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UM SUPREMO COADJUVANTE: A reforma judiciária da distensão ao Pacote de Abril de 1977 1 1 Este artigo foi iniciado como projeto de dissertação apresentado para o ingresso no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­cias Humanas da Universidade de São Paulo em 1988. Agradeço à profa. Maria Hermínia Tavares de Almeida pelo seu apoio e incentivo à realização da pesquisa nos tempos iniciais do mestrado. A demora de quase trinta anos para publicar as primeiras conclusões do trabalho é de exclusiva responsabilidade do autor.

A Supporting Supreme Court: Brazilian Judicial Reform from the Distension to the Package of April of 1977

RESUMO

O artigo analisa a política da reforma judiciária no período de 1974 a 1977, explorando o papel coadjuvante do STF na estratégia governamental de distensão política e o significado cambiante da reforma no processo político. O desfecho imediato foi a imposição da reforma, e a continuação da transição controlada. Mas a mobilização dos juristas teve impactos para a frente democratizante e o modelo das instituições judiciais adotado por ela.

PALAVRAS-CHAVE:
transição política; Supremo Tribunal Federal; reforma do judiciário; mobilização do direito; governo Geisel

ABSTRACT

The article analyzes the policy of judicial reform from 1974 to 1977, exploring the supporting role of the Supreme Court in the governmental strategy of political distension and the changing significance of reform in the political process. The immediate outcome was the imposition of the reform and the continuation of the controlled transition, but the mobilization of lawyers had impacts for the democratizing front and the model of judicial institutions adopted by it.

KEYWORDS:
political transition; Federal Supreme Court (Brazil); judicial reform; mobilization of law; Geisel government

INTRODUÇÃO

Ao assumir a Presidência da República, em março de 1974, Ernesto Geisel afirmou o seu propósito de promover a distensão do regime. No mês seguinte, em visita protocolar ao STF, acolheu a reforma judiciária demandada pelos ministros. Esses eventos aparentemente independentes aparecem juntos na crise de abril de 1977. Dado que o projeto governamental de reforma judiciária não alcançou o número necessário de votos na Câmara dos Deputados, o presidente Geisel utilizou o AI-5 para fechar o Congresso e outorgar duas emendas constitucionais, uma com as reformas rejeitadas e outra com as reformas políticas para controlar a sucessão presidencial de 1979. A reforma judiciária foi imposta, e a distensão parecia ter acabado.

O governo atribuiu a crise à intransigência do MDB, por ter bloqueado a votação sobre uma questão técnica para forçar a negociação do fim do AI-5, demanda contrária à segurança do regime. A oposição à reforma judiciária foi pretexto do governo para criar um impasse no Congresso e impor reformas políticas. As versões dos protagonistas tornaram-se correntes, foram incorporadas por analistas e pesquisadores, e ainda não foram rediscutidas. Elas enfocam as reformas do ponto de vista do seu desfecho, o de uma crise assumida como inevitável e estabelecem uma relação de exterioridade entre as reformas (a técnico-jurídica e a política). Porém, desde o início do governo Geisel as reformas eram associadas nos debates e negociações políticas. Nos anos posteriores à crise, elas se traduziram em reformas constitucionais e legais importantes, com a incorporação à Constituição das regras sobre a segurança do Estado, a extinção do AI-5, mudanças no controle da constitucionalidade e a aprovação da Lei Orgânica da Magistratura.

Este artigo analisa as relações entre a reforma judiciária e as reformas políticas no período de 1974 a 1977, a fim de reapreciar o seu significado e evidenciar as implicações políticas do processo. Exploram-se, primeiro, o papel da reforma judiciária no projeto de distensão do regime e o seu sentido estratégico cambiante no processo político. Segundo, o papel atribuído ao STF no projeto de normalização institucional e a atuação política dos seus ministros. Enfim, os efeitos do processo para a mobilização dos juristas, o seu distanciamento em relação ao regime e seus desdobramentos na democratização até a Constituição de 1988.

De um ponto de vista teórico-metodológico, adotam-se as análises de O’Donnell e Schmitter (1988O’Donnell, Guillermo; Schmitter, Philippe C. Transições do regime autoritário: primeiras conclusões. Rio de Janeiro: Vértice, 1988.) sobre as transições, as de Tarrow (2011Tarrow, Sidney G. Power in Movement: Social Movements and Contentious Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.) sobre a política de confronto e as de Dobry (1992Dobry, Michel. Sociologie des crises politiques. Paris: FNSP, 1992.) sobre as mobilizações multissetoriais nas crises políticas. Foram pesquisados trabalhos de ciência política, análises de conjuntura e doutrinas jurídicas. Foram analisados diagnósticos, propostas e anteprojetos de reforma judiciária publicados em livros, revistas, informativos jurídicos e anais de congressos. As informações foram completadas com pesquisas no site do Supremo Tribunal Federal, dos arquivos de Ernesto Geisel disponíveis no site do CPDOC/FGV,2 2 Pasta do Arquivo Ernesto Geisel sobre o Ministério da Justiça (EG pr. 1974.04.24/1 e 2). em arquivos digitais dos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo e da “Coluna do Castello”, 3 3 Salvo indicação em contrário, todas as informações são oriundas dessas fontes. e dossiês publicados nas revistas semanais Veja e Visão.4 4 O autor recebeu em momentos distintos auxílios à pesquisa do CNPq e Fapesp, bolsa de produtividade do CNPq e bolsa de estágio no exterior da Capes.

Apresentam-se, de forma estilizada, as interações, em condições de alta incerteza, de três atores, que se encontram divididos internamente: a linha-dura, o governo e a oposição, que disputam o apoio das elites civis (políticos da Arena e do MDB, juristas, burocratas) e militares.5 5 A análise tomará como dados os eventos e embates políticos do perío­do, porque são conhecidos e foram analisados em importantes trabalhos. A questão central da distensão política se expressa em três oposições: primeiro, a restauração da unidade do ordenamento constitucional, sobre a qual se contrastavam a incorporação das medidas de exceção à Constituição e a volta ao estado de direito; segundo, as reformas políticas, centradas nas regras para a sucessão presidencial a forma de eleição para governadores e senadores; e, terceiro, a reforma judiciária, em que às reformas concentradoras e centralizadoras dos poderes do STF eram apresentadas propostas de separação dos poderes e descentralização do judiciário.6 6 A expressão “extinção parcial do AI-5” será usada para designar a restauração das garantias da magistratura e dos habeas corpus para acusados de crimes políticos.

