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DIAS ENSOLARADOS NO PARAÍZO1 1 O propósito inicial deste texto era o de servir de prefácio a Memórias de Brazilia Lacerda, a ser publicado pela Chão Editora.

Sunny Days in Paraízo

RESUMO

Trata-se de uma análise das memórias inéditas de Brazília Lacerda (1887-1966), cobrindo um período de treze anos entre sua infância e o casamento, em 1906. Procura-se entender a relação entre circunstâncias históricas (a plantation, o boom do café, marcas de classe, escravidão, preconceito) e a vida privada (características de gênero, educação, aspirações e responsabilidades femininas). O texto faz também um comentário sobre a autobiografia como gênero.

PALAVRAS-CHAVE:
universo feminino (educação, escrita, trabalho); autobiografia; escravidão

ABSTRACT

Analysis of the unpublished Memórias de Brazilia Lacerda, regarding her childhood until her marriage in 1906; the text seeks to understand the relationship between historical circumstances (plantation, the boom of coffee crops, signs of class, slavery, prejudice) and private life (circumstances of gender, education, aspirations and female responsibilities); brief commentary on autobiography criticism.

KEYWORDS:
The boom of coffee; slavery; abolition; plantation; owners; autobiography; cultural memories

Eis está gravado não no ar, em mim, que por minha vez escrevo, dissipo. Carlos Drummond de Andrade

As Memórias de Brazília Lacerda, até hoje inéditas, foram escritas por uma mulher que nasceu em 1887 e faleceu em 1966, aos 78 anos. De todo esse tempo ela separou o período em que parece ter sido realmente feliz, pois as impressões e fatos ali narrados vão de 1893, quando contava seis anos, a 1906, quando se casou com um primo, aos dezoito anos de idade. O relato cobre, portanto, treze anos em que, ao lado de saudades confessadas, surpreendemos observações atentas de circunstâncias da história brasileira, inclusive do papel que as mulheres nela desempenharam.

Não é esta a única mescla na composição desses escritos. Pelo recorte temporal breve, que apagou qualquer alusão a outra época da vida, e pela obediência à ordem cronológica, essas memórias podem também ser consideradas um diário, ambos gêneros que se caracterizam como autobiografias, relatos da vida por quem a viveu.

Comecemos pelo nome completo da autora do diário: Brazília Oliveira Franco de Lacerda.2 2 O nome da narradora (Brazília) e o da fazenda (Paraízo) foram mantidos com a grafia original. Pertencia a uma família da elite rural paulista de produtores de café. O apogeu dessa produção, sujeita sempre a grandes oscilações comerciais no que diz respeito à exportação, caracterizou o famoso boom que transformou o Brasil da época, incluindo-se aí a apropriação de terras dos que não tinham capital para se inserir na burguesia cafeeira. Nos anos recordados por Brazília, o sucesso desse empreendimento já estava em declínio, o que foi anotado por ela.

Infelizmente só tive acesso a uma pequena parte de sua produção escrita:3 3 Em Ruídos da memória, Marina Maluf (1995) anota a produção de Brazília a que teve alcance: “Três cadernos de lembranças, setenta diários, um livro de receitas e dois livros de poesia”. três cadernos pequenos, também referidos como “cadernos de lembranças”, escritos sessenta anos depois do final do período de treze anos assinalado. A fazenda onde vivia, chamada Paraízo, é o cenário da ação, entremeada por passagens que relatam suas estadias (dois meses por ano) na cidade de São Paulo, onde seus pais também tinham uma casa, e a viagem de núpcias ao Rio de Janeiro e à Argentina.

Adianto uma observação que será desenvolvida mais tarde. Penso que o recorte feito intuitivamente por Brazília, entre recordação e descrição objetiva, causa no texto uma espécie de flutuação entre sentimento e distância, entre tentativa talvez literária e documento, dubiedade que nem sempre a análise soluciona de maneira cabal.

Todos sabemos que diários, autobiografias ou memórias, ainda que diferentes entre si, incluídos no que se chama “literatura íntima”, até hoje não alcançaram a consideração dos grandes gêneros literários, a ficção e a poesia. Não me refiro ao teatro por ser um tipo especial de criação literária, na medida em que o texto só se completa no palco, sob a direção de um encenador. É um texto eternamente em suspensão.

