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COMPUTAÇÃO NA EDUCAÇÃO BÁSICA: EXPERIÊNCIAS E REFLEXÕES POSSIBILITADAS PELO PROJETO POR DENTRO DO COMPUTADOR

COMPUTING IN K-12: POSSIBLE EXPERIENCES AND REFLECTIONS BY POR DENTRO DO COMPUTADOR PROJECT

RESUMO

Este artigo apresenta uma iniciativa de trabalho com tecnologias digitais voltada para crianças e adolescentes. São descritos ações, cursos e intervenções realizados por docentes e estudantes no projeto de extensão universitária Por Dentro do Computador. O desafio de organizar o ensino para esse público permitiu reconhecer a necessidade de novos estudos sobre a especificidade dos processos de aprendizagem e desenvolvimento de alunos desse nível de escolarização, para que se possa avançar na prática pedagógica com tecnologias digitais na educação básica.

Palavras-chave
Educação para crianças; Teoria histórico-cultural; Ensino de computação; Pensamento computacional

ABSTRACT

This article presents an initiative for working with digital technologies aimed at children and adolescents. Actions, courses, and interventions carried out by teachers and students in the university extension project Por Dentro do Computador are described. The challenge of organizing the teaching for this audience allowed us to recognize the need for new studies about the specificity of the learning and development processes of students at this level of schooling, so that we can advance in the pedagogical practice with digital technologies in K-12.

Keywords
Education for children; Historical-cultural theory; Computer teaching; Computational thinking

Introdução

No atual estágio da nossa sociedade, marcado pela informação e por seu paradigma tecnológico (CASTELLS, 2000CASTELLS, M. A sociedade em rede. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000. v. 1.; WERTHEIN, 2000WERTHEIN, J. A sociedade da informação e seus desafios. Ciência da Informação, Brasília, v. 29, n. 2, p. 71-77, maio/ago. 2000. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ci/a/rmmLFLLbYsjPrkNrbkrK7VF/?format=pdf⟨=pt. Acesso em: 5 maio de 2021.
https://www.scielo.br/j/ci/a/rmmLFLLbYsj...
), cabe-nos não só o deslumbramento com os incríveis avanços alcançados nesse campo, mas também o questionamento acerca dos impactos sociais e culturais, bem como das questões éticas envolvidas no uso das tecnologias que deveriam incluir a possibilidade de participação ativa dos cidadãos.

Para que seja alcançado esse nível de reflexão crítica, a tecnologia que já está presente em todos os espaços da vida humana deve estar presente também na escola. Nesse espaço específico, ela não se reduz a bem de consumo; deve ser objeto de conhecimento, contemplando não apenas o aspecto técnico, mas todas as facetas que a envolvem.

Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
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), que orienta o currículo que deve ser oferecido pelas escolas brasileiras, a computação não é incluída como disciplina curricular, contudo deve ser empregada de modo transversal às demais áreas de conhecimento, fazendo-se presente em todas as etapas educacionais.

De acordo com a BNCC, a tecnologia precisa ser compreendida para poder ser utilizada e desenvolvida, de modo a colaborar com as práticas sociais no compartilhamento de informações e acesso a elas, razão pela qual entender, utilizar e criar tecnologias digitais de maneira crítica, ética e significativa são algumas das competências a serem desenvolvidas na educação básica (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
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).

Para o desenvolvimento dessas competências, são previstas três dimensões: cultura digital, mundo digital e pensamento computacional. A cultura digital refere-se ao modo de compreender a vivência em sociedade mediante o uso das tecnologias digitais de informação e comunicação (TDICs). O mundo digital está relacionado à forma de assimilar a propagação das informações, por meio de equipamentos físicos (hardware) e lógicos (software), e o pensamento computacional (PC) diz respeito à análise e solução de problemas de variadas naturezas com o amparo de conceitos computacionais (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
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).

As TDICs têm sido essenciais, principalmente em momentos de adversidade, tal como a vivenciada em decorrência da pandemia do novo coronavírus (Covid-19), em que toda a forma de acesso e comunicação entre professores e alunos ocorreu por intermédio das TDICs, mas não podemos resumir seu uso a essa finalidade.

Kaminski, Klüber e Boscarioli (2021)KAMINSKI, M. R.; KLÜBER, T. E.; BOSCARIOLI, C. Pensamento computacional na educação básica: reflexões a partir do histórico da informática na educação brasileira. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 29, p. 604-633, jun. 2021. https://doi.org/10.5753/rbie.2021.29.0.604
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afirmam que o uso das TDICs no contexto educacional deve ser planejado conforme os paradigmas e tendências pedagógicos estabelecidos, visando contribuir com os processos de ensino e aprendizagem. Os autores ainda sinalizam abordagens e estratégias de ensino que têm sido utilizadas com ou sem o uso de tecnologias e, entre elas, o desenvolvimento do PC como uma área em evidência, visto que diversas publicações sobre a temática têm sido registradas nos últimos anos.