Os agentes têm objetivos, adversários, regras e recursos distintos e interagem em duas frentes. A linha-dura e o governo visam a continuidade do regime, mas divergem sobre a estratégia de distensão; seu adversário comum são os “contestadores”, mas não concordam sobre as fronteiras da oposição legítima; suas relações são regradas pelas normas de hierarquia e disciplina, enquanto atos de exceção e repressão violenta são válidos apenas contra os seus adversários. Por sua vez, o governo e a oposição visam promover a distensão política, mas divergem sobre o seu ritmo e direção; têm como adversário comum a linha-dura, e suas relações são regradas pelo duplo padrão dos atos de exceção e as normas constitucionais, mas só o governo pode utilizar os primeiros, enquanto a oposição procura estender ao máximo o alcance das segundas.

A combinação da distensão com a agenda da reforma judiciária significou uma mudança na estrutura de oportunidades políticas para os juristas,7 7 Adota-se o termo para designar de forma genérica os profissionais de direito, e não apenas os doutrinadores e teóricos. Ao longo do texto, serão feitas distinções de carreiras, lideranças e notabilidades, quando for necessário para tornar a exposição precisa. pois, ao mesmo tempo em que se reduziam os riscos da manifestação do dissenso, aumentou a sua percepção acerca dos riscos da reforma. Eles mobilizaram seus recursos internos, valeram-se de seus quadros interpretativos e formas de ação e encontraram apoios externos na oposição, imprensa e organizações da sociedade civil para expressarem suas demandas. Desse modo, emergiu um conjunto de atores coletivos que se engajaram no debate. Eles tinham, inicialmente, posições diferenciadas, mas tenderam a se unificar contra o governo e a se aproximarem da oposição política.

Por sua vez, o STF atua como coadjuvante do governo em todos os momentos do processo. Os ministros combinam com o governo a encenação do lançamento da reforma, executam o roteiro de preparação do diagnóstico, participam da comissão interministerial que elabora o projeto de reforma e defendem-no em manifestações públicas de diversos tipos, bem como em pressões sobre os parlamentares. Houve apenas manifestações isoladas de ministros com reservas ao modo de encaminhamento do projeto governamental de reforma.

O artigo tem três partes, que se referem aos momentos do processo político. O primeiro trata do programa da reforma judiciária na estratégia de distensão. O segundo analisa a reforma judiciária como roteiro para as reformas políticas entre as eleições de 1974 e as de 1976. Enfim, o terceiro é o da crise política de dezembro de 1976 a abril de 1977, no qual a reforma judiciária é um estratagema do governo para realizar as reformas políticas.

A REFORMA JUDICIÁRIA NA ESTRATÉGIA DE DISTENSÃO

O problema da institucionalização do regime

Ao associar a reforma judiciária à distensão política, Geisel não improvisava. Pelo contrário, invocava temas discutidos pelos dirigentes do regime desde os anos 1960. Eles consideravam que em 1964 foi instaurado um novo modelo político, de caráter democrático e antiliberal, que ainda não estava institucionalizado plenamente, o que era evidenciado pela dualidade constitucional, os controles excessivos sobre a sociedade e a repressão direta da contestação política. Se a dualidade e transitoriedade permitiam a experimentação política, ela trazia o risco de provocar uma situação problemática e imprevisível. Assim, debatia-se a questão do modelo para a normalização institucional do país, com a revogação, gradual ou imediata do AI-5 (Cruz; Martins, 1983Cruz, Sebastião C. Velasco e; Martins, Carlos Estevam. “De Castello a Figueiredo: uma incursão na pré-história da ‘Abertura’ ”. In: Sorj, Bernardo; Almeida, Maria Hermínia Tavares de (Orgs.). Sociedade e política no Brasil pós-64. São Paulo: Brasiliense, 1983., pp. 43-44).

A indicação de Ernesto Geisel, em 1973, para a presidência significou a preponderância, embora parcial e problemática, dos que pretendiam promover a distensão. Ela seria gradual e de caráter procedimental, para circunscrever as negociações entre as elites e contornar suas divergências substantivas. O restabelecimento das condições para o diálogo e negociação com a oposição antecederia a restauração das garantias constitucionais, à realização de eleições amplas e o fortalecimento das estruturas partidárias. Mas o diálogo supunha a possibilidade de manifestação do dissenso, que não seria mais sufocado pela censura ou eliminado pela repressão, mas controlado por instrumentos legais. Haveria a restauração mínima dos direitos e garantias individuais, mas seu alcance haveria de ser parcial, de modo a não obstaculizar a estratégia do governo ou provocar incertezas na situação política.

O objetivo do governo era chegar a uma democracia tutelada, uma espécie de estado segundo o direito (rule by law). Este seria instaurado por uma série de concessões unilaterais do soberano, que deveriam ser aceitas pelos representantes eleitos. A efetividade e continuidade das regras seriam condicionadas pelos comportamentos e a situação política. A Constituição positiva teria fundamentos indiscutidos, o presidente seria legibus solutus e outros agentes seriam irresponsáveis, pois dotados de poderes de defesa do Estado não controlados. A disputa eleitoral seria formalmente aberta, mas com limites ao acesso, à organização da oposição e expressão do dissenso. O modelo jurídico seria, de certa forma de instrumentalismo, com decisões dinâmicas e adaptativas, e o exame dos casos e a interpretação das normas ponderados pelas conjunturas e consequências.

A reforma judiciária tornava-se relevante porque envolvia sobretudo questões de organização e de procedimento e poderia se tornar etapa preliminar para o diálogo com a oposição. Mas ela tinha outros objetivos: ampliar o apoio da população ao regime, pela melhoria da eficiência do judiciário; reforçar a adesão dos juristas, pela melhoria das condições de trabalho e salários; ampliar o controle legal sobre a oposição política, os contestadores e juízes dissidentes, por meio da ampliação das atribuições do STF e controles sobre os juízes; limitar a polêmica sobre atos do governo pela centralização da interpretação da Constituição e das leis no STF.

