Resumo:
Este artigo objetiva trazer a importância da criminologia crítica como subsídio ao trabalho e à formação profissional, apresentando seus fundamentos numa análise marxista, levando em consideração a classe, a raça e o gênero, e sua possível interlocução com os princípios éticos do Serviço Social, vislumbrando uma aproximação maior com essa perspectiva na luta anticapitalista, antirracista, feminista e antipunitivista.
Palavras-chave:
Criminologia crítica; Serviço Social; Princípios éticos
Abstract:
This article aims to bring the importance of critical criminology as a subsidy to professional work and professional education, presenting its foundations in a Marxist analysis, taking class, race, and gender into consideration, and its possible interlocution with the ethical principles of Social Work, aiming at a greater approximation with this perspective in the anti-capitalist, anti-racist, feminist, and anti-punitivist fight.
Keywords:
Critical criminology; Social Work; Ethical principles
Introdução
A criminologia crítica é uma perspectiva teórica que se desenvolveu nos anos 1970, fruto em especial da década antecedente, que representou um momento histórico de contestação, marcado por lutas dos movimentos sociais pelos direitos civis, pelos direitos da população negra e pelos direitos das mulheres, com reverberação mundial (Anitua, 2008ANITUA, G. I. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.).
Nesse cenário, tanto a criminologia positivista quanto a perspectiva funcionalista são questionadas na sua contribuição para a manutenção do sistema capitalista (Anitua, 2008ANITUA, G. I. História dos pensamentos criminológicos. Rio de Janeiro: Revan, 2008.). Todo esse processo desembocou no labelling approach,1 1 O labelling approach, ou etiquetamento social, ou teoria da reação social, é uma abordagem que trouxe análises importantes à criminologia crítica numa crítica ao sistema prisional, sobretudo pela compreensão do efeito estigmatizante das instâncias oficiais, mas sem relacionar com a luta de classes. Em síntese, os conceitos do labelling approach que marcam a criminologia contemporânea são: “a) comportamento criminoso é comportamento rotulado como criminoso; b) o papel da estigmatização penal aparece na produção do status social de criminoso: a relação do desvio primário, que produz mudanças na identidade social do sujeito, com o desvio secundário, definido como efeito do desvio primário; c) a rejeição da função corretiva da pena criminal, que consolida a identidade criminosa e introduz o condenado em carreira desviante etc. Assim, a teoria do labeling approach é a primeira ruptura radical com a criminologia positivista” (Santos, Juarez C., 2021, p. 171). que realiza uma crítica ao positivismo, numa análise dos efeitos estigmatizantes das instâncias penais.
Posteriormente, imersos nesse contexto histórico contestatório às instituições penais, novos pensamentos sobre a questão criminal surgiram, embasados numa análise marxista. Esses pensamentos foram intitulados de criminologia crítica, radical ou da libertação. Destaca-se que nem todos/as criminólogos/as críticos/as são marxistas, não obstante as análises de Marx tenham significativa influência nos fundamentos da criminologia crítica. Segundo Baratta (1997BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997.), não há um pensamento homogêneo criminológico contemporâneo, no entanto ressalta que há um movimento importante de construção de uma teoria materialista do crime.
Rusche e Kirchheimer publicaram Punição e estrutura social, em 1939, livro que só ganhou notoriedade nos anos 1970, constituindo a primeira obra na qual o marxismo embasou o estudo do poder punitivo. Para Rusche e Kirchheimer (2004)RUSCHE, G.; KIRCHHEIMER, O. Punição e estrutura social. 2. ed. Tradução: Gizlene Neder. Rio de Janeiro: Revan, 2004 [1939]., os métodos penais, os períodos históricos específicos e seus sistemas de produção devem ser analisados em conjunto. Também Melossi e Pavarini (2010MELOSSI, D.; PAVARINI, M. Cárcere e fábrica: as origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Rio de Janeiro: Revan, 2010.) realizam análise crítica das protoformas das prisões na Europa e nos Estados Unidos, relacionando-as com o sistema de produção.
Na América Latina, a partir dos anos 1980, fruto de luta política no interior das academias, a disciplina da Criminologia começa a adquirir um caráter de crítica ao Direito Penal (Santos, Juarez C., 2021SANTOS, Juarez C. dos. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021.). Na Venezuela, ressaltam-se as críticas marxistas ao poder punitivo de Castro (2005CASTRO, L. A. Criminologia da libertação. Rio de janeiro: Revan, 2005., p. 159), nas quais observa que “Marx deu os lineamentos para elaborar uma criminologia marxista”.
No Brasil, Juarez C. Santos é grande referência da criminologia crítica. O autor destaca as contribuições primordiais de Marx a respeito de sua forma de analisar a sociedade capitalista com base no materialismo histórico-dialético para pensar o conceito de crime na luta de classes; da análise da formação social capitalista com a estrutura econômica de produção e os sistemas jurídicos e políticos, nos quais seria impensável uma ciência crítica do Direito ou do Estado (Santos, Juarez C., 2021SANTOS, Juarez C. dos. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021.).
No tocante à discussão de classe, raça e gênero, ainda é incipiente na criminologia crítica, embora alguns/mas autores/as brasileiros/as venham promovendo esse debate, como Andrade (2012ANDRADE, V. R. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.) e June C. Santos (2018SANTOS, Juarez C. dos. A criminologia radical. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.) na discussão de gênero e Góes (2021GÓES, L. Por uma justiça afrodiaspórica: xangô e as mandingas em busca do reconhecimento da dignidade humana negra. Revista Culturas Jurídicas , v. 8, n. 20, mai./ago. 2021.) e Flauzina (2006FLAUZINA, A. L. P. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006.) sobre a questão étnico-racial.