Mas por que se escrevem memórias? Creio que ninguém pode responder a essa pergunta de modo definitivo, a não ser que tenha sido contratado para a tarefa. Mesmo escritores reconhecidos não podem ter uma objetividade clara ou exata a respeito do sentido da atividade literária. “Pois eu não sei e não sei”, confessa Wisława Szymborska (2011), a grande poeta polonesa, prêmio Nobel de Literatura de 1996. Talvez possamos usar as palavras de Andrés Raggio, citado por Bento Prado Jr. (2004Prado Jr., Bento. Erro, ilusão, loucura: ensaios. São Paulo: Editora 34, 2004.), quando discutiam a possibilidade técnica da interpretação filosófica: “[…] a tecnicidade, em filosofia, é inversamente proporcional ao interesse filosófico de um texto”.

E o que dizer de memórias pessoais, ou diários íntimos de pessoas comuns? Seu único interesse residirá na própria insignificância literária, conforme querem alguns bons críticos?4 4 Ver: Blanchot (1984), pp. 193 ss. O argumento de que esse nada, essa insignificância, não faz mais que marcar distância entre vida e literatura não me convence inteiramente no caso de Brazília. A eleição da escrita de memórias como defesa, diante da dificuldade da produção literária, usando uma espécie de “parapeito para o perigo da escrita”, é certamente excessiva para ela. Brazília apenas entregou-se livremente ao desejo de recordar, de voltar aos afetos do coração no primeiro período de sua vida, antes do casamento e das tarefas exaustivas a cargo das mulheres nas fazendas do interior. Para desempenhá-las, fora treinada por sua mãe.

Além disso, nessa sofisticada argumentação teórica não entram os romances escritos em forma de diário nem os aspectos literários encontrados nas memórias, nas autobiografias etc.

Philippe Lejeune (1975), especialista no gênero autobiográfico, resolve a questão quando trata dessas variações como casos limites, a exemplo de autobiografias na terceira pessoa, autobiografias com autor múltiplo, memórias imaginárias, chegando à supostamente recente autoficção.

Elucubrações à parte, julgo, aliás sem originalidade alguma, que o fundamental é que os gêneros citados configuram territórios porosos e, ainda, suscetíveis a diversas avaliações, em obediência a certa história das formas que dê conta do que Lejeune chama “contratos de leitura”. Estes também não são permanentes, se transformam com o tempo. O crítico é aconselhado a lutar contra a norma de uma época, que só aceita determinado parâmetro, e, ao mesmo tempo, a resistir aos perigos da idealização.

Estudando autores brasileiros, Eliane Zagury (1982Zagury, Eliane. A escrita do eu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/inl/Pró-Memória, 1982.) chama atenção para o desequilíbrio que o falar de si mesmo causa no sujeito, como se este caminhasse com uma perna só. A escrita o reorganiza de modo instável no reino do imaginário: “O distanciamento temporal - um eu objeto passado em relação a um eu sujeito presente - representa o perfil de uma segunda perna fantasmagórica, porque a memória é sempre fluida e inconstante” (idem, p. 15).

Diante disso, o diário de Brazília não cabe exatamente na discussão teórica mencionada, que trabalha com textos de escritores, alguns deles notáveis. Trata-se de outra modalidade de escrita íntima, inédita, guardada pela família, que a libera ou não ao público. Brazília escreve, mas não é realmente uma escritora, escreve como quem fala consigo mesma, despreocupadamente, sem noção de estrutura ou ritmo, fundamentais para o texto literário, seja poesia seja prosa. Em muitos momentos o texto é frouxo, cheio de repetições, como se tivesse sido escrito pela criança ou pela adolescente do passado, o que não deixa de apresentar um encanto especial. Mesmo porque dizemos mais do que falamos ou escrevemos. E esse plus, às vezes, é o que interessa.