Esses objetivos se traduziram nos pontos controvertidos de reforma do governo Geisel: primeiro, a centralização dos poderes no STF e a maior discricionariedade das suas decisões, com a restrição do acesso ao controle difuso de constitucionalidade por meio do requisito de relevância da questão federal para o recurso extraordinário, a avocatória e a representação para interpretação de lei em tese. Dada a vigência da legislação de exceção, essas reformas significavam que o tribunal asseguraria a validade dos atos governamentais, suprimindo o debate no âmbito judicial, ao mesmo tempo em que bloquearia leis do Congresso ou iniciativas de governos estaduais. Segundo, a criação de câmaras especializadas e de órgãos dirigentes nos tribunais federais e estaduais, extinguindo-se os tribunais de alçada. Elas significavam a concentração dos poderes e o retardamento da renovação dos dirigentes. Terceiro, a disciplina dos juízes, por meio de lei orgânica e Conselho da Magistratura, no próprio STF, o que significava a incorporação à Constituição das regras do AI-5 relativas às prerrogativas dos magistrados.8 8 Foi cogitada a supressão da competência do Senado para suspender as leis declaradas inconstitucionais pelo STF. Ela foi adotada por simples resolução do presidente do STF em abril de 1977.

A reforma como programa

O script para a ideia da reforma judiciária na visita de Geisel ao STF foi preparado com antecedência. O ministro da Justiça, Armando Falcão, havia discutido o tema com os ministros do STF em várias reuniões desde o mês de outubro anterior (A. Falcão, 1989Falcão, Armando. Tudo a declarar. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989., pp. 323-324.). O presidente do Tribunal, Eloy da Rocha, tinha relações de confiança com Geisel e já defendera uma reforma modernizadora do judiciário, com o apoio dos dirigentes dos principais tribunais do país. Na visita, coube ao presidente do Tribunal demandar a reforma, com argumentos do reformismo social cristão e da doutrina da segurança nacional. Ele afirmou que, sem uma justiça funcionando normalmente, não poderia haver progresso, ordem, segurança nem desenvolvimento, e, para realizá-la, deveria haver a colaboração dos três poderes. Acolhida por Geisel, a ideia de reforma judiciária tornava-se um ponto de programa do governo tomado em atenção às demandas da “classe” judiciária. Naquele ano, Geisel não voltou ao assunto publicamente, mas o ministro da justiça destacou a modernização e a eficiência do judiciário no quadro da distensão e da institucionalização do regime.9 9 Discurso pronunciado por Armando Falcão na sessão comemorativa do primeiro centenário de criação do TJ do Ceará, em EG pr. 1974.04.24/1, pp. 157–159.

O contexto político parecia favorável para o governo promover reformas. Geisel falava em colaboração da classe política e em dialogar respeitosamente com a oposição construtiva, que teria o papel de apontar as falhas do governo e oferecer sugestões. Não havia dificuldades aparentes para aprovar a reforma judiciária, pois era do Executivo a prerrogativa de iniciativa na matéria, e a Arena tinha maioria qualificada no Congresso. A linha-dura não se oporia a um projeto modernizador que parecia ser anódino em relação a suas preocupações imediatas.

O roteiro para a preparação da reforma era o seguinte: o STF prepararia um diagnóstico a partir de informações e sugestões das autoridades judiciárias. Um grupo de trabalho integrava membros do Ministério da Justiça, ministros do STF e o procurador-geral da República e prepararia um anteprojeto a ser enviado ao Congresso. Ainda em abril o STF forma uma comissão especial e põe o roteiro em marcha. Estimavam que a preparação do relatório seria rápida e que as consultas seriam finalizadas em noventa dias. Ao mesmo tempo, Eloy da Rocha se reúne com autoridades judiciárias, em busca de apoio. No entanto, o relatório do STF não é publicado em 1974 nem no início de 1975.

Desde o início, Eloy da Rocha defende os pontos controversos da reforma, que antagonizam com os interesses e os modelos de juristas e elites políticas estaduais. Em resposta, eles começam a se mobilizar em defesa de alternativas. Promovem congressos nacionais de suas categorias, depois de muitos anos de inação ou, em muitos casos, sem precedentes. Publicam artigos de doutrina e polêmicas em revistas e informativos jurídicos. Também intensificam artigos na imprensa e contatos com políticos de oposição, intelectuais, jornalistas e dirigentes de organizações religiosas e sociais.

Eles defendem, de modo geral, o retorno da descentralização e autonomia das instituições judiciais, que vigorou até 1964. Distinguem-se quatro orientações principais no ano de 1974: dos juízes, dos juristas dissidentes, da OAB e do MDB, em função da sua posição sobre a volta ao estado de direito.

Os juízes colocam a volta ao estado de direito como desejável, porque o identificam com seus interesses e prerrogativas. Propõem a melhoria da remuneração e condições de trabalho, a autonomia financeira e a reserva de iniciativa legislativa aos tribunais em questões atinentes ao Judiciário.10 10 Os tribunais de quatro estados (Espírito Santo, Santa Catarina, Paraná e Pernambuco) demandaram a revogação do AI-5 nos seus relatórios à comissão de reforma do STF (“Reforma da Justiça ainda no plano das intenções”, 1975). Defendem o debate público do anteprojeto antes de seu envio ao Congresso, a “exemplo de como se faz com relação à reforma dos Códigos".11 11 Teses do 1° Encontro Nacional de Magistrados (Revista Ajuris, 1974). A revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul foi criada em 1974. Os juristas dissidentes do regime 12 12 Esse termo designa lideranças e notabilidades ligadas à UDN e ao PSD que apoiaram o golpe de 1964 e participaram do regime, mas que dele se distanciaram em algum momento, tais como, por exemplo, Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro e Seabra Fagundes. colocaram a volta ao estado de direito como uma dimensão relevante da reforma judiciária. A reforma só seria plena se fosse combinada com a restauração do estado de direito, mesmo que gradual, e a restauração das garantias seria positiva para a distensão, pois juízes independentes seriam favoráveis ao governo (Revista Brasileira de Estudos Políticos, 1975Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 41, 1975.).13 13 No ano seguinte, os juristas seriam mais contundentes. Ver Revista da OAB (1974). Para a OAB, a volta ao estado de direito era elemento necessário da reforma (Conferência Nacional da OAB, 1974Conferência Nacional da OAB, 5. Anais… Rio de Janeiro: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, 1974.).

O MDB sustentava que a volta ao estado de direito era condição preliminar a qualquer reforma do judiciário. Esse era o seu primeiro ponto de pauta no diálogo com o governo: a revisão dos atos de exceção para a revogação do AI-5 e a restauração do estado de direito, que era condição prévia para discutir os objetivos do governo: a inclusão das medidas de emergência na Constituição e a mudança da legislação eleitoral. O debate sobre a reforma seria inoportuno, pois, devido à supressão das garantias dos juízes, estes sofreriam pressões do governo e não poderiam se manifestar. Assim, uma reforma do judiciário sem a volta ao estado de direito não poderia produzir efeitos relevantes para a promoção da justiça.