Neste artigo, relatamos uma iniciativa de trabalho com tecnologias digitais com crianças e adolescentes de escolas públicas. Trata-se de atividades desenvolvidas por um curso de Licenciatura em Computação (LC), mediante um projeto de extensão intitulado Por Dentro do Computador: uma Experiência de Popularização da Arquitetura de Computadores (PDC). Em seguida, destacamos a necessidade de aprofundamento do conhecimento pedagógico para atuação nesse nível de ensino, sentida durante o desenvolvimento do projeto, necessidade que se torna mais urgente tendo em vista a inclusão dessa formação na educação formal, como exposto na BNCC (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
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). Finalizamos o texto enfatizando a necessidade de intensificar estudos e práticas que possibilitem avançar na compreensão pedagógica do trabalho com tecnologias digitais, seja na educação formal, seja na não formal, com base em conhecimentos sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes e a função social da instituição escolar.

Projeto Por Dentro do Computador: Experiências para Crianças e Adolescentes

Desde sua concepção, em 2014, o projeto tem como objetivos principais “popularizar e difundir conhecimentos básicos, relacionados às máquinas computacionais de uso diário (computadores, tablets e smartphones), para públicos não iniciados” (BELETI JUNIOR et al., 2020bBELETI JUNIOR, C. R.; SANTIAGO JUNIOR, R. M.; ZÜGE, A. P.; VALÉRIO, M.; BEZERRA, M. G. C. Por dentro do computador: trajetória de um projeto extensionista em um campus da UFPR no interior do Paraná. In: WORKSHOP SOBRE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO, 2020, Cuiabá. Anais [...]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2020b. p. 51-55. https://doi.org/10.5753/wei.2020.11128
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, p. 2).

O PDC é composto majoritariamente de docentes e discentes vinculados ao curso de LC. Suas ações têm permeado o âmbito educacional, oferecendo diretamente acesso a conhecimentos computacionais, mas também investigando e aproximando os estudantes em formação de temáticas pujantes na área, tais como o ensino de computação sem aparatos tecnológicos (computação desplugada) e o PC, por meio de abordagens metodológicas diversificadas. Busca-se proporcionar diretamente aos estudantes da LC vivências formativas e experiências de atuação profissional com públicos variados, incluindo especialmente alunos da educação básica.

Entre as muitas estratégias do projeto, temos a produção de seu principal material didático, o diorama, “uma representação dos componentes de uma máquina computacional, produzido em escala aumentada, com a finalidade de despertar o interesse dos visitantes em participar das atividades” (BELETI JUNIOR et al., 2020bBELETI JUNIOR, C. R.; SANTIAGO JUNIOR, R. M.; ZÜGE, A. P.; VALÉRIO, M.; BEZERRA, M. G. C. Por dentro do computador: trajetória de um projeto extensionista em um campus da UFPR no interior do Paraná. In: WORKSHOP SOBRE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO, 2020, Cuiabá. Anais [...]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2020b. p. 51-55. https://doi.org/10.5753/wei.2020.11128
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, p. 2). Tal diorama, ilustrado na Fig. 1, faz parte de uma das abordagens metodológicas utilizadas no projeto, em que os participantes percorrem estações de aprendizagem e interagem com recursos tecnológicos, com componentes reais de uma máquina computacional e com as peças do diorama (BELETI JUNIOR et al., 2020aBELETI JUNIOR, C. R.; MACEDO, C. A.; ALENCAR, V.; H. S.; SANTIAGO JUNIOR, R. M.; ZÜGE, A. P. Abordagem metodológica para o ensino de Arquitetura de Computadores em ambientes não formais. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 28, p. 335-358, 2020a. https://doi.org/10.5753/rbie.2020.28.0.335
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).

Figura 1
Diorama.

Essa abordagem pode ser modificada conforme as particularidades do público, do local e das características da intervenção. Em ações com menor tempo de execução e maior rotatividade de público, por exemplo, o número de estações de aprendizagem pode ser alterado, tal como exposto em Santiago Junior et al. (2020)SANTIAGO JUNIOR, R. M.; BELETI JUNIOR, C. R.; BEZERRA, M. G. C.; ZÜGE, A. P. Uma experiência de uso de sistemas de resposta à Audiência em atividade de educação não formal. Renote, Porto Alegre, v. 18, n. 1, 2020. https://doi.org/10.22456/1679-1916.106050
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, em que 160 alunos participaram de uma intervenção do projeto durante um evento realizado por uma escola pública em uma cidade da região.

Além disso, caso a localidade não disponha de recursos, como, por exemplo, eletricidade, o uso de aparatos tecnológicos pode ser dispensado, e são oferecidas possibilidades de interação com outros materiais, tais como história em quadrinho, jogos de tabuleiro, bingo binário, bonecos didáticos, entre outros (BELETI JUNIOR et al., 2020bBELETI JUNIOR, C. R.; SANTIAGO JUNIOR, R. M.; ZÜGE, A. P.; VALÉRIO, M.; BEZERRA, M. G. C. Por dentro do computador: trajetória de um projeto extensionista em um campus da UFPR no interior do Paraná. In: WORKSHOP SOBRE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO, 2020, Cuiabá. Anais [...]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2020b. p. 51-55. https://doi.org/10.5753/wei.2020.11128
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).

