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Empatia no transtorno afetivo bipolar

Empathy in bipolar disorder

CARTA AO EDITOR

Empatia no transtorno afetivo bipolar

Empathy in bipolar disorder

Hélio Tonelli

Instituto de Psiquiatria do Paraná (IPP)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Instituto de Psiquiatria do Paraná (IPP) Av. Cândido de Abreu, 526, cj. 311 – B Centro Cívico – 80530-000 – Curitiba, PR E-mail: hatonelli@terra.com.br

A neurociência cognitiva social, cujos focos são os processos cognitivos relacionados à presença e à convivência com outros seres humanos, tem explicado muitos dos problemas no funcionamento interpessoal em portadores de transtornos mentais, incluindo o transtorno afetivo bipolar (TAB).

O TAB parece estar associado a comprometimento da capacidade de inferir estados mentais em terceiros (como crenças, desejos e intenções), e esse déficit foi descrito por vários autores, tanto em bipolares eutímicos quanto em estados depressivos ou maníacos1.

Os prejuízos na inferência de estados mentais apresentados por bipolares parecem comprometer suas habilidades de se relacionarem de maneira saudável com familiares, empregadores e outras pessoas de seu convívio, gerando tensão e piora da morbidade de sua condição por aumento do risco de recaídas e recidivas de episódios de humor.

Nossa capacidade automática e espontânea de compreender outros humanos – e de nos identificar com eles – parece ser composta tanto por nossa capacidade de inferir estados mentais em outros humanos quanto pelo fenômeno da empatia, que permite que compartilhemos sentimentos e emoções. Como seres sociais, nossa habilidade de nos entendermos mutuamente, reconhecendo a experiência pessoal de self como semelhante à de outros humanos, sem deixar de lado a própria individualidade, parece ser constituída por duas dimensões distintas: 1. habilidade de inferência de estados mentais, também chamada por alguns autores de "empatia cognitiva", e 2. "empatia afetiva", relacionada à capacidade de sincronizarmos emocionalmente com outras pessoas, de acordo com o conceito mais popularizado de empatia3).

Dois artigos publicados recentemente3,4 investigaram independentemente prejuízos empáticos em portadores de TAB, obtendo resultados bastante interessantes e muito semelhantes. Shamay-Tsoory et al.3 avaliaram bipolares do tipo I sem história de psicose e em eutimia, que preencheram um questionário de avaliação de capacidade empática, o Índice de Reatividade Interpessoal (IRI), constituído de quatro subescalas de sete itens: tomada de perspectiva (que mede a tendência a adotar espontaneamente o ponto de vista psicológico de outros, e que mais se aproximaria de avaliar a dimensão "empatia cognitiva"), fantasia (que mede a tendência a, de maneira imaginária, transpor-se a uma situação ficcional), preocupação empática (que mede a tendência a experimentar sentimentos de simpatia e compaixão) e estresse interpessoal (que mede a tendência a experimentar estresse e desconforto perante estresse e desconforto de outros, e que mais se aproximaria de avaliar a dimensão "empatia afetiva"). Os pacientes também foram avaliados por meio de uma tarefa faux pas (ou gafe) e de testes de reconhecimento de emoções. Na tarefa faux pas, é mostrada ao indivíduo experimental uma vinheta em que alguém faz um comentário indevido dirigido a outra pessoa, por não saber que esta poderá se ofender com esse comentário. A adequada compreensão do faux pas exige do examinado tanto a capacidade de metarrepresentar o estado mental do sujeito que comete a gafe (este não sabia que ofenderia seu interlocutor) ou empatia cognitiva (ou, ainda, faux pas cognitivo) como de apreciar o impacto emocional da gafe sobre o interlocutor (empatia afetiva ou faux pas afetivo). Os testes de reconhecimento de emoções abrangeram tarefas em que os indivíduos teriam de reconhecer emoções básicas (alegria, tristeza, medo, surpresa, angústia, nojo ou raiva) ou "emoções sociais" (interesse, apreensão, confiança, fantasia, preocupação, amabilidade e suspeição) em fotografias. Os sujeitos experimentais também foram avaliados em relação à função executiva.

