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(DES)CONTINUIDADES NA EXPERIÊNCIA DE “VIDA SOB CERCO” E NA “SOCIABILIDADE VIOLENTA”

(Dis)Continuities in the Experience of “Life Under Siege” and “Violent Sociability”

RESUMO

Este trabalho se propõe a revisitar as noções de “vida sob cerco” e “sociabilidade violenta” a partir de pesquisas etnográficas realizadas na última década. O artigo analisa as transformações que a inauguração das Unidades de Polícia Pacificadora gerou na vida cotidiana de favelas cariocas e no chamado “mundo do crime”. Além disso, visa compreender o momento atual, investigando os efeitos da “crise” das UPPs e o “legado” da “pacificação”.

PALAVRAS-CHAVE:
favelas; sociabilidade; crime; violência; pacificação

ABSTRACT

The paper proposes to revisit the notions of “life under siege” and “violent sociability” based on ethnographic research conducted in the last decade. The article analyzes the transformations that the inauguration of Pacification Police Unit Program generated in the daily life of Rio’s favelas and in the so-called “world of crime”. In addition, it aims to understand the current moment by investigating the effects of the “crisis” in the UPPs and the “legacy” of “pacification”.

KEYWORDS:
favelas; sociability; crime; violence; pacification

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas grande parte do debate público e acadêmico parece girar em torno de problemas de definição e controle das “classes perigosas”. Essa categoria (“classes perigosas”), que na origem dizia respeito à necessidade de segregação política, vê-se paulatinamente esvaziada, de um lado, pelos grandes contingentes que, através de seu protagonismo e de condições institucionais e econômicas favoráveis, se incorporaram a uma sociedade civil, ela mesma muito modificada a ponto de perder boa parte do peso relativo à noção de classe social; ao mesmo tempo que, de outro lado, uma crescente minoria se manifesta através de agrupamentos que extravasam as práticas convencionais da sociedade civil organizada e suas disputas internas. Essa ambivalência do desenvolvimento social continua provocando o sentimento de “perigo” que sempre esteve associado às classes perigosas, mas agora, em virtude das mudanças institucionais, separado da referência à “classe” e à segregação política que era o núcleo da síntese contida na noção de classes perigosas. Isso põe o perigo ao nível da vida cotidiana, ou seja, das relações interpessoais diretas ou quase (entre grupos restritos). E é isso que concentra os vários temas e abordagens que tratam da “violência urbana” nos últimos anos.

Para refletir sobre as mudanças nas dinâmicas associadas à violência urbana na cidade do Rio de Janeiro, este artigo propõe revisitar as referidas noções de “sociabilidade violenta” (Machado da Silva, 1999Machado da Silva, Luiz Antonio. “Criminalidade violenta: por uma nova perspectiva de análise”. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, n. 13, nov. 1999, pp. 115-24.) e “vida sob cerco” (Machado da Silva; Leite, 2008______; Leite, Márcia. “Violência, crime e polícia: o que favelados dizem quando falam desses temas?”. In: Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008, pp. 47-76.) a partir de diferentes pesquisas etnográficas realizadas nas últimas duas décadas. O presente trabalho busca compreender as continuidades e as descontinuidades que podem ser verificadas, por um lado, naquilo que Machado da Silva descreveu como uma forma de vida singular na qual a força física deixa de ser um meio de ação regulado por fins que se deseja atingir, para se transformar em um princípio de coordenação (um “regime de ação”) das práticas; e, por outro, na experiência de confinamento socioterritorial e político que provoca nos moradores de favelas cariocas uma intensa preocupação com manifestações violentas que impedem o prosseguimento de suas rotinas e dificultam a manifestação pública de suas demandas.

Tendo como base trabalhos etnográficos coordenados e realizados tanto pelos autores como por outros pesquisadores do Rio de Janeiro e de São Paulo que vêm estabelecendo diferentes tipos de interlocução com os conceitos em questão, o presente artigo terá como foco a análise de três momentos diversos. Inicialmente retomam-se algumas reflexões sintetizadas no livro Vida sob cerco publicado há dez anos (em um momento pré-“pacificação”). Posteriormente, serão mapeadas as transformações que a inauguração das Unidades de Polícia Pacificadora, no fim de 2008, gerou na vida cotidiana regular das favelas cariocas, no chamado “mundo do crime” e também no próprio debate acadêmico. Por fim, tentar-se-á compreender o momento atual, investigando os efeitos da chamada “crise” das UPPs e do recrudescimento dos conflitos violentos no Rio de Janeiro.

ENTRE A “METÁFORA DA GUERRA” E A “PACIFICAÇÃO”

Desde o seu surgimento, há mais de um século (Valladares, 2005Valladares, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com. Rio de Janeiro: FGV, 2005.; Zaluar; Alvito, 2004Zaluar, Alba; Alvito, Marcos (orgs.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.), as favelas sempre foram vistas como uma espécie de quisto que ameaçava a organização social da cidade (Machado da Silva, 2002______. “A continuidade do ‘problema da favela’”. In: Oliveira, Lúcia Lippi (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV/CNPq, 2002, pp. 220-37.). No entanto, os atributos que compõem o conteúdo do que é definido como “o problema favela” modificaram-se significativamente a partir dos anos 1980. A “violência urbana” alterou o lugar das favelas no imaginário da cidade (Machado da Silva, 2008______. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008.). Com a expansão do tráfico de drogas, o aumento dos confrontos armados entre diferentes facções criminosas e os conflitos entre esses grupos criminosos e a polícia, houve uma superposição do “problema da segurança” com o “problema das favelas”.

As principais organizações do tráfico a varejo no Rio de Janeiro - que surgiram dentro do sistema penitenciário durante a ditadura militar - estabeleceram-se nos morros cariocas e passaram a disputar esses territórios. Essa disputa levou a uma intensa “corrida armamentista” entre comandos, uma vez que a atuação dessas facções cariocas, assim como a gestão das atividades que elas exercem, encontra-se diretamente relacionada com as disputas em torno do domínio territorial das favelas (Misse, 2007Misse, Michel. “Mercados ilegais, redes de proteção e organização local do crime no Rio de Janeiro”. Estudos Avançados, v. 21, n. 61, 2007, pp. 139-57.). E tal domínio, como também a reprodução dessas organizações criminosas, provavelmente não seria possível se não existissem constantes acordos e trocas políticas com agentes públicos, dos quais policiais - que detêm o uso legal das armas e de informações estratégicas - constituiriam um dos principais tipos.

Como as organizações criminosas se estabeleceram nas favelas cariocas e ali se expandiram, esses territórios passaram a ser vistos “como o valhacouto de criminosos que interrompem, real ou potencialmente, as rotinas que constituem a vida ordinária na cidade” (Machado da Silva, 2010______. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual”. Cad. CRH, v. 23, n. 59, Salvador, mai./ago. 2010., p. 297). E, consequentemente, as favelas deixaram de ser tematizadas na “linguagem dos direitos” e passaram a ser processadas na “linguagem da violência urbana”. Quer dizer: houve um “reducionismo de uma linguagem que restringe o tratamento dos problemas (no caso, a manutenção da ordem pública) a uma guerra contra atividades que perturbam o prosseguimento rotineiro da vida social” (Machado da Silva, 2010______. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual”. Cad. CRH, v. 23, n. 59, Salvador, mai./ago. 2010., p. 293). É importante ressaltar que a culpa dessa guerra foi atribuída aos moradores de favelas que passaram a ser criminalizados, tornando-se o tipo ideal do Outro que precisa ser afastado a qualquer preço.

Em decorrência desse processo de criminalização dos moradores de favelas, cresceu o clamor por uma ação “dura”, que passou a dirigir-se não tanto a grupos sociais específicos, mas ao controle e segregação territorial de áreas urbanas tidas como perigosas. Assim, como afirma Machado da Silva, fechou-se “o círculo de ferro que redesenha o espaço da cidade, na formulação dominante, a partir da relação entre ‘violência urbana’ e ‘sociabilidade violenta’”. De um lado, a “sociabilidade violenta” ameaça a integridade física e patrimonial de toda a população da cidade e afeta negativamente a continuidade das rotinas cotidianas; de outro, a “violência urbana” limita a discussão do assunto ao aqui e agora e à busca de uma impossível solução definitiva (Machado da Silva, 2008______. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008., p. 26).

Vale lembrar que Machado da Silva definiu a “sociabilidade violenta” como uma forma de vida singular na qual “a violência se libera da regulação simbólica […]. Ela se torna um fim em si mesma, inseparável de sua função instrumental como recurso para a ação. […] Ela é sua própria explicação e se autorregula” (2010______. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual”. Cad. CRH, v. 23, n. 59, Salvador, mai./ago. 2010., p. 286). Segundo o autor, a parcela mais estável e poderosa dos traficantes em “bocas”, que têm sua base quase sempre em favelas, construiu uma forma de vida autônoma, diferente da dos moradores comuns, e tornou-se responsável por uma ordem social que submete os moradores. Nessa ordem, as ações são coordenadas quase exclusivamente por referência à escala de força física (e suas extensões: armas etc.). Os atores não compartilham valores comuns que poderiam regular o uso da violência na realização dos desejos, limitando-a, assim, à condição de um meio entre outros para a obtenção de fins. A (quase) única consideração dos atores da “sociabilidade violenta” é a capacidade de resistência do que (outros seres humanos ou coisas) estiver impedindo a realização de seus desejos imediatos. Em resumo, como define Machado da Silva, “na sociabilidade violenta, quem tem mais força usa os outros, assim como artefatos (armas etc.) para impor sua vontade sem considerar princípios éticos, deveres morais, afetos etc.” (2008______. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008., p. 21).

A emergência dessa ordem social contribuiu para configurar a representação do conflito social no Rio de Janeiro como uma guerra (Leite, 2012______. “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, v. 6, n. 2, ago./set. 2012, pp. 374-89.), cujo mecanismo central passou a ser as operações policiais realizadas em favelas “dominadas” pelos portadores da “sociabilidade violenta”. Diante do caráter sedentário das empresas locais do varejo de drogas, as políticas estaduais de segurança pública, como apontam Misse, Grillo, Teixeira e Neri (2013______; Grillo, Carolina; Teixeira, César; Neri, Natasha. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência” (2001-2011). Rio de Janeiro: CNPq/Necvu/Booklink, 2013.), tenderam a centralizar sua estratégia no enfrentamento pontual ao tráfico através de operações policiais em favela que visam efetuar, com regularidade variável, prisões e apreensões de armas, dinheiro e material entorpecente. Quando essas operações têm início, quase inevitavelmente, ocorrem confrontos entre policiais e traficantes. Tais enfrentamentos geram frequentemente como “efeitos colaterais” mortes nem sempre acidentais. Isso porque, nesse tipo de ação policial, o extermínio acabou tornando-se uma das estratégias para a vitória sobre o inimigo, já que “com facilidade” é “admitido que situações excepcionais - de guerra - exigiam medidas também excepcionais e estranhas à normalidade institucional e democrática” (Leite, 2012______. “Da ‘metáfora da guerra’ ao projeto de ‘pacificação’: favelas e políticas de segurança pública no Rio de Janeiro”. Revista Brasileira de Segurança Pública. São Paulo, v. 6, n. 2, ago./set. 2012, pp. 374-89., p. 379). É possível dizer, portanto, que “a polícia passou a adotar cada vez mais uma política de extermínio” (Misse, 2011______. “Os rearranjos de poder no Rio de Janeiro”. Le Monde Diplomatique Brasil, 1º/07/2011.), na qual a morte de traficantes por policiais durante operações realizadas em favelas é não só tolerada, mas também desejada e premiada.1 1 Entre 1995 e 2000, os policiais militares e civis do estado do Rio de Janeiro que praticaram atos considerados de bravura pelo comando da corporação — que resultavam, recorrentemente, na morte de supostos criminosos — foram premiados com a chamada “gratificação faroeste”. Criada em novembro de 1995 pelo general Nilton Cerqueira, secretário de Segurança no governo do Rio de Janeiro de Marcello Alencar, a gratificação estimulou confrontos e mortes e só foi suspensa no ano 2000. Muito recentemente, o estímulo ao extermínio voltou a ser defendido explicitamente pelo establishment.