Em relação aos princípios éticos do Serviço Social, dispostos no Código de Ética da(o) assistente social de 1993 (CFESS, 2012CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social: Lei n. 8.662/1993. Legislação brasileira para o Serviço Social. Brasília: CFESS, 2012.), integrantes centrais do projeto profissional hegemônico do Serviço Social na atualidade condensam a ruptura da profissão com a perspectiva positivista e conservadora que a marcou desde sua origem, trazendo a liberdade como valor ético central e tendo como horizonte uma nova ordem societária, sem dominação-exploração de classe, etnia e gênero (CFESS, 2012CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social: Lei n. 8.662/1993. Legislação brasileira para o Serviço Social. Brasília: CFESS, 2012.). O debate sobre o Projeto Ético-Político do Serviço Social e os princípios éticos que o direcionam tem centralidade na literatura profissional, sendo que priorizamos aqui algumas produções, como as de Abramides (2006ABRAMIDES, M. B. C. O projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro. 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.), Barroco (2009BARROCO, M. L. A historicidade dos direitos humanos. In: FORTI, V.; GUERRA, Y. (org.). Ética e direitos: ensaios críticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.) e Iamamoto (2015IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2015.), assim como de Fávero (2013FÁVERO, E. T. O Serviço Social no judiciário: construções e desafios com base na realidade paulista. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 115, jul./set. 2013.), Pereira (2006PEREIRA, T. M. D. O guarda espera um tempo bom: a relação de custódia e o ofício dos inspetores penitenciários. 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.) e Torres (2005TORRES, A. A. Para além da prisão: experiências significativas do Serviço Social na penitenciária feminina da capital/SP (1978-1983). 2005. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005.), na relação com o trabalho da área sociojurídica. No tocante à temática da questão étnico-racial, utilizamos Gonçalves (2018GONÇALVES, R. Quando a questão racial é o nó da questão social. Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 3, 2018.), e na questão de gênero, Álvaro (2013ÁLVARO, M. C. Feminismo, luta de classes e consciência militante feminista no Brasil. 2013. Tese (Doutorado em Política Social e Trabalho) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.).
Destarte, metodologicamente este artigo é fruto de pesquisa bibliográfica2 2 “A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados” (Severino, 2013, p. 106). com autores(as) que são referências na temática, anteriormente mencionados, com o objetivo de refletir sobre a possível interlocução entre os fundamentos da criminologia crítica e os princípios éticos do Serviço Social, vislumbrando uma aproximação maior da categoria de assistentes sociais com a temática e ressaltando sua importância, tanto na formação quanto na intervenção profissional. Articulado a essa reflexão sobre os fundamentos da criminologia crítica e sua relação com o Serviço Social, busca-se agregar as relações de classe, raça e gênero na análise.
1. Fundamentos da criminologia crítica
A análise da criminologia crítica inicia-se no conceito de crime, rompendo com as premissas ideológicas das criminologias tradicionais (Santos, Juarez C., 2021SANTOS, Juarez C. dos. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021.), compreendendo o crime como constructo social. Ruptura que já havia sido feita pelo labelling approach, abrindo caminhos para o surgimento da criminologia crítica.
A superação do paradigma etiológico consiste no deslocamento do objeto de estudo das causas da criminalidade - “concepção do desvio e da criminalidade como realidade [...] preexistente à reação social e institucional” (Baratta, 1997BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997., p. 161) - para “o estudo dos mecanismos sociais e institucionais de criação e de aplicação das definições de crime no processo de criminalização” (Santos, Juarez C., 2021SANTOS, Juarez C. dos. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021., p. 255). O conceito de crime está relacionado ao processo de luta de classes; é construído socialmente e muda dependendo da localidade e do tempo histórico; é uma concepção que rompe com a visão idealista do conceito, composto da infração da lei estabelecida pelo Direito como fruto da vontade geral.
Nessa direção, o Direito Penal apresenta três mecanismos: a criminalização primária - mecanismo de produção e elaboração das leis; a criminalização secundária - entendida como a aplicação dessas leis, ou seja, o processo penal; e, por fim, a execução da pena (Baratta, 1997BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997.). Nesse âmbito, há uma dupla seleção: “Seleção dos bens protegidos penalmente em tipos penais sistêmicos e seleção dos indivíduos estigmatizados no processo de criminalização das sociedades capitalistas” (Santos, Juarez C., 2021SANTOS, Juarez C. dos. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021., p. 255).
A seleção dos bens protegidos e dos comportamentos considerados lesivos, expressa na criminalização primária, faz do Direito Penal objeto de controle penal que privilegia os interesses da classe dominante, na medida em que imuniza os comportamentos dos indivíduos a ela pertencentes e direciona a criminalização, sobretudo, às formas de desvio vinculadas à classe trabalhadora. Já os mecanismos da criminalização secundária realizam a imunização da classe dominante (Baratta, 1997BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997.) e a seleção dos sujeitos criminosos, direcionada principalmente à população negra e de baixa renda.