A publicação do relatório do STF foi retardada pelas resistências dos juristas às propostas do presidente do Supremo. Mas a reforma não parecia ser urgente para o governo, pois a sua aprovação sem a colaboração da oposição e contra as posições de juízes e juristas seria contraproducente. Além disso, o programa suscitava resistência entre políticos da Arena nos estados, e o debate ocorria num período eleitoral, no qual o governo visava reforçar as suas bases de apoio popular e conservar sua força parlamentar. Depois delas, poderia ser dada sequência à reforma judiciária e às reformas políticas.

A REFORMA JUDICIÁRIA COMO ROTEIRO PARA AS REFORMAS POLÍTICAS

As eleições de 1974 deram vitória expressiva e inesperada ao MDB. A sua representação na Câmara passou a 160 deputados, o que representava mais de um terço do total da casa. Com isso, poderia bloquear a aprovação de propostas governamentais de emenda constitucional e tomar iniciativas de emendas e de criação de comissão parlamentar de inquérito. O partido obteve a maioria das assembleias em seis estados, com a possibilidade de vencer as eleições para governador em 1978, mesmo que indiretas.

O impasse político

Esses resultados tiveram importantes implicações para o processo de transição, pois levariam ao impasse entre os principais protagonistas. A linha-dura desafia a distensão intensificando ações repressivas contra oposicionistas, militantes de esquerda e o clero, que levaram a centenas de prisões e dezenas de assassinatos. As ações só são coibidas no início de 1976, com a demissão do comandante do 2° Exército em São Paulo. Mas o desafio continua, com a pretensão da linha-dura de determinar os rumos da sucessão presidencial. O ministro do exército, Sylvio Frota, faz, em várias ocasiões, críticas públicas a decisões presidenciais, procurando se colocar como porta-voz dos militares, interlocutor com os políticos da Arena e o candidato “natural” das Forças Armadas (Góes, 1978Góes, Walder de. O Brasil do general Geisel. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978., pp. 76-79). O governo usa os recursos da hierarquia e disciplina para afastar os desafiantes de postos de comando. Faz aprovar no Congresso projeto de lei que reforça o peso do presidente da República na seleção dos membros dos altos comandos, para acelerar a promoção de João B. Figueiredo a general de exército, já escolhido para ser o sucessor de Geisel. Mas, para manter o apoio entre os militares, Geisel precisa demonstrar que encarna a “revolução” e controla o processo político.

Face a esse desafio, governo e oposição teriam interesse em cooperar, mas o primeiro visava reformas políticas para assegurar o controle das eleições futuras e rejeitava a extinção imediata do AI-5, enquanto os objetivos da segunda eram inversos. Mas eles poderiam cooperar se houvesse alguma alteração nas suas prioridades ou nas condições de sua interação.

O governo corre o risco de defecção em sua base, pois a Arena é uma frente política com baixa coesão. Ela está dividida quanto aos rumos da distensão e, ao mesmo tempo em que deve obediência à orientação do governo, atende aos interesses de suas bases políticas estaduais e locais (Kinzo, 1988Kinzo, Maria D’Alva Gil. Oposição e autoritarismo: gênese e trajetória do MDB, 1966-1979. São Paulo: Vértice; Revista dos Tribunais, 1988., pp. 55; 162). O MDB está dividido em duas correntes principais: a dos moderados, que aceita negociar com o governo, e a dos autênticos, que mantém a prioridade da volta ao estado de direito e rejeita a alteração das regras eleitorais, entre as quais oscilam os indecisos. No final de 1975, as intensas disputas pelo controle da direção do partido acabam em acordo (Kinzo, 1988, pp. 169-170), e, no ano seguinte, um grupo de moderados articula apoio ao projeto de distensão e das reformas políticas.

O governo tenta dividir a oposição e induzi-la a cooperar. Indica o diálogo em torno de uma agenda ampla de reformas, mas não explicita o seu conteúdo nem se compromete com a volta ao estado de direito, ao mesmo tempo em que adota atos de repressão e intimidação. A oposição reafirma sua disposição em cooperar e influenciar a agenda política. No início de 1975, o MDB apresenta propostas que implicariam a volta ao estado de direito e a investigação de violações de direitos humanos. O governo ordena os parlamentares da Arena para não as apoiarem, e, em resposta, o MDB decide bloquear toda proposta governamental de emenda que não previsse o fim do AI-5 e os atos de exceção. Por sua vez, o governo passa a condicionar qualquer iniciativa de reforma ao consenso prévio das lideranças civis sobre a sua viabilidade no Congresso. Nessa situação, os confrontos e impasses se sucederam, e no final de 1976 parecia que o projeto de distensão estava estagnado.

A reforma como roteiro e convergência de comportamentos

A reforma judiciária permanece na agenda, mas o governo valoriza os procedimentos de sua elaboração. O anteprojeto de reforma seria baseado num estudo preparado pelo STF, com a participação dos interessados e com informações objetivas elaboradas por técnicos. Dado que trata da organização do Estado, a sua tramitação no Congresso não deveria suscitar polêmica nem interferência dos partidos, e o roteiro serviria de modelo para as reformas políticas, como a sucessão estadual. Com esse roteiro, o governo insiste que a cooperação com a oposição poderia ocorrer pela convergência de comportamentos em torno de reformas específicas, sem colocar em questão o seu sentido político (Geisel, 1975Geisel, Ernesto. “Discurso na abertura da sessão legislativa do Congresso, em 1º de março de 1975”. In: _____. Discursos, v. 2. Brasília: Assessoria de Imprensa e Relações Públicas da Presidência da República, 1975.). Mas, numa situação de congelamento político, a reforma judiciária tornar-se-ia um ponto de condensação dos embates.