É interessante ressaltar que, apesar de os materiais e atividades serem adaptáveis ao público, particularidades de local e tempo para a intervenção, alguns são mais voltados para públicos específicos. Por exemplo, a peça teatral Sofia no mundo dos computadores, que descreve a aventura de uma menina dentro de um computador gigante com componentes que têm vida (BELETI JUNIOR et al., 2020bBELETI JUNIOR, C. R.; SANTIAGO JUNIOR, R. M.; ZÜGE, A. P.; VALÉRIO, M.; BEZERRA, M. G. C. Por dentro do computador: trajetória de um projeto extensionista em um campus da UFPR no interior do Paraná. In: WORKSHOP SOBRE EDUCAÇÃO EM COMPUTAÇÃO, 2020, Cuiabá. Anais [...]. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2020b. p. 51-55. https://doi.org/10.5753/wei.2020.11128
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), foi produzida especialmente para o público infantil, assim como as animações feitas referentes à temática.

Outra ação específica para crianças é a oficina de produção de réplicas de peças do computador. Por meio dela, crianças de 6 a 8 anos que visitaram as instalações do projeto na universidade construíram réplicas da memória RAM, utilizando materiais como isopor, tinta e cola. O objetivo dessa intervenção foi dialogar com as crianças, de modo simples e lúdico, sobre o funcionamento de um dos principais componentes que constituem uma máquina computacional. Ao final da atividade, cada criança pôde levar sua memória RAM para casa, a fim de desencadear ao menos a curiosidade de outros colegas e familiares ao depararem com a peça. A Fig. 2 ilustra a participação das crianças nessa intervenção.

Figura 2
Intervenção de criação de réplica do componente de memória RAM.

Outra atividade desenvolvida pelo PDC ocorreu em um centro municipal de educação infantil, com a participação de crianças com idades entre 4 e 5 anos. Foi realizada a leitura da história em quadrinho intitulada Sofia e o HD, e, com a ajuda dos estudantes do projeto, as crianças interpretaram as personagens fictícias presentes na história. Não foi objetivo da intervenção fazer com que as crianças compreendessem por completo o funcionamento do HD, mas sim apresentá-lo a elas e aproximá-las de conceitos computacionais que já fazem parte de seu cotidiano, quando brincam com tablets e smartphones, por exemplo.

Atividades com maior tempo de realização, como cursos, também foram oferecidas. Entre elas, os cursos de robótica educacional e programação, em que alunos de escolas e colégios públicos de Jandaia do Sul (PR) e região participaram de atividades sobre as temáticas do PDC, em suas próprias instituições ou no campus da Universidade Federal do Paraná (UFPR), onde está situado o projeto.

O curso de robótica educacional especificamente foi ministrado por um estudante do projeto para alunos com idades entre 6 e 10 anos, por 20 horas. Foram abordados conceitos de programação por meio de blocos e montagem de robôs, em uma metodologia baseada em projetos. Como produção final do curso, os alunos implementaram o projeto do robô equilibrista (Gyro Boy), disponível no repositório de projetos da Lego Mindstorms e apresentaram-no na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia (SNCT), evento promovido pelo campus da UFPR em Jandaia do Sul, no ano de 2018. A Fig. 3 ilustra uma das alunas, de 8 anos, apresentando sobre robótica educacional na SNCT.

Figura 3
Apresentação sobre robótica educacional na Semana Nacional de Ciência e Tecnologia, em 2018.

Em 2019, foi realizado um curso de programação para alunos de escolas públicas, na faixa etária entre 6 e 16 anos. Foram formadas quatro turmas, contemplando no total 26 alunos. No curso, com duração de 30 horas, ministrado por estudantes do projeto e acompanhado pelas professoras regentes das turmas, foram apresentados conceitos de programação, inicialmente sem uso de tecnologias (computação desplugada) e, na sequência, com o auxílio de plataformas de programação online. Os resultados foram satisfatórios quanto ao envolvimento, à dedicação e à aprendizagem dos alunos ao longo de todo o curso.

Em 2019, o projeto foi contemplado com a chancela da Sociedade Brasileira de Computação (SBC) como um projeto inovador, “de caráter educativo, social, cultural ou tecnológico” (SBC, 2021SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO (SBC). O que é Chancela SBC. Sociedade Brasileira de Computação, 2021. Disponível em: https://www.sbc.org.br/institucional-3/chancela-sbc. Acesso em: 5 maio 2021.
https://www.sbc.org.br/institucional-3/c...
), por possibilitar o acesso aos conceitos computacionais para diversos públicos.

O projeto conta com um repertório de atividades amparado por abordagens pedagógicas e metodologias, tais como rotação por estações, gamificação, taxonomia dos objetivos educacionais (BELETI JUNIOR et al., 2020aBELETI JUNIOR, C. R.; MACEDO, C. A.; ALENCAR, V.; H. S.; SANTIAGO JUNIOR, R. M.; ZÜGE, A. P. Abordagem metodológica para o ensino de Arquitetura de Computadores em ambientes não formais. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 28, p. 335-358, 2020a. https://doi.org/10.5753/rbie.2020.28.0.335
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), aprendizagem baseada em projetos, além de atividades de caráter recreativo.