A partir de toda essa configuração, a rotina das favelas, nas últimas décadas, passou a constituir-se, sobretudo, pela virtualidade de conflitos violentos que podem irromper a qualquer momento nesses territórios. As manifestações violentas que ameaçam a rotina da parcela da população que vive em favelas resultam da contiguidade territorial inescapável com os bandos armados ligados ao comércio de drogas ilegais e com a atuação pouco previsível e quase sempre violenta da polícia e das milícias. A proximidade entre esses atores provoca nas populações que não moram em favelas uma grande desconfiança em relação aos “favelados”.

Viver em tais circunstâncias gera o que Machado da Silva e Leite (2008______; Leite, Márcia. “Violência, crime e polícia: o que favelados dizem quando falam desses temas?”. In: Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008, pp. 47-76.) chamam de “vida sob cerco”, isto é, uma experiência de confinamento socioterritorial e político que causa nos moradores de favelas uma intensa preocupação com manifestações violentas que impedem o prosseguimento de suas rotinas e dificultam a manifestação pública de suas demandas. Tal experiência é produzida por “eventos fora de controle, em graus e intensidade muito maiores do que aquela que atinge o conjunto da população da cidade, igualmente assoberbada por episódios violentos que se repetiam sem cessar” (Machado da Silva; Leite, 2008______; Leite, Márcia. “Violência, crime e polícia: o que favelados dizem quando falam desses temas?”. In: Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008, pp. 47-76., p. 35). E um dos eventos pouco previsíveis que mais desestabiliza a rotina da população carioca, em geral, e a dos moradores de favelas, em especial, são os tiroteios.

Cavalcanti (2008Cavalcanti, Mariana. “Tiroteios, legibilidade e espaço urbano: Notas etnográficas de uma favela consolidada”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito de Controle Social, v. 1, n. 1, 2008, pp. 35-59.) sugere que a possibilidade constante de irrupção de tiroteios constituiu-se como um dos princípios estruturantes da fenomenologia da vida nas favelas. Isso porque a expectativa do fogo cruzado causa uma constante preocupação entre os moradores; ela afeta em larga medida a mobilidade dessa parcela da população; e impacta também o próprio espaço construído da favela, por meio de esforços constantes de garantir lugares seguros (idem, p. 37). É possível dizer, portanto, que as potenciais trocas de tiros tiveram um papel central no modo como o medo e a incerteza relacionados à “violência urbana” foram vivenciados pelos moradores de favelas cariocas nas últimas décadas, uma vez que “a constante iminência de tiroteios produz uma temporalidade concretamente experimentada como uma antecipação, como uma quase espera pela próxima ocorrência, engendrando uma série de rotinas de evitar e avaliar riscos” (idem, ibidem).

Vale lembrar que os tiroteios em favelas cariocas no início dos anos 2000 eram considerados um “problema público” não só por afetar o cotidiano dos habitantes da cidade, mas também por atingir internacionalmente a imagem da “cidade maravilhosa”, em especial em um momento em que ela estava tentando se tornar sede de grandes eventos esportivos e atrair grandes investimentos internacionais. Quando Sergio Cabral Filho assumiu o cargo de governador do estado do Rio de Janeiro, em 2007, e nomeou José Mariano Beltrame como secretário de Segurança, a “violência urbana” era considerada, senão o principal, decerto um dos principais problemas e desafios a serem enfrentados no estado. Aquele era um momento de crescimento econômico no país. Os governos federal, estadual e municipal, depois de décadas de disputas intensas, estavam trabalhando juntos para que o Rio se tornasse sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Apesar disso, os índices de criminalidade e, sobretudo, de homicídios eram tidos como um dos pontos críticos para que se garantisse a recepção dos grandes eventos. Foi nesse contexto mais amplo que, em novembro de 2008, começou a ser testado o projeto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs).

Quando surgiu, o projeto de “policiamento de proximidade” foi encarado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro, pela mídia e por uma grande parcela da população carioca como uma luz no fim do túnel para o problema da “violência urbana”. Dados empíricos produzidos por diversos pesquisadores nos primeiros anos após o início do processo de “pacificação” possibilitam listar os seguintes elementos como indicadores do inicial sucesso das UPPs: a) o temporário desarmamento do tráfico em favelas “pacificadas” - ou, pelo menos, a redução do porte ostensivo de armas de fogo por outros atores que não a polícia -, que, associado à forte diminuição das incursões policiais esporádicas e dos tiroteios, levou a uma drástica redução dos homicídios e da violência armada em geral, não só no interior das favelas, como também no seu entorno (Cano; Borges; Ribeiro, 2012Cano, Ignacio; Borges, Doriam; Ribeiro, Eduardo (orgs.). Os donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. São Paulo/Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Segurança Pública/LAV-Uerj, 2012.); b) a redução da arbitrariedade e da violência policial nas áreas onde as UPPs estavam operando (Machado da Silva, 2010______. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual”. Cad. CRH, v. 23, n. 59, Salvador, mai./ago. 2010.), que estaria relacionada ao “maior controle social, interno e externo, sobre a corrupção e o abuso de poder praticados por policiais” nos territórios ‘pacificados’” (Musumeci et al., 2013Musumeci, Leonarda et al. “Ser policial de UPP: Aproximações e resistências”. Boletim Segurança e Cidadania. Rio de Janeiro: CESeC, ano 12, n. 14, dez. 2013. Disponível em Disponível em http://www.ucamcesec.com.br/wor-dpress/wp -content/files_mf/boletim14.pdf . Acesso em: 15/08/2015.
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); c) a queda nos números de “autos de resistência” (Misse; Grillo; Teixeira; Neri, 2013______; Grillo, Carolina; Teixeira, César; Neri, Natasha. Quando a polícia mata: homicídios por “autos de resistência” (2001-2011). Rio de Janeiro: CNPq/Necvu/Booklink, 2013., p. 9), o que parecia indicar que a UPP poderia ajudar a “civilizar” a polícia ou que poderia tornar-se uma “política de proteção da população contra a própria polícia e o alto grau de letalidade das incursões policiais” (Misse, 2014, p. 682); d) a maior liberdade de ir e vir dos habitantes que, em conjunto, acabava melhorando significativamente o sentimento de segurança entre os moradores diretamente afetados pela UPP (Musumeci et al., 2013Musumeci, Leonarda et al. “Ser policial de UPP: Aproximações e resistências”. Boletim Segurança e Cidadania. Rio de Janeiro: CESeC, ano 12, n. 14, dez. 2013. Disponível em Disponível em http://www.ucamcesec.com.br/wor-dpress/wp -content/files_mf/boletim14.pdf . Acesso em: 15/08/2015.
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; IBPS, 2009IBPS - Instituto Brasileiro de Pesquisa Social. O impacto das Unidades de Polícia Pacificadora nas favelas da cidade do Rio de Janeiro. Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro, 2009.; Cecip, 2010CECIP - Centro de Criação de Imagem Popular. O impacto sobre a primeira infância das políticas de segurança pública e iniciativas comunitárias em comunidades urbanas de baixa renda. Relatório de pesquisa. Rio de Janeiro, 2010.; Souza e Silva, 2010Souza e Silva, Jailson. “As Unidades de Polícia Pacificadora e os novos desafios para as favelas cariocas”. Seminário Aspectos Humanos da Favela Carioca. Rio de Janeiro, Laboratório de Etnografia Metropolitana (Le Metro)/IFCS/UFRJ, mai. 2010. Disponível em: <http://observatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/06/Aspectos-humanos-das-favelas-cariocas.pdf>.
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; Burgos et al., 2011Burgos et al. “O efeito UPP na percepção dos moradores das favelas”. Desigualdade & Diversidade: Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, n. 11, ago./dez. 2011, pp. 49-98.; Cano et al., 2012Cano, Ignacio; Borges, Doriam; Ribeiro, Eduardo (orgs.). Os donos do morro: uma avaliação exploratória do impacto das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. São Paulo/Rio de Janeiro: Fórum Brasileiro de Segurança Pública/LAV-Uerj, 2012.; Oliveira; Abramovay, 2012; Rodrigues et al., 2012Rodrigues, André; Siqueira, Raíza; Lissovsky, Maurício. “Unidades de Polícia Pacificadora: debates e reflexões”. Comunicações do ISER, n. 67, ano 31, 2012.; Serrano-Berthet, 2013Serrano-Berthet, Rodrigo (coord.). O retorno do Estado às favelas do Rio de Janeiro: Uma análise da transformação do dia a dia das comunidades após o processo de pacificação das UPPs. Rio de Janeiro, FGV/Banco Mundial, 2013.); e) a ampliação das expectativas positivas quanto à segurança para toda a população da cidade, incluindo boa parte dos moradores nas localidades-alvo de sua implantação no futuro e até mesmo os segmentos mais abastados, que não precisavam (nem queriam) UPPs onde viviam (Machado da Silva, 2010______. “‘Violência urbana’, segurança pública e favelas - o caso do Rio de Janeiro atual”. Cad. CRH, v. 23, n. 59, Salvador, mai./ago. 2010.).

Além de todos os efeitos listados acima, a redução dos confrontos armados em áreas “pacificadas” gerou, além de um breve alívio inicial na experiência de “vida sob cerco” (Machado da Silva; Leite, 2008______; Leite, Márcia. “Violência, crime e polícia: o que favelados dizem quando falam desses temas?”. In: Machado da Silva, Luiz Antonio (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Faperj/Nova Fronteira, 2008, pp. 47-76.) vivida por moradores de áreas com UPP, uma transformação qualitativa dessa experiência, que será narrada na próxima seção. Em termos gerais, parecem ter ocorrido mudanças no que Thévenot denominou de “regime de familiaridade” (Thévenot, 2006Thévenot, Laurent. L’Action au pluriel: sociologie des regimes d’engagement. Paris: La Découverte, 2006.), geradas pela ampliação de uma vigilância fragmentada no território das favelas “pacificadas”.

ENTRE A “SOCIABILIDADE VIOLENTA” E O “JOGO DE GATO E RATO”

A chegada da UPP não significou o início da presença de agentes do Estado, nem a saída de todos os traficantes das favelas “pacificadas” - como as análises apresentadas pela mídia costumavam apontar nos primeiros anos de “pacificação” -, mas sim uma transformação nas modalidades de presença desses atores nos territórios favelados. Se antes da UPP as relações entre traficantes e policiais eram pautadas basicamente pela alternância entre confrontos armados e negociações envolvendo “arregos” (propinas para os policiais, em troca da liberação das práticas criminais dos bandos de traficantes), após a inauguração do projeto houve uma temporária redução dos confrontos e a relação entre esses atores passou a repousar, sobretudo, na lógica da vigilância e do monitoramento mútuos, conforme será comentado adiante.

