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Capitalismo dependente e as políticas sociais brasileiras: política de assistência social em questão

Dependent capitalism and Brazilian social policies: social assistance policy under discussion

Resumo:

Este artigo apresenta o debate acerca da política de Assistência Social na contemporaneidade do ponto de vista do padrão das políticas sociais brasileiras, delineado a partir da Teoria Marxista da Dependência. Sinaliza seu caráter estruturalmente restrito e localiza seu ciclo breve de construção, gradualmente inviabilizado após 2016.

Palavras-chave:
Teoria Marxista da Dependência; Fundo Público; Política de Assistência Social

Abstract:

This article presents the debate about the Social Assistance Policy in contemporary times from the perspective of the pattern of Brazilian social policies, delineated from the Marxist Theory of Dependence. It points out its structurally restricted nature and locates its brief construction cycle, which gradually became unfeasible after 2016.

Keywords:
Marxist Theory of Dependency; Public Fund; Social Assistance Policy

1. Introdução

Trazer à luz a Teoria Marxista da Dependência (TMD) faz parte da iniciativa de desvelar e identificar as particularidades sociais, políticas e econômicas que conformam as relações sociais e incidem de forma significativa na dinâmica das políticas sociais na região, na perspectiva de pensar o seu “chão histórico” a partir das especificidades do capitalismo dependente. Parte-se do pressuposto de que as análises construídas a respeito da dependência latino-americana podem fornecer elementos explicativos e analíticos relevantes para a reflexão acerca das políticas sociais no continente e, de modo particularizado na presente oportunidade, da Política de Assistência Social (PAS) brasileira. O artigo aqui introduzido visa debater as peculiaridades da PAS e de seu processo de construção do ponto de vista do padrão das políticas sociais brasileiras, a partir da TMD, de modo que preza pela abordagem qualitativa, consistindo nas reflexões oriundas do levantamento bibliográfico presente na Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social e Política Social da Universidade Estadual de Londrina (UEL) em 2023.

O debate inicia-se a partir de apontamentos acerca das condições que circunscrevem o capitalismo dependente na América Latina. Priorizam-se os elementos que se referem às condições de vida da classe trabalhadora e suas requisições por políticas sociais, além da conformação - e expropriação - do fundo público que ganha contornos peculiares em países periféricos. Desse modo, o perfil dessas políticas, haja vista sua intrínseca relação com o Estado dependente, pode ser delineado enfatizando a experiência brasileira e posteriormente a PAS. Por fim, apresenta-se seu ciclo breve de construção em direção a patamares que a legitimam como política pública e sua progressiva interrupção após 2016.

2. Capitalismo na América Latina da perspectiva da Teoria Marxista da Dependência

Enquanto um dos principais interlocutores da TMD, Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: SADER, E. (org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-166.) buscou a construção de uma teoria que analisasse a dependência latino-americana sem cair nos desvios comumente presentes em tentativas anteriores - resultados de uma dificuldade real em interpretar as peculiaridades da economia latino-americana, por vezes considerada uma deformação, ou um “pré-capitalismo”.

O autor situa o capitalismo dependente em uma relação dialética entre seu subdesenvolvimento e o desenvolvimento dos países de capitalismo central, indicando que essa condição de dependência não é resultado unilateral da dinâmica interna dos países da região, assim, sua estrutura e seu funcionamento não se desenvolvem da mesma maneira que as economias centrais e avançadas. Trata-se de um “capitalismo sui generis” que só pode ser explicado e compreendido à medida que se articula em nível nacional e internacional. Isto posto, localiza no período da independência política da América Latina no século XIX a configuração da dependência latino-americana, diferenciando a situação colonial da situação de dependência, apesar da relação de continuidade entre ambas. Conforme Luce (2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.), as nações latino-americanas emancipadas do colonialismo europeu, nesse momento, passam a se vincular ao mercado mundial assentadas em diferentes fundamentos - na dependência. A sua relação com os países centrais passa a integrar uma estrutura determinada - a divisão internacional do trabalho. Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: SADER, E. (org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-166., p. 109) situa aqui a dependência, entendendo-a enquanto

relação de subordinação entre nações formalmente independentes, em cujo âmbito as relações de produção das nações subordinadas são modificadas ou recriadas para assegurar a reprodução ampliada da dependência. O fruto da dependência só pode assim significar mais dependência e sua liquidação supõe necessariamente a supressão das relações de produção que ela supõe.