Todavia, contar com técnicas e metodologias já consagradas na literatura acadêmica não eliminava o desafio constante sentido por professores e estudantes da graduação na organização e no desenvolvimento das atividades. Como tratar conteúdos tão complexos com crianças da educação infantil que ainda nem dominam a leitura? Que linguagem utilizar com alunos dos anos iniciais do ensino fundamental que há pouco foram alfabetizados? O que priorizar e como nos aproximarmos dos interesses e das necessidades de adolescentes para ensinarmos o conteúdo que desejamos? Como tornar o conteúdo acessível a esse público?

As atividades desenvolvidas no projeto estão mais voltadas para a educação não formal, porém as perguntas que surgiram durante a sua organização não dizem respeito apenas a esse tipo de educação, mas a todo o processo de ensino sistematizado. Nesse sentido, a necessidade de mais conhecimento sobre o trabalho pedagógico com tecnologias digitais se torna ainda maior quando esse trabalho passa a ser realizado de modo generalizado por todas as escolas, como previsto na BNCC.

A necessidade sentida pelos integrantes do PDC é a mesma de professores, pesquisadores e instituições educacionais que têm desenvolvido estudos, propostas curriculares e materiais didáticos para o ensino de computação para a educação básica. A seção subsequente explora algumas dessas iniciativas.

Diretrizes para o Ensino de Computação

Conforme destacado anteriormente, a BNCC apresenta a computação como componente transversal ao ensino das demais áreas (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacional comum curricular. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/BNCC_EI_EF_110518_versaofinal_site.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
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)1, o que divide a opinião de pesquisadores e instituições da área (SBC, 2018SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO (SBC). Diretrizes para ensino de computação na educação básica. Sociedade Brasileira de Computação, 2018. Disponível em: https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc/send/131-curriculos-de-referencia/1177-diretrizes-para-ensino-de-computacao-na-educacao-basica. Acesso em: 5 maio 2021.
https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc...
; VALENTE, 2016VALENTE, J. A. Integração do pensamento computacional no currículo da educação básica: diferentes estratégias usadas e questões de formação de professores e avaliação do aluno. Revista E-curriculum, v. 14, n. 3, p. 864-897, 2016.), considerando que a computação poderia ser ofertada como uma matéria curricular específica. De qualquer forma, o fato de a computação estar presente de algum modo na BNCC já representa um avanço nessa temática.

Ao encontro desse fato, a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) (BRASIL, 2019BRASIL. Resolução CNE nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União, 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-rcp002-19/file. Acesso em: 7 jul. 2021.
http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro...
) menciona, mesmo que de maneira tímida, a importância de se tratar da temática apesar de apenas apresentá-la na seção “Didática e seus fundamentos”. Consta da BNC-Formação a necessidade da “compreensão básica dos fenômenos digitais e do pensamento computacional, bem como de suas implicações nos processos de ensino-aprendizagem na contemporaneidade” (BRASIL, 2019BRASIL. Resolução CNE nº 2, de 20 de dezembro de 2019. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação). Diário Oficial da União, 2019. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro-2019-pdf/135951-rcp002-19/file. Acesso em: 7 jul. 2021.
http://portal.mec.gov.br/docman/dezembro...
, p. 6). Embora não especifique o termo fenômenos digitais, compreendemos que faz referência às dimensões cultura digital e mundo digital.

A SBC, entidade que centraliza as discussões sobre o ensino de computação no Brasil, tem colaborado com os debates a respeito da importância da temática no contexto educacional. Em 2018, formulou diretrizes para o ensino de computação na educação básica (SBC, 2018SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO (SBC). Diretrizes para ensino de computação na educação básica. Sociedade Brasileira de Computação, 2018. Disponível em: https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc/send/131-curriculos-de-referencia/1177-diretrizes-para-ensino-de-computacao-na-educacao-basica. Acesso em: 5 maio 2021.
https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc...
). Esse documento explicita a Computação como ciência que:

[...] investiga processos de informação, desenvolvendo linguagens e técnicas para descrever processos existentes e também métodos de resolução e análise de problemas, gerando novos processos. Além disso, foram criadas máquinas para armazenar a informação e automatizar a execução de processos. O aprimoramento e disseminação dessas máquinas (computadores) ao longo dos últimos 50 anos afetou profundamente o mundo sob vários aspectos: econômico, científico, tecnológico, social e cultural

(SBC, 2018SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO (SBC). Diretrizes para ensino de computação na educação básica. Sociedade Brasileira de Computação, 2018. Disponível em: https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc/send/131-curriculos-de-referencia/1177-diretrizes-para-ensino-de-computacao-na-educacao-basica. Acesso em: 5 maio 2021.
https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc...
, p. 3).