Carlos Drummond de Andrade, que por anos a fio encheu cadernos de anotações íntimas, afirma que ninguém o obrigou a isso, a esse mirar-se no espelho do presente. Se o faz, “há de ser por força de motivação psicológica obscura, inerente à condição de escritor, alheia à noção de utilidade profissional” (Drummond, 2017, p. 19). A Brazília também certamente ninguém obrigou a tal tarefa, a não ser uma “motivação psicológica obscura” de que fala nosso poeta maior. Naturalmente, é essa a única proximidade possível entre ambos. Brazília será antes uma “escrevente”, como quer a historiadora Marina Maluf, autora de um livro fundamental sobre nossa memorialista, ao cruzar o texto desta, entre outros, com o de outra memorialista, Floriza Barbosa Ferraz. Pertencentes ambas à elite escravista e agrária paulista, foram separadas socialmente pelos solavancos econômicos e as alterações profundas da segunda metade do século xix brasileiro. No fio dessa diferença, Marina Maluf aguçou o exame da acumulação de riqueza na época e dos papéis femininos, pensando no embate entre “história das mulheres” e “história social”, sem naturalizar masculino versus feminino, como acontece quando se substitui um pelo outro, mas desejando “restituir para o centro do processo histórico o conflito, a ambiguidade e a tragédia” (Maluf, 1995, p. 17).

Podemos conjecturar também que não seriam comuns memórias ou diários escritos por mulheres nessa situação de solidão e trabalho sem trégua das fazendas do interior paulista do fim do século xix, o mesmo acontecendo em relação aos homens. Não deixa de ser significativo que Brazília tenha escrito quando esse tempo já era passado. Quanto aos homens, alguns cientistas sociais atribuem o silêncio ao catolicismo brasileiro, quando comparado ao protestantismo norte-americano: “Aquele podia recorrer ao confessionário, mas a este só restava o refúgio do papel” (Freyre apudCabral de Mello, 1997Cabral de Mello, Evaldo. “O fim das casas-grandes”. In: Novais, Fernando; Alencastro, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil, v. 2. São Paulo: Companhia das Letras , 1997., pp. 385 ss.). A mesma diferença foi observada entre os países da Contrarreforma, de um lado, e da Reforma, de outro (Gusdorf apud Cabral de Mello, 1997). Mas não seriam as únicas causas.

Os homens comumente produziram os chamados livros de assentos, pequenos cadernos em que o chefe de família anotava os principais acontecimentos da história doméstica (casamentos, nascimentos, festa familiares etc.), ao lado de anotações financeiras e comerciais (Cabral de Mello, 1997Cabral de Mello, Evaldo. “O fim das casas-grandes”. In: Novais, Fernando; Alencastro, Luiz Felipe de (orgs.). História da vida privada no Brasil, v. 2. São Paulo: Companhia das Letras , 1997.).

Desse ponto de vista, Brazília surpreende, mesmo porque a educação das mulheres não estimulava esse tipo de atividade. Pertencente à fatia privilegiada da sociedade, ela teve professoras inglesas, alemãs e francesas em casa, aprendeu a cantar com a mãe, mas tudo se encaixava no capítulo das cortesias, exacerbadas nas fazendas do interior do país, em que muitas vezes escravos e colonos eram em maior número que os donos da terra. Ao mesmo tempo, a mãe a preparava para desempenhar seu papel de futura responsável pelas muitas atividades do cotidiano.

Segundo descrição de Brazília, os programas das aulas, além de línguas, aritmética e geografia, punham lado a lado história universal e história santa (sic), piano e trabalhos de agulha. Tudo isso não ultrapassava o limite caseiro, fiel ao projeto da educação social das meninas, nos modelos tradicionais de comportamento, insuflados pela ordem doméstica. Havia, sim, uma disciplina e horários “como em um colégio”, mas a situação na fazenda não podia ser a mesma.

Algumas vezes estávamos em aula e ouvíamos os gansos do lago em grande agitação e cantoria, pedíamos licença para a Fräulein e íamos olhar na janela, era quase sempre uma visita que chegava de trole […].

A curiosidade satisfeita, voltávamos para nossas carteiras, mas a Fräulein tinha algum trabalho para pôr nossas cabeças no estudo novamente.

Apesar do alvoroço e das distrações da infância, a Brazília adolescente, anos depois, revela senso de humor e vivacidade, quando, em cartinhas às amigas, faz funcionar seu francês para encobrir o flerte com Amadeu: em vez de “Fleurage” (ramalhetes decorativos em peças como tapetes), refere-se ao primo como “Fleurange”, misturando “flor” e “anjo”.

Ainda no capítulo das literatices, uma só vez Brazília diz que “lia um pouco” antes de dormir, enquanto o irmão menor, Asdrúbal, estava sempre às voltas com o “Mon Journal que papai lhe havia dado em bonita encadernação”. Por aí já passa a diferença da educação dos homens e das mulheres.