Em um primeiro momento depois da ocupação policial do Santa Marta e da Cidade de Deus (primeiras favelas da cidade a receberem UPP), alguns jovens que tinham postos mais altos na hierarquia do comércio varejista de drogas ilícitas deixaram temporariamente essas favelas e, entre os que ficaram, poucos enfrentaram a polícia. Acuados pela presença das UPPs, os bandos de traficantes ficaram impedidos de continuar seu comércio, o qual chegou a ser interrompido, para, logo em seguida, voltar a ocorrer, porém de modo muito discreto. Contudo, esse cenário não permaneceu intato por muito tempo. Os jovens traficantes notaram que, no auge do projeto das UPPs, não era possível retomar por completo o domínio territorial da favela, dada a superioridade do poder armado do Estado e o enorme apoio da sociedade (inclusive de boa parte dos moradores de favelas). Além do mais, saltava aos olhos que nesse primeiro momento não havia clima para restabelecer a negociação do “arrego”, perceberam que não seria eficaz confrontar os policiais cotidianamente. Ou seja, a lógica da força seria suicídio, assim como a tradicional negociação política era inviável.

Assim é que os traficantes foram forçados a perceber, logo no início da implantação das UPPs, que precisariam mudar suas estratégias de atuação para continuarem agindo na favela. Por isso, logo começaram a investigar a atuação dos policiais da UPP, monitorar por onde eles passavam e mapear quem fazia parte de cada plantão e como cada um desses grupos costumava trabalhar, para, assim, reorientar sua atuação, tornando-a ajustada ao novo ambiente da favela. Assim, a força “sedentarizante” do fuzil deu lugar à observação atenta dos olheiros e à comunicação “flexibilizante” dos celulares e walkie-talkies usados para monitorar os fluxos de circulação pelo território. E, desse modo, os mecanismos de monitoramento ganharam centralidade na atuação cotidiana dos traficantes sediados nas favelas “pacificadas”.

Após a inauguração das UPPs, os traficantes entenderam que não podiam mais ter - e, em certo sentido, não precisavam - o domínio ostensivo do território para continuarem a venda de suas mercadorias. Contudo, eles tiveram, para isso, que transformar suas condições de existência para continuarem subsistindo no novo ambiente pós-UPPs. Nessa nova lógica, o “traficante ideal” ou o “ideal de traficante” deixou de ser apenas pautado pela valorização da disposição para o confronto, passando a ser também avaliado, em grande medida, por sua capacidade de manter-se “na atividade”, ou seja, permanecer vigilante e sempre atento àquilo que está acontecendo ao seu redor, fazendo cálculos e antecipações do que pode vir a ocorrer logo em seguida. Dito de outra maneira, o ambiente deixou de ser favorável à reprodução da “sociabilidade violenta” e a maior parte de seus “portadores” foi forçada a “civilizar-se”.

Vale notar que a lógica do monitoramento é importante não só para o tráfico, mas também para a UPP. Isso porque os policiais também passaram a monitorar todos os “movimentos suspeitos” dentro das favelas. O monitoramento foi útil para que eles, pouco a pouco, fossem mapeando “quem é quem” e descobrindo como os traficantes estavam atuando. Entender o modo de atuação do tráfico no novo contexto e monitorar a movimentação dos traficantes passaram a ser práticas fundamentais para que os pms pudessem, assim, escolher o melhor momento para “dar o bote” e capturar os “inimigos”.

No período pós-UPP, tanto policiais quanto jovens envolvidos com comércio varejista de drogas em favelas passaram a usar com recorrência uma expressão para nomear a forma de interação que substituiu temporariamente a lógica do confronto em áreas “pacificadas”: “jogo de gato e rato”. Essa dinâmica baseia-se mais nas antecipações reflexivas da ação do outro do que na força. Como explicou um morador da Cidade de Deus certa vez: “gato e rato é tipo Tom e Jerry. Nunca viu esse desenho, não?”. Levando a sério a sugestão nativa de que o gato ocupa o papel da polícia e o rato, o do tráfico, é possível levantar os seguintes pontos para refletir sobre essa lógica de interação:

a) O gato e o rato compartilham permanentemente o mesmo território e ambos não desconhecem que o outro está perto durante as 24 horas do dia.

b) Gato e rato compartilham o mesmo território, mas não o mesmo ambiente. O ambiente do rato é muito mais detalhado, cheio de buracos e esconderijos. A percepção do rato é mais infinitesimal, ele conhece muito mais rotas de fuga, por isso capturá-lo neste território torna-se tão complicado.

c) Entre o gato e o rato existe uma relação de poder que é assimétrica. Ou seja: o rato sabe que não pode enfrentar o gato diretamente, razão pela qual, enquanto o gato tenta a captura, o rato tenta a fuga.

d) Enquanto o gato possui mais força, o rato é mais ágil, ligeiro e menor. Em situações “normais”, o rato, mesmo quando avistado pelo gato, quase sempre consegue escapar, seja entrando em pequenas frestas, seja sumindo do campo de visão do gato. Daí porque o problema do rato é não apenas ser visto, mas sobretudo evitar ser visto ou pego desprevenido.

e) O gato, por sua vez, sabe que é mais forte e mais lento que o rato. Então, as suas chances de captura concentram-se sobretudo nos momentos de desatenção e de relaxamento do rato. De modo a antecipar o melhor momento para “dar o bote”2 2 “Dar o bote” é uma expressão utilizada por traficantes para fazer referência ao momento no qual os policiais conseguem capturar algum deles com um “flagrante”. , o gato precisa, então, mapear e monitorar o território, como também conhecer muito bem o modo como funciona o comportamento do rato.

Com essas semelhanças estabelecidas, é importante ratificar que, nos primeiros anos após a inauguração da UPP, com o jogo de “gato e rato”, a lógica do confronto direto saiu de cena temporariamente e assumiram o protagonismo as táticas de engano e a lógica das armadilhas. Pois o que estava em jogo nesse contexto do “gato e rato” era menos a força bruta do confronto e mais a ação calculada que antecipa o erro de percepção e de atenção do outro. Era na boa dissimulação de seus próprios movimentos e na capacidade de fazer o outro ter uma percepção equivocada sobre a sequência de acontecimentos que a lógica da captura se fundamentava. Daí porque a antecipação “do que o outro espera” (e “do que o outro espera que eu espere”, “do que o outro espera que eu espere que ele espera” e assim ad inifinitum) se intensificava e uma espécie de reflexividade calcada em antecipações emergiu da nova configuração da reciprocidade de expectativas.

A lógica do gato e rato, embora possa envolver dinâmicas bastante violentas, diferencia-se significativamente da “sociabilidade violenta”, porque tem como ponto de partida a lógica da alteridade e o reconhecimento do outro como alguém que precisa ser observado, mapeado, analisado. Ou seja, o que está em jogo é muito mais a reflexividade e a antecipação das ações do outro considerado inimigo do que a lógica da força. Esse tipo de interação envolve a necessidade - tanto por parte de policiais como de traficantes - de um constante cálculo de suas ações (objetivado na vigilância fragmentada) para tentar, assim, antecipar o erro de percepção e de atenção um do outro. Por isso, um morador da Cidade de Deus afirmou que para atuar no tráfico hoje é preciso “ser matemático” para calcular a melhor hora de agir. E um jovem associado ao comércio varejista da mesma favela sugeriu que depois da UPP “a adrenalina (de atuar no tráfico) está na mente”, ou seja, baseia-se menos na força e no poder das armas e mais na “atividade” (ou seja, em um esforço mental, em um exercício de atenção constante).

Alguns moradores sugerem que essa lógica, por um período, mostrou-se mais vantajosa para o tráfico do que a lógica do enfrentamento porque, de certa forma, era mais lucrativa. Como resumiu um morador:

[…] por um período, eles eram obrigados a trabalhar de gato e rato e ganhavam muito mais dinheiro. Polícia fazia a segurança deles contra invasão de alemão. Não tinha tanto gasto com armamento, nem munição e também não perdia tanto dinheiro. O que perdia era um pouco de droga que estava na boca vendendo quando era pego. Mas tinha muito mais lucro porque não tinha aquela coisa de perder muito dinheiro igual perdem quando polícia chega de surpresa em operação e leva um monte de fuzil, pistola, droga, dinheiro, dando um prejuízo grande para a boca. (Trecho de entrevista com um morador da Cidade de Deus)

A INTENSIFICAÇÃO DA PROXIMIDADE FÍSICA E DO MEDO DA “CONTAMINAÇÃO”

Durante o período em que o projeto das UPPs estava em seu auge, o imperativo de “estar na atividade” produzia uma permanente tensão psicológica nos policiais e nos traficantes que monitoravam constantemente o ambiente da favela para tentar antecipar as ações do inimigo. Tensão essa que também passou a ser vivenciada cotidianamente pelos moradores desses territórios “pacificados” que, em sua maioria, tentavam ser neutros em relação ao “jogo de gato e rato”, mas que, por outro lado, não podiam simplesmente ignorar a sua existência e as consequências desse “jogo”. Um morador da Santa Marta afirmou, certa vez, que desde a chegada da UPP tomava muito cuidado para não desagradar a nenhum dos “dois deuses” que mandam na favela, pois se desagradasse a um poderia ser tachado de x9 (delator), e se despertasse a desconfiança do outro poderia ser condenado por associação ao tráfico. Um jovem da Cidade de Deus também falou dessa mesma preocupação:

O morador fica oprimido. Olha só, se você mora aqui, você é criado aqui, só porque você pegou uma certa amizade com um policial, só porque você levou um copo d’água, o tráfico te oprime. Se você é um morador que mora aqui há não sei quantos anos e se acostumou com o tráfico e ajuda o tráfico, o policial te oprime. Então tu fica acuado, porque tu tem que ficar no meio de tudo e de todos, mas não se deixar levar por nenhum deles. Tem que ser que nem um poste, tem que ficar parado e intato. (Trecho de entrevista com um morador da Cidade de Deus)

A expressão “tem que ser que nem um poste” designava a forma da “mobilidade” cotidiana nas favelas naquele momento, em que o projeto das UPPs estava no auge de sua expansão. Essa (i)mobilidade se vinculava a um sentimento de “paralisia” frente aos posicionamentos em relação ao tráfico e à polícia. Nesse contexto, o dilema passou a ser como transitar pelo território sem que, no entanto, esse trânsito implicasse um ato de adesão a um dos lados. Daí a necessidade de introduzir uma importante nuance, pois, embora o discurso oficial apontasse que a “mobilidade” nas favelas tinha aumentado com a chegada da UPP - e parte da população confirmasse que passou a circular com menos medo na favela com a redução dos tiroteios -, muitos moradores apontavam que a contiguidade territorial cotidiana com traficantes e policiais havia gerado também uma paralisia paradoxal. Paralisia essa que se impunha exatamente porque a maior liberdade de trânsito pelo território, que ampliou a capacidade de ir e vir dos moradores - considerando a redução de tiroteio -, resultou na ampliação do risco potencial de “contaminação” que essa mesma “liberdade” de trânsito gerou. Em suma, o aumento potencial da mobilidade física correspondeu a um crescimento real da tensão psicológica.

Amplamente explorada por Mary Douglas (1976Douglas, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976.), a noção de “contaminação” na antropologia está associada a uma discussão sobre o puro e o impuro como fenômenos que transcendem a esfera da assepsia físico-biológica. Sujeira e limpeza constituem marcas simbólicas que estabelecem e conformam padrões de coerência cultural, naturalizando e impondo posturas, formas e comportamento mais ou menos adequados. Segundo Douglas, a ideia de sujeira implica a noção de sistema, isto é, o conjunto de elementos logicamente solidários, considerados nas suas relações. Evitar a sujeira é, portanto, um processo de arrumação, que tenta garantir que a ordem de eventos físicos externos esteja em conformidade com a estrutura de ideias. Nas palavras da antropóloga, “as regras de contaminação, em essência, proíbem o contato físico” (Douglas, 1976Douglas, Mary. Pureza e perigo. São Paulo: Perspectiva, 1976., p. 112), uma vez que implicitamente já antecipam as possíveis sanções que aqueles que forem contaminados poderão vir a sofrer. Todavia, nem sempre é possível - ou mesmo uma questão de escolha - evitar ter contato com objetos, pessoas ou situações que têm um potencial contaminador. Logo, a contaminação por vezes torna-se praticamente inevitável.