Em junho de 1975, com diferença de poucos dias, governo e oposição realizam dois movimentos inversos. No dia 14, o STF aprova por unanimidade o Diagnóstico para a reforma do judiciário, e dois dias depois o seu presidente, Djaci Falcão, o entrega ao presidente Geisel (Brasil, 1975Brasil. Supremo Tribunal Federal. Reforma do Poder Judiciário: diagnóstico. Brasília: STF, 1975.). O Diagnóstico destaca o roteiro de sua preparação e enfoca a reforma no marco do desenvolvimento e segurança. O problema mais geral seria a crise da ordem jurídica, defasada em virtude das mudanças sociais produzidas pelo desenvolvimento acelerado do país. A reforma deveria assegurar segurança e rapidez na proteção dos direitos e propunha que as prerrogativas dos magistrados fossem reconhecidas na medida do exato cumprimento dos seus deveres. As sugestões apresentadas referiam-se apenas à primeira etapa da reforma, a reforma constitucional. Elas incluíam todos os pontos controvertidos de reforma, e outros suscitavam resistências: a não previsão da competência supletiva dos estados em matéria processual e a oficialização dos cartórios.

No dia 20, o MDB publica o manifesto “Reforma com democracia”, em que a convergência com o governo se coloca no marco do compromisso sincero com a democracia. O Congresso deveria ser transformado em Assembleia Constituinte para, com amplas consultas, elaborar uma Constituição democrática, como estado de direito, participação e pluralismo. Sobre o judiciário seriam restauradas as prerrogativas dos juízes, ampliado o acesso a justiça e a volta dos habeas corpus políticos.

Concomitantemente, os juízes manifestam suas críticas ao Diagnóstico em eventos solenes, congressos e informativos, aos quais procuram dar ampla divulgação. A OAB e os juristas dissidentes se alinham com a oposição pela volta ao estado de direito como precondições para a reforma judiciária (“Reforma da Justiça ainda no plano das intenções”, 1975“Reforma da Justiça ainda no plano das intenções”. Visão, 15 set. 1975, pp. 17-24.; Conferência Nacional da OAB, 1976_____, 6, 1976, Salvador. Anais… Rio de Janeiro: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, 1976.).

Os ministros do STF saem a público em defesa do Diagnóstico, com o mesmo discurso que o governo. O presidente, Djaci Falcão, defende o Conselho da Magistratura, relativiza a relevância das garantias e destaca a disciplina dos juízes (D. Falcão, 1975Falcão, Djaci. “Poder Judiciário: aspectos de sua reforma”. Revista dos Tribunais, n. 485, 1975., p. 233). Rodrigues Alckmin, o relator da comissão, responde com mais veemência. A qualidade central dos juízes seria a formação intelectual e moral, e seria injurioso afirmar que deixavam de julgar com independência porque não lhes eram asseguradas as prerrogativas constitucionais de sua função. Outras críticas careceriam de um “mínimo indispensável de conhecimentos" ou seriam “ditadas por interesses contrariados ou decorrentes de orientações políticas estranhas aos temas em exame" (Alckmin, 1976aAlckmin, José Geraldo Rodrigues. Conjuntura política nacional: o Poder Judiciário. Rio de Janeiro: ESG, 1976a.; 1976b_____. “Observações sobre a reforma do Poder Judiciário". Forense, v. 72, n. 254, pp. 7-11, 1976b.). Desse modo, os ministros do STF coadjuvam o governo na promoção da reforma do judiciário voltada a institucionalizar um estado segundo o direito. Primeiro, pelo conteúdo da reforma aprovado por unanimidade em maio de 1975; segundo, ao defender publicamente a sua elaboração, que contornava os poderes do Congresso. Enfim, por relativizarem o princípio do estado de direito para a democratização, criticando as demandas pela extinção ou reforma parcial do AI-5.

Assim, em 1975 o governo destaca a dimensão técnica da reforma e os procedimentos para adotá-la. A oposição e os juristas dissidentes unificam-se pela volta ao estado de direito como precondição para a reforma do judiciário e inserem-na num movimento de reorganização constitucional democrática para o país. A partir de outubro de 1975 o tema sai de pauta e só volta em março do ano seguinte, colocada como teste do comportamento cooperativo da oposição.

Em junho de 1976, os rumores dissociam a reforma judiciária das reformas políticas, pois estas só ocorreriam no início de 1977. O governo parece contar com a adesão de parte dos parlamentares do MDB para a aprovação do projeto de reforma judiciária. Em julho, o governo acelera a finalização do anteprojeto. No dia 6, o ministro da Justiça, Armando Falcão, demanda urgência ao procurador-geral e, no dia 16, entrega um texto preliminar ao presidente do Congresso, Petrônio Portela.14 14 MJ/AEG-CPDOC, EG pr. 1974. 04.24/1, pp. 1248; 1281. No início de agosto, partes do texto são “vazadas” para a imprensa.

Os líderes governistas reafirmam seu apoio ao projeto e sua expectativa de cooperação com a oposição. Por sua vez, a direção do MDB assegura que não condicionaria a aprovação da emenda da reforma do judiciário à revogação parcial do AI-5, ou seja, que o partido não “fecharia questão” contra a proposta e que suas lideranças apenas protestariam pela volta ao estado de direito.

Porém, desde a divulgação do anteprojeto, havia dois movimentos: em agosto, o governo força a aprovação no Congresso da “Lei Falcão”, à qual o MDB se opõe violentamente e toma como evidência do impossível diálogo com o governo (Alves, 1984Alves, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984., p. 190). Por outro lado, o governo adia a reforma judiciária para repensá-la, tendo em vista as resistências que se manifestam por todos os lados e encontram receptividade junto a lideranças e parlamentares da Arena.

Assim, a reforma judiciária deixa a agenda política numa situação em que os líderes do MDB rejeitavam a convergência de comportamentos acenada pelo governo, mas poderiam aquiescer tacitamente ao projeto de reforma, ao permitir que seus parlamentares viessem a votar a favor do projeto governamental. Revelava-se também que o governo corria riscos no seu campo político, pois havia tendência à defecção dos próprios arenistas. Estimava-se que as reformas judiciária e política só ocorreriam a partir do início de 1977, que seria decisivo para o presidente definir sua capacidade de realizar o seu projeto de distensão e conduzir o processo sucessório (Castello Branco, 1976Castello Branco, Carlos. “Futurologia preventiva”. Jornal do Brasil, 31 ago. 1976, “Coluna do Castello”.).

