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Sigmund Freud nos trópicos. A primeira dissertação psicanalítica no mundo lusófono (1914)

COMENTÁRIO DO LIVRO

Sigmund Freud nos trópicos. A primeira dissertação psicanalítica no mundo lusófono (1914)

Peter Theiss-Abendroth

Psiquiatra e psicanalista

Address correspondence to Address correspondence to: Peter Theiss-Abendroth Psychologische Hochschule Berlin, Berliner Institut für Psychotherapie und Psychoanalyse Kanzlerweg 1 12101 Berlin, Alemanha

Autor: Hannes Stubbe

Germany: Shaker Verlag; 2011. ISBN 978-3-8440-0174-7

Uma comemoração especial para a história intelectual desta nação está prestes a acontecer: no ano de 2014, o discurso científico sobre a psicanálise no Brasil com-pletará 100 anos. No ano de 1914, o cearense Genserico Aragão de Souza Pinto concluiu seu doutorado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, apresentando sua dissertação intitulada Da psicoanalise (A sexualidade nas nevroses) e, com isso, abriu o espaço para a recepção da psicanálise no século a seguir. A referida disser-tação esteve por muito tempo inacessível, até que o alemão Hannes Stubbe, docen-te na área de psicologia antropológica na Universidade de Colônia e na PUC-RJ, a encontrou e veio a divulgá-la em uma reprodução de 129 páginas (1). Hannes Stub-be é um exímio conhecedor do Brasil, tendo ocupado, por muitos anos, diferentes posições no Rio de Janeiro e em São Paulo, assim como em Moçambique e na Chi-na. Ele publicou seu achado na Alemanha e acrescentou a ele um minucioso comen-tário de 70 páginas, o qual esclarece ao leitor tanto o contexto brasileiro quanto o europeu.

Com isso, torna-se claro, o quanto de seu trabalho Pinto deve aos seus orientadores, especialmente a Antônio Austregésilo Rodrigues Lima, o qual, cinco anos depois, publicou um trabalho próprio, nomeado Sexualidade e psiconeurosis. Mas também a Juliano Moreira, apontado como psicoanalista nos agradecimentos de Pinto. Moreira já havia estabelecido contato com a psiquiatria germânica no início do século passa-do. Ali, ele também veio a conhecer Emil Kraepelin, cujo sistema de classificação de doenças psíquicas Moreira tornou conhecido no Brasil ao retornar.

É impressionante o fato de Juliano Moreira, já em 1899, ou seja, antes de realizar a anteriormente citada viagem, ter falado sobre a psicanálise na Faculdade de Medici-na da Bahia. Pinto também se mostra bem informado e familiarizado com uma gran-de quantidade das obras de Freud existentes na época. É verosímil que ele possuís-se conhecimentos básicos da língua alemã, de modo que a barreira entre as línguas romana e germânica - chamada por Hannes Stubbe de "muro latino" - pôde, ao me-nos em parte, ser ultrapassada. Pinto propõe traduções de uma série de termos cen-trais da psicanálise para o português e também classifica na teoria de Freud o que havia de sucessão às teorias de Charcot e Breuer. Ele parece, em geral, notavel-mente familiarizado com os discursos franceses e alemães da sua época, embora não menciona um único trabalho brasileiro sequer. No entanto, ele parece ter consi-derado alguns trabalhos de Freud não diretamente, senão indiretamente através de críticos franceses.

A dissertação de Pinto abrange nove capítulos teóricos, um prefácio, bem como um apêndice com cinco exemplos casuísticos. Seu foco é a compreensão de neuroses e perversões no âmbito da teoria do impulso, da forma que esta existia naquela época. O fato de que sua compreensão teórica não se refere à vivência interior e fantasias do paciente, e muito menos às fantasias edípicas, não minimiza de modo algum o mérito de seu trabalho pioneiro. O núcleo da psicanálise, ou seja, o inconsciente di-nâmico, era, pelo visto, desconhecido por Pinto e seus mestres da época. Assim, a psicanálise para ele vira uma medicina da sexualidade, que se ocupava principal-mente com questões da masturbação e de outras formas insatisfatórias da sexuali-dade. Pinto nos fornece em suas casuísticas visões interessantes de seu trabalho clínico, ao demonstrar seu objetivo principal, que é ajudar seus pacientes, os quais com exceção de uma única pessoa, eram mulheres, a terem uma vida sexual mais satisfatória.

Dentre todas as características do trabalho de Pinto e de seus professores, uma em especial provoca admiração do ponto de vista alemão: sua capacidade de unir no nível universitário o discurso psiquiátrico e psicoanalista. Tal diálogo interdisciplinar falta até hoje na Alemanha e em países como França, Grã-Bretanha, Estados Uni-dos ou países escandinavos este veio a ocorrer somente muito mais tarde.

No volume aqui apresentada, reúnem-se assim diversos méritos pioneiros: o próprio doutorando Pinto, seu meio acadêmico e, por último, mas não menos importante, o editor e comentarista Hannes Stubbe. Espera-se que, a recepção deste trabalho no Brasil, também não termine por ricochetear no tal "muro latino".

Recebido: 5/11/2012

Aceito: 15/11/2012

  • Address correspondence to:

    Peter Theiss-Abendroth
    Psychologische Hochschule Berlin, Berliner Institut für Psychotherapie und Psychoanalyse Kanzlerweg 1
    12101 Berlin, Alemanha
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Maio 2013
    • Data do Fascículo
      2013
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