As diretrizes da SBC, em consonância com a BNCC, dividem o ensino de computação nas mesmas três dimensões (PC, mundo digital e cultura digital), trazendo mais informações sobre elas, além de destacar as aproximações do ensino de computação às competências gerais da BNCC. O documento ainda propõe os conceitos da área a serem trabalhados nos ensinos fundamental e médio, definindo até mesmo objetos de conhecimento e suas respectivas habilidades para cada ano. Ao final, destaca a importância da computação como objeto de conhecimento transversal às outras ciências, mas ressalta a necessidade de seu ensino com intencionalidade. Ao encontro das diretrizes, a instituição adicionou as habilidades relacionadas ao ensino de computação também na educação infantil (RAABE et al., 2017RAABE, A. L. A.; ZORZO, A. F.; FRANGO, I.; RIBEIRO, L.; GRANVILLE, L. Z.; SALGADO, L.; CRUZ, M. J. K.; BIGOLIN, N.; CAVALHEIRO, S. A. C.; FORTES, S. Referenciais de formação em computação: educação básica. Sociedade Brasileira de Computação, 2017. Disponível em: http://www.sbc.org.br/files/ComputacaoEducacaoBasica-versaofinal-julho2017.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
http://www.sbc.org.br/files/ComputacaoEd...
). Ainda como complemento, a SBC propôs o Itinerário Formativo de Computação para o ensino médio (SBC, 2019SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO (SBC). Itinerário formativo de computação. Porto Alegre: Sociedade Brasileira de Computação, 2019. Disponível em: https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc/send/203-educacao-basica/1216-itinerario-formativo-da-computacao. Acesso em: 5 maio 2021.
https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc...
), que traz unidades curriculares da computação e carga horária, porém não apresenta possibilidades de implementação em sala de aula.

Visando aproximar o ensino de computação do trabalho no ambiente escolar, o Centro de Inovação para a Educação Brasileira (CIEB) desenvolveu currículos de referência em tecnologia e computação para a educação básica (CIEB, 2020CENTRO DE INOVAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA (CIEB). Currículo de referência: itinerário formativo em tecnologia e computação. São Paulo: CIEB, 2020. Disponível em: https://cieb.net.br/wp-content/uploads/2021/02/Curri%CC%81culo-de-refere%CC%82ncia_Ensino-me%CC%81dio.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
https://cieb.net.br/wp-content/uploads/2...
; RAABE; BRACKMANN; CAMPOS, 2018RAABE, A. L. A.; BRACKMANN, C. P.; CAMPOS, F. R. Currículo de referência em tecnologia e computação: da educação infantil ao ensino fundamental. Centro de Inovação para a Educação Básica, 2018.). Eles foram baseados na BNCC e, portanto, mantêm seu foco sobre as aprendizagens relacionadas às TDICs de modo transversal às demais áreas, orientados pelas três dimensões, cultura digital, tecnologia digital e PC. De qualquer maneira, temos uma proposta de organização curricular para o ensino de conceitos ligados à computação e tecnologia.

Em outra iniciativa, Bittencourt, Santana e Araujo (2021)BITTENCOURT, R. A.; SANTANA, B. L.; ARAUJO, L. G. J. Computação fundamental: currículo e livros didáticos de computação para o ensino fundamental II. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 29, p. 662-691, jun. 2021. https://doi.org/10.5753/rbie.2021.29.0.662
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propõem o desenvolvimento e a organização de materiais didáticos para orientar o ensino de computação, bem como sua relação com as demais disciplinas, por meio dos conceitos do PC. Trata-se de um conjunto de livros didáticos com o propósito de integrar conceitos da ciência da computação voltados para os anos finais do ensino fundamental. Segundo os autores, “os livros didáticos associados oferecem um guia para professores e atividades para estudantes que permitem conhecer elementos básicos da computação e realizar práticas de computação e reflexões a partir da prática” (BITTENCOURT; SANTANA; ARAUJO, 2021BITTENCOURT, R. A.; SANTANA, B. L.; ARAUJO, L. G. J. Computação fundamental: currículo e livros didáticos de computação para o ensino fundamental II. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 29, p. 662-691, jun. 2021. https://doi.org/10.5753/rbie.2021.29.0.662
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, p. 662).