DO IMPASSE À CRISE: A REFORMA JUDICIÁRIA COMO ESTRATAGEMA

Em 16 de novembro de 1976, um dia depois das eleições municipais, o presidente Geisel envia ao Congresso o projeto de emenda constitucional de reforma judiciária (pec nº 29/1976). Ele mantém todos os pontos polêmicos dos textos anteriores e acolhe algumas demandas profissionais dos juízes. Evidentemente, não traz qualquer regra para a extinção gradual do AI-5. Durante a tramitação, ocorrem três movimentos: a mobilização pelo substitutivo, a contraofensiva do governo e o fracasso do acordo ao ultimato do general (Rodrigues, 1977Rodrigues, Newton. “Tempo de quarentena”. Folha de São Paulo, 25 fev. 1977, p. 3.; Dines, 1977Dines, Alberto. “Política e malícia”. Folha de São Paulo, 3 mar. 1977, p. 2.).15 15 A estratégia do governo não escapou aos analistas. Ver Rodrigues (1977) e Dines (1977).

A mobilização pelo substitutivo

Entre novembro de 1976 e o final de janeiro de 1977, as negociações sobre o projeto governamental se mantêm no quadro de conversas anteriores segundo as quais a reforma judiciária seria um sinal de cooperação entre governo e oposição e a preliminar para negociar a extinção gradual do AI-5. Esses pontos não estavam vinculados a um acordo sobre as reformas políticas, pois o conteúdo e momento de encaminhamento destas estavam em aberto, em virtude da contradição dos objetivos do governo e da oposição. Afirmava-se que as eleições diretas poderiam ser mantidas, apesar dos riscos para o governo ou, o que seria mais provável, que elas seriam examinadas num segundo momento, ao longo de 1977.

O governo justificava o envio do projeto de reforma judiciária antes do recesso do Congresso para permitir amplo debate sobre o assunto, pois aos 45 dias do prazo constitucional de tramitação somavam-se os noventa dias do recesso parlamentar. Instalada a comissão mista, foi nomeado relator o senador Accioly Filho (Arena-pr). A comissão mista deveria pronunciar-se a respeito da reforma até o dia 10 de março, e a data final para a aprovação do projeto era 11 de abril.

O senador Accioly Filho dialoga com parlamentares e juristas e viaja para diversos estados para realizar consultas in loco. Os políticos arenistas indicam defecção no seu apoio, e os moderados do MDB asseguram que sua bancada aprovaria um texto negociado. Manifestam-se publicamente contra o projeto dirigentes de tribunais, entidades e associações de juízes e de juristas, mas também políticos estaduais dos dois partidos, órgãos de imprensa, entidades religiosas e associações civis e lideranças empresariais (Cruz, 1995Cruz, Sebastião C. Velasco e. Empresariado e Estado na transição brasileira. Campinas: Ed. da Unicamp; Fapesp, 1995.).

Os ministros do STF assumem a defesa do projeto, como, por exemplo, na cerimônia de posse do ministro Carlos Thompson Flores na presidência do Supremo, em 14 de fevereiro. Em seu discurso, o novo presidente conclama o Congresso a aprovar a reforma, necessária à modernização, mas não se refere à extinção parcial do AI-5. Por sua vez, o presidente do Tribunal Federal de Recursos quebra a hierarquia institucional e comunica diretamente ao relator as propostas de reforma aprovadas pelo Tribunal.

A contraofensiva do governo

A contraofensiva, que começou a se delinear no final do ano, torna-se nítida em fevereiro. Circulam boatos de que a distensão estaria em risco, os arenistas endurecem o discurso, e são divulgadas informações contraditórias sobre as negociações, segundo as quais a de que as eleições indiretas seriam inevitáveis. No dia 15, enquanto examinava o substitutivo de Accioly Filho, o governo cassa o mandato de vereadores do Rio Grande do Sul. O MDB reage duramente, e nos dias seguintes recrudescem as ameaças.

Mesmo nesse clima de incertezas, arenistas e oposicionistas reafirmam sua disposição em manter o acordo para votar o substitutivo. Publicado no dia 21, este modifica bastante o projeto original, pois acolhe demandas de desconcentração dos poderes e descentralização do judiciário, mas não altera os pontos inegociáveis do governo: o Conselho da Magistratura, a avocatória e intangibilidade dos atos institucionais.

Assim, a incerteza política do mês de fevereiro é um contraponto à mobilização política em torno da reforma judiciária. Ela aumenta os riscos para os atores sociais manifestarem seu dissenso, induz os políticos arenistas a se unificarem em torno do governo e aprofunda a divisão interna no MDB. Nesse contexto, os indecisos poderiam ter convergido com os moderados, isolando os “radicais”. No entanto, desde as eleições de 1974 os moderados vinham perdendo espaço para os autênticos na disputa pelo apoio da base do partido (Kinzo, 1988Kinzo, Maria D’Alva Gil. Oposição e autoritarismo: gênese e trajetória do MDB, 1966-1979. São Paulo: Vértice; Revista dos Tribunais, 1988.). As pressões precipitaram o confronto interno, e os indecisos acabaram por se aliar aos autênticos. No dia 27, o autêntico Alencar Furtado vence o moderado Laerte Vieira na eleição para líder do MDB na Câmara. Os moderados da cúpula do partido alinham-se à decisão para preservar o apoio das suas bases.

Na última semana de fevereiro os boatos se interrompem completamente, até a abertura do Congresso na semana seguinte. O governo anuncia que sua opção pelas eleições indiretas é inegociável e que está aberto a um acordo para a votação da reforma judiciária.

Do impossível acordo ao ultimato do general

No início de março já é visível a impossibilidade de um acordo. Embora ainda não tenha se manifestado sobre o substitutivo, o governo inverte a ordem dos termos da negociação: passa a colocar as eleições indiretas como inevitáveis e exige do MDB o apoio à reforma judiciá­ria. O que estava em negociação era apenas a maneira pela qual as reformas políticas seriam adotadas: se o MDB as apoiasse, viriam por emenda constitucional, evitando cassações; se não, por ato de exceção. Ao MDB cabia apoiar a emenda sobre o judiciário para dar garantia ao governo de que as reformas políticas também seriam aprovadas pelo Congresso.

No dia 5 anuncia-se a “missão Portela”-as conversas entre o presidente do Senado, Petrônio Portela, do MDB, Ulysses Guimarães e outros líderes sobre as reformas políticas. O governo propõe que o MDB aprove as eleições indiretas em troca da inclusão das salvaguardas na Constituição e a reforma do AI-5. A reforma do judiciário seria apreciada em conjunto com essa negociação. A executiva do MDB recusou unanimemente a adoção do pleito indireto, mas apoiou a continuidade das negociações. Assim, o malogro da “missão Portela” era previsível, e as conversações continuariam, mas a negociação estava bloqueada porque a proposta de eleições indiretas era inegociável.16 16 Mesmo dentro da Arena havia resistência às eleições indiretas, por líderes como como o próprio Portela, Magalhães Pinto, Virgílio Távora, Jarbas Passarinho, Luís Vianna Filho e José Sarney. Esses políticos eram todos imbatíveis em seus estados e teriam que dar lugar ao interventor do governo, se a eleição fosse indireta (“A inabilidade figurada”, 1977).