Bipolares tiveram escores significativamente mais baixos na subescala de empatia cognitiva do IRI em relação aos controles, mas obtiveram escores mais altos na subescala de empatia afetiva. Eles também tiveram desempenho inferior aos controles no faux pas cognitivo, mas não no faux pas afetivo. Não houve diferenças entre os grupos no que tange à capacidade de reconhecer emoções básicas ou complexas.

Cusi et al.4 também avaliaram bipolares em diferentes fases do transtorno utilizando o IRI e se propuseram a relacionar os achados a eventuais prejuízos em várias áreas do funcionamento social por meio da Escala Autoaplicável de Ajustamento Social. Também nesse trabalho, bipolares tiveram escores significantemente inferiores na subescala "tomada de perspectiva" e escores mais altos na subescala "estresse interpessoal". Portanto, apresentaram, respectivamente, menor empatia cognitiva e maior empatia afetiva em relação aos controles saudáveis. Houve relações significativas entre as pontuações obtidas por bipolares na subescala "estresse interpessoal" e pior funcionamento social global.

Poucos são os estudos sobre o fenômeno da empatia em portadores de TAB; esses estudos complementam aqueles disponíveis acerca de habilidades de inferência de estados mentais nesses pacientes (para uma revisão, ver Tonelli, 2009). Juntos, esses trabalhos auxiliam na compreensão dos possíveis prejuízos de bipolares em representarem, mentalmente e de modo automático e espontâneo, as mentes de outras pessoas tanto do ponto de vista cognitivo (tomada de perspectiva sobre crenças, desejos e intenções) quanto afetivo (sincronização emocional). Esses problemas poderiam estar por trás das inúmeras dificuldades que bipolares encontram em diversas esferas de sua vida interpessoal e de comportamentos habitualmente observados por esses pacientes, que variam desde situações habitual­mente descritas como "temperamento ou personalidade forte" até sintomatologia paranoide franca. Portanto, um sistema de inferência de estados mentais deficitário facilitaria nesses pacientes a geração de falsas crenças sobre as reais intenções, pensamentos e desejos de terceiros, com todas as repercussões que elas poderiam ter sobre seus relacionamentos pessoais.

É importante ressaltar que maior empatia afetiva também foi descrita por Shamay-Tsoory et al.3 e Cusi et al.4. Recentemente, Galvez et al.5 descreveram a empatia, juntamente da espiritualidade, criatividade, resiliência e realismo, como aspectos positivos da doença mental, enfatizando que maior empatia pode ser encontrada principalmente em indivíduos deprimidos, os quais estão sujeitos a desenvolver experiências mentais patológicas compostas por hiper-realismo e hiperinsight.

Recebido: 9/11/2010

Aceito: 3/2/2011

  • 1. Tonelli HA, Alvarez CE, Silva AA. Esquizotipia, habilidades "Teoria da Mente" e vulnerabilidade ŕ psicose: uma revisăo sistemática. Rev Psiq Clin. 2009;36(6):229-39.
  • 2. Tonelli HA. Processamento cognitivo "Teoria da Mente" no transtorno bipolar. Rev Bras Psiquiatr. 2009;31(4):369-74.
  • 3. Shamay-Tsoory S, Harari H, Szepsenwol O, Levkovitz Y. Neuropsychological evidence of impaired cognitive empathy in euthymic bipolar disorder. J Neuropsychiatry Clin Neurosci. 2009;21(1):59-67.
  • 4. Cusi A, MacQueen GM, McKinnon MC. Altered self-report of empathic responding in patients with bipolar disorder. Psychiatry Res. 2010;178:354-8.
  • 5. Galvez JF, Thommi S, Ghaemi NS. Positive aspects of mental illness: a review in bipolar disorder. J Affect Disord. 2010, doi:10.1016/j.jad.2010.03.017.
  • Endereço para correspondência:
    Instituto de Psiquiatria do Paraná (IPP)
    Av. Cândido de Abreu, 526, cj. 311 – B
    Centro Cívico – 80530-000 – Curitiba, PR
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Out 2011
    • Data do Fascículo
      2011
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