Essa configuração engendra leis tendenciais específicas - não desvinculadas das leis gerais do capitalismo, mas que exprimem relações em um nível de complexidade particular e assumem especificidades próprias que as acentuam até o limite e conformam os índices de desigualdade social exorbitantes da América Latina - a transferência de valor como intercâmbio desigual, a superexploração da força de trabalho e a cisão no ciclo do capital. Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: SADER, E. (org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-166.) identifica uma constante e massiva transferência de valor como intercâmbio desigual da periferia para o centro no cerne dessa dinâmica. Ancorado nesse ponto nodal da dialética da dependência, Luce (2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018., p. 51) resgata as expressões dessa transferência entre os países centrais e periféricos:

i) a deterioração dos termos de intercâmbio; ii) o serviço da dívida (remessa de juros); iii) as remessas de lucros, royalties e dividendos; iv) a apropriação de renda diferencial e de renda absoluta de monopólio sobre os recursos naturais. As manifestações fenomênicas recém-referidas abarcam diferentes traços da dependência (comercial, financeira e tecnológica), expressando o intercâmbio desigual de não equivalentes na divisão internacional do trabalho.

Esses diferentes mecanismos de transferência de valor levam as economias dependentes a buscar mecanismos de compensação. Marini (2000MARINI, R. M. Dialética da dependência. In: SADER, E. (org.). Dialética da dependência: uma antologia da obra de Ruy Mauro Marini. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 105-166.) os situa no interior da produção, por meio da superexploração do trabalho, seja por via do aumento de sua intensidade, seja pela prolongação de sua jornada ou a combinação de ambas, em que se remunera o trabalho abaixo de seu valor. Os países dependentes, desfavorecidos nesse processo, objetivam neutralizar a perda de renda oriunda do comércio internacional na superexploração da força de trabalho, e não na correção da assimetria entre os preços e o valor das mercadorias que exportam. Os mecanismos identificados os levam a sustentar que se configura um modo de produção alicerçado na maior exploração do trabalhador e não no desenvolvimento de sua capacidade produtiva. Desse modo, a peculiaridade fundamental assinalada nessa relação de produção é a negação das condições necessárias para a reposição do desgaste da força de trabalho dos trabalhadores, ocasionando seu desgaste prematuro e a impossibilidade de consumir o necessário para conservá-la.

A contradição central identificada - em que a América Latina sustenta a acumulação mediante uma superexploração do trabalhador - tem por base real as conexões que agregam essa economia com as centrais, estando esta primeira de prontidão para atender à circulação capitalista, levando-o a sinalizar que a produção latino-americana não depende da capacidade interna de consumo, portanto, há a separação entre os dois momentos elementares do ciclo do capital1 1 A contradição entre produção e consumo, bem como a contradição entre produção e circulação, inerentes ao capitalismo, são agudizadas na realidade dependente. : a produção e circulação de mercadorias - configurando a cisão no ciclo do capital. Essa dinâmica faz com que a contradição intrínseca à produção capitalista de forma geral - capital × trabalho - se apresente de maneira peculiar, haja vista a circulação ser separada da produção e ocorrer no mercado externo.

Por conseguinte, a tendência é explorar o máximo possível sua força de trabalho sem a necessidade de repor e/ou criar circunstâncias para sua reposição - particularmente diante da histórica existência de mão de obra reserva que data desde a incorporação da região à acumulação mundial, como os indígenas e imigrantes europeus -, aspectos que persistiram durante o ingresso do continente na industrialização, tendo em consideração que esses elementos são sua base fundante. Há na América Latina, estruturalmente, a possibilidade de comprimir livremente o consumo individual da classe trabalhadora e agudizar sua exploração.

Em vista disso, essas leis específicas que regem o capitalismo dependente reiteram de modo estrutural e tendencial: exploração ampliada; frágeis soberanias e democracias restritas - no que se refere às formações estatais desses países -, além da necessidade de transformação da realidade do continente e das condições para que se obtenham contornos particulares.