Mas a menina ajudava o pai a escrever seus livros de assentos: “Acabada a colheita de café, Papai fechava as contas de todos os empregados. Eu o ajudava, passando em cada caderneta a conta e assentos do ‘livro-caixa’. Fazia isso de noite, na mesa da sala de jantar”. Num apêndice às Memórias também existe uma espécie de recibo “pago à Vanja”.

Esses dados vêm ao encontro do outro lado da formação das fazendeiras, já mencionado. Brazília foi preparada para desempenhar funções que exerceu plenamente depois do casamento. É por tal imperativo que as tarefas domésticas se confundiam desde a infância com a aprendizagem formal. Como sua mãe Elisa, Brazília era treinada para administrar no futuro todos os aspectos que envolvessem a consolidação do lar e do capital familiar. Portanto, as mulheres estavam, sim, bem a par da situação das fazendas, mais do que se supunha e do que às vezes afirmavam.

“Onde terminava a operação doméstica e começava a mercantil, ambas inscritas no mesmo espaço geográfico - a fazenda?”, pergunta Marina Maluf. Ela acrescenta que Brazília e outras memorialistas “articularam seus registros a partir de um lugar, de uma determinada topografia social e cultural. E suas escrituras guardam os filtros de sua condição de classe, de sua condição feminina e de todos os conjuntos simbólicos que recobrem essas condições” (Maluf, 1995, p. 229).

Essas informações nos esclarecem a respeito do modelo de escrita usado por Brazília nos três cadernos. Ainda que eles tenham a intenção declarada de recordar um passado feliz vivido na primeira fase da vida, o relato é excessivamente descritivo e, na maioria das vezes, parece exterior à narradora, como se fosse um filme se desenrolando ante seus olhos.

Tal distanciamento, com jeito de anotação, remete diretamente aos livros de assentos que, como vimos, Brazília ajudava o pai a escrever. É esse, basicamente, o modelo de escrita que ela tem. As leituras (o que será que ela lia antes de dormir?) não mereceram citação nas Memórias. O contrário acontece com sua experiência de ajudante do pai, que devia deixá-la orgulhosa.

O fato é que, assim como nos livros de assentos, encontramos em seu texto descrições dos acontecimentos da história familiar. São observações ricas, pormenorizadas, que revelam grande poder de observação. Aproximam-se às vezes da crônica bem-humorada, com um pouquinho de suspense, enfim, “a vida ao rés do chão”, segundo expressão de Antonio Candido (1984Candido, Antonio. “A vida ao rés do chão”. In: Andrade, Carlos Drummond de et al. Para gostar de ler: crônicas, v. 5. 4. ed. São Paulo: Ática, 1984.). É o que observamos nos vários “desastres” narrados por Brazília: o salvamento do gatinho que caiu na fossa sanitária, a cabeleira “enorme” da mãe que quase pegou fogo, a queda do balanço e muitos outros.

Assistimos também às colheitas e ao tratamento do café e do açúcar, aos pormenores da construção da casa da fazenda; sabemos das doenças, dos remédios e das superstições, acompanhamos a inauguração da casa nova no Paraízo, com banquete e danças populares (congada e bumba meu boi). Ainda a observamos nos passeios na fazenda e também em São Paulo, onde testemunhamos a lanterna mágica, os bondes de burro, a construção do Theatro Municipal, as touradas na praça da República (sem jardim nem árvores) e o circo armado no chão de terra, bem como os “assustados”, isto é, as festinhas dos jovens etc. Além disso, acompanhamos seu convívio na cidade com as famílias da alta sociedade, a descrição de enxovais e de uma festa de casamento.

O aparecimento do primeiro automóvel assombra e desgosta, como se ela adivinhasse o desacerto do número excessivo dessas máquinas em nossas cidades:

Numa dessas tardes, ouviu-se um barulho diferente, parecia arrastando latas, estalando. O que havia de ser? O Armando Penteado, rapazinho novo, chegado da Europa com seu automóvel. Era uma cousa bem feia, mais parecia uma aranha; e que barulho fazia!

Nunca como nessas ocasiões na cidade a marca de classe aparece tão nítida, como podemos ver no episódio do rapaz “muito tímido e modesto”, mas que “tinha enlevo” pelas duas irmãs. Estas, por sua vez, se referiam a ele “com alguma maldade” como “o amarelão, pois o tal era mesmo muito pálido, quase amarelo”. Não sabemos qual o tom desse amarelo, mas certamente era tido como cor negativa, distante da prezada raça branca.