No caso das favelas cariocas, a população que nelas habita vem tendo, nas últimas décadas, sua imagem recorrentemente “contaminada” pela contiguidade territorial inescapável com uma minoria que integra os bandos armados que atuam nessas áreas. E na tentativa de enfrentar os estigmas derivados das imagens de “conivência”, os moradores de favelas “desenvolvem um permanente esforço para provar ao restante da população da cidade que são pessoas ‘de bem’, honestas, confiáveis, pacíficas e sem participação ativa na ‘sociabilidade violenta’”. Ou seja, eles empreendem esforços para tentar garantir uma “limpeza moral” (Leite, 2008______. “Violência, risco e sociabilidade nas margens da cidade: percepções e formas de ação de moradores de favelas cariocas”. In: Machado da Silva, L. A. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.; Birman, 2008Birman, Patrícia. “Favela é comunidade?”. In: Machado da Silva, Luiz Antônio (Org.). Vida sob cerco: violência e rotina nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.; Rocha, 2011Rocha, Lia de Mattos. “O ‘repertório dos projetos sociais’: Política, mercado e controle social nas favelas cariocas”. Trabalho apresentado no colóquio “Dispositivos Urbanos e Tramas dos Viventes: Ordens e Resistências”, Lapf/Uerj, 2011.; Mattos, 2014Mattos, C. S. “‘Parado na esquina’: performances masculinas e identificações entre ‘bondes’ juvenis na Nova Holanda, Maré, RJ”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social , v. 7, 2014, pp. 643-63.).

A estigmatização da favela e de seus moradores, apesar de ser anterior ao ciclo de ostensividade do tráfico nas favelas, sem dúvida ganhou muita força nas últimas décadas com a presença, nesses territórios, dos traficantes - personagens que encarnam a representação sobre violência urbana. Pode-se dizer que, com o aumento da visibilidade e presença do tráfico, os territórios favelados passaram a ser menos estigmatizados pela pobreza - embora ainda continuem sendo - e mais pela violência. Por isso, Burgos et al. (2011Burgos et al. “O efeito UPP na percepção dos moradores das favelas”. Desigualdade & Diversidade: Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, n. 11, ago./dez. 2011, pp. 49-98.) sugerem que um dos efeitos mais esperados da implementação das UPPs era que, com a expulsão dos traficantes armados das favelas, elas poderiam estabelecer gradualmente novas relações com o seu entorno, superando a situação atual de segregação.

Dada a importância do tráfico para a produção de uma forma específica de segregação, fortemente centrada na acusação da favela e de seus moradores como portadores de uma “cultura da violência”, pode-se esperar que a “pacificação” da favela no mínimo produza mudanças importantes na sua imagem externa e, portanto, no conteúdo da segregação atualmente vigente. (Burgos et al., 2011Burgos et al. “O efeito UPP na percepção dos moradores das favelas”. Desigualdade & Diversidade: Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, n. 11, ago./dez. 2011, pp. 49-98., p. 83)

Como os autores sugerem, o estigma e a desconfiança das camadas mais abastadas da cidade em relação aos “favelados” talvez possam ter sido um pouco reduzidos nos primeiros anos após a inauguração das UPPs. No entanto, o medo da “contaminação” e de suas possíveis consequências - não só na vida cívica e política da cidade, mas especialmente na esfera da sociabilidade dentro do próprio território da favela - continuou e continua sendo um problema constante para os moradores da Cidade de Deus e do Santa Marta. Os “jogos de contaminação” com os quais essa parcela da população tem que lidar cotidianamente dentro de seus territórios de moradia complexificaram-se ainda mais depois da chegada das UPPs.

Quando falamos em “jogos de contaminação”, estamos nos referindo ao conjunto de: a) objetos, pessoas e situações com potencial “contaminador”; b) tentativas de antecipação dessa possibilidade por parte “de quem pode ser contaminado”; c) circulação de informações sobre situações “suspeitas” (por meio de “fofocas”) que podem gerar uma “contaminação”; d) apresentação de acusações diretas ou indiretas (através de piadas e brincadeiras) a alguém que pode ter sido “contaminado”; e) esforços de “limpeza moral” que ocorrem após uma contaminação inevitável; f) expectativas - compartilhadas coletivamente, por exemplo, via rumores - de sanções que já foram e/ou que podem vir a ser aplicadas futuramente em casos de “contaminação”. Logo, o termo “jogo de contaminações” refere-se a uma experiência que envolve práticas e percepções compartilhadas.

O quadro abaixo mostra como a convivência cotidiana com esses dois agentes pouco previsíveis e potencialmente arbitrários e violentos - a polícia e o tráfico - obrigou os moradores a se preocuparem constantemente com possíveis consequências de atos corriqueiros dentro da favela. Nesse espaço tensionado em que todos se tornaram potencialmente monitorados, disseminou-se um medo permanente de que esses atos banais viessem a produzir uma “contaminação” que podia, por sua vez, acabar desembocando em uma situação crítica (como uma “dura” ou um “desenrolo”).3 3 Uma jovem moradora de uma favela “pacificada” afirmou certa vez que foge de um “desenrolo” como “quem foge da cruz”. Ela aponta que evita desenrolar: “porque a gente nunca sabe como um desenrolo pode acabar. Pode ser que tudo se resolva no papo, mas também pode ser que você leve ou veja alguém levando um tapa na cara, uma madeirada ou até mesmo pode acabar em morte! Então, é sempre melhor evitar ir para um desenrolo!”. Embora esses momentos críticos possam ser “contornados”, sempre há o risco de que eles tenham um desfecho violento, que pode envolver desde humilhações até graves agressões causadas tanto por traficantes como por policiais. Por isso, os moradores evitavam ao máximo esse tipo de situação, pois conheciam os riscos envolvidos e reconheciam que, uma vez que uma violência ocorresse, muito provavelmente ela não poderia ser denunciada no espaço público e, mesmo que fosse, o risco de “não dar em nada” ou de sofrerem alguma represália era enorme.


O fato de sentirem-se permanentemente “monitorados” e, por isso, terem que aumentar a vigilância de si, empreendendo esforços cotidianos - como tentar controlar, ao máximo, onde, como, quando e com quem circulam, falam ou estabelecem algum outro tipo de contato -, acabou gerando nos moradores de favelas “pacificadas” uma sensação de estarem constantemente vivendo em um “campo minado” (Menezes, 2015Menezes, Palloma. Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”: uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas. Tese de Doutorado em Sociologia. Instituto de Estudos Sociais e Políticos - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015.; Ost; Fleury, 2013Ost, Sabrina; Fleury, Sonia. “O mercado sobe o morro: a cidadania desce? Efeitos socioeconômicos da pacificação no Santa Marta”. Dados, v. 56, 2013, pp. 635-71.; Mendonça, 2014Mendonça, Tássia. Batan: tráfico, milícia e “pacificação” na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Museu Nacional/UFRJ, 2014.). Essa expressão indica a existência de um imperativo de realização constante de antecipações na vida cotidiana em áreas “pacificadas”. Antecipações essas que, diferentemente das brilhantes análises goffmanianas, não se reduziam ao risco de “perder a face” (Goffman, 1967Goffman, Erving. Interaction Ritual Garden City. Nova York: Anchor Books, 1967.), mas sim de perder a própria vida.

CRISE DAS UPPS E O “LEGADO” DA “PACIFICAÇÃO”

Desde que as UPPs foram criadas, moradores de diversas favelas afirmavam saber que o projeto tinha data para acabar. Muitos acreditavam que 2016 seria o ano dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro e do fim da “pacificação” - embora, oficialmente, o término não tenha sido decretado em 2016, ano que foi marcado por amplas transformações nos âmbitos federal, estadual e municipal.

Em 2017, houve um aumento significativo dos homicídios no Rio de Janeiro, e o número de mortes violentas no Estado se aproximou daqueles registrados antes das UPPs.4 4 Foram 6.731 casos de mortes violentas ocorridas no estado do Rio de Janeiro em 2017, sendo 1.124 mortes causadas pela polícia. A taxa de homicídios decorrentes de intervenção policial ficou em 6,7 por 100 mil habitantes, a maior taxa desde 2008, quando foram inauguradas as primeiras upps. Fonte: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/18/rio-fecha-2017-com-maior-taxa-de-mortes-violentas-dos-ultimos-oito-anos.htm>. Acesso em: 23/12/2018. E no ano seguinte, logo após o carnaval de 2018, foi anunciado o início da intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro,5 5 O general do Exército Walter Souza Braga Netto tornou-se interventor no estado, assumindo a responsabilidade do comando da Secretaria de Segurança, Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário no estado. Como aponta Miagusko, “uma das causas que motivaram fortemente a intervenção na política de segurança do estado não foram apenas as imagens que circularam com o ataque a turistas ou moradores por assaltantes. O que parece ter motivado foi o aumento do roubo de carga no estado, os custos do transporte e a logística da chegada de produtos na região metropolitana e, sobretudo, na capital” (Miagusko, 2018, p. 160). que durou até 31 de dezembro do mesmo ano. Duas semanas após ter assumido a relatoria da Comissão da Câmara de Vereadores criada para acompanhar a intervenção federal, Marielle Franco - que, a partir de uma longa trajetória como defensora dos direitos humanos, tinha sido eleita vereadora em 2016 com uma expressiva votação - foi assassinada em um ataque que também vitimou o motorista do carro em que ela se encontrava, Anderson Gomes.6 6 Compartilhamos com Leite, Rocha, Farias e Carvalho (2018) a certeza de que o assassinato de Marielle, ocorrido no dia 14 de março de 2018, “foi um crime político, por seu ativismo denunciando as arbitrariedades e crimes perpetrados pelos aparatos estatais de repressão” (p. 3). No mesmo ano, Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República, e Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro. Ele iria substituir o então governador Pezão, que, no entanto, não concluiu seu mandato porque teve prisão decretada em novembro de 2018 - dois anos após a prisão de Cabral -, sob a acusação de receber dinheiro desviado durante os sete anos em que foi vice-governador.7 7 Fonte: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46384697>. Acesso em: 28/12/2018.