3. Disputa do fundo público como expressão da dependência latino-americana

Ao analisar o histórico da transferência de valor via serviço da dívida, Luce (2018LUCE, M. S. Teoria Marxista da Dependência: problemas e categorias. Uma visão histórica. São Paulo: Expressão Popular, 2018.) assinala a constância dessa forma de apropriação desde o século XIX, conformando uma tendência presente desde o período da independência política da região. Como um dos mecanismos que mais transferem valor às economias centrais - representando cerca de 50% do total transferido se comparado aos demais -, essa expropriação de riquezas tem rebatimentos deletérios nas economias dependentes e em sua dinâmica interna, dado que resulta na canalização do fundo público para o capital internacional financeirizado de modo desproporcional ao investimento no âmbito das políticas sociais.

Ao direcionar o foco à questão na contemporaneidade, Brettas (2017BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Revista Temporalis, Brasília, v. 17, n. 34, jul./dez. 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/17702 . Acesso em: ago. 2022.
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) sinaliza que a ofensiva neoliberal acentua as relações de dependência, ao passo que as políticas de ajuste fiscal adotadas no período expandem a transferência de valor aos países centrais e os mecanismos de superexploração da força de trabalho. O sistema da dívida ganha novos contornos na medida em que há a necessidade de Estados dependentes provarem ao capital internacional que poderiam arcar com as dívidas públicas adquiridas mesmo em momentos de crise - elementos que negam os clamores liberais por um “Estado mínimo”. Um arcabouço jurídico-político que potencializasse essas transferências via pagamento da dívida foi elaborado a fim de privilegiar esses compromissos em detrimento da destinação de recursos a outros fins - como as políticas sociais.

Haja vista o Estado capitalista concretizar seus projetos e suas políticas via fundo público, sua compreensão possibilita a apreensão das contradições inerentes a esse Estado (Behring, 2021BEHRING, E. R. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021.). Esse empreende funções de relevância na articulação das políticas sociais e em sua relação com a reprodução do capital enquanto elemento estrutural desse sistema, o que, por sua vez, envolve a capacidade de movimentação de recursos que o Estado tem para intervir na economia e nas políticas públicas. Enquanto partícipe na reprodução do capital, sua atuação é proporcionalmente superior ao socorrê-lo em detrimento de sua participação na reprodução da força de trabalho.

Concomitantemente, na atualidade, cada vez mais o fundo público tem sido constituído por trabalho necessário, uma vez que a classe trabalhadora contribui fortemente, de forma direta e indireta, por meio do pagamento de impostos. Infere-se que a política social se localiza em posição mais vulnerável do que outras - como a destinação para pagamento da dívida pública. Essa primeira tem se tornado maior alvo de restrições orçamentárias em um cenário de ajuste fiscal permanente, na medida em que “[...] vai sendo profundamente alterada para ‘caber’ no orçamento público, ao lado dos processos de expropriação para que os trabalhadores aceitem ofertar sua força de trabalho em condições aviltantes” (Behring, 2021BEHRING, E. R. Fundo público, valor e política social. São Paulo: Cortez, 2021., p. 121).

Logo, a análise de políticas sociais exige exame dessa peça, que extrapola sua organização e composição contábil e espelha relações de força e interesses de classe na apropriação de recursos públicos e, sobretudo, na identificação de quem são os sujeitos onerados com o financiamento da máquina estatal.

Em uma realidade em que o fundo público é utilizado para estruturalmente assegurar o processo de reprodução das relações de dependência por meio desse tipo de despesa acima referida, a destinação de recursos suficientes para as políticas sociais é cerceada. É de forma estrutural que os Estados dependentes se munem dessa estratégia para arcar com as demandas do capital, em um ciclo vicioso e contínuo. As condições para que parte do fundo público seja viabilizada para investimento em políticas sociais são duramente afetadas nessas realidades - ainda que as precárias condições de vida de uma classe trabalhadora superexplorada sejam acentuadas, pelo mesmo processo, parcos recursos para investimento em políticas sociais universais e gratuitas são disponibilizados, reiterando as determinações estruturais que conformam o padrão de políticas sociais na América Latina.

4. Estado latino-americano e padrão das políticas sociais

A funcionalidade fulcral das políticas sociais se refere, na literatura, à preservação e ao controle da força de trabalho, seja ocupada, seja excedente, não ignorando sua relevância para o conjunto de conquistas parciais da classe trabalhadora. Aqui, destacam-se os contornos que ela obtém em sociedades cuja força de trabalho é superexplorada, como é o caso da América Latina.