Além dessas iniciativas nacionais, diversas são as propostas de materiais e currículos para o ensino de computação para a faixa etária que compreende a educação básica no Brasil em outras partes do mundo (BERRY, 2013BERRY, M. Computing in the national curriculum: a guide for primary teachers. Bedford: Newnorth Print, 2013. 32 p. Disponível em: https://www.stem.org.uk/elibrary/resource/34863. Acesso em: 7 jul. 2021.
https://www.stem.org.uk/elibrary/resourc...
; CSTA, 2017COMPUTER SCIENCE TEACHERS ASSOCIATION (CSTA). CSTA K-12 Computer Science Standards 2012. Computer Science Teachers Association, 2017. Disponível em: http://www.csteachers.org/standards. Acesso em: 16 jun. 2021.
http://www.csteachers.org/standards...
; K-12 CSFSC, 2016K-12 COMPUTER SCIENCE FRAMEWORK STEERING COMMITTEE (K-12 CSFSC). K-12 computer science framework. ACM, 2016. Disponível em: https://k12cs.org/wp-content/uploads/2016/09/K%E2%80%9312-Computer-Science-Framework.pdf. Acesso em: 16 jun. 2021.
https://k12cs.org/wp-content/uploads/201...
; ROYAL SOCIETY, 2012ROYAL SOCIETY. Shut down or restart?: the way forward for computing in UK schools. Royal Society, 2012.). Mesmo com todos esses materiais à disposição, ao analisá-los, concordamos com Bittencourt, Santana e Araujo (2021)BITTENCOURT, R. A.; SANTANA, B. L.; ARAUJO, L. G. J. Computação fundamental: currículo e livros didáticos de computação para o ensino fundamental II. Revista Brasileira de Informática na Educação, v. 29, p. 662-691, jun. 2021. https://doi.org/10.5753/rbie.2021.29.0.662
https://doi.org/10.5753/rbie.2021.29.0.6...
quanto ao apontamento da necessidade de materiais didáticos mais detalhados e organizados e que vão ao encontro dos objetivos de aprendizagem descritos nos referenciais curriculares da SBC (RAABE et al., 2017RAABE, A. L. A.; ZORZO, A. F.; FRANGO, I.; RIBEIRO, L.; GRANVILLE, L. Z.; SALGADO, L.; CRUZ, M. J. K.; BIGOLIN, N.; CAVALHEIRO, S. A. C.; FORTES, S. Referenciais de formação em computação: educação básica. Sociedade Brasileira de Computação, 2017. Disponível em: http://www.sbc.org.br/files/ComputacaoEducacaoBasica-versaofinal-julho2017.pdf. Acesso em: 7 jul. 2021.
http://www.sbc.org.br/files/ComputacaoEd...
).

A legislação e as iniciativas citadas evidenciam que, apesar de haver tradição no trabalho com computação no ensino superior, não é possível transpor práticas realizadas nesse nível de ensino para a educação básica. É necessário considerar a especificidade dos processos de aprendizagem e desenvolvimento dos estudantes em cada etapa da escolarização, bem como a função social da instituição escolar nesse momento da formação humana. Enfim, o trabalho pedagógico nesse nível é ainda novo. Conhecimentos sobre ele são necessários e estão em construção.

PC na Educação Básica: Nova Possibilidade Teórica

Apesar dessa ênfase atual sobre o PC, o conceito apareceu pela primeira vez em um trabalho de Seymour Papert (1980)PAPERT, S. Mindstorms: children, computers and powerful ideas. Nova York: Basic Books, 1980., na década de 1980, voltando a vigorar com destaque no ambiente acadêmico somente após o artigo de Jeannette Wing, nos anos 2000 (WING, 2006WING, J. M. Computational thinking. Communications of the ACM, v. 49, n. 3, p. 33-35, 2006.). Para Wing (2006, p. 33, tradução nossa)WING, J. M. Computational thinking. Communications of the ACM, v. 49, n. 3, p. 33-35, 2006.,

O pensamento computacional envolve a solução de problemas, o projeto de sistemas e a compreensão do comportamento humano, com base nos conceitos fundamentais da ciência da computação. O pensamento computacional inclui uma gama de ferramentas mentais que refletem a amplitude do campo da ciência da computação.

Com base na produção dessa autora, diversas foram as pesquisas que propuseram definições e modelos conceituais, abordagens e formas de avaliação para o PC (CSTA; ISTE, 2011COMPUTER SCIENCE TEACHERS ASSOCIATION (CSTA); INTERNATIONAL SOCIETY FOR TECHNOLOGY IN EDUCATION (ISTE). Operational definition of computational thinking for K–12 Education. Computer Science Teachers Association & International Society for Technology in Education, 2011. Disponível em: https://www.iste.org/explore/computational-thinking/computational-thinking-all. Acesso em: 7 jul. 2021.
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; PALTS; PEDASTE, 2020PALTS, T.; PEDASTE, M. A model for developing computational thinking skills. Informatics in Education, v. 19, n. 1, p. 113-128, 2020.; RAABE; BRACKMANN; CAMPOS, 2018RAABE, A. L. A.; BRACKMANN, C. P.; CAMPOS, F. R. Currículo de referência em tecnologia e computação: da educação infantil ao ensino fundamental. Centro de Inovação para a Educação Básica, 2018.; ROYAL SOCIETY, 2012ROYAL SOCIETY. Shut down or restart?: the way forward for computing in UK schools. Royal Society, 2012.; SBC, 2018SOCIEDADE BRASILEIRA DE COMPUTAÇÃO (SBC). Diretrizes para ensino de computação na educação básica. Sociedade Brasileira de Computação, 2018. Disponível em: https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc/send/131-curriculos-de-referencia/1177-diretrizes-para-ensino-de-computacao-na-educacao-basica. Acesso em: 5 maio 2021.
https://www.sbc.org.br/documentos-da-sbc...
; SHUTE; SUN; ASBELL-CLARKE, 2017SHUTE, V. J.; SUN, C.; ASBELL-CLARKE, J. Demystifying computational thinking. Educational Research Review, v. 22, p. 142-158, 2017. https://doi.org/10.1016/j.edurev.2017.09.003
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), porém ainda não há consenso global sobre a temática.