No bojo das transformações mencionadas, as UPPs foram progressivamente desmontadas. Embora o consenso que ajudava a sustentar o projeto já tivesse começado a se quebrar desde 2013, com o caso Amarildo (Menezes; Corrêa, 2017______; Corrêa, Diogo. “From Disarmament to Rearmament: Elements for a Sociology of Critique of the Pacification Police Unit Program”. Vibrant: Virtual Brazilian Anthropology, v. 14, n. 3. Sept./Dec. 2017.; Resende, 2019Resende, Leandro. Cadê o Amarildo? O desaparecimento do pedreiro e o caso das UPPs. São Paulo: Editora Baioneta, 2019.), após os Jogos Olímpicos de 2016 o processo de desmonte das UPPs se intensificou ainda mais com o enfraquecimento da chamada “polícia de proximidade”, a redução do efetivo do orçamento e, posteriormente, a do número de unidades de UPPs existentes.8 8 Policiais deixaram de fazer rondas frequentes pelo território das favelas “pacificadas” e passaram a ficar apenas parados dentro da sede da UPP. Segundo comandantes de diversas UPPs, patrulhar todo o território das favelas não era mais possível porque o efetivo do projeto foi muito reduzido. Em 2017, cerca de 3 mil policiais (33% do efetivo do programa) foram realocados para o policiamento da capital e região metropolitana, e as UPPs passam a ser subordinadas aos batalhões. Fonte: <https://noticias.uol.com.br/cotidia no/ultimas-noticias/2017/08/22/em-meio-a-onda-de-violencia-rj-enxuga-upps-e-3000-pms-vao-policiar-grande-rio.htm>. Acesso em 15/01/2019. No mesmo ano, a verba das UPPs foi radicalmente cortada. Se em 2017 a verba de manutenção do projeto era de R$ 5,4 milhões, em 2018 as 38 unidades receberam apenas R$ 10 mil. O total, irrisório, equivale a R$ 833 por mês, ou R$ 27 por dia para cada uma das UPPs. Fonte: <https://oglobo.globo.com/rio/a-upp-ja-acabou-so-estamos-aguardando-ordem-para-sairmos-daqui-diz-policial-22188130>. Acesso em: 15/01/2019. Em 2018, houve ainda uma decisão do Gabinete de Intervenção Federal de que doze UPPs seriam extintas e sete seriam absorvidas por outras unidades com a justificativa de que certas unidades estavam “em locais de grandes confrontos, onde as forças de segurança perderam o controle”. Fonte: <https://oglobo.globo.com/rio/intervencao-anuncia-fim-de-12-upps-mudancas-em-outras-sete-unidades-22631936>. Acesso em 15/01/2019. Tais reduções foram publicamente justificadas pelo fato de que o projeto de “pacificação” já não estava mais cumprindo um de seus principais objetivos, a saber, o de evitar confrontos e mortes violentas em favelas “pacificadas”.

A reintensificação dos confrontos armados que ocorreu com a “crise” do projeto não significou uma volta ao cenário pré-UPPs, como matérias de jornais e até alguns pesquisadores sugerem. Os atores que vivem, trabalham e/ou circulam em favelas hoje estão tendo que lidar com um cenário ainda mais complexo e dramático do que o de uma década atrás. Isso porque os anos 2000 foram marcados por um incremento significativo da militarização da vida cotidiana carioca (Leite; Rocha; Farias; Carvalho, 2018Leite, Márcia; Rocha, Lia de Matos; Farias, Juliana; Carvalho, Monique (orgs.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018.),9 9 Assim como Leite, Rocha, Farias e Carvalho (2018, p. 11), compreendemos “a militarização como uma forma de governo, o que significa que o poder não emana apenas das instituições […] mas pode ser observado circulando em diversos contextos a partir de seus diferentes agentes e funcionários […], das igrejas, das ONGs, dos trabalhadores dos programas sociais, do mercado, e muitas vezes do crime. Todos estes personagens também governam”. que teve como seu ápice a declaração da intervenção federal na segurança pública do estado do Rio de Janeiro.10 10 Conforme aponta Rocha acertadamente: “a intervenção federal na área de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, ainda que seja um marco na sinalização do esgotamento do projeto da ‘pacificação’, não modifica sua lógica; pelo contrário, a partir do que pudemos identificar até então, radicaliza a lógica da militarização” (2018, p. 235).

Nesse processo, que legados a UPP deixou para o debate público e a vivência cotidiana da violência urbana no Rio de Janeiro? Defendemos que a UPP deixou, pelo menos, dois “legados” cujos efeitos poderão ser sentidos por muito mais tempo do que a existência do projeto propriamente dito. O primeiro foi a intensificação do uso não só de dispositivos de guerra - como armamento pesado, “caveirão” terrestre, “caveirão” voador, tanques do Exército e da Marinha usados durante as ocupações, entre outros -, como também de dispositivos - câmeras, celulares, drones etc. - e técnicas de vigilância - que envolvem não só uso desses dispositivos, mas também tentativas de monitorar os aparatos de monitoramento uns dos outros. Ou seja, intensificaram-se as dinâmicas de vigilância e contravigilância nos territórios das favelas cariocas de modo significativo. O monitoramento da favela por parte do tráfico e da polícia não é algo novo. Mas o uso de dispositivos de vigilância na favela se diversificou e se intensificou com o passar do tempo.

Vale notar que os dispositivos de confronto, assim como o monitoramento, continuam sendo usados de forma complementar e intensiva tanto por agentes estatais como criminais, configurando situações que oscilam nas fronteiras porosas do legal e do ilegal, do lícito e do ilícito (Telles, 2010Telles, Vera. A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010.). Uma prática tanto de PMs como de alguns traficantes que se tornou recorrente nos últimos anos, por exemplo, é a de abordar moradores e pedir suas senhas de celular para buscar informações no aparelho e tentar confirmar e/ou coibir, assim, possíveis delações. Devido a essa prática, muitos moradores de favelas adquiriram o hábito de apagar as mensagens trocadas em seus celulares em razão desse tipo de revista, já que há um medo generalizado de que qualquer troca de mensagem possa ser considerada, pela polícia, envolvimento com tráfico e, pelos traficantes, prova de que a pessoa seria um possível X9.11 11 Em 2018, ouvi comentários de que PMs estariam andando encapuzados pelo Santa Marta, e rumores apontavam que algumas das pessoas que andavam com rostos cobertos seriam X9 que estariam circulando pelo morro com policiais para passar informações sobre a atuação do tráfico no local. Como resumiu um morador do Santa Marta, “um dos principais medos de quem mora na favela hoje é ser rotulado X9, porque os caras estão paranoicos com isso e só tende a piorar. Eles não respeitam mais morador e ficam na ‘noia’ de que todo mundo pode denunciar eles a qualquer momento”.

O aumento da “noia” (da preocupação) diz respeito não só ao medo de denúncias feitas por moradores, mas também ao uso de novas tecnologias no território das favelas. Inicialmente, a polícia instalou câmeras de vigilância em favelas “pacificadas”. Posteriormente, em alguns territórios com UPP, traficantes também instalaram o mesmo tipo de equipamento para monitorar a circulação de policiais. Além disso, a polícia passou a usar de forma muito mais frequente caveirões voadores e drones, como resumiu um morador da Cidade de Deus em 2018:

Agora, eles usam vários tipos de coisa. A polícia bota o drone muitas das vezes quando é dia de baile. Muitas vezes no final de baile de manhã tem drone. […] Tem também o helicóptero azulzinho, que a gente chama de x9, que também fica voando, filmando lá os moleques. […] O águia passa lá só quando tem trocas de tiros. Passa lá dando uns rasantes sinistros. Dá até medo. O águia é da pm. Do Bope é o “caveirão” voador. Até o barulho dele é diferente. Geral tem medo dele. Aquele aqui quando passa tem snipers12 12 Em março de 2019, Witzel confirmou que atiradores de elite da polícia já estão sendo usados para matar traficantes nas favelas: “Os snipers são usados de forma absolutamente sigilosa. Eles já estão sendo usados, só não há divulgação. O protocolo é claro: se alguém está com fuzil, tem que ser neutralizado de forma letal”. Fonte: <https://oglobo.globo.com/rio/snipers-ja-estao-sendo-utilizados-so-nao-ha-divulgacao-diz-witzel -sobre-acao-da-policia-23563496>. Acesso em: 30/04/2019. que ficam ali só apontando.

Outro morador da mesma favela sentenciou que “agora está tudo mais vigiado. Antigamente, não existia drone. Hoje, já tem e ele filma todo mundo. Para piorar, dizem que esse cara falou que ia lá em Israel comprar um drone que atira”, fazendo referência ao fato de o então recém-eleito governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, ter anunciado, no fim de novembro de 2018, que iria para Israel comprar cinquenta drones capazes não só de filmar, como também de atirar.13 13 O governador eleito anunciou que pretende “conhecer um modelo de drone equipado com uma arma, capaz de atirar enquanto sobrevoa uma região. O equipamento, usado pelas forças israelenses em ações na fronteira com os territórios palestinos, pode ser utilizado em operações de segurança no Rio. Witzel e Flávio Bolsonaro querem, ainda, obter informações sobre um equipamento de leitura facial que pode ser instalado nos transportes públicos do estado”. Fonte: <https://extra.globo.com/noticias/extra-extra/witzel-flavio-bolsonaro-vao-israel-comprar-drone-que-faz-disparos-23206958.html>. Acesso em: 15/01/2019. Esse drone que filma e atira sintetiza, em um único dispositivo, a hipótese de que continua a existir, mesmo após o ocaso das UPPs, uma sobreposição dos regimes de “fogo cruzado” e de “campo minado”, de troca de tiros e de monitoramento e vigilância recíproca permanentes. Isso porque, por um lado, o drone suscita e incrementa a preocupação com a vigilância constante do território na favela e dos fluxos de circulação de pessoas e objetos nele existentes. Por outro, ele apavora porque abre duas possibilidades: a) a de a polícia poder estar virtualmente presente, monitorando o território a qualquer momento, sem que para isso seja necessária a presença física de policiais na área; b) a de matar, sem que para isso sejam necessárias mãos humanas para atirar. O drone é, portanto, o símbolo da continuidade do processo, por vezes impessoal, de militarização da vida no Rio de Janeiro e, especialmente, nos territórios das favelas.

Tal processo conta com a aprovação e o apoio de uma parcela grande da população. Uma prova disso é que, mesmo sem haver pena de morte no Brasil, um candidato que afirmava publicamente que a polícia podia e devia atirar em todo e qualquer potencial criminoso que esteja nas ruas da cidade portando um fuzil foi eleito governador do estado do Rio de Janeiro. Na visão de Wilson Witzel, para que os policiais atirem não é necessário que a pessoa esteja mirando ou ensejando alguma ameaça com a arma. Em suas próprias palavras: “o correto é matar o bandido que está de fuzil. A polícia vai fazer o correto: vai mirar na cabecinha e… fogo! Para não ter erro”.14 14 Fonte: <https://veja.abril.com.br/politica/wilson-witzel-a-policia-vai-mirar-na-cabecinha-e-fogo/>. Acesso em: 15/01/2019. Afirmações semelhantes15 15 “Jair Bolsonaro deu a sua receita para resolver a guerra da Rocinha, num grande evento promovido, na semana passada, pelo BTG Pactual. Uma solução simples — e idiota. A uma plateia de mil executivos do mercado financeiro, Bolsonaro disse que mandaria um helicóptero derramar milhares de folhetos sobre a favela, avisando que daria um prazo de seis horas para os bandidos se entregarem. Findo este tempo, se a bandidagem continuasse escondida, metralharia a Rocinha. Sinal dos tempos, foi aplaudido pelo público.” Fonte: <https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/solucao-de-bolsonaro-para-rocinha.html>. Acesso em: 15/01/2019. já vinham sendo feitas pelo então candidato à Presidência que apoiou a candidatura de Witzel para o governo do estado. Jair Bolsonaro, em diversos momentos de sua campanha - como em uma entrevista que deu ao vivo no Jornal Nacional -, afirmou com todas as letras que policiais que matam “bandidos” não devem ser processados, mas sim condecorados.16 16 A repercussão de falas como essas pode ser sentida no cotidiano das favelas, antes mesmo de Bolsonaro ter sido eleito e empossado presidente da República. No Santa Marta, poucos dias antes das eleições, alguns policiais da UPP gritaram com moradores durante um momento de tensão dizendo que: “Agora é o bonde do Bolsonaro. Acabou o sossego de vocês!”.