Outro episódio diz respeito a “mocinhas bonitas que já usavam pintar o rosto” e que eram de uma família modesta: “Sabia-se que a mãe cozinhava e as moças costuravam e não tinham empregadas”. Para Brazília, a situação doméstica era claramente desprezível. Ela nunca soube o nome das moças, pejorativamente referidas como “as tais”, do mesmo modo como o “Amarelão” foi tratado como “o tal”.

As descrições de comidas mereceriam comentários à parte. Às vezes encontramos receitas minuciosas de doces, balas, cremes, que parecem retiradas do livro de receitas da própria Brazília, datado de 1904 e que deve ter rodado pela família (a letra do manuscrito parece variar, mas só um especialista decidiria a respeito de autorias). De qualquer modo, acredito que esse livro, inédito como as memórias, mereceria ser lido à luz de Açúcar, de Gilberto Freyre (1969Freyre, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, 1969.), início entre nós de uma valorização sociológica da culinária, especialmente a nordestina, mas não apenas.

O primeiro caderno das Memórias consta de dezenove páginas manuscritas, encimadas por um título: “Fazenda Paraízo - 1893”. O relato cobre quatro anos da vida de Brazília, dos seis aos dez anos, idade que marca o início do segundo e mais extenso caderno, com 21 páginas.

Em 1897 nos mudamos para a casa nova do Paraízo, não me lembro de que mês foi isso; talvez no mês de Junho, pois nas festas para a inauguração da casa houve fogueira, fogos e danças no terreiro. Também não me lembro como foi a mudança, nem a impressão que tive dormindo no Sobrado, no quarto novo, era todo azul, isso me lembro… (p. 20)

O terceiro e último caderno, com doze páginas, começa no dia em que Brazília fez dezessete anos, em 24 de maio de 1904. É o caderno romântico da trilogia, e certa mudança de ritmo acolhe a descrição do namoro e do casamento de Brazília com o primo Amadeu. A narração aqui tem outra temperatura, talvez fazendo eco a histórias folhetinescas ou histórias de fadas lidas ou ouvidas por ela. Nesse momento, o “sentimento” aparece fiado pelas construções intensivas, repetitivas, segundo a eterna moda do amor romântico.

No entanto, algumas sombras começam a turvar o confessado enlevo, conforme lemos na volta da lua de mel e na mudança da casa dos pais para a casa do marido: “Estava tão feliz, meu amor por Amadeu era tão grande, tudo me sorria e me dava alegria. Em poucos dias já estava tudo arrumado e aquela casinha modesta, tão diferente da casa de meus Pais, me deu tanta felicidade, anos da minha vida” (p. 54). Pouco antes, ela confessara que, na mudança para sua própria casa, “embora a diferença fosse grande [da casa de seus pais] e o trabalho de instalação penoso, tudo por limpar e arrumar, mesmo assim eu não me senti triste e nem desanimada”.

Devemos mesmo acreditar em tanta valentia? Pois o tom desiludido não deixa de aparecer. Quando foram conhecer a casa, Brazília atribui o desapontamento ao pai: “Penso que papai terá ficado meio desapontado, pois que na frente da casa onde eu ia morar, era uma capoeira e tudo meio abandonado ao redor da casa”.

Quando Brazília “cai do discurso”, quando se desequilibra - seja do tom de livro de assentos, seja das construções sentimentais -, é que a narrativa funciona perto do literário, com sua marca de autenticidade. Os momentos não são raros, mas em geral se perdem, misturados ao registro protocolar. É o que percebemos, por exemplo, quando, em meio à grande felicidade do noivado, Brazília faz observações inesperadas, atribuindo-as agora à mãe: “Amadeu foi sempre muito amigo e muito bom para com meus pais e irmãos. Mesmo assim não deixava de ter algumas esquisitices, ou exigências que mamãe relevava e sabia desculpar, pois tinha grande sabedoria e bondade” (p. 50).

Pouco antes, percebendo que o futuro marido era “prosa e conversado”, ela nota também seu “hábito de bater com o punho fechado do lado da cadeira onde estava sentado”, o que não deixa de ser no mínimo curioso (violento?) e quebra o tom enlevado da jovem que tinha o coração, este sim, dando pancadas no peito.

São essas frestas no texto que abrem a narrativa para outros níveis de informação, como se atravessássemos uma parede transparente.