Mas o governo tem suas próprias dificuldades internas. Desde o dia 10, Accioly Filho discute o substitutivo com o ministro da Justiça e os demais membros da comissão, mas não chegam a um acordo, pois o relator rejeita mudar os pontos negociados com a oposição e os juristas. No dia 22, a maioria arenista da comissão rejeita o substitutivo e nomeia Eurico Resende como relator. O novo substitutivo apenas reproduz o projeto original do governo.

O MDB havia adiado a sua tomada de posição durante a discussão na comissão mista. O partido prepara seu próprio substitutivo, que retoma o texto de Accioly Filho acrescido dos pontos inegociáveis e a reforma parcial do AI-5. No dia 24, o seu diretório nacional fecha questão de voto em plenário contra o substitutivo da Arena. Mas a decisão unânime não refletia a divisão interna do partido, e as dificuldades encontradas durante a reunião para chegar a ela.

Em reação, o presidente Geisel afirma que a reforma judiciária era “princípio programático fundamental” do seu governo e apela ao espírito público dos parlamentares para aprová-lo. O governo não iria recuar diante do bloqueio promovido pela minoria, que mostrava a impossibilidade de entendimento para a reforma política, para a qual os mecanismos de exceção estavam prontos para serem usados. Os líderes da Arena tentam uma alternativa para contornar o fechamento de questão do MDB e passam a atribuir o impasse à intransigência da oposição, que insistiria em pontos que significavam a contestação ao regime.

Assim, com a ofensiva de fevereiro, o governo inverteu a agenda, ao colocar as eleições indiretas como ponto inegociável da reforma e com isso antecipou o impasse inevitável na votação das reformas políticas para o da negociação sobre o substitutivo da reforma judiciária. Foi o governo que encerrou as vias de acordo sobre a reforma judiciária a partir da recusa da oposição em aceitar as eleições indiretas e outras propostas diversionistas.

No dia 28, o presidente Geisel dá um ultimato ao Congresso e fixa o dia 30 como prazo para votar a reforma judiciária. Se não, o governo baixaria um ato institucional, colocando o Congresso em recesso durante trinta dias e puniria os líderes do MDB que teriam criado o impasse. No dia 30, o substitutivo arenista não alcança o apoio de dois terços dos deputados. Ele é arquivado a tempo de o presidente Geisel fazer um pronunciamento sobre o problema nas comemorações militares pela passagem do dia 31 de março. No dia 1º de abril, Geisel decreta o fechamento do Congresso e o Conselho de Segurança Nacional se reúne para apreciar o conjunto de medidas adotadas.

CONCLUSÃO

O cerne do projeto governamental de reforma do judiciário era o fortalecimento do Supremo Tribunal Federal como coadjuvante do governo no controle do processo político, instituindo uma espécie de “estado segundo o direito”. Esse propósito se articulava com a estratégia de distensão centrada na restauração gradativa dos direitos individuais e das garantias à oposição política. A iniciativa governamental colocava-se como cessão unilateral de direitos, o que significava que a extensão da cessão e bases de legitimidade do regime não podiam ser postas em questão pela oposição. Por fim, o caráter incremental da liberalização implicava que a cessão era condicional e reversível, uma vez que seu alcance, efetividade e continuidade seriam subordinados à apreciação das circunstâncias, ou seja, da estabilidade do regime e o controle do processo pelo governo.

Depois das eleições de 1974, a reforma judiciária é colocada no centro do impasse político entre o governo e a oposição sobre as prioridades para a distensão, contra a qual se repetem ataques da linha-dura. Ao mesmo tempo, a mobilização dos juristas se alinha com a oposição, embora os juízes interpretem as reformas com melhorias em sua condição profissional. O governo destaca o caráter procedimental e a convergência de comportamentos com os quais obtém o apoio para uma reforma judiciária que sinalize a extinção parcial do AI-5 e reformas que incluam as salvaguardas na Constituição, deixando em aberto a forma das eleições para governadores em 1978.

O envio do projeto de emenda constitucional da reforma do judiciário em novembro de 1976 mostra-se um estratagema por meio do qual o governo incentivou o MDB a cooperar com o governo em continuidade com os acordos anteriores. Esse entendimento significaria a cisão da oposição e o isolamento dos autênticos do MDB. Dada a mobilização multissetorial que se configurava contra o governo, este promoveu uma contraofensiva para intimidar os juristas e políticos, incentivando-os a apoiar sua proposta. Mantido o impasse, o MDB foi colocado na defensiva e pressionado a optar: cooperar com o governo e aprovar a reforma do judiciário e as eleições indiretas, sem qualquer compromisso com a extinção do AI-5, para evitar o mal maior de um ato de exceção que colocaria em risco a distensão; ou, pelo contrário, não cooperar, mantendo-se fiel aos seus princípios e programa, mas assumindo os riscos de um ato de exceção que imporia as reformas. A preservação dos procedimentos constitucionais que, inicialmente, foi posta como o resultado do entendimento entre governo e oposição, tornou-se o ônus com o qual esta deveria arcar, apoiando a reforma judiciária e as eleições indiretas que não desejava, sem ter em troca qualquer compromisso do governo com a extinção gradual do AI-5. Assim, a oposição era colocada diante do dilema de preservar ou não os procedimentos constitucionais, para não lhe ser atribuída a responsabilidade por um revés autoritário, com o uso do AI-5 e, no limite, a supressão de eleições.

Para o governo, qualquer alternativa resultaria em vitória: se o MDB cooperasse, o governo venceria o embate. Se não cooperasse, as reformas viriam por um ato de exceção, o governo imporia as mudanças que desejava e atribuiria a ruptura das regras constitucionais à “intransigência” do MDB sobre uma questão “técnica”. Nas duas alternativas o governo mostraria aos militares que mantinha o controle do processo político e teria apoio para enfrentar a linha-dura.