Portanto, o processo de criminalização do Direito Penal legitima a manutenção do sistema capitalista e sua ideologia classista, racista e patriarcal, reforçada mediante o desenvolvimento, a aplicação e a execução das leis penais que servem de sustentáculo das desigualdades de classe, raça e gênero, na criminalização primária e na criminalização secundária.
A criminologia crítica compreende o crime como constructo social e realiza uma crítica às funções declaradas da pena no capitalismo. Nesse sentido, é importante uma imersão nos mecanismos que giram em torno da pena, numa análise do Estado, do Direito e do Direito Penal.
O Estado e o Direito em Marx foram construídos socialmente, na manutenção da propriedade privada e para atender aos interesses da classe dominante, contribuindo na exploração e na dominação de classe no capitalismo. Marx (2013MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2013., p. 89) critica o idealismo no conceito do Estado de Hegel, no sentido de que a retórica de que o Estado é de interesse do povo é uma mentira sancionada:
O Estado constitucional é o Estado em que o interesse estatal, enquanto interesse real do povo, existe apenas formalmente, e existe como uma forma determinada ao lado do Estado real; o interesse do Estado readquiriu aqui, formalmente, realidade como interesse do povo, mas ele deve, também, ter apenas essa realidade formal. Ele se transformou numa formalidade, [...] numa cerimônia. O elemento estamental é a mentira sancionada [...]: que o Estado é o interesse do povo ou o povo é o interesse do Estado. Essa mentira será revelada no conteúdo. Ela se estabeleceu como poder legislativo precisamente porque o poder legislativo tem como seu conteúdo o universal, é algo que diz mais respeito ao saber do que ao querer, é o poder metafísico do Estado, enquanto a mesma mentira como poder governamental etc. deveria dissolver-se imediatamente ou transformar-se numa verdade.
No capitalismo, a acumulação do Capital orbita em torno de formas sociais, como: o valor, a mercadoria e a subjetividade jurídica. As formas valor, Capital e mercadoria transbordam em forma política estatal e forma jurídica. Destarte, a forma política estatal e a forma jurídica apresentam sua gênese na mesma fonte, através do mesmo processo de derivação, a partir de formas sociais mercantis. A forma jurídica reside no complexo do conceito de sujeito de direito, imbricada à vontade autônoma e à igualdade formal no contrato. Já a forma política presente na reprodução social capitalista se materializa a partir do aparato estatal, pilar primordial da dinâmica de troca de mercadorias, da propriedade privada e da relação capital/trabalho (Mascaro, 2013MASCARO, A. L. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.).
A crítica marxista ao Direito desmascara essa “relação desigual sob a forma jurídica do contrato entre iguais”, ao mostrar como “o direito igual se transforma em direito desigual”. E reflete sobre a distribuição: a desigualdade é representada pelo “acesso desigual aos meios de satisfação das necessidades”, e o Direito Penal contribui na reprodução e na produção dessas relações de desigualdade (Baratta, 1997BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997., p. 163).
Dessa maneira, ao entender o Direito como instituição conformada e conformadora da estrutura econômica social capitalista (Pachukanis, 2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.), compreende-se que é “ao mesmo tempo configurado pelo gênero e reprodutor também das desigualdades de gênero” (Santos, June C., 2018SANTOS, June C. dos. Criminologia crítica ou feminista. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito). - Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2018., p. 75), assim como configurado pela raça e reprodutor das desigualdades de raça.
Segundo June C. Santos (2018SANTOS, June C. dos. Criminologia crítica ou feminista. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito). - Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2018., p. 84), há uma exclusão das mulheres dos discursos criminológicos, fruto “da subordinação estrutural à qual estão submetidas, de um discurso ideologicamente condicionado que reproduz a dominação estrutural do patriarcado”. As criminólogas críticas feministas apontam que a mulher só adquiriu centralidade nos discursos criminológicos como vítima ou autora do delito (Andrade, 2012ANDRADE, V. R. de. Pelas mãos da criminologia: o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Revan, 2012.), não como sujeito político.
Já na discussão da questão racial, Flauzina (2006FLAUZINA, A. L. P. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. 2006. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006., n. p.) aponta como as análises criminológicas “contentam-se em assumir a categoria raça dentro de um rol ilustrativo das muitas assimetrias perpetuadas pelo sistema e não como elemento estruturante de sua atuação”.
Nessa direção, o Direito Penal não é um aliado da emancipação plena feminina, haja vista que sustenta duas formas de violência contra a mulher: a violência decorrente das relações sociais desiguais capitalistas, numa lógica antagônica de classe; e a violência resultante das relações desiguais de gênero (Santos, June C., 2018SANTOS, June C. dos. Criminologia crítica ou feminista. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito). - Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2018.), somado (no tocante à mulher negra) o racismo, fruto das relações desiguais de raça.
Nessa mesma lógica, o Direito Penal não é um aliado da emancipação plena da população negra, decorrente do ordenamento jurídico racializado. Góes (2021GÓES, L. Por uma justiça afrodiaspórica: xangô e as mandingas em busca do reconhecimento da dignidade humana negra. Revista Culturas Jurídicas , v. 8, n. 20, mai./ago. 2021., p. 491) observa que o Direito Penal é:
[...] imprescindível ao controle racial promovendo coerção diante do descumprimento do dever de resignação, fazendo da morte a linguagem do encontro que funda o Brasil (onde o problema nunca foi o racismo, mas o povo negro) [...] o direito de punir se traduz em necessidade de neutralizar o inimigo que não aceita seu “estado natural” de escravizado, de submisso, gerando instrumentos de violência aptos a dissuadir e imprimir a aceitação, servidão e branqueamento.