O capítulo da escravidão não poderia faltar, pois o comércio infame, que esfolava o escravo até a alma, expandiu-se no centro-oeste paulista a partir de 1850, quando o centro de gravidade econômico se deslocou do Norte e do Nordeste para o Sudeste e o Sul do país. O café “converteu-se depois na mais importante mercadoria do comércio mundial, só ultrapassado pelo petróleo, quando já ia avançado o século xx” (Oliveira, 2018Oliveira, Francisco de. Brasil: uma biografia não autorizada. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 31). Essa importância aparece também na literatura estrangeira, pois não deixa de ser significativo que, em La Fanfarlo, Baudelaire descreva o personagem Samuel (ele mesmo?) com os olhos brilhantes “comme des gouttes de café” (apudKopp, 2004Kopp, Robert. Baudelaire: le soleil noir de la modernité. Paris: Gallimard, 2004.).

Já na primeira página das Memórias, Brazília nos fornece ao menos dois exemplos da presença da escravidão. O primeiro é a preocupação com o tom da pele, pois nem de longe poderiam os corpos evocar o tom dos cativos. Essa observação fisionômica de Brazília, recorrente ao longo do diário, começa com uma referência a Asdrúbal, o irmão de dois anos, numa viagem de trem: “Ele tinha cabelos loiros, cacheados, era bem claro. Carinha cheia, quando corria por fora ficava bem corado. Nós o achávamos lindinho. […] Eu e Vangila tínhamos a cor do papai! Éramos bem amarelinhas, nada coradas”.

O encontro com um tio, na gare, reforça a preocupação:

Ele veio logo conversar com meus pais, nos fez festa. Mais tarde soubemos [o que revela comentários dos pais ouvidos pelas crianças] que ele dissera: “Nem a brancura da Elizinha [a mãe] pôde com a cor dos Lacerda”. E eu digo hoje: […] nem o vermelhão do Amadeu pôde com a palidez dos Lacerda, pois que a maioria dos meus filhos é pálido e moreno [sic].

No correr do texto, em registro oposto, a referência à cor branca nunca é esquecida: porcelanas, toalhas cobrindo mesas, velas “bem brancas”, toalhinhas brancas com o crochê nas beiradas, lençóis. A preocupação constante e registrada com a limpeza, associada à cor branca, era importante “não só para a manutenção da saúde, mas para marcar a distância de segmentos sociais mais baixos, associados, inversamente, à falta de higiene” (Carvalho, 2008Carvalho, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato, o sistema doméstico na perspectiva da cultura material: São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008., p. 192). Ouso dizer que essa desconfiança, talvez suavizada, perdura até hoje.

O segundo exemplo diz respeito às tramas ao redor da construção da estrada de ferro e da Abolição, ligadas à pressão política da Inglaterra. Luiz Felipe de Alencastro (2018Alencastro, Luiz Felipe de. “Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador”. Entrevista concedida a Amanda Rossi para a bbc Brasil, 13/5/2018. Disponível em: <Disponível em: www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474 >. Acesso em: 20/2/2019.
www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474...
) observa que a Inglaterra possuía três trunfos: “[…] era como se fosse a onu (porque garantia o reconhecimento diplomático internacional), o fmi (porque emprestava dinheiro) e a oit (porque vetava a importação de africanos)”. Com tamanho poder, impôs ao Brasil o fim do tráfico. Para aplacar os ânimos do movimento abolicionista/republicano, “a classe dirigente (a administração imperial) propôs à classe dominante (fazendeiros, as oligarquias regionais) uma lei de imigração para trazer trabalhadores rurais, uma estrada de ferro na região cafeeira - porque o transporte era feito em lombo de mula - e a redução das tarifas de exportação de café”.

Era a resposta à ousada proposta de André Rebouças, apoiada por Joaquim Nabuco e outros abolicionistas: a de criar um imposto sobre fazendas improdutivas e distribuir as terras para ex-escravizados. Certamente era a primeira proposta de reforma agrária no Brasil, que assim iniciou sua história de futuras derrotas. “Fazendeiros, republicanos e mesmo abolicionistas mais moderados ficaram em polvorosa”, afirma Alencastro. “No fim todos fecharam com os latifundiários, e a ideia da reforma agrária capotou”.