Enfim, temos as implicações da reforma do judiciário e o Pacote de Abril para a democratização e a Constituição de 1988. No curto prazo, o episódio resultou na vitória do governo, que controlou a distensão e centralizou o judiciário. Mas também implicou na consolidação de uma pauta de reforma judiciária comum aos juristas e à oposição (e parte dos políticos governistas), traduzida no substitutivo de Accioly Filho. O STF, que apoiou o governo Geisel na empreitada da reforma, ficou isolado em relação aos juízes e demais juristas. O episódio parece ter catalisado o distanciamento dos juristas para com o regime,17 17 Ainda estão a ser pesquisadas a oposição dos juízes à Lei Orgânica da Magistratura e outros episódios entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, em que os juristas assumiram a defesa do estado de direito. Por exemplo, em decisões judiciais que invalidaram atos governamentais nos campos do direito tributário, administrativo, previdenciário e trabalhista. o que foi expresso pelos representantes institucionais do judiciário e do Ministério Público, suas lideranças e suas entidades associativas, que criticaram o Pacote de Abril, resistiram à criação da Lei Orgânica da Magistratura e, no caso da OAB, colocaram em primeiro lugar a reivindicação de uma Constituinte livre e soberana.

A mobilização em torno da pauta derrotada de reforma judiciária fortaleceu as associações de juristas, que se organizaram em grupos de interesse corporativos próximos à frente de oposição política ao regime. Os efeitos dessa aproximação se veriam na Constituinte, em que aqueles grupos foram capazes de identificar o fortalecimento do estado de direito com a promoção dos seus interesses, materializados em pontos específicos de reforma das instituições judiciais, tais como a autonomia administrativa e financeira do judiciário, e o papel institucional do Ministério Público (Maciel; Koerner, 2014Maciel, Debora Alves; Koerner, Andrei. “O processo de reconstrução do Ministério Público na transição política (1974-1985)”. Debates, v. 8, n. 3, pp. 97-117, 2014.). Representantes dos juristas tiveram assento nas comissões, e seus anteprojetos foram aprovados quase sem mudanças. A nova Constituição estendeu o papel das instituições judiciais para a defesa de direitos individuais e coletivos, mas consagrou o seu insulamento burocrático face aos controles democráticos e reforçou os privilégios dos juristas (Koerner; Freitas, 2013Koerner, Andrei; Freitas, Lígia Barros de. “O Supremo na Constituinte e a Constituinte no Supremo”. Lua Nova, n. 88, pp. 141-184, 2013.).

REFERÊNCIAS

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  • “Reforma da Justiça ainda no plano das intenções”. Visão, 15 set. 1975, pp. 17-24.
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  • Rodrigues, Newton. “Tempo de quarentena”. Folha de São Paulo, 25 fev. 1977, p. 3.
  • Tarrow, Sidney G. Power in Movement: Social Movements and Contentious Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
  • 1
    Este artigo foi iniciado como projeto de dissertação apresentado para o ingresso no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­cias Humanas da Universidade de São Paulo em 1988. Agradeço à profa. Maria Hermínia Tavares de Almeida pelo seu apoio e incentivo à realização da pesquisa nos tempos iniciais do mestrado. A demora de quase trinta anos para publicar as primeiras conclusões do trabalho é de exclusiva responsabilidade do autor.
  • 2
    Pasta do Arquivo Ernesto Geisel sobre o Ministério da Justiça (EG pr. 1974.04.24/1 e 2).
  • 3
    Salvo indicação em contrário, todas as informações são oriundas dessas fontes.
  • 4
    O autor recebeu em momentos distintos auxílios à pesquisa do CNPq e Fapesp, bolsa de produtividade do CNPq e bolsa de estágio no exterior da Capes.
  • 5
    A análise tomará como dados os eventos e embates políticos do perío­do, porque são conhecidos e foram analisados em importantes trabalhos.
  • 6
    A expressão “extinção parcial do AI-5” será usada para designar a restauração das garantias da magistratura e dos habeas corpus para acusados de crimes políticos.
  • 7
    Adota-se o termo para designar de forma genérica os profissionais de direito, e não apenas os doutrinadores e teóricos. Ao longo do texto, serão feitas distinções de carreiras, lideranças e notabilidades, quando for necessário para tornar a exposição precisa.
  • 8
    Foi cogitada a supressão da competência do Senado para suspender as leis declaradas inconstitucionais pelo STF. Ela foi adotada por simples resolução do presidente do STF em abril de 1977.
  • 9
    Discurso pronunciado por Armando Falcão na sessão comemorativa do primeiro centenário de criação do TJ do Ceará, em EG pr. 1974.04.24/1, pp. 157–159.
  • 10
    Os tribunais de quatro estados (Espírito Santo, Santa Catarina, Paraná e Pernambuco) demandaram a revogação do AI-5 nos seus relatórios à comissão de reforma do STF (“Reforma da Justiça ainda no plano das intenções”, 1975).
  • 11
    Teses do 1° Encontro Nacional de Magistrados (Revista Ajuris, 1974Revista Ajuris, n. 1, 1974.). A revista da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul foi criada em 1974.
  • 12
    Esse termo designa lideranças e notabilidades ligadas à UDN e ao PSD que apoiaram o golpe de 1964 e participaram do regime, mas que dele se distanciaram em algum momento, tais como, por exemplo, Aliomar Baleeiro, Oswaldo Trigueiro e Seabra Fagundes.
  • 13
    No ano seguinte, os juristas seriam mais contundentes. Ver Revista da OAB (1974Revista da OAB, v. 5, n. 14, 1974.).
  • 14
    MJ/AEG-CPDOC, EG pr. 1974. 04.24/1, pp. 1248; 1281.
  • 15
    A estratégia do governo não escapou aos analistas. Ver Rodrigues (1977) e Dines (1977).
  • 16
    Mesmo dentro da Arena havia resistência às eleições indiretas, por líderes como como o próprio Portela, Magalhães Pinto, Virgílio Távora, Jarbas Passarinho, Luís Vianna Filho e José Sarney. Esses políticos eram todos imbatíveis em seus estados e teriam que dar lugar ao interventor do governo, se a eleição fosse indireta (“A inabilidade figurada”, 1977“A inabilidade figurada”. Folha de São Paulo, 13 mar. 1977, p. 2.).
  • 17
    Ainda estão a ser pesquisadas a oposição dos juízes à Lei Orgânica da Magistratura e outros episódios entre o final dos anos 1970 e início dos 1980, em que os juristas assumiram a defesa do estado de direito. Por exemplo, em decisões judiciais que invalidaram atos governamentais nos campos do direito tributário, administrativo, previdenciário e trabalhista.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    29 Maio 2017
  • Aceito
    15 Fev 2018
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