Assim, compreende-se que no sistema de produção capitalista a emancipação da mulher e da população negra só será parcial, na medida em que a continuidade da exploração de classe está diretamente relacionada à manutenção das opressões de classe, raça e gênero.
Retomando a crítica às teorias legitimadoras da pena, apresenta-se a compreensão oficial do Direito Penal como: “O sistema de normas que define crimes, comina penas e estabelece princípios de sua aplicação” (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012., p. 419). A política penal realizada pelo Direito Penal é legitimada pela teoria da pena, que apresenta suas funções declaradas com os discursos de retribuição do crime e de prevenção geral e especial da criminalidade (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.).
A criminologia crítica realiza uma análise dessas funções declaradas da pena e apresenta suas funções reais no capitalismo. Nesse sentido, a criminologia crítica compreende que a retribuição equivalente da pena “corresponde aos fundamentos materiais e ideológicos das sociedades fundadas na relação capital/trabalho assalariado, porque existe como forma de equivalência jurídica” (Silva, 2012, p. 436).
Já a prevenção especial se desenvolve em dois processos: a prevenção especial negativa de neutralização da pessoa que foi condenada a partir da pena, ao incapacitar para a prática de novos crimes durante a execução penal; e a prevenção especial positiva, de correção/ressocialização da pessoa condenada (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.).
No que tange à prevenção especial negativa, a criminologia crítica aponta as contradições durante a execução penal, como: a retroalimentação de violência na produção de mais reincidência, fruto dos efeitos nocivos da prisão, a formação da autoimagem de criminoso numa desclassificação social e a desintegração social da pessoa condenada com a perda do trabalho, possível quebra de laços familiares e perda de autonomia, somadas à inserção em subculturas (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.).
A função de prevenção especial positiva, por sua vez, remonta à noção do crime como problema individual e à necessidade de tratamento penal. Segundo Baratta (1997BARATTA, A. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 1997., p. 184), a crítica criminológica em torno desse tema identifica a existência da “desculturação”, ou seja: “A desadaptação às condições necessárias para a vida em liberdade [...] a redução do senso de realidade do mundo externo e a formação de uma imagem ilusória deste, o distanciamento progressivo dos valores e dos modelos de comportamento próprio da sociedade externa”.
Nesse sentido, a pena privativa de liberdade aprisiona a pessoa condenada, que aprendeu a viver na prisão, e “retorna para a mesma condição social adversa que determinou a criminalização anterior” (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012., p. 446).
Destarte, a ressocialização (no interior da prevenção especial positiva) é uma grande falácia, haja vista que a prisão apresenta questões estruturais marcadas pelas violações de direitos, constituindo espaço de tortura e sobrepena (violações que extrapolam a pena em si).
Retomando as críticas às funções declaradas da pena, a compreensão da pena como prevenção geral negativa consiste na inibição de futuros crimes pela ameaça penal e na legitimação da retórica do poder punitivo do Estado. Já a pena como prevenção geral positiva consiste na concepção do Direito como subsistema normativo de estabilização do sistema social, na legitimação da eficiência do Direito Penal. Essa retórica de estabilização remonta à natureza conservadora dessa teoria na conservação da realidade presente no Direito (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.).
A criminologia crítica compreende o Direito Penal como desigual: na definição de crimes, na aplicação das penas e na execução penal, apresentando a função de mascarar a relação da criminalidade com a estrutura da desigualdade social no capitalismo, instituída pelo próprio Direito e legitimada pelo poder estatal (Santos, Juarez C., 2012SANTOS, Juarez C. dos. Direito penal: parte geral. 5. ed. Florianópolis: Conceito Editorial, 2012.). Realiza, ainda, uma análise dos objetivos ideológicos aparentes, compostos das teorias legitimadoras da pena (de redução da criminalidade e de ressocialização), e apresenta os objetivos reais, as funções reais da pena (de reprodução das relações capitalistas de produção e da criminalização da classe trabalhadora) (Santos, Juarez C., 2018SANTOS, June C. dos. Criminologia crítica ou feminista. 2018. Dissertação (Mestrado em Direito). - Universidade Federal do Paraná, Paraná, 2018.).
Nesse sentido, quais são os caminhos para se pensar em transformações concretas dessa realidade?
Os/as criminólogos(as) críticos(as) divergem à indagação sobre a superação ou não da punição e, nesse sentido, nem todo/a criminólogo(a) crítico(a) é abolicionista penal. Não obstante, partindo do pressuposto de que a criminologia crítica analisa para além do discurso oficial as teorias legitimadoras da pena, apresentando suas funções reais; compreende o conceito de crime como constructo social; analisa o Direito e o Estado e sua relação com o sistema de produção capitalista; e evidencia as contradições concretas da punição no capitalismo - questões que são estruturais e não conjunturais -, compreende-se que essas contradições só seriam superadas com transformações na base estrutural societária. Portanto, é importante a luta por políticas de desencarceramento, na busca pela diminuição da população carcerária, e transformações na política criminal, compondo a luta por uma sociedade emancipada, sem opressões de classe, raça e gênero, com a superação da lógica punitiva.
2. Criminologia crítica e Serviço Social em debate: convergências e confluências
Buscando evidenciar a possível interlocução entre os princípios éticos do Serviço Social e os fundamentos da criminologia crítica, apresentam-se os elementos consonantes, de maneira a uma aproximação maior da categoria a esses conceitos.