Além da intensificação da vigilância e do controle nas favelas, e do reforço do discurso que legitima violências e arbitrariedades ocorridas nesses territórios, um segundo “legado” deixado pelas UPPs foi a criação de um repertório acumulado, uma espécie de estoque de conhecimento a partir do qual moradores - assim como policiais e traficantes - aprenderam a investigar situações indeterminadas e desenvolveram formas de atuar em ocupações policiais “permanentes”. O intenso e longo período de convivência entre esses atores durante o chamado processo de “pacificação” fez com que todos adquirissem um know-how que poderá ser usado futuramente em outras experiências de ocupação de favelas.

Por um lado, agentes estatais aprenderam muito sobre como aprimorar suas formas de controle e monitoramento do território das favelas. Por outro, agentes envolvidos com tráfico de drogas também acumularam novos saberes, técnicas e aprimoraram seu modo de atuar em áreas com presença estatal ostensiva. Moradores narram, por exemplo, que durante a intervenção militar na Cidade de Deus, houve um período inicial em que o “clima” na favela ficou muito próximo ao do início da UPP e que “o tráfico se adaptou rapidinho e continuou vendendo drogas na encolha, só no estica, porque já tinha aprendido como fazer isso muito bem com a pacificação”. Jovens envolvidos com o comércio varejista de drogas aprenderam a atuar mesmo com a presença mais contínua dos agentes estatais no território, como explicou um morador da Cidade de Deus:

Se o “caveirão” vier aqui todo dia, 24 horas por dia, como aconteceu na semana passada, o tráfico não para mais de vender. Eles já sabem vender de outra forma se for preciso. As pessoas começam a se adaptar rapidinho. […] Aos poucos o bandido perde o medo e também não vai ficar enfrentando o tempo todo a polícia se sabe que ela naquele dia não vai sair. Eles não vão ficar gastando munição à toa e correndo risco de perder arma. Eles vão começar a brincar de gato e rato. Vão ficar de um lado e os policiais do outro.

Assim como Machado da Silva, na década de 1960, narrava que o jogo do bicho ora funcionava na “cana dura”, ora na “cana mole”, no caso das favelas pós-pacificação, em alguns momentos, “a lógica do gato e rato” passou a prevalecer, enquanto em outros a lógica do confronto e do enfrentamento ganhou centralidade. Por isso, embora não seja possível falar de um processo de transformação permanente, podemos notar que novas formas de interação entre polícia e tráfico foram experimentadas com mais intensidade na última década. E, consequentemente, os conhecimentos e técnicas acumulados a partir dessa experiência passam a fazer parte do estoque de conhecimento desses atores e podem ser acionados quando necessário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto das UPPs, inicialmente, envolveu uma dupla crença ou aposta de que a experiência poderia, por um lado, promover uma “pacificação” não só do território propriamente dito das favelas, mas também da própria polícia,17 17 Em 2011, Burgos et al. relataram que os moradores entrevistados pareciam ter a esperança de que a UPP promovesse uma “pacificação” da própria polícia. Eles acreditavam que a “nova polícia” poderia contaminar a “velha polícia”. Como apontavam os autores: “A questão central que está em jogo na experiência da UPP não é tanto a do seu efeito pontual em cada favela, seja no acesso aos serviços públicos ou no florescimento dos negócios, mas, sim, a de saber em que medida essa experiência criará condições que venham permitir a universalização dessa nova polícia, pautada pelo respeito aos direitos dos moradores das favelas e periferias, de que a UPP parece ser um ensaio” (2011, p. 91). criando condições para permitir uma reforma mais ampla na corporação.18 18 Em 2011, Luiz Eduardo Soares afirmou que o desafio das UPPs é “transformar o programa em política pública, ou seja, dotá-lo de universalidade e sustentabilidade, o que exige o envolvimento do conjunto das instituições policiais em sua aplicação. No Rio, não há esta hipótese, tal o nível de comprometimento das polícias com o tráfico, as milícias e a criminalidade em geral. Portanto, sem a refundação das polícias não haverá futuro para as UPPs. Elas se limitarão a intervenções tópicas, insuficientes para mudar o panorama geral da segurança pública, e continuarão a conviver com nichos policiais, milicianos ou não, que têm sido fonte de violência e não instrumentos da ordem cidadã e democrática. No Rio, é preciso exorcizar a retórica tão patética quanto mascaradora do bem contra o mal e inscrever a mudança das polícias no centro da agenda pública”. E, por outro lado, alguns pesquisadores, como Luiz Eduardo Soares, apostavam que o projeto das UPPs acabaria por gerar também uma modernização da economia do tráfico:

O modelo de organização e operação do tráfico de drogas no Rio sempre foi irracional e tenderia a tornar-se insustentável. É muito caro manter controle armado e ostensivo sobre territórios e populações, dividindo lucros com policiais. Exercer esse controle exige a organização de equipes numerosas, disciplinadas, hierarquizadas, dispostas a assumir riscos extremos. Os benefícios podem ser obtidos com muito menos gastos e riscos, quando se opera com estruturas leves, adotando-se vendas por delivery ou por agentes nômades, circulando em áreas selecionadas - como ocorre nas grandes cidades dos países centrais. As UPPs - ótimo programa, sem dúvida, necessário -, ao sepultarem o antigo regime, induzem, paradoxalmente, à modernização da economia do tráfico. Não o digo para criticar o programa, vale sublinhar, mas para analisar suas condições de possibilidade, seus efeitos e suas perspectivas futuras. Até porque essa modernização, considerando-se a inviabilidade de extinguir o negócio das drogas, será benéfica, reduzindo as armas em circulação e a violência, além do despotismo a que são submetidas tantas comunidades. (Soares, 2011Soares, Luiz Eduardo. “Além do bem e do mal na cidade sitiada”. O Estado de S. Paulo, caderno “Aliás”, 20/11/2011., p. 2)

Embora a possibilidade de a UPP ajudar a “pacificar” a polícia tenha se mostrado pouco factível e a tal modernização do tráfico, esperada por Soares (2011Soares, Luiz Eduardo. “Além do bem e do mal na cidade sitiada”. O Estado de S. Paulo, caderno “Aliás”, 20/11/2011.), não tenha ocorrido em sua completude, levantamos aqui a hipótese de que as experiências associadas ao projeto na última década, em alguma medida, contribuíram para acelerar um processo de racionalização da “sociabilidade violenta” que já se encontrava em curso.

Luiz Antonio Machado da Silva desenvolveu a noção de sociabilidade violenta na virada dos anos 1980 para 1990, como uma forma geral de interação destituída do que Norbert Elias chamou de autocontrole dos atores. Como já foi dito acima, tratava-se de um tipo histórico completamente utilitarista, dirigido por pulsões e não por valores intersubjetivamente compartilhados. O exemplo mais acabado da sociabilidade violenta é o “bicho louco” - representação que enfatiza o caráter incontrolável e aleatório das práticas de alguns traficantes. Na época, a reflexão foi feita a partir da análise empírica que sugeria fortemente que esses atores eram os “portadores” (outra vez Weber, ao final de A ética protestante e o espírito do capitalismo) do “espírito” do tráfico.

Mesmo com o passar do tempo, a noção de sociabilidade violenta não perdeu completamente sua vigência, especialmente porque as empresas do tráfico se conformam à noção weberiana de “capitalismo aventureiro” até hoje, na medida em que não há regulação estatal visando disciplinar e limitar a competição entre elas. No entanto, a noção se enfraqueceu, devido ao amplo processo de racionalização das atividades de acumulação econômica do tráfico.

Tal processo relaciona-se com uma série de transformações ocorridas na última década que não teremos espaço para explorar detalhadamente neste trabalho - mas algumas delas são: a) a intensificação de uma racionalidade econômica na organização do comércio varejista de drogas;19 19 Agentes do tráfico (principalmente com postos mais altos na hierarquia) se tornaram mais “racionais” economicamente, diversificando os negócios de forma mais sistemática, investindo, por exemplo, na compra e construção de quitinetes para alugar. Ou mesmo lucrando de outras formas. Grillo aponta, por exemplo, que “os rearranjos de poder produzidos pelas UPPs introduziram novas tensões às dinâmicas criminais, em especial na relação entre traficantes e assaltantes. Durante os anos de expansão das unidades, traficantes buscaram reprimir a atuação de assaltantes para evitar uma ocupação ou possibilitar uma negociação com as forças ocupantes, o que possivelmente colaborou para a diminuição da incidência de roubos” (Grillo, 2016). Essa dinâmica parece ter se transformado novamente e são fortes os indícios de que hoje, após o fracasso das UPPs e a volta dos tiroteios no espaço das favelas (Menezes, 2015), o tráfico tenha deixado de reprimir a atuação de ladrões e esteja, pelo contrário, participando do lucro dos roubos (Grillo, 2019, p. 70). b) as mudanças nas relações de forças entre facções;20 20 “Traições, prisões e batalhas perdidas” levaram, por exemplo, a Amigos dos Amigos (ADA) — que era uma das mais poderosas organizações criminosas do Rio de Janeiro — a perder muitos de seus territórios. Fonte: <https://projects.theintercept.com/brasil/o-fim-de-uma-faccao/>. Acesso em: 20/04/2019. c) o crescimento e a expansão do PCC; d) o crescimento das milícias - e a redução das diferenças entre tráfico e milícia a partir de um processo de “traficalização” das milícias e “milicialização” do tráfico.21 21 Muitos são os relatos que apontam que milicianos de várias áreas, na última década, passaram a comercializar não só serviços diversos associados à segurança, mas também drogas ilícitas: “Há uma década, usar drogas em áreas de milícia era terminantemente proibido, para ‘proteção das criancinhas’. Mas as milícias — que vendiam favelas de ‘porteira fechada’ — hoje também vendem drogas e são concorrentes do tráfico. Dependendo da estratégia do negócio, até alugam bocas de fumo de traficantes”. Fonte: <https://theintercept.com/2018/04/05/milicia-controle-rio-de-janeiro/>. Acesso em: 20/04/2019. Por outro lado, mesmo antes da chegada da UPP, moradores de favelas como a Cidade de Deus relatam que os traficantes estavam lucrando não só com a venda de drogas, mas que passaram a diversificar seus ganhos econômicos cominando o fornecimento de gás, gatonet, internet e mototáxi. Em alguns casos, o “dono” do tráfico também era o “dono” da prestação de alguns desses serviços. Em outros, o “dono” presenteava alguém próximo que passava a administrar o serviço; em retribuição, o presenteado repassava para o dono uma parte dos lucros ou um valor fixo todos os meses.