As políticas sociais enquanto síntese das relações sociais desse modo de produção e, portanto, permeadas por determinações históricas, econômicas, políticas e culturais, manifestam-se por formatos distintos na América Latina. O fato de a América Latina se constituir de uma realidade particular e apresentar leis tendenciais específicas, implica analisar que as políticas sociais materializadas em seu interior também terão contornos específicos. A natureza do próprio capitalismo dependente, suas estratégias de acumulação, seu nível de desenvolvimento, o papel do Estado em sua regulamentação e implementação, bem como a função das classes sociais nesse processo, incidem em um padrão distinto dos visualizados nos países centrais.

Essa realidade forja padrões de políticas sociais diversas aos vislumbrados nos países centrais, em que a viabilidade de direitos sociais universais é ainda mais restrita do que no capitalismo central. Entre as características que assumem nessas realidades, destaca-se a noção de que políticas sociais e garantias de direitos sociais seriam “gastos” que precisam ser dissipados. A tendência ao pauperismo vem acompanhada de omissão estatal e políticas insuficientes, focalizadas e pontuais, direcionadas a situações extremas de pobreza. Não somente resultado de restrições orçamentárias - no entanto, também agudizadas frente a esse elemento - ou desarticulação da classe trabalhadora em defesa de seus direitos e interesses, as políticas sociais na América Latina são estruturalmente inviabilizadas pela manutenção da situação de dependência, o que leva Paiva e Ouriques (2006PAIVA, B. A.; OURIQUES, N. D. Uma perspectiva latino-americana para as políticas sociais: quão distante está o horizonte? Revista Katálysis, Florianópolis, v. 9, n. 2, jul./dez. 2006. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/rk/a/GLKVhgxtxXMX7QQWzysmhdK/abstract/?lang=pt . Acesso em: ago. 2022.
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, p. 173) a indicarem que “[...] no Brasil, a lógica das migalhas dá o tom das políticas sociais”.

Sua configuração histórica tem a presença assídua do setor privado e da caridade desde a década de 1930, conformando uma estrutura fragmentada e corporativa que evidencia as contradições intrínsecas à garantia de direitos nesse modo de produção. Sumariamente, até os fins da década de 1980, o cenário geral das políticas sociais no país - no que tange à regulamentação trabalhista; aposentadoria e acesso à saúde, subjugados à Previdência Social - foram ampliados de forma limitada. Por sua vez, a Assistência Social era materializada estritamente vinculada à filantropia, não possuindo status de política (Brettas, 2017BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Revista Temporalis, Brasília, v. 17, n. 34, jul./dez. 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/17702 . Acesso em: ago. 2022.
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). Draibe (1993DRAIBE, S. M. Welfare State no Brasil: características e perspectivas. Caderno, NEPP/UNICAMP, Campinas, n. 8, p. 1-53, 1993. Disponível em: Disponível em: https://www.nepp.unicamp.br/biblioteca/periodicos/issue/view/104/CadPesqNepp8 . Acesso em: abr. 2022.
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) apresenta diferentes princípios de organização e modos de funcionamento construídos entre 1930 e a Constituição Federal de 1988 (CF/88): a centralização, no âmbito federal, do poder de decisão e do controle financeiro; a fragmentação institucional; a subordinação do investimento em políticas sociais a critérios econômicos de rentabilidade privada; e a máxima da privatização de serviços sociais, elementos que desembocam nas caracterizações clientelistas do sistema.

Essas são as marcas gerais que assentam o funcionamento do sistema de proteção social no Brasil, que acumularam “distorções” ao longo do tempo: seu financiamento regressivo e parco com relação à quantidade de impostos arrecadados pelo Estado; sua intervenção pautada na capacidade contributiva dos cidadãos e sua fragilidade redistributiva. Distorções essas que Draibe (1993DRAIBE, S. M. Welfare State no Brasil: características e perspectivas. Caderno, NEPP/UNICAMP, Campinas, n. 8, p. 1-53, 1993. Disponível em: Disponível em: https://www.nepp.unicamp.br/biblioteca/periodicos/issue/view/104/CadPesqNepp8 . Acesso em: abr. 2022.
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, p. 32) atribui ao “caminho conservador de progresso social trilhado pelo capitalismo brasileiro”, cuja transformação da estrutura de empregos não correspondeu a salários suficientes para a manutenção da vida dos trabalhadores, paralelamente ao subemprego. Considera que o “progresso social” no Brasil ocorreu marcado pela pauperização de grande parte da população, para além da desigualdade exacerbada, traços da realidade dependente latino-americana, em que para a majoritária parcela dos cidadãos não há empregos formais e salários correspondentes a suas necessidades mínimas.