Ressalta-se que Torres (2005TORRES, A. A. Para além da prisão: experiências significativas do Serviço Social na penitenciária feminina da capital/SP (1978-1983). 2005. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2005.) utilizou na análise do sistema prisional paulista criminólogos(as) críticos(as), em seu doutorado denominado: Para além da prisão: experiências significativas do Serviço Social na penitenciária feminina da capital/SP (1978-1983), trazendo essas críticas também em outras produções.
Pereira (2006PEREIRA, T. M. D. O guarda espera um tempo bom: a relação de custódia e o ofício dos inspetores penitenciários. 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.), em sua tese de doutorado intitulada O guarda espera um tempo bom: a relação de custódia e o ofício dos inspetores penitenciários, utiliza também criminólogos/as críticos/as para a análise no sistema prisional do Rio de Janeiro. Em nota técnica para o CFESS - “Problematizando a função da Comissão Técnica de Classificação no contexto do Estado penal” -, reforça a importância do estudo da criminologia crítica pela categoria:
Os autores, que se alinham ao marco teórico da criminologia crítica, nos oferecem [...] ferramentas teóricas acerca da função produtiva do Sistema de Justiça Criminal. Tratam, ainda, da produção ideológica acerca das chamadas “classes perigosas”, do vigor e do foco do aparato repressivo do Estado nos “sobrantes” do mercado, do controle dos meios de comunicação de “inimigos” públicos da vez: os traficantes de baixo poder aquisitivo, os praticantes de assaltos de rua [...] (Pereira, 2012PEREIRA, T. M. D. Nota técnica: problematizando a função da Comissão Técnica de Classificação no contexto do Estado penal. In: SEMINÁRIO NACIONAL: O SERVIÇO SOCIAL NO CAMPO SOCIOJURÍDICO NA PERSPECTIVA DA CONCRETIZAÇÃO DOS DIREITOS, 2., 2012, Brasília. Anais [... ]. Brasília: CFESS, 2012., p. 4).
Em consonância com contribuições dessas autoras, destaca-se a importância do estudo da criminologia crítica no Serviço Social, na medida em que tanto a perspectiva da criminologia crítica quanto o projeto da profissão apresentam direcionamento crítico numa análise relacionada com o capitalismo. Vale observar que nem todo(a) criminólogo(a) crítico(a) é marxista, não obstante há um movimento de construção de uma teoria materialista do crime. Nesse sentido, podem-se encontrar identidades entre a criminologia crítica e o Serviço Social no embasamento teórico numa perspectiva crítica e humanista ao capitalismo.
Esse posicionamento crítico do Serviço Social é respaldado pelo Projeto Ético-Político, com destaque para o Código de Ética Profissional de 1993, que conceitua a ética como “pressuposto teórico-político que remete ao enfrentamento das contradições postas à profissão, a partir de uma visão crítica, e fundamentada teoricamente, das derivações ético-políticas do agir profissional” (CFESS, 2012CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social: Lei n. 8.662/1993. Legislação brasileira para o Serviço Social. Brasília: CFESS, 2012., p. 22). A fundamentação teórica do código está na ontologia social marxiana, compreendendo que:
[...] os valores são determinações da prática social, resultantes da atividade criadora tipificada no processo de trabalho. É mediante o processo de trabalho que o ser social se constitui, se instaura como distinto do ser natural, dispondo de capacidade teleológica, projetiva, consciente; é por esta socialização que ele se põe como ser capaz de liberdade (CFESS, 2012CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social: Lei n. 8.662/1993. Legislação brasileira para o Serviço Social. Brasília: CFESS, 2012., p. 22).
Segundo Barroco (2010aBARROCO, M. L. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010a.), o Código de Ética, ao indicar a centralidade do trabalho na (re)produção da vida social, revela a constituição das ações ético-morais: as capacidades que, por meio da práxis:
[...] objetivam a sociabilidade, a consciência, a liberdade e a universalidade do ser humano-genérico. Em função dessas capacidades objetivas explicitam-se valores éticos fundamentais: liberdade, equidade e justiça social, articulando-os à democracia, à cidadania (Barroco, 2010aBARROCO, M. L. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010a., p. 201).
Destaca-se que a defesa dos valores éticos fundamentais - liberdade, equidade e justiça social - não é concebida pela ideologia liberal. Faz-se a crítica ao conceito de liberdade, igualdade e propriedade como direito natural, no qual a igualdade está no conceito de que todos são iguais perante a lei (Barroco, 2010aBARROCO, M. L. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010a.). Nesse sentido, “a desigualdade social é justificada segundo o princípio de que o nível de riqueza será diferenciado segundo o esforço e as capacidades de cada um” (Barroco, 2010aBARROCO, M. L. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010a., p. 202).
Desse modo, a crítica aos valores liberais é realizada tanto no Serviço Social quanto na criminologia crítica. Esta, conforme supracitado, desmascara a relação desigual sob a forma jurídica do contrato entre iguais, ao mostrar como o direito igual se transforma em direito desigual.
Nessa direção, o valor ético central no Código de 1993 é a liberdade. Para Marx, a liberdade não está na consciência da liberdade nem das escolhas, mas na real existência de alternativas e na materialidade concreta de se fazer escolhas entre elas. Destarte, o conceito de liberdade não está apenas no valor ou num estado perfeito abstrato, mas também numa capacidade historicamente desenvolvida e inseparável de sua objetivação (Barroco, 2010bBARROCO, M. L. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010b., p. 26).