Consideramos que, na discussão sobre a formação do PC especificamente na educação básica, é importante levarmos em conta a particularidade da formação própria desse nível de ensino. Na educação básica devem ser garantidas aos estudantes as aquisições elementares para que eles possam compreender o mundo em que vivem e serem protagonistas nele. Não se trata, portanto, de formar especialistas ou atender as demandas imediatas do mercado de trabalho. Por exemplo, o pensamento geográfico que deve ser formado nesse nível de ensino não tem como objetivo formar um geógrafo, mas pessoas que compreendam os fenômenos geográficos e atuem de modo adequado com eles. O desenvolvimento do pensamento científico não visa à formação do cientista, mas a formação de pessoas que tenham condições de entender fenômenos físicos, químicos, naturais que estão presentes na realidade objetiva e atuar com eles. Esse raciocínio é válido também quando nos referimos à formação do PC na educação básica. Não se trata da formação de alguma habilidade para o exercício de funções no campo da computação, mas do desenvolvimento de uma capacidade básica para compreender e interagir como sujeito ativo na sociedade contemporânea.

Em tese, a relação entre o desenvolvimento do pensamento e o papel da escolarização nesse processo é um tema sempre presente no campo educacional e conta com contribuições de várias das ciências humanas, como a pedagogia, a filosofia e a psicologia. Compreender o pensamento de modo geral pode nos ajudar a compreender melhor o PC no que tem como um todo e em sua particularidade.

Para a teoria histórico-cultural, o psiquismo humano tem natureza social. Ou seja, ele não é resultado de uma maturação biológica, mas das aquisições que se dão no meio social. As funções psíquicas – sensação, percepção, atenção, memória, linguagem, pensamento, imaginação, emoção e sentimentos – desenvolvem-se como resultado da apropriação da cultura produzida pela humanidade, que ocorre por meio das interações sociais das quais o sujeito participa.

Entre essas interações sociais, está a que ocorre em contexto escolar, onde se tem acesso a uma parte específica dessa cultura: os conceitos sistematizados pela ciência, pela filosofia e pela arte. A aprendizagem das generalizações produzidas por essas áreas do conhecimento promove o desenvolvimento do psiquismo humano. Nas palavras de Vygotski (2001, p. 214)VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. Madri: Visor, 2001. v. 2.:

Uma vez que a nova estrutura de generalização tenha surgido na esfera do pensamento, se transfere depois, como qualquer estrutura, como um determinado princípio de atividade, sem necessidade de aprendizagem alguma, a todas as esferas restantes do pensamento e dos conceitos. Desse modo, a tomada de consciência vem pela porta dos conceitos científicos.

Davídov (1988)DAVÍDOV, V. La enseñanza escolar y el desarrollo psiquico. Moscou: Progresso, 1988., ao analisar os tipos de pensamento, diferencia-os qualitativamente em pensamento empírico e pensamento teórico. O pensamento empírico relaciona-se com o objeto de conhecimento apenas nas suas propriedades exteriores, desconectado de suas relações com outros objetos, e fixa-se em suas definições. O pensamento teórico desenvolve-se pela formação de conceitos e pelo domínio dos procedimentos lógicos do pensamento que, pelo seu caráter generalizador, permitem sua aplicação em vários âmbitos da aprendizagem. Davídov (1988)DAVÍDOV, V. La enseñanza escolar y el desarrollo psiquico. Moscou: Progresso, 1988. considera que, em razão de o pensamento teórico ser o mais completo e desenvolvido, atingi-lo nos estudantes deve ser o objetivo da educação escolar.

Como explica Sforni (2015)SFORNI, M. S. F. Interação entre didática e teoria histórico-cultural. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 375-397, abr./jun. 2015. https://doi.org/10.1590/2175-623645965
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, na ênfase atribuída pela teoria histórico-cultural aos conceitos científicos no desenvolvimento do pensamento, o conceito científico não se reduz a uma definição verbal por meio da qual são descritos e classificados os fenômenos e objetos do mundo. Ele é tratado como mediador/instrumento das ações mentais.