A CF/88 se delineia definições institucionais que poderiam oportunizar o desvio do padrão de políticas sociais até então vigentes, ao manifestar as requisições de uma classe trabalhadora organizada que demandava ruptura com o padrão filantrópico. É proposto um diferente desenho de proteção social, expresso especialmente pelo capítulo da Seguridade Social, composto pelo tripé Saúde, Assistência Social e Previdência Social (Brettas, 2017BRETTAS, T. Capitalismo dependente, neoliberalismo e financeirização das políticas sociais no Brasil. Revista Temporalis, Brasília, v. 17, n. 34, jul./dez. 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufes.br/temporalis/article/view/17702 . Acesso em: ago. 2022.
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). Contudo, sua concreta efetivação tinha entraves tanto pela condição de dependência do país quanto pelas prerrogativas neoliberais que ganhavam terreno nesse momento histórico, de modo a sedimentar restrições na intervenção estatal nessa esfera. A análise das políticas sociais no período subsequente implica considerar que os eixos para a consagração de políticas universais e efetivas ainda não tinha sequer sido construído - ainda não havia uma rede de proteção social densa e concreta para ser desmanchada.

De forma simultânea à expansão desse receituário, leis complementares - como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Sistema Único de Saúde (SUS) e a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) - foram sancionadas, de modo que diferentemente dos países centrais que apresentavam rede de proteção social estruturadas, no Brasil essa tentativa de estruturação foi paralela à imposição dos ditames neoliberais. Essas legislações sociais possibilitaram uma incipiente construção de um aparato estatal que permitiu avanços qualitativos no que se refere às políticas sociais.

Ao ponderar sobre a fase inaugurada após a CF/88, Fagnani (2017FAGNANI, E. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Texto para Discussão. Unicamp. Instituto de Economia, Campinas, n. 308, p. 1-20, jun. 2017.) interpreta-a como um ciclo improvável, em que se expandiram espaços públicos e possibilidades de exercício da cidadania na contramão dos impulsos capitalistas em sua fase financeirizada e dos entraves inerentes à história do país. Não obstante a CF/88 tenha aberto fissuras no engessado e restrito sistema de proteção social brasileiro ao assentá-lo nos princípios da universalização, da seguridade social e na perspectiva de direito em contraponto à benesse, esse período coincide com a emergência da hegemonia neoliberal em todo o globo, cuja dinâmica expressa o enfraquecimento da concepção de um Estado Social em defesa do Estado mínimo.

O período em que o Partido dos Trabalhadores (PT) esteve à frente do Governo Federal demonstrou continuidade nas ações já vislumbradas, limitando um sistema de proteção social intrinsecamente frágil. É admissível sinalizar alguns desvios, em que medidas anticíclicas e concessões de crédito foram sustentadas visando crescimento econômico e, por conseguinte, axiomáticos ganhos materiais para a classe trabalhadora, sem, entretanto, evidente ruptura com os postulados neoliberais - e sem significativas alterações dos níveis de concentração de renda. A entrada do país nos anos 2000 e a inauguração dos governos do PT representaram, conforme Behring (2018BEHRING, E. R. Estado no capitalismo: notas para uma leitura crítica do Brasil recente. In: BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I.; LIMA, R. L. (org.). Marxismo, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2018. p. 39-72.), um “segundo momento” do neoliberalismo no país, em que houve deslocamentos possíveis, mas parâmetros de um ajuste fiscal assíduo foram sustentados. A gestão dos governos petistas possibilitou conquistas substanciais para a classe trabalhadora mediante o combate à pobreza dentro da ordem, mas, em contrapartida, incentivou de modo muito mais vultoso as elites nacionais, com ênfase no agronegócio e no capital portador de juros.