Numa crítica ao conceito de liberdade pelo liberalismo, contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, Marx (1991MARX, K. A questão judaica. São Paulo: Moraes, 1991., p. 42) explicita que:
A liberdade é, portanto, o direito de fazer tudo aquilo que não prejudique os outros [...]. A aplicação prática do direito de liberdade é o direito à propriedade privada. Mas em que consiste este último direito: [...] O direito à propriedade é, pois, o direito de desfrutar de sua fortuna [...] sem se importar com os outros homens e independentemente da sociedade: é o direito do interesse pessoal. É esta liberdade individual e a sua aplicação que constituem a base da sociedade burguesa.
Em contraposição, o conceito de liberdade expresso no primeiro princípio fundamental do Código de Ética está atrelado à autonomia, à emancipação e à plena expansão dos indivíduos sociais. Ressalta-se que, no capitalismo, essa liberdade não será alcançada de forma universal, haja vista que o sistema capitalista é fundado na divisão sociotécnica, sexual e étnico-racial do trabalho, e “na propriedade privada dos meios de produção: bases de reprodução de relações desiguais, de exploração do homem pelo homem e de alienação” (Barroco, 2010bBARROCO, M. L. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2010b., p. 71).
O segundo princípio fundamental é a defesa intransigente dos direitos humanos. Importa observar que os direitos humanos apresentam um caráter histórico vinculado a uma perspectiva liberal. Em consonância às críticas da criminologia crítica, o Serviço Social compreende que o Direito e o Estado surgem para a manutenção dos interesses dominantes, para a garantia da propriedade privada.
Isso aponta para o fundamento ontológico dos DH [direitos humanos] na sociedade capitalista: eles são inseparáveis da propriedade privada dos meios de produção, da exploração do trabalho, da dominação de classe e das formas jurídicas e políticas que sustentam a sociedade burguesa: o direito e o Estado. Os DH são, ao mesmo tempo, o resultado concreto do enfrentamento das diferentes formas de degradação da vida humana em curso por parte das classes, grupos e sujeitos desapropriados das condições sociais de existência, em diversas situações de violação de sua humanidade, por processos de discriminação, opressão, dominação e exploração (Barroco, 2012BARROCO, M. L.; TERRA, S. H. Código de ética do assistente social comentado. Organização: CFESS. São Paulo: Cortez, 2012., p. 64).
A historicidade dos direitos humanos apresenta seus limites no capitalismo, revelando seu caráter contraditório que pode servir à legitimação ideológica da classe dominante e ao ocultamento da degradação humana. Não obstante, o reconhecimento desses limites “não deve levar à sua negação absoluta: entendidos como conquistas dos trabalhadores e grupos sociais discriminados, os DH podem ser tratados como estratégia de resistência” (Barroco, 2012BARROCO, M. L.; TERRA, S. H. Código de ética do assistente social comentado. Organização: CFESS. São Paulo: Cortez, 2012., p. 66), em especial com a agregação dos direitos sociais, econômicos e culturais aos direitos civis e políticos, como conquistas das lutas populares (Barroco, 2009BARROCO, M. L. A historicidade dos direitos humanos. In: FORTI, V.; GUERRA, Y. (org.). Ética e direitos: ensaios críticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009., p. 57-58).
Portanto, é imprescindível a defesa intransigente dos direitos humanos e a afirmação dos princípios éticos que versam sobre a ampliação da cidadania e o posicionamento em favor da equidade e da justiça social. Defesas que necessitam se dar em conjunto com a garantia dos direitos da população carcerária, a efetivação de políticas de desencarceramento e as transformações na política criminal.
Nesse sentido, o(a) assistente social, sobretudo o(a) que atua no sociojurídico, pode mergulhar no estudo da criminologia crítica como um subsídio para o seu trabalho profissional. O conceito de crime como constructo social, a seletividade penal, a crítica às teorias legitimadoras da pena e suas funções reais, e o estudo do Estado e do Direito e sua relação com o capitalismo, constituem arcabouço teórico a ser mais explorado pelo Serviço Social também na formação acadêmica.
O princípio ético da defesa intransigente dos direitos humanos aparece no Código associado à recusa do arbítrio e do autoritarismo. Importante posicionamento, sobretudo diante de um histórico de pensamento do senso comum brasileiro de criminalização da questão social. Iamamoto (2015IAMAMOTO, M. V. Serviço Social em tempo de capital fetiche: capital financeiro, trabalho e questão social. 9. ed. São Paulo: Cortez, 2015., p. 140) retrata essa historicidade, afirmando que:
[...] no pensamento social brasileiro [...], a questão social recebe diferentes [...] denominações: “coletividades anormais”, “sociedade civil incapaz”, “povo amorfo”, sendo o tom predominante a suspeita de que a vítima é culpada, e a pobreza, um “estado de natureza”. Essa tendência de naturalizar a questão social combina-se [...] com o assistencialismo e a repressão, em uma criminalização “científica” da questão social.
Essa influência da criminologia positivista presente no senso comum repercutiu no uso de termos como “classes perigosas”, destinado à população negra e de baixa renda: numa concepção determinista etiológica e racista são os que nascem criminosos ou são propensos a cometerem crimes.
