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A CRISE ATUAL1 1 Este texto serviu de base para a palestra do autor na série “Diálogos”, parceria entre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o jornal Folha de S.Paulo, realizada no auditório do Cebrap em 13 de maio de 2015.

Apresentarei rapidamente como vejo a crise atual.Em seguida abordarei suas causas estruturais e o dificílimo caminho que teremos pela frente para recolocar a economia na trajetória do crescimento sustentável.

Desde 2011, a economia tem desacelerado continuamente, com uma rápida exceção na passagem do primeiro para o segundo trimestre de 2013, quando o crescimento elevou-se de 2,0% para 2,8%.

Adicionalmente, a forte desaceleração ocorreu em um longo período no qual não houve nenhum sinal de carência de demanda agregada. A demanda agregada, soma do consumo e investimento, tanto privados quanto públicos, até meados de 2014 sempre cresceu além da atividade econômica.Ou seja,a desaceleração não ocorreu por falta de demanda agregada.

O fato de a desaceleração ter ocorrido com crescimento da inflação e também dos juros, desde meados de 2013, é sinal de que a desaceleração do nosso crescimento resultou da perda de eficiência econômica, e não fruto de queda da demanda.Perda de eficiência econômica significa que o conjunto de nossas empresas passou a produzir menos com a mesma quantidade de insumos. O que os economistas chamam de eficiência é que determina o crescimento potencial de uma economia no longo prazo.

Somente começamos a observar os primeiros sinais de retração da demanda agregada no segundo semestre de 2014, em função do forte recuo do investimento, consequência da enorme incerteza que se abateu sobre a economia.

Por mais que a piora do desempenho da economia mundial no período pós-crise explique parte da desaceleração e que os problemas hidrológicos sejam responsáveis por outra parte,penso que o fator mais importante para explicar a desaceleração acompanhada de contínua pressão inflacionária foi a perda de eficiência econômica resultante do conjunto de políticas econômicas que ficou conhecido como nova matriz econômica. No bojo dessa nova matriz, as seguintes políticas foram adotadas:

  1. Alteração no regime de câmbio, de flutuante para fortemente administrado;

  2. Maior tolerância com a inflação;

  3. Adoção recorrente de artifícios para atingir a meta de superávit primário, reduzindo a transparência da política fiscal, além de fortíssima redução do superávit primário;

  4. Controle de preços para tentar conter a inflação - política visível, por exemplo, nos combustíveis e na política de desoneração tributária, e também nas tarifas de eletricidade e de transporte coletivo público;

  5. Adoção de teorias heterodoxas com relação ao processo de formação dos juros reais na economia (equilíbrio múltiplo e/ ou que o impacto do juro sobre a atividade depende da variação deste e não do seu nível) e, em função desse entendimento, redução da taxa básica de juros “na marra”;

  6. Expansão do papel do bndes na intermediação do investimento, com forte discricionariedade em relação aos favorecidos;

  7. Tendência a fechar a economia ao comércio internacional;

  8. Direcionamento da política de desoneração tributária a alguns setores ou bens, em vez de estendê-la de forma equitativa a todos os setores produtivos;

  9. Aumento do papel do Estado e da Petrobras no setor de petróleo;

  10. Intervenção desastrada no setor elétrico para baixar as tarifas e antecipar a renovação das concessões;

  11. Uso dos bancos públicos de forma muito arriscada com vistas a baixar “na marra” o spread bancário;

  12. Interferência ideológica em relação ao emprego do setor privado na oferta de serviços de utilidade pública e infraestrutura em geral;

  13. Adoção indiscriminada da política de conteúdo nacional e de estímulo à produção local, sem a preocupação com o custo de oportunidade dos recursos sociais. Em certa medida, tratou-se de reedição da “lei do similar nacional” do período nacional-desenvolvimentista.

A nova matriz não somente explica parcela apreciável da desaceleração como está na origem dos enormes desequilíbrios macroeconômicos que construímos nos últimos seis anos: piora no superávit primário obtido com receitas recorrentes de 3,5% do PIB em 2008 para um déficit de 1,5% em 2014, aumento de déficit externo de 28 bilhões de dólares em 2008 para 90 bilhões em 2014 e inflação na casa de 8% com forte inércia.