Ao tratar de alguns dos processos acima, Grillo (2019______. “Da violência urbana à guerra: repensando a sociabilidade violenta”. Revista Dilemas, v. 12, 2019, pp. 62-92.) afirma que, desde que as UPPs entraram em “crise” em meados de 2013, intensificaram-se as disputas armadas entre comandos criminais pelo controle dos pontos de venda de drogas em territórios de favelas. Assim, começou a ocorrer um redesenho “das fronteiras geopolíticas entre as facções no Rio de Janeiro. Os Amigos dos Amigos (ADA), até pouco tempo a segunda mais importante facção do estado, perderam territórios para o Comando Vermelho (CV) e o Terceiro Comando Puro (TCP), estando à beira da extinção”. Nesse contexto, a ruptura da aliança entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), oriundo de São Paulo, e o CV (Manso; Dias, 2018Manso, Bruno Paes; Dias, Camila Caldeira Nunes. A guerra: a ascensão do pcc e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018.) também teve impacto nas dinâmicas dos conflitos armados entre facções nas favelas cariocas.22 22 É importante lembrar, como ressalta Grillo, que “as narrativas sobre alianças, rupturas e rivalidade entre os comandos tendem a pressupor que sejam todos eles grupos de mesmo tipo, hierarquicamente organizados e coesos, competindo entre si pelo controle do mercado ilegal de drogas em regiões diversas do país. As menções à presença ou ausência do PCC ou do CV em certas regiões tendem a reproduzir uma percepção desses coletivos como entidades abstratas, fetichizadas, simultaneamente fantasmagóricas e personificadas — como o são o Estado, o mercado ou Deus. Tal percepção é enormemente distinta do saber acumulado sobre esses comandos a partir de pesquisas realizadas no Rio de Janeiro (Barbosa, 1998, 2005; Misse, 1999, 2003; Grillo, 2013) e em São Paulo (Telles; Hirata, 2010; Feltran, 2011, 2018; Biondi, 2010, 2018; Marques, 2014; Hirata, 2018), nas quais a horizontalidade e o aspecto de rede dessas organizações foram sistematicamente ressaltados” (Grillo, 2019, p. 72).

No bojo dessas transformações, o que estamos chamando de racionalização da “sociabilidade violenta” é um processo que envolve, por um lado, a perda de centralidade e poder dos portadores da “sociabilidade violenta” na hierarquia do tráfico e, por outro, alterações na própria concepção do que é um “bom traficante” ou do tipo de traficante que é mais valorizado dentro do próprio “mundo do crime”. Isso significa que os chamados “portadores da sociabilidade violenta” já não ocupam mais tantos cargos de alta hierarquia no tráfico como no passado. E, embora a “disposição” e o “ethos guerreiro” continuem sendo elementos muito valorizados dentro da hierarquia do tráfico, exemplos de traficantes que têm um perfil distante do “bicho louco” passaram a ganhar mais espaço nas facções e também mais destaque no debate público sobre violência urbana.

Um exemplo desse outro perfil de traficante que tem ganhado mais espaço e destaque é o caso do Nem da Rocinha. Quando lhe perguntaram, por exemplo, o que pensava sobre a pacificação de favelas, ele respondeu o seguinte: “Eu sempre perguntei pro meu pessoal: o que tu quer? Trocar tiro com polícia ou curtir o baile na Rocinha? Porque se quiser trocar tiro não tem baile, a polícia vem pra cima e fecha tudo. Claro que eles sempre preferiram o baile”.23 23 Fonte: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/13/politica/1520947959_760179.html>. Acesso em: 20/04/2019. Segundo ele, essa estratégia de manter o nível de crimes violentos o mais baixo possível de forma a deixar a polícia (e a mídia) longe fez da Rocinha, nos primeiros momentos após a “pacificação”, uma das favelas mais lucrativas do Rio de Janeiro para o tráfico, movimentando em torno de 15 milhões de reais por mês.24 24 Na mesma entrevista, ao ser questionado sobre possível envolvimento com o PCC, Nem, apesar de negar filiação à facção de São Paulo, indicou que, na visão dele, o modelo de negócios do grupo paulista é mais eficiente “e menos violento” do que o das facções fluminenses. Ele mencionou a tese de que o grupo criminoso foi responsável pela queda dos homicídios no estado (Feltran, 2011, 2018): “Sem o PCC São Paulo ia virar um inferno. Quem você acha que acabou com a violência lá? Foi o Estado por acaso?”, questiona. Nem não acha, no entanto, que o PCC conseguiria ter sucesso em uma possível empreitada no Rio. Nas palavras dele: “é outra coisa. São muitos interesses diferentes, às vezes é tão bagunçada a situação lá que não dá nem pra chamar de crime organizado”. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/13/politica/1520947959_760179.html. Acesso em: 20/04/2019.

Tal exemplo reforça que o eixo principal, mas não o único, da racionalização parece ser a substituição dos “portadores” da sociabilidade violenta e dos traficantes com laços interpessoais nas localidades onde atuam por quadros mais autônomos em relação às raízes locais e, ao mesmo tempo, por lideranças menos irracionais. Por outro lado, o caráter altamente autoritário e personalizado da organização interna do tráfico permanece, levando a que o funcionamento dos “tribunais” que julgam ações tidas como desviantes - cuja atividade é denominada de “desenrolo” na linguagem popular - seja pouco previsível e dependa do sempre cambiante mood do “dono do morro”. Mas, ainda que seja parcial, há um processo de racionalização que afeta tanto a cúpula quanto a base da organização do tráfico. O mais importante talvez seja enfatizar que os “bichos loucos” continuam incontroláveis, mas tendem a ser substituídos por lideranças menos atrabiliárias (Machado da Silva, 2017______. Entrevista: A vida de cerco nas periferias. Revista do Instituto Humanitas Unisinos - IHU Online, 2017. Disponível em: http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/6896-a-vida-de-cerco-nas-periferias
http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/...
).

No período de auge da UPP na Cidade de Deus, uma parte da favela era dominada por um “dono” mais “bicho louco”, que incentivava o enfrentamento constante com a polícia. Já outra parte da favela, dominada por outro dono, tinha orientação para todos evitarem o confronto, uma vez que ele atrapalhava os ganhos econômicos da boca. Durante um período, esse segundo “dono” chegou a proibir bandidos de atirarem na área para evitar problema com a UPP. Como resumiu um morador:

Cada dono de morro tem sua doutrina. Tem uns que não gostam de esculachar. O amigo daqui não quer esculachar ninguém. O ritmo dele é botar dinheiro no bolso e ficar milionário. Ele não quer que mate ninguém na favela porque ele também quer sair da cadeia e ficar em liberdade. Porque, matando vagabundo na favela dele, acaba caindo nas costas dele e ficando mais difícil para ele sair depois. Dependendo da favela é diferente. Lá do outro lado, eles já mandam matar e jogam para o jacaré. Eles não querem saber, não. Se for caso de x9, então, eles tacam ou tocam no latão e botam fogo na pessoa viva ou dão para o jacaré comer. (Trecho de entrevista com um morador da Cidade de Deus.)

Esses dois exemplos de “donos” de diferentes áreas da Cidade de Deus mostram como “portadores da sociabilidade violenta” continuam existindo e agindo de forma extremamente agressiva em muitos casos. Mas, ao mesmo tempo, com frequência cada vez maior, traficantes que se mostram mais movidos por certa racionalidade econômica que se sobrepõe à lógica da força pela força estão chegando aos pontos mais altos da hierarquia do tráfico. Como resumiu um morador da Cidade de Deus: “Dentro do mundo do crime, o que eles consideram bom traficante hoje é o que vende muito, o que tem cabeça. Não adianta mais só ter disposição e ser brabo como antigamente”.

Para encerrar, é importante salientar que o processo de racionalização da “sociabilidade violenta”, além de parcial, também não é linear e pode envolver momentos de “avanços” e “retrocessos”, idas e vindas. Todavia, parece ser uma tendência que merece ser acompanhada e investigada, uma vez que tem relação direta com uma série de outros processos fundamentais para a compreensão da “violência urbana” no atual cenário do Rio de Janeiro.