De acordo com Fávero (2013FÁVERO, E. T. O Serviço Social no judiciário: construções e desafios com base na realidade paulista. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 115, jul./set. 2013.), a marca da tradição positivista e doutrinária foi expressiva no início do exercício profissional da/o assistente social no judiciário, sendo possível observar que continua presente em algumas intervenções até hoje, por isso a importância de se posicionar na direção da garantia de direitos, haja vista que não cabe à/ao assistente social ações policialescas e punitivas. O que, muitas vezes, passa pelo saber-poder, expresso em relatórios, laudos e pareceres, em detrimento da investigação rigorosa da realidade social, que desvele “a dimensão histórico-social que constrói as situações concretas atendidas no cotidiano de trabalho” (Fávero, 2013FÁVERO, E. T. O Serviço Social no judiciário: construções e desafios com base na realidade paulista. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 115, jul./set. 2013., p. 532).
Essa crítica pode ser feita também ao exame criminológico no sistema prisional, que constitui uma exigência do/a juiz/a de um estudo sobre a vida cotidiana do/a preso/a na unidade prisional, utilizado para a concessão da progressão de regime da pessoa condenada por um crime. Esse estudo, do qual a/o assistente social participa, deve avaliar se há possibilidade ou não de reincidência criminal. A realização desse exame sustenta conceitos da criminologia positivista, como a periculosidade, e prevê uma ação policialesca do/a profissional. A categoria tem se posicionado contrariamente à sua realização, na medida em que fere os princípios do Código de Ética e do Projeto Ético-Político.
Destarte, tanto a criminologia crítica quanto o Serviço Social apresentam críticas ao positivismo. Nessa direção, a criminologia crítica pode dar subsídios numa crítica à criminologia positivista, que ainda apresenta resquícios no trabalho de determinados/as assistentes sociais.
Dando prosseguimento ao estudo dos princípios fundamentais do Código de Ética, o sexto princípio consiste no “empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente discriminados e à discussão das diferenças” (CFESS, 2012CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social: Lei n. 8.662/1993. Legislação brasileira para o Serviço Social. Brasília: CFESS, 2012., p. 23).
No Serviço Social, ainda são incipientes produções com uma análise de classe, raça e gênero. Não obstante, essa lacuna foi percebida pela categoria, e têm sido realizados esforços de mudança dessa realidade. Gonçalves (2018GONÇALVES, R. Quando a questão racial é o nó da questão social. Katálysis, Florianópolis, v. 21, n. 3, 2018., p. 515) aponta a importância de um enfrentamento maior do Serviço Social ao racismo naturalizado nas práticas cotidianas e apresenta a questão racial como alicerce estrutural do capitalismo, não apenas expressão da questão social:
[...] a questão racial não é apenas expressão da questão social, ela antecedeu e, ao mesmo tempo, sustentou a conformação do antagonismo entre as classes sociais, isto é, foi alicerce da desigual distribuição de riquezas no emergente capitalismo brasileiro. Por fim, indagamos qual a razão do Serviço Social ainda permanecer tímido com relação à abordagem da questão racial e de sua face mais cruel: o racismo naturalizado nas práticas institucionais cotidianas.
No tocante à discussão de gênero, Álvaro (2013ÁLVARO, M. C. Feminismo, luta de classes e consciência militante feminista no Brasil. 2013. Tese (Doutorado em Política Social e Trabalho) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013., p. 22) aponta que as dimensões de classe e gênero são fundamentais para a compreensão do Serviço Social e seu trabalho profissional, haja vista que é constituído majoritariamente por mulheres e desenvolvido também em sua maioria para mulheres:
As discussões, estudos e pesquisas que envolvem essa relação demonstram uma série de demandas e desafios para o seu aprofundamento, desde a necessidade da percepção da importância da luta das mulheres para o processo de renovação do Serviço Social e para o seu público usuário, até o enfrentamento da despolitização dos “estudos de gênero” hegemonizados pela perspectiva pós-moderna. É importante, ainda, destacar que o trabalho profissional, além de desenvolvido hegemonicamente por mulheres, é também desenvolvido majoritariamente para mulheres.
As estruturas de exploração e opressão são constitutivas da estrutura do sistema capitalista, a dominação de classe permanece no transcorrer da história apenas variando seu grau de exploração e opressão. Em consonância com essas críticas, o oitavo princípio fundamental do Código consiste na “opção por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem societária, sem dominação, exploração de classe, etnia e gênero” (CFESS, 2012CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL (CFESS). Código de ética do/a assistente social: Lei n. 8.662/1993. Legislação brasileira para o Serviço Social. Brasília: CFESS, 2012., p. 24).
Essa concepção enfatiza a importância do horizonte da luta por uma sociedade emancipada, na qual a defesa dos direitos humanos não é compreendida como fim. Segundo Abramides (2006ABRAMIDES, M. B. C. O projeto ético-político profissional do Serviço Social brasileiro. 2006. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica, São Paulo, 2006.), essa direção do projeto profissional pressupõe um processo de lutas sociais que possa transformar o quadro de barbárie social em que estamos inseridos, com a necessidade de juntar forças com a classe trabalhadora numa perspectiva anticapitalista, anti-imperialista e socialista.