Passado esse pequeno intervalo de tímidas conquistas, o que se apura na atualidade são os rebatimentos da crise em nível internacional, desaceleração desse crescimento e, por conseguinte, o recrudescimento das tensões ora mencionadas. Fagnani (2017FAGNANI, E. O fim do breve ciclo da cidadania social no Brasil (1988-2015). Texto para Discussão. Unicamp. Instituto de Economia, Campinas, n. 308, p. 1-20, jun. 2017.) ilustra o período pós-2016 com o fim do ciclo improvável da construção da cidadania social no Brasil, em que a radicalização do projeto neoliberal das últimas décadas é levada ao limite, por meio do endosso às políticas de austeridade fiscal que deterioram as receitas e impulsionam o ajuste fiscal já em curso; dos cortes no investimento em políticas sociais; expressivo aumento do desemprego e queda da renda média do trabalho. Fatores esses utilizados como justificativa para a dissolução do frágil e restrito “Estado Social brasileiro”, via expansão da desvinculação constitucional de recursos destinados às políticas sociais. O período pós-2016 representou o fim do breve ciclo improvável da construção da cidadania no Brasil - cidadania essa que, mesmo incipiente, mostrou-se incompatível com o capitalismo nessa região.

A contrapartida desses processos afiou a luta de classes, desembocando no “terceiro momento do neoliberalismo” no país: o golpe de 2016, que serviu para ajustá-lo às consequências da intensificação da crise capitalista em curso desde 2008. Vislumbra-se a continuidade do ajuste fiscal permanente levado a cabo por meio dos montantes massivos destinados ao capital financeiro, evidenciando a quem efetivamente é permitido desfrutar do fundo público; instabilidade política; retomada intensa dos ditames do Consenso de Washington; exposição dos limites inerentes à gestão petista; e, sobretudo, a ofensiva inexorável sobre a classe trabalhadora (Behring, 2018BEHRING, E. R. Estado no capitalismo: notas para uma leitura crítica do Brasil recente. In: BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I.; LIMA, R. L. (org.). Marxismo, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2018. p. 39-72.).

Nota-se que, não obstante as incipientes garantias materiais à classe trabalhadora vislumbradas nas últimas décadas, o modus operandi da intervenção estatal nessa esfera segue possibilitando o mínimo para sua sobrevivência e reprodução em função das máximas concessões ao capital e suas frações, evidenciando que quem majoritariamente possibilita a composição do fundo público o usufrui em bem menor proporção.

5. Política de assistência social em debate: realidade em países dependentes

Ao analisar o “complexo e desarticulado campo da política social”, Yazbek (1999YAZBEK, M. C. Capítulo I. Políticas Sociais e Assistenciais: estratégias contraditórias de gestão estatal da pobreza das classes subalternas. In: YAZBEK, M. C. Classes subalternas e assistência social. São Paulo: 3. ed. Cortez, 1999. p. 35-49., p. 35) argumenta que, no Brasil, há uma modalidade assistencial de fazer essas políticas. Subordinadas estruturalmente pelas particularidades políticas e econômicas do Estado, elas apresentam manifestações diversas a depender das circunstâncias da acumulação - tendo em vista que a intervenção estatal no âmbito da reprodução da força de trabalho está inscrita nas relações sociais que conformam a ordem capitalista, e de maneiras específicas, nas realidades periféricas e dependentes da economia mundial.

Em vias de finalização do artigo, busca-se sinalizar a dinâmica de funcionamento da PAS no país, que enfrentou ligeiras cessações das características assistencialistas e pontuais historicamente assumidas a partir dos marcos regulatórios pós-SUAS - que não obstante terem possibilitado inegáveis avanços, mesmo que sem efetiva ruptura com suas tradicionais bases já estruturalmente limitadas diante do padrão brasileiro das políticas sociais, são gradativamente inviabilizadas após 2016.

Enquanto nos países centrais a busca pela coesão social e pela ampliação da participação da classe trabalhadora como consumidora no mercado é a incumbência central das políticas sociais, no capitalismo dependente em que o consumo da classe trabalhadora periférica não é o que move essas economias, esse é secundarizado e não é o objetivo fulcral desse modo de intervenção estatal. A assistência social adquire funções sintomáticas em países cuja classe trabalhadora não é essencialmente consumidora e, portanto, em que o capital não tem interesse em sua garantia de consumo: ela assume o papel relevante na manutenção orgânica dessa classe (Diniz, 2020DINIZ, B. R. A condição da Política de Assistência Social no capitalismo dependente. 260 p. Tese (Doutorado em Política Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 2020.).