Os imigrantes estrangeiros chegaram, mas eram insuficientes para substituir o braço escravo, pois as fazendas de café se multiplicavam no Sudeste e exigiam cada vez mais mão de obra. Cativos haviam vindo do Norte e do Nordeste em anos anteriores, num tráfico agora interno. O convívio com o trabalho livre criou problemas novos, pois era comum que os patrões, com a Abolição recente, tratassem os colonos como escravizados. Na página 21 do segundo caderno, por exemplo, Brazília narra que a mãe em certa ocasião pegou o chicotinho do pai para dar “algumas lambadas nas costas de Francisca”, uma moça portuguesa que estava aprendendo o serviço.

Embora afirme que pouco sabia da fazenda, Brazília é observadora: anota a longa crise do café (“pouco preço e pouco mercado”), a plantação das seringueiras (maniçobas) para a exportação da borracha e a convivência dos pais com os colonos:

Mas hoje, quando eu penso como era, eu estranho. Papai nunca fazia entrar, nem sentar-se esses empregados. Ele tinha os serviços tão certos, e penso que já teria durante o dia corrido tudo, já estava ao par, então aquela conversa era só para dar as ordens para o dia seguinte, e fazia rápido. Se o café chegava na hora, serviam uma xícara ao Fiscal [isto é, o administrador], que tomava ali mesmo em pé, dava boa-noite e se retirava.

A ambiguidade das relações está sempre à tona do texto, perfeitamente visível no desdobramento da narradora entre ontem e hoje, entre a Brazília escritora e a Brazília leitora. Várias vezes ela faz reflexões comparando os tempos: “hoje, quando penso…”.

Outras vezes, porém, essa mesma ambiguidade das relações entre empregadas ou escravas, de um lado, e patroas ou amas, de outro, é resolvida na linguagem. As primeiras são escondidas por trás do pronome “se”, espécie de pessoa não declarada, em oposição à primeira pessoa explícita, que configura o sujeito da ação, isto é, as amas. Observamos essa situação, entre outras passagens, na descrição dos trabalhos no quarto do forno: “Com uma pá de cabo bem comprido, colocava-se no forno […]. Fecho depressa o forno, não pode tomar vento, abro agora o suspiro. […] Deixo mais um pouco para secar. Então com uma varinha metia-se no forno” (grifos meus).

Os exemplos são muitos e com variações, sendo frequentes os verbos sem sujeito, porque a única coisa importante para a narradora é a ação, não a pessoa que trabalha para executá-la. Aliás, seria mesmo uma pessoa? “Quando estava tudo bem aceso, esparramava com uma vara comprida” (quem?) ou “chegava papai sempre muito acalorado, pedia os chinelos” (a quem?).

Sabemos que a dificuldade de tratar da questão da cor atinge também os mais pobres, segundo a antiga observação de que as ideias dominantes numa sociedade são as ideias da classe dominante. Assim, no capítulo terceiro de seu belo livro Memória e sociedade: lembranças de velhos, Ecléa Bosi (1979Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: t. a. Queiroz, 1979.) narra a entrevista com dona Alice, muito pobre, que fala da decadência dos bairros em São Paulo e das várias casas em que a mãe trabalhou como empregada doméstica. Quando criança, ela ia com a mãe ao emprego. Em uma das casas havia meninos levados (assim mesmo!): “me beliscavam, puxavam o cabelo. Então minha mãe me trancava na despensa e levava minha comida para lá”. Dona Alice é agora uma mulher idosa que conversa com Ecléa: “Lembro de uns vizinhos: dona Maricota, portuguesa casada com um senhor - posso falar? - de cor, mas era uma família muito distinta” (idem, p. 53). Em suma, era preto, mas era distinto. Apesar da delicadeza, dona Alice não pode fazer outra coisa a não ser obedecer à sintaxe de apoio de nosso racismo oficial, afirmado e ao mesmo tempo escondido atrás da adversativa “mas”.

Impossível aqui não remeter ao notável poema de Francisco Alvim (2004Alvim, Francisco. Poemas, 1968-2000. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004., p. 62), em sua sintaxe homeopática que usa o igual para diagnosticar a doença social:

mas

é limpinha

A frase era muito ouvida há alguns anos, quando uma patroa branca contratava uma empregada negra, que não podia ser nomeada,5 5 A frase completa era “é preta, mas é limpinha”. Inteligentemente o poeta sublinha o avesso da frase, o que ela esconde, apoiado no “mas” adverso, antagônico (conjunção adversativa). tal como vimos que acontece em alguns momentos das Memórias. Os sentidos e as intenções não são os mesmos, nem a forma literária, mas o vazio da pessoa é o que resta como escândalo.