A luta por uma sociedade emancipada necessita estar imbricada numa luta antipunitivista. Não obstante, ainda é grande o leque de profissionais e estudiosos/as que defendem a punição na resolução dos conflitos. Torres (2007TORRES, A. A. Críticas ao tratamento penitenciário e a falácia da ressocialização. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, v. 7, n. 26, jul./set. 2007., p. 19) ressalta que, aos que defendem a manutenção das prisões na atualidade, “só resta continuar afirmando e desconstruindo a falácia ideológica do tratamento penitenciário. Este continua muito presente na realidade penal e punitiva de nossos dias configurando a onda de prisionização crescente”, nos restando alertar “para os efeitos dissocializadores [...] inerentes à privação da liberdade” (Torres, 2007TORRES, A. A. Críticas ao tratamento penitenciário e a falácia da ressocialização. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre: Notadez, v. 7, n. 26, jul./set. 2007., p. 19).
Considerações finais
Compreender as identidades da criminologia crítica com os princípios éticos é de suma importância para uma aproximação maior do Serviço Social a seus elementos centrais.
A análise das contradições estruturais da punição fornece sustentáculo teórico para uma crítica fundamentada num estudo relacionando as categorias do crime e da pena com o capitalismo. Os fundamentos da criminologia crítica, ao compreender o crime como constructo social, ao entender o Direito Penal como seletivo que reforça a exploração e a dominação capitalista, e a crítica às teorias legitimadoras da pena, somados à busca pela superação da lógica punitiva, podem embasar, sobretudo, o trabalho profissional do/a assistente social nos espaços da área sociojurídica.
O Serviço Social, como um todo, tem um histórico conservador e positivista que ainda repercute na intervenção. Destarte, a aproximação à análise crítica criminológica do sistema penal vislumbra uma atuação crítica, humanista, antipunitivista, antirracista e feminista, em consonância com os princípios éticos do Serviço Social na garantia de direitos da população carcerária contra o aumento de leis punitivas, a favor de políticas de desencarceramento e pela transformação na política criminal. E, como horizonte, a busca por uma sociedade emancipada que necessita estar imbricada na superação da lógica punitiva.
Na atualidade marcada por um governo ultraliberal que reforça a lógica punitiva, o debate antipunitivista necessita ser ampliado. Quanto maior for a compreensão de que a prisão não constitui segurança à sociedade, pelo contrário, retroalimenta a violência e estimula a reincidência, maiores serão as possibilidades de enfrentamento à lógica punitiva.
Esses elementos devem estar no senso comum, no Serviço Social e, sobretudo, na população carcerária, podendo ser viabilizados com formação política, com conteúdo acessível para serem abordados no sistema prisional, sobretudo perante um cotidiano alienante e naturalizador de violência.
É importante ressaltar que, no Brasil, há movimentos de familiares de presos e frentes estaduais e nacionais a favor do desencarceramento, além de existirem pautas antiproibicionistas em movimentos feministas e movimentos negros. Nesse sentido, importa ampliar a discussão, considerando a classe, a raça e o gênero - como elementos estruturantes da lógica capitalista -, tanto na criminologia crítica quanto no Serviço Social, com mudanças radicais teórico-práticas na aproximação a autores(as) que são referências desse debate.
No tocante a políticas de desencarceramento, já há materiais desenvolvidos por institutos e coletivos com propostas de alterações legislativas que podem repercutir na materialidade prisional do país. Essas propostas representam possibilidades contra o encarceramento em massa, não obstante não podem constituir-se como fim. Como nos ensinam Marx (1975MARX, K. Crítica ao programa de Gotha. São Paulo: Edições Sociais, 1975.) e Pachukanis (2017PACHUKANIS, E. B. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Boitempo, 2017.), a transição para uma sociedade socialista não se dará com a construção de novas formas de Direito, mas com a extinção do Estado e do Direito. O que pressupõe a luta por uma nova ordem societária livre da exploração de classe, raça e gênero, numa sociedade na qual os conflitos são enfrentados para além da punição.
Referências
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Dedicamos este artigo à querida Andrea Almeida Torres, que presenteou o Serviço Social com seu legado nos estudos da criminologia crítica e do abolicionismo penal, constituindo referência não só como pesquisadora e profissional, mas também como mulher e amiga que realmente viveu aquilo que acreditava.
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1
O labelling approach, ou etiquetamento social, ou teoria da reação social, é uma abordagem que trouxe análises importantes à criminologia crítica numa crítica ao sistema prisional, sobretudo pela compreensão do efeito estigmatizante das instâncias oficiais, mas sem relacionar com a luta de classes. Em síntese, os conceitos do labelling approach que marcam a criminologia contemporânea são: “a) comportamento criminoso é comportamento rotulado como criminoso; b) o papel da estigmatização penal aparece na produção do status social de criminoso: a relação do desvio primário, que produz mudanças na identidade social do sujeito, com o desvio secundário, definido como efeito do desvio primário; c) a rejeição da função corretiva da pena criminal, que consolida a identidade criminosa e introduz o condenado em carreira desviante etc. Assim, a teoria do labeling approach é a primeira ruptura radical com a criminologia positivista” (Santos, Juarez C., 2021SANTOS, Juarez C. dos. Criminologia: contribuição para crítica da economia da punição. São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2021., p. 171).
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2
“A pesquisa bibliográfica é aquela que se realiza a partir do registro disponível, decorrente de pesquisas anteriores, em documentos impressos, como livros, artigos, teses etc. Utiliza-se de dados ou de categorias teóricas já trabalhados por outros pesquisadores e devidamente registrados” (Severino, 2013SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez, 2013., p. 106).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Fev 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
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Recebido
16 Ago 2022 -
Aceito
22 Set 2022