Ademais, são voltadas para trabalhadores majoritariamente inseridos de maneira informal e precarizada no mundo do trabalho. A observação de que nesses países a classe trabalhadora parcamente tem acesso à proteção social tradicionalmente vinculada à inserção laboral formal direciona a análise para o papel de políticas não contributivas, natureza da PAS.

Não somente a lógica do direito não se apresentava nas relações tradicionalmente clientelistas e assistencialistas da assistência social, como esta foi tardiamente incorporada. A alteração do status dessas iniciativas assistenciais para se tornarem, de fato, política social, acontece somente após a aprovação da CF/88, momento em que a PAS passa a integrar a Seguridade Social brasileira - o que, no entanto, não eliminou completamente as marcas da sua trajetória ou logrou sua completa consolidação.

Sposati (2007SPOSATI, A. Assistência social: de ação individual a direito social. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 10, jul./dez. 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-10/RBDC-10-435-Aldaiza_Sposati.pdf . Acesso em: jan. 2023.
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) analisa que entre os planos institucionais e os planos político, econômico e social, da mesma forma que entre o plano legal e o plano real para a construção da PAS, há distintos lapsos na esfera de sua interpretação, projetos políticos norteadores e sua compreensão enquanto política pública, em que se sobressaem o de continuidade de sua tradição clientelista e conservadora e o de modificação desse status quo para o de política estatal a garantir direitos. A dinâmica desse processo de normatização é complexa: a necessidade de novas responsabilidades sociais e públicas para garantia da PAS por meio de ações que ultrapassassem o mero legado dos benefícios de seguro social não ficou explícita no período, e a perspectiva de proteção social não contributiva e sua consequente garantia e expansão, independentemente de relações formais de trabalho, também não foi propriamente assimilada.

De maneira simultânea a esse movimento, sucedia-se a reorganização das relações capitalistas, a intensificação do processo de reestruturação produtiva e o decorrente aumento expressivo de desigualdades presentes na sociedade brasileira. Assim, a regulamentação da PAS a partir da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) foi a última no interior da Seguridade Social a ser aprovada, somente cinco anos após o advento da CF/88. Houve paradoxos entre os avanços constitucionais do período - em que diversas legislações sociais foram aprovadas, para além da LOAS - que legitimaram, sob a ótica legal, direitos sociais e trouxeram a PAS para a esfera pública versus o alinhamento do Estado aos ditames neoliberais que ensejaram o ajuste fiscal e a consequente redução de destinação orçamentária suficiente para sedimentar as garantias cidadãs alçadas pela CF/88 (Couto; Raichelis; Yazbek, 2017COUTO, B. R.; RAICHELIS, R.; YAZBEK, M. C. A Política Nacional de Assistência Social e o SUAS: apresentando e problematizando fundamentos e conceitos. In: COUTO, B. R. et al. (org.). O Sistema Único de Assistência Social no Brasil: uma realidade em movimento. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2017. p. 61-93.).

Ainda que contraditório, esse processo encontra oposição por parte de grupos alinhados à noção de direito da PAS. A aprovação, em outubro de 2004, da Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que propõe a configuração da política via Sistema Único de Assistência Social (SUAS) sancionado em 2005 expressa essa resistência - movimento que possibilitou maior institucionalização e definição à política, ainda que não tenha se traduzido na consolidação desse direito, sobretudo diante da política econômica dos governos do PT, que mantiveram a expropriação do fundo público em favor do capital internacional.

A PAS passou a se assentar em bases distintas de organização e implementação a partir desse período: o SUAS inaugura uma rede de atenção em todo o território nacional a partir de serviços socioassistenciais e ampliação das transferências monetárias, que, aliados à queda dos índices de desemprego, à expansão de vagas formais de empregos com baixa remuneração e ao aumento do salário mínimo (Behring, 2018BEHRING, E. R. Estado no capitalismo: notas para uma leitura crítica do Brasil recente. In: BEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I.; LIMA, R. L. (org.). Marxismo, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2018. p. 39-72.), traduziram-se em impactos materiais relevantes, sobretudo na realidade da população em situação de pobreza extrema e/ou absoluta, ainda que tenham se sucedido dentro da ordem, e a desigualdade na divisa de riquezas entre capital e trabalho seguido ilesa.