Adicionalmente, a política de desenvolvimento industrial com excesso de discricionariedade e intervencionismo estatal desorganizou os setores elétrico, de petróleo e gás, sucroalcooleiro e automobilístico, além de termos gasto enormes recursos públicos para reconstruir uma indústria naval (pela terceira vez em cinquenta anos) que, me parece, não se sustenta sem contínuos subsídios públicos.

TABELA
Despesa Primária do Governo Central - % do PIB de 1991 a 2013

Parte da desaceleração e do desempenho ruim de nossa economia resulta, portanto, do preço que estamos pagando, e pagaremos nos próximos anos,de uma revisita ao modelo estatizante do governo Geisel, um período caracterizado pelo excesso de intervenção do Estado na economia com crescimento dos desequilíbrios externo e fiscal que nos levou à crise dos anos 1980, a década perdida.

A adoção da agenda desenvolvimentista não resultou de pressão da sociedade, mas sim das ideias e da ideologia de inúmeros economistas e intelectuais ligados ao Partido dos Trabalhadores. Os políticos, inclusive os do pt, mais pragmáticos, reconheceram os erros e estão promovendo providencial correção de rumo para o bem do país.

No entanto, nossos desequilíbrios não resultam somente dos erros e dos excessos da nova matriz econômica que pautou a formulação da política econômica de 2009 até 2014.

Nossos desequilíbrios resultam também de um possível esgotamento do contrato social da redemocratização.Este,expresso na Constituição de 1988 e referendado em todos os pleitos eleitorais desde então, representa o desejo da sociedade brasileira de construir no Brasil um Estado de Bem-Estar Social no padrão europeu continental.

A Tabela mostra que desde 1991,portanto,há 23 anos,o gasto cresceu 9,1 pontos percentuais do PIB, ou, em média, 0,39 ponto percentual do PIB por ano.Somente inss,custeio da saúde e da educação e os programas sociais responderam por 75% do crescimento,6,8 pontos percentuais do PIB ou 0,30 ponto percentual do PIB em média por ano. Se considerarmos um período mais recente,por exemplo,de 1997 até hoje, os resultados serão os mesmos.

A fortíssima elevação do gasto público não financeiro da União ocorrida no período 1991-2014 resultou de rubricas do gasto público cujo crescimento depende de critérios de elegibilidade e valores de benefícios que foram escolhidos pela sociedade por intermédio do Congresso Nacional. Isso ocorreu para todos os governos pós-Constituição, indicando que a agenda social resulta da nossa Constituição Federal e de um desejo legítimo da sociedade por maior distribuição de renda e segurança. Não é resultado da agenda deste ou daquele partido.

É possível que haja desperdícios no serviço público. Mas o que explica o crescimento da despesa do governo federal são os critérios de elegibilidade dos programas sociais e de evolução dos valores dos benefícios e não os desperdícios ligados ao funcionamento da máquina pública.

Assim, o Brasil dependerá muito da política nos próximos anos. A sociedade está próxima a uma situação de impasse. As demandas são imensas e o espaço fiscal, inexistente. Por exemplo, as projeções do Ministério da Previdência Social, que constam na Lei de Diretrizes Orçamentárias (ldo) enviada ao Congresso Nacional em abril de 2015, calculam que as despesas do inss com porcentagem do PIB, dadas as regras atuais, crescerão 0,7 ponto percentual do PIB neste segundo mandato da presidente Dilma Rousseff e continuarão a crescer ao longo dos próximos anos e décadas, o que exigirá uma carga tributária mais elevada para pagar essas despesas. E, de fato, crescimento de 0,7 ponto percentual em um quadriênio é o ritmo que temos tido desde 1991!

No meu entender,o Congresso Nacional terá que discutir nos próximos trimestres a aprovação de medidas que elevem pesadamente a carga tributária - já elevadíssima por qualquer critério.Do contrário, há o risco de perderemos o grau de investimento e amargarmos nova rodada de aceleração inflacionária e fortíssima desvalorização cambial.