Assim, enquanto forma conceitos científicos, o estudante incorpora ações mentais, capacidades e procedimentos lógicos ligados aos conceitos. Esse não é, porém, o modo usual de se ensinar conceitos nas escolas. Como alerta Sforni (2015)SFORNI, M. S. F. Interação entre didática e teoria histórico-cultural. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 375-397, abr./jun. 2015. https://doi.org/10.1590/2175-623645965
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, para atingir essa finalidade, “é preciso que o ensino de conceitos científicos esteja assentado em procedimentos didáticos voltados para a apropriação do conceito como atividade mental, o que em muito se diferencia do modelo de ensino conceitual próprio da tradição escolar” (SFORNI, 2015SFORNI, M. S. F. Interação entre didática e teoria histórico-cultural. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 375-397, abr./jun. 2015. https://doi.org/10.1590/2175-623645965
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, p. 377), que tende a ser centrada na definição verbal e na repetição de exercícios para fixar operações com os conceitos. Completa a autora: “Para que seja apropriado como instrumento do pensamento, o conceito precisa estar contido nas tarefas de aprendizagem que exijam dos estudantes operações mentais de transição do universal para o particular e vice-versa” (SFORNI, 2015SFORNI, M. S. F. Interação entre didática e teoria histórico-cultural. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 40, n. 2, p. 375-397, abr./jun. 2015. https://doi.org/10.1590/2175-623645965
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, p. 391).

Com base nesses conhecimentos sobre a aprendizagem conceitual, surgem algumas questões acerca do PC e do trabalho pedagógico que o promove: como situar o PC nas discussões mais gerais feitas pela psicologia da educação e pela didática? Seria ele um tipo particular de pensamento teórico? Os conhecimentos já produzidos sobre a organização do ensino que visam ao desenvolvimento do pensamento teórico podem contribuir para pensarmos práticas pedagógicas voltadas ao desenvolvimento do PC? Essas perguntas ainda carecem de respostas objetivas, mas consideramos que os estudos sobre o PC e sua formação em contexto escolar podem ser enriquecidos no diálogo com esses outros campos do conhecimento, incrementando assim as propostas de ensino de computação para a educação básica.

Considerações Finais

Em meados de 2014, quando o Projeto PDC iniciou as suas atividades, pretendíamos contribuir com a divulgação e popularização da ciência e da tecnologia, por meio da difusão de informações sobre computação – componentes físicos (hardware) –, para públicos diversos e sem interesse puramente técnico, sobretudo alunos e professores da educação básica. Tínhamos um ambiente de educação não formal, visto que as atividades ocorriam fora da sala de aula regular, embora muitas vezes no próprio ambiente escolar.

Com o passar do tempo, novas demandas foram criadas, sobretudo por gestores escolares, e, com isso, novos materiais, metodologias e abordagens didáticas foram desenvolvidos. Contamos hoje com um catálogo de possibilidades (cursos, intervenções, materiais didáticos, encenação teatral, entre outros) que podem ser oferecidas conforme o público e particularidades da instituição de ensino. Além disso, por causa das restrições impostas pela Covid-19 para a realização de atividades presenciais, incrementamos nossas mídias sociais (PDC, 2023POR DENTRO DO COMPUTADOR (PDC). Mídias digitais e redes sociais do projeto. Jandaia do Sul, 2023. Disponível em: https://linktr.ee/pordentrodocomputador. Acesso em: 23 mar. 2023.
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), com conteúdos voltados ao uso de TDICs e à produção de conteúdos digitais, no campo educacional.

O fato de o Projeto PDC estar inserido no âmbito da educação não formal nos permitia certa liberdade na organização do trabalho em termos de carga horária e público atendido. Todavia, a cada material produzido, curso organizado e intervenções feitas na educação básica, a necessidade de considerar a especificidade desse público na relação com o conhecimento era um desafio para toda a equipe.

Com as orientações legais de que a computação e a tecnologia devem ser contempladas na educação básica, como demonstramos neste artigo, a necessidade de maior conhecimento pedagógico se impõe como condição para a realização de um trabalho que tenha impacto no desenvolvimento dos estudantes desse nível de ensino. Cremos que esse conhecimento pedagógico deve ser produzido na interface de três áreas: ciência da computação, psicologia da educação e didática.

Por meio de teorias que investigam os processos de ensino, aprendizagem e desenvolvimento humano de forma integral, como a teoria histórico-cultural, podemos analisar possibilidades pedagógicas para o ensino de computação, sendo esse o nosso desafio como pesquisadores neste momento. Com isso, teremos mais subsídios para ampliar a abrangência da atuação do Projeto PDC para além da educação não formal, bem como contribuir com o rico movimento de produção de conhecimento sobre o trabalho com a computação na educação básica, que vem se intensificando nos últimos anos.

Nota

  • 1
    Em outubro de 2022 foi homologado o parecer referente às Normas sobre Computação na Educação Básica – Complemento à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento no qual a computação passa a ser conteúdo curricular da educação básica, fato que certamente impactará as ações do projeto e todas as outras no mesmo propósito a partir de então.

Agradecimentos

Agradecemos o apoio institucional da Universidade Federal do Paraná, por meio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura e do Programa Licenciar da Pró-Reitoria de Graduação e Educação Profissional, e a licença com ônus limitado (afastamento para estudos) para o primeiro e o terceiro autor.

Disponibilidade de Dados da Pesquisa

Não se aplica.

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Editores Associados:

Ana Clara Bortoleto Nery https://orcid.org/0000-0001-6316-3243 e Eduardo Alessandro Kawamura https://orcid.org/0000-0002-0209-2282

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Set 2022
  • Aceito
    01 Mar 2023
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