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  • Thévenot, Laurent. L’Action au pluriel: sociologie des regimes d’engagement Paris: La Découverte, 2006.
  • Valladares, Lícia do Prado. A invenção da favela: do mito de origem a favela.com Rio de Janeiro: FGV, 2005.
  • Vigh, Henrik. “Motion Squared: A Second Look at the Concept of Social Navigation”. Anthropological Theory, n. 9, Dec. 2009, pp. 419-38.
  • Zaluar, Alba; Alvito, Marcos (orgs.). Um século de favela Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004.
  • 1
    Entre 1995 e 2000, os policiais militares e civis do estado do Rio de Janeiro que praticaram atos considerados de bravura pelo comando da corporação — que resultavam, recorrentemente, na morte de supostos criminosos — foram premiados com a chamada “gratificação faroeste”. Criada em novembro de 1995 pelo general Nilton Cerqueira, secretário de Segurança no governo do Rio de Janeiro de Marcello Alencar, a gratificação estimulou confrontos e mortes e só foi suspensa no ano 2000. Muito recentemente, o estímulo ao extermínio voltou a ser defendido explicitamente pelo establishment.
  • 2
    “Dar o bote” é uma expressão utilizada por traficantes para fazer referência ao momento no qual os policiais conseguem capturar algum deles com um “flagrante”.
  • 3
    Uma jovem moradora de uma favela “pacificada” afirmou certa vez que foge de um “desenrolo” como “quem foge da cruz”. Ela aponta que evita desenrolar: “porque a gente nunca sabe como um desenrolo pode acabar. Pode ser que tudo se resolva no papo, mas também pode ser que você leve ou veja alguém levando um tapa na cara, uma madeirada ou até mesmo pode acabar em morte! Então, é sempre melhor evitar ir para um desenrolo!”.
  • 4
    Foram 6.731 casos de mortes violentas ocorridas no estado do Rio de Janeiro em 2017, sendo 1.124 mortes causadas pela polícia. A taxa de homicídios decorrentes de intervenção policial ficou em 6,7 por 100 mil habitantes, a maior taxa desde 2008, quando foram inauguradas as primeiras upps. Fonte: <https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2018/01/18/rio-fecha-2017-com-maior-taxa-de-mortes-violentas-dos-ultimos-oito-anos.htm>. Acesso em: 23/12/2018.
  • 5
    O general do Exército Walter Souza Braga Netto tornou-se interventor no estado, assumindo a responsabilidade do comando da Secretaria de Segurança, Polícias Civil e Militar, Corpo de Bombeiros e do sistema carcerário no estado. Como aponta Miagusko, “uma das causas que motivaram fortemente a intervenção na política de segurança do estado não foram apenas as imagens que circularam com o ataque a turistas ou moradores por assaltantes. O que parece ter motivado foi o aumento do roubo de carga no estado, os custos do transporte e a logística da chegada de produtos na região metropolitana e, sobretudo, na capital” (Miagusko, 2018Miagusko, Edson. “A pacificação vista da Baixada Fluminense: violência, mercado político e militarização”. In: Leite, Márcia ; Rocha, Lia de Mattos; Farias, Juliana; Carvalho, Monique (orgs.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018., p. 160).
  • 6
    Compartilhamos com Leite, Rocha, Farias e Carvalho (2018)Leite, Márcia; Rocha, Lia de Matos; Farias, Juliana; Carvalho, Monique (orgs.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018. a certeza de que o assassinato de Marielle, ocorrido no dia 14 de março de 2018, “foi um crime político, por seu ativismo denunciando as arbitrariedades e crimes perpetrados pelos aparatos estatais de repressão” (p. 3).
  • 7
    Fonte: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46384697>. Acesso em: 28/12/2018.
  • 8
    Policiais deixaram de fazer rondas frequentes pelo território das favelas “pacificadas” e passaram a ficar apenas parados dentro da sede da UPP. Segundo comandantes de diversas UPPs, patrulhar todo o território das favelas não era mais possível porque o efetivo do projeto foi muito reduzido. Em 2017, cerca de 3 mil policiais (33% do efetivo do programa) foram realocados para o policiamento da capital e região metropolitana, e as UPPs passam a ser subordinadas aos batalhões. Fonte: <https://noticias.uol.com.br/cotidia no/ultimas-noticias/2017/08/22/em-meio-a-onda-de-violencia-rj-enxuga-upps-e-3000-pms-vao-policiar-grande-rio.htm>. Acesso em 15/01/2019. No mesmo ano, a verba das UPPs foi radicalmente cortada. Se em 2017 a verba de manutenção do projeto era de R$ 5,4 milhões, em 2018 as 38 unidades receberam apenas R$ 10 mil. O total, irrisório, equivale a R$ 833 por mês, ou R$ 27 por dia para cada uma das UPPs. Fonte: <https://oglobo.globo.com/rio/a-upp-ja-acabou-so-estamos-aguardando-ordem-para-sairmos-daqui-diz-policial-22188130>. Acesso em: 15/01/2019. Em 2018, houve ainda uma decisão do Gabinete de Intervenção Federal de que doze UPPs seriam extintas e sete seriam absorvidas por outras unidades com a justificativa de que certas unidades estavam “em locais de grandes confrontos, onde as forças de segurança perderam o controle”. Fonte: <https://oglobo.globo.com/rio/intervencao-anuncia-fim-de-12-upps-mudancas-em-outras-sete-unidades-22631936>. Acesso em 15/01/2019.
  • 9
    Assim como Leite, Rocha, Farias e Carvalho (2018Leite, Márcia; Rocha, Lia de Matos; Farias, Juliana; Carvalho, Monique (orgs.). Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2018., p. 11), compreendemos “a militarização como uma forma de governo, o que significa que o poder não emana apenas das instituições […] mas pode ser observado circulando em diversos contextos a partir de seus diferentes agentes e funcionários […], das igrejas, das ONGs, dos trabalhadores dos programas sociais, do mercado, e muitas vezes do crime. Todos estes personagens também governam”.
  • 10
    Conforme aponta Rocha acertadamente: “a intervenção federal na área de segurança pública do estado do Rio de Janeiro, ainda que seja um marco na sinalização do esgotamento do projeto da ‘pacificação’, não modifica sua lógica; pelo contrário, a partir do que pudemos identificar até então, radicaliza a lógica da militarização” (2018, p. 235).
  • 11
    Em 2018, ouvi comentários de que PMs estariam andando encapuzados pelo Santa Marta, e rumores apontavam que algumas das pessoas que andavam com rostos cobertos seriam X9 que estariam circulando pelo morro com policiais para passar informações sobre a atuação do tráfico no local.
  • 12
    Em março de 2019, Witzel confirmou que atiradores de elite da polícia já estão sendo usados para matar traficantes nas favelas: “Os snipers são usados de forma absolutamente sigilosa. Eles já estão sendo usados, só não há divulgação. O protocolo é claro: se alguém está com fuzil, tem que ser neutralizado de forma letal”. Fonte: <https://oglobo.globo.com/rio/snipers-ja-estao-sendo-utilizados-so-nao-ha-divulgacao-diz-witzel -sobre-acao-da-policia-23563496>. Acesso em: 30/04/2019.
  • 13
    O governador eleito anunciou que pretende “conhecer um modelo de drone equipado com uma arma, capaz de atirar enquanto sobrevoa uma região. O equipamento, usado pelas forças israelenses em ações na fronteira com os territórios palestinos, pode ser utilizado em operações de segurança no Rio. Witzel e Flávio Bolsonaro querem, ainda, obter informações sobre um equipamento de leitura facial que pode ser instalado nos transportes públicos do estado”. Fonte: <https://extra.globo.com/noticias/extra-extra/witzel-flavio-bolsonaro-vao-israel-comprar-drone-que-faz-disparos-23206958.html>. Acesso em: 15/01/2019.
  • 14
  • 15
    “Jair Bolsonaro deu a sua receita para resolver a guerra da Rocinha, num grande evento promovido, na semana passada, pelo BTG Pactual. Uma solução simples — e idiota. A uma plateia de mil executivos do mercado financeiro, Bolsonaro disse que mandaria um helicóptero derramar milhares de folhetos sobre a favela, avisando que daria um prazo de seis horas para os bandidos se entregarem. Findo este tempo, se a bandidagem continuasse escondida, metralharia a Rocinha. Sinal dos tempos, foi aplaudido pelo público.” Fonte: <https://blogs.oglobo.globo.com/lauro-jardim/post/solucao-de-bolsonaro-para-rocinha.html>. Acesso em: 15/01/2019.
  • 16
    A repercussão de falas como essas pode ser sentida no cotidiano das favelas, antes mesmo de Bolsonaro ter sido eleito e empossado presidente da República. No Santa Marta, poucos dias antes das eleições, alguns policiais da UPP gritaram com moradores durante um momento de tensão dizendo que: “Agora é o bonde do Bolsonaro. Acabou o sossego de vocês!”.
  • 17
    Em 2011, Burgos et al.Burgos et al. “O efeito UPP na percepção dos moradores das favelas”. Desigualdade & Diversidade: Revista de Ciências Sociais da PUC-Rio, n. 11, ago./dez. 2011, pp. 49-98. relataram que os moradores entrevistados pareciam ter a esperança de que a UPP promovesse uma “pacificação” da própria polícia. Eles acreditavam que a “nova polícia” poderia contaminar a “velha polícia”. Como apontavam os autores: “A questão central que está em jogo na experiência da UPP não é tanto a do seu efeito pontual em cada favela, seja no acesso aos serviços públicos ou no florescimento dos negócios, mas, sim, a de saber em que medida essa experiência criará condições que venham permitir a universalização dessa nova polícia, pautada pelo respeito aos direitos dos moradores das favelas e periferias, de que a UPP parece ser um ensaio” (2011, p. 91).
  • 18
    Em 2011, Luiz Eduardo Soares afirmou que o desafio das UPPs é “transformar o programa em política pública, ou seja, dotá-lo de universalidade e sustentabilidade, o que exige o envolvimento do conjunto das instituições policiais em sua aplicação. No Rio, não há esta hipótese, tal o nível de comprometimento das polícias com o tráfico, as milícias e a criminalidade em geral. Portanto, sem a refundação das polícias não haverá futuro para as UPPs. Elas se limitarão a intervenções tópicas, insuficientes para mudar o panorama geral da segurança pública, e continuarão a conviver com nichos policiais, milicianos ou não, que têm sido fonte de violência e não instrumentos da ordem cidadã e democrática. No Rio, é preciso exorcizar a retórica tão patética quanto mascaradora do bem contra o mal e inscrever a mudança das polícias no centro da agenda pública”.
  • 19
    Agentes do tráfico (principalmente com postos mais altos na hierarquia) se tornaram mais “racionais” economicamente, diversificando os negócios de forma mais sistemática, investindo, por exemplo, na compra e construção de quitinetes para alugar. Ou mesmo lucrando de outras formas. Grillo aponta, por exemplo, que “os rearranjos de poder produzidos pelas UPPs introduziram novas tensões às dinâmicas criminais, em especial na relação entre traficantes e assaltantes. Durante os anos de expansão das unidades, traficantes buscaram reprimir a atuação de assaltantes para evitar uma ocupação ou possibilitar uma negociação com as forças ocupantes, o que possivelmente colaborou para a diminuição da incidência de roubos” (Grillo, 2016). Essa dinâmica parece ter se transformado novamente e são fortes os indícios de que hoje, após o fracasso das UPPs e a volta dos tiroteios no espaço das favelas (Menezes, 2015Menezes, Palloma. Entre o “fogo cruzado” e o “campo minado”: uma etnografia do processo de “pacificação” de favelas cariocas. Tese de Doutorado em Sociologia. Instituto de Estudos Sociais e Políticos - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2015.), o tráfico tenha deixado de reprimir a atuação de ladrões e esteja, pelo contrário, participando do lucro dos roubos (Grillo, 2019______. “Da violência urbana à guerra: repensando a sociabilidade violenta”. Revista Dilemas, v. 12, 2019, pp. 62-92., p. 70).
  • 20
    “Traições, prisões e batalhas perdidas” levaram, por exemplo, a Amigos dos Amigos (ADA) — que era uma das mais poderosas organizações criminosas do Rio de Janeiro — a perder muitos de seus territórios. Fonte: <https://projects.theintercept.com/brasil/o-fim-de-uma-faccao/>. Acesso em: 20/04/2019.
  • 21
    Muitos são os relatos que apontam que milicianos de várias áreas, na última década, passaram a comercializar não só serviços diversos associados à segurança, mas também drogas ilícitas: “Há uma década, usar drogas em áreas de milícia era terminantemente proibido, para ‘proteção das criancinhas’. Mas as milícias — que vendiam favelas de ‘porteira fechada’ — hoje também vendem drogas e são concorrentes do tráfico. Dependendo da estratégia do negócio, até alugam bocas de fumo de traficantes”. Fonte: <https://theintercept.com/2018/04/05/milicia-controle-rio-de-janeiro/>. Acesso em: 20/04/2019. Por outro lado, mesmo antes da chegada da UPP, moradores de favelas como a Cidade de Deus relatam que os traficantes estavam lucrando não só com a venda de drogas, mas que passaram a diversificar seus ganhos econômicos cominando o fornecimento de gás, gatonet, internet e mototáxi. Em alguns casos, o “dono” do tráfico também era o “dono” da prestação de alguns desses serviços. Em outros, o “dono” presenteava alguém próximo que passava a administrar o serviço; em retribuição, o presenteado repassava para o dono uma parte dos lucros ou um valor fixo todos os meses.
  • 22
    É importante lembrar, como ressalta Grillo, que “as narrativas sobre alianças, rupturas e rivalidade entre os comandos tendem a pressupor que sejam todos eles grupos de mesmo tipo, hierarquicamente organizados e coesos, competindo entre si pelo controle do mercado ilegal de drogas em regiões diversas do país. As menções à presença ou ausência do PCC ou do CV em certas regiões tendem a reproduzir uma percepção desses coletivos como entidades abstratas, fetichizadas, simultaneamente fantasmagóricas e personificadas — como o são o Estado, o mercado ou Deus. Tal percepção é enormemente distinta do saber acumulado sobre esses comandos a partir de pesquisas realizadas no Rio de Janeiro (Barbosa, 1998, 2005; Misse, 1999, 2003; Grillo, 2013Grillo, Carolina Christoph. Coisas da vida no crime: tráfico e roubo em favelas cariocas. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, 2013.) e em São Paulo (Telles; Hirata, 2010; Feltran, 2011Feltran, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp/CEM/Cebrap, 2011., 2018; Biondi, 2010, 2018; Marques, 2014; Hirata, 2018), nas quais a horizontalidade e o aspecto de rede dessas organizações foram sistematicamente ressaltados” (Grillo, 2019______. “Da violência urbana à guerra: repensando a sociabilidade violenta”. Revista Dilemas, v. 12, 2019, pp. 62-92., p. 72).
  • 23
  • 24
    Na mesma entrevista, ao ser questionado sobre possível envolvimento com o PCC, Nem, apesar de negar filiação à facção de São Paulo, indicou que, na visão dele, o modelo de negócios do grupo paulista é mais eficiente “e menos violento” do que o das facções fluminenses. Ele mencionou a tese de que o grupo criminoso foi responsável pela queda dos homicídios no estado (Feltran, 2011Feltran, Gabriel de Santis. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Editora Unesp/CEM/Cebrap, 2011., 2018): “Sem o PCC São Paulo ia virar um inferno. Quem você acha que acabou com a violência lá? Foi o Estado por acaso?”, questiona. Nem não acha, no entanto, que o PCC conseguiria ter sucesso em uma possível empreitada no Rio. Nas palavras dele: “é outra coisa. São muitos interesses diferentes, às vezes é tão bagunçada a situação lá que não dá nem pra chamar de crime organizado”. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/03/13/politica/1520947959_760179.html. Acesso em: 20/04/2019.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2019
  • Aceito
    06 Dez 2019
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