Brazília não precisa disfarçar nem afirmar. Nem pensa nisso. As contradições estão na própria forma, como procurei mostrar. Existe algo que estremece em sua prosa, entre livro de assentos e voz pessoal, entre lembrar e esquecer, entre esperteza e ingenuidade, entre memórias e esquecimento. Às vezes a paixão rompe o discurso e as palavras intensivas sublinham a confissão pessoal: “Lembro-me tanto da casa, no Paraízo” (p. 1, grifo meu).

A mesma construção é usada só mais uma vez, quando Brazília recorda as visitas à fazenda da Horta, da tia Ângela. Descreve com minúcia a casa, a varanda cheia de trepadeiras, as tias que falavam bem francês e alemão, um piano de qualidade tocado muito bem pelo tio José, que “gostava de Wagner, Beethoven, Chopin”, a tia Ângela, “que tinha voz de soprano ligeiro e um repertório mais variado do que mamãe” (p. 36).

Brazília tem saudades: “Eu gostava tanto de lá!” (p. 35, grifo meu).

Às vezes, no Paraízo, a mãe tocava piano e cantava: “Muitas vezes de noite mamãe ia para o piano, papai ouvia do escritório e vinha logo. Ele gostava de acompanhar com a flauta, e era bem bonito. Inda lembro algumas músicas que mamãe cantava, com voz de soprano” (p. 35).

Quando se esquece, o que não é raro, Brazília se lastima: “Não tenho mais ninguém daquele tempo para me contar” (p. 5). Mas de momentos da infância ela jamais se esquece. São os que ficaram com ela.

No terreirinho, bem encostado no muro, havia um jardinzinho, só tinha dálias de várias cores; protegia o jardinzinho uma cerquinha com tela de arame. Aos domingos, mamãe enfeitava os vasos com essas dálias que eram pequenas e jeitosas, e a folhagem eram galhinhos de alecrim, estes são muito jeitosos, em forma de palmas; folhada bem lustrosa. E… de noite o alecrim dormia, tanto o que estava nos vasos, como a árvore inteira. Ficava bem fechadinho!, todas as folhinhas dobradas. Mamãe nos mostrava e dizia: “Elas vão dormir”.

Como menina pequena agasalhada pelo calor dos diminutivos, que valem como dias ensolarados, ela se consola, consegue escrever e talvez fique em paz.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Alencastro, Luiz Felipe de. “Abolição da escravidão em 1888 foi votada pela elite evitando a reforma agrária, diz historiador”. Entrevista concedida a Amanda Rossi para a bbc Brasil, 13/5/2018. Disponível em: <Disponível em: www.bbc.com/portuguese/brasil-44091474 >. Acesso em: 20/2/2019.
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  • Alvim, Francisco. Poemas, 1968-2000. Rio de Janeiro: 7Letras, 2004.
  • Andrade, Carlos Drummond de. Uma forma de saudade: páginas de diário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
  • Blanchot, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio D’Água, 1984.
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  • Carvalho, Vânia Carneiro de. Gênero e artefato, o sistema doméstico na perspectiva da cultura material: São Paulo, 1870-1920. São Paulo: Edusp/Fapesp, 2008.
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  • Zagury, Eliane. A escrita do eu. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/inl/Pró-Memória, 1982.
  • 1
    O propósito inicial deste texto era o de servir de prefácio a Memórias de Brazilia Lacerda, a ser publicado pela Chão Editora.
  • 2
    O nome da narradora (Brazília) e o da fazenda (Paraízo) foram mantidos com a grafia original.
  • 3
    Em Ruídos da memória, Marina Maluf (1995) anota a produção de Brazília a que teve alcance: “Três cadernos de lembranças, setenta diários, um livro de receitas e dois livros de poesia”.
  • 4
    Ver: Blanchot (1984Blanchot, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio D’Água, 1984.), pp. 193 ss.
  • 5
    A frase completa era “é preta, mas é limpinha”. Inteligentemente o poeta sublinha o avesso da frase, o que ela esconde, apoiado no “mas” adverso, antagônico (conjunção adversativa).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Set 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Jan 2019
  • Aceito
    03 Jul 2019
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