALTA, E. N. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Spring 2022 Edition). Disponível em: Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/spr2022/entries/spacetime-theories/ . Acesso em: 24 set. 2010.
    https://plato.stanford.edu/archives/spr2...
    ; HOEFER, 2022HOEFER, C.; HUGGETT, N.; READ, J.. 2022. Absolute and Relational Space and Motion: Classical Theories. In: ZALTA, E. N.; NODELMAN, U. (ed.). The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2022 Edition). Disponível em: Disponível em: https://plato.stanford.edu/archives/win2022/entries/spacetime-theories-classical/ . Acesso em: 24 set. 2010.
    https://plato.stanford.edu/archives/win2...
    , para compreender melhor os conceitos envolvidos). Se houvesse apenas uma coisa, na relatividade, não haveria espaço, e é justamente isto que o surgimento a partir de uma singularidade nos diz: que o espaço surge a partir do surgimento das coisas para além da singularidade. Mas algo que temos de nos perguntar é se essa singularidade deve possuir algum tipo de estrutura interna. Se ela não possui, é difícil entender como ela pode ter mudado do estado singular para o múltiplo. Se ela possui, então devemos descrever essa estrutura como um sistema de partes, o que envolveria a presença do espaço, interno à singularidade. Mas talvez seja difícil emular essa objeção com relação ao tempo. Se o tempo for pensado como completamente relacional, teremos de dizer que um mundo com apenas um estado de coisas imutável seria um mundo sem tempo. O tempo relacional é a medida da causalidade entre as coisas. Sem causalidade, sem tempo. O problema, nesse mundo possível vazio de causalidade, seria responder à pergunta sobre se tal mundo existe há mais de 0 segundos ou não. Essa pergunta é difícil, pois o relacionista deve dizer que tal mundo existe por 0 segundos, o que, pelo nosso argumento anterior, implica que o mundo não existe. E se ele aceitar o oposto, estará aceitando simultaneamente uma concepção substantivista (ou substantivalista) do tempo, de um tempo absoluto. Tal assunto é por demais complexo para um pequeno artigo como este, e deixo sua resposta como dependente dessa discussão.
  • 6
    É claro que a lei de fundo é a lei de Coulomb, da qual podemos derivar que sal se dissolve em água, por causa de suas relações eletrostáticas. Mas falaremos dessa derivação como se fosse a lei, para finalidades meramente pedagógicas. A ideia de que, de estados de coisas iniciais e leis, podemos derivar estados de coisas finais é bem expressa no modelo nomológico-dedutivo.
  • 7
    É claro que poderíamos ainda perguntar como pontos de matéria sem extensão poderiam formar coisas com extensão. Se essa pergunta é meramente filosófica, espero já ter respondido, dando um exemplo claro de como pontos sem extensão interferem na extensão de objetos matemáticos com extensão. Agora se a pergunta é saber exatamente como o processo ocorre, então essa já seria uma pergunta talvez para o físico responder, por meio de suas experimentações e teorizações, e não o filósofo, penso eu.
  • 8
    Disponível em: https://philpapers.org/rec/CIDFSP. Acesso em: 25 ago. 2022.
  • 10
    É argumentável aqui que esse problema também acometeria nossas leis imateriais transcendentes que governam a causalidade singular. Eu responderia a essa objeção, dizendo que a ação de governança ocorre por meio da instanciação de propriedades, e não por meio de alguma movimentação que uma entidade imaterial teria de causar. Uma escolha e ação livres seriam completamente causadas por uma consciência imaterial livre que controla talvez misticamente os movimentos do corpo. Essa dificuldade com a imaterialidade não afeta a governança das leis imateriais transcendentes.
  • 11
    Há, é claro, defesas articuladas de que é possível haver responsabilidade moral mesmo sem livre-arbítrio. Para fins de construção da visão de mundo proposta, tomo o mundo como não tendo livre-arbítrio e nem responsabilidade moral, que seria o caso mais difícil para essa visão, e tento dar uma resposta a ele.
  • 9

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Set 2022
  • Aceito
    16 Jan 2023
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