Adicionalmente, para que, daqui a dois ou quatro anos, não tenhamos que passar por outra nova rodada de aumento da carga tributária, precisamos recontratar o contrato social. Ou seja, reformas são necessárias para estabelecer critérios de elegibilidade e valores de benefício aos diversos programas sociais em todas as áreas de atuação da União que façam com que o Estado caiba dentro do orçamento e do crescimento do PIB.

Desnecessário afirmar que as duas medidas provisórias que alteram critérios de elegibilidade para os programas pensão por morte, abono salarial e seguro-desemprego, as mp 664 e 665, constituem um primeiro pequeno passo nessa recontratação do contrato social, isto é, o estabelecimento de critérios de elegibilidade e benefícios a programas sociais tais que o crescimento do gasto público com transferências seja compatível com o crescimento da economia.

Poderíamos perguntar: mas como somente agora estamos tendo problemas? Por que motivo os desequilíbrios do contrato social da redemocratização não se fizeram sentir nos últimos quinze anos?

A última rodada de forte elevação da carga tributária legal - isto é, criação de novos impostos - ocorreu no ajuste fiscal de 1998 e 1999, no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Nos anos transcorridos entre 2001 e 2011 vivemos uma situação excepcional da receita. A carga tributária cresceu continuamente ao longo desse período, isto é, a receita de impostos se elevou além do crescimento do PIB e conseguimos mais do que compensar a perda da cpmf, em 2007, com aumento da arrecadação e aumentos do iof e da csll sobre instituições financeiras.

Diversos fatores explicam por que a receita teve dinâmica tão favorável nesses onze anos. Primeiro, houve um longo e continuado processo de formalização da economia. Segundo, o boom de commodities permitiu forte crescimento das importações e a carga tributária nas importações foi superior à carga tributária média da economia. Finalmente, a inflação do PIB (também conhecida como deflator implícito do PIB), que indexa a receita pública, correu além da inflação do consumidor.

Desde 2012 vivemos uma situação normal, ou seja, a receita cresce, mas no mesmo ritmo que a economia, e não além dele. Três anos de comportamento normal da receita, com baixo crescimento do PIB, manutenção dos termos de nosso contrato social, além dos desequilíbrios da nova matriz, foram suficientes para nos colocar em uma situação de risco fiscal.

A arrumação da casa ficou muito cara e, no curto prazo, não há como ter uma redução da despesa de perto de 3 pontos percentuais do PIB,ou 160 bilhões de reais,para o governo alcançar a meta de superávit primário de 2% do PIB já em 2016.

Neste ano a situação será até um pouco mais confortável do que no próximo, pois o governo conseguirá cortar fortemente o investimento público e economizar pelo menos meio ponto percentual do PIB.Mas esse corte não poderá ser repetido em 2016,o que dificulta o cumprimento da meta do superávit primário sem que haja aumento de arrecadação.

Quero terminar resumindo quatro pontos que acho fundamentais colocarmos na mesa para o debate. Primeiro, nossa fortíssima desaceleração foi essencialmente fruto de grande perda de eficiência da economia e não resultou de políticas de contenção da demanda. Segundo, parte apreciável dos problemas que temos enfrentado resultam da nova matriz econômica. Não podemos atribuir às políticas do ministro da Fazenda Joaquim Levy a responsabilidade pelas dificuldades pelas quais passaremos nos próximos três anos, pelo menos. Terceiro, nossa sociedade negociou por meio do Congresso Nacional um contrato social que requer crescimento anual do gasto público da União em 0,30 pontos percentuais do PIB. Quarto, se não alterarmos os critérios de elegibilidade e valores de benefício das diversas rubricas do gasto social, ou iremos em direção à aceleração permanente da inflação com crise cambial, como ocorre na Argentina e na Venezuela,ou teremos que passar por seguidas rodadas de elevação da carga tributária.

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    Este texto serviu de base para a palestra do autor na série “Diálogos”, parceria entre o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o jornal Folha de S.Paulo, realizada no auditório do Cebrap em 13 de maio de 2015.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Jun 2015
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