Todavia, o SUAS tornou-se possível. Enquanto ápice do rumo da consolidação da PAS como política pública não contributiva no Brasil, presenciaram-se avanços significativos em sua esfera que rebateram na garantia - ainda que mínima - de condições de sobrevivência à classe trabalhadora brasileira, sobretudo ao considerar o nível de cobertura que a política alcançou. Ainda que não se defenda aqui a capacidade de políticas sociais lograrem a erradicação de desigualdades sociais - sobretudo em uma realidade como a da América Latina, cuja limitação dessas é intrínseca ao seu próprio modus operandi -, é impossível desconsiderar os impactos materiais sobre a população por meio da ampliação do poder de compra e da valorização do salário mínimo; da adesão à políticas transversais de atendimento a populações específicas; dentre outras que reverberaram, a título de exemplo, na saída do Brasil do mapa da fome (Lopes; Rizzotti, 2020LOPES, M. H. C.; RIZZOTTI, M. L. A. Covid-19 e Proteção Social: a contribuição do Sistema Único de Assistência Social - SUAS. In: CASTRO, D.; DAL SENO, D.; POCHMANN, M. Capitalismo e a Covid-19: um debate urgente. São Paulo: [s. d.], 2020. p. 125-139. Disponível em: Disponível em: http://abet-trabalho.org.br/wp-content/uploads/2020/05/LIVRO.CapitalismoxCovid19.pdf . Acesso em: mar. 2023.
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).

Paralelamente ao esforço em destacar esses impactos, é primordial que sua análise não seja acrítica e desconsidere sua expansão precarizada, circunscrita às transferências monetárias e compensatórias (Sitcovsky, 2009SITCOVSKY, M. Particularidades da expansão da assistência social no Brasil. In: MOTA, A. E. (org.). O mito da assistência social: ensaios sobre Estado, política e sociedade. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009, p. 147-179.). Salienta-se a sua primazia em desfavor ao impulso aos serviços socioassistenciais; seu financiamento severamente regressivo, o que inviabilizou sequer ligeira distribuição de renda, e sua ampliação refilantropizada, em que se estimulou a expansão de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e demais instituições do chamado “terceiro setor” sob a lógica de transferência de responsabilidades estatais à sociedade civil.

O que se vislumbra após 2016 é a gradativa diluição desse sistema que estava em construção, a partir do redirecionamento das bases em que ora se buscava assentá-lo. Seu “trânsito político-social, técnico-científico e jurídico” (Sposati, 2007SPOSATI, A. Assistência social: de ação individual a direito social. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 10, jul./dez. 2007. Disponível em: Disponível em: http://www.esdc.com.br/RBDC/RBDC-10/RBDC-10-435-Aldaiza_Sposati.pdf . Acesso em: jan. 2023.
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, p. 442) em busca da reversão de seu tradicional paradigma político é desacelerado.

Ainda que de modo restrito, distante do plano legal e com maior ênfase às transferências monetárias em seu detrimento, são manifestos os avanços angariados e a disputa entre paradigmas que foram possíveis no período e que caminharam para a construção do SUAS. Esse processo de consolidação do sistema é, segundo Araújo, Araújo e Carneiro (2019ARAÚJO, C. C.; ARAÚJO, M. S. S; CARNEIRO, A. M. F. Política de Assistência Social no período 1988-2018: construção e desmonte. SER Social, Brasília, v. 21, n. 44, jan./jun. 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/23479 . Acesso em: jan. 2023.
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), processualmente inviabilizado após 2016 em virtude do golpe institucional, que teve como uma de suas expressões mais alarmantes a ofensiva contrarreformista materializada por meio de inexoráveis contenções orçamentárias que aceleraram o desmonte do frágil Sistema de Proteção Social brasileiro.

As bases de sustentação do SUAS foram ameaçadas e pendem ao retorno aos antigos moldes da PAS, via “diluição” das conquistas logradas e resgate da noção de desproteção, insegurança e de ações espontâneas e fragmentadas ora vigentes. Repercutem a má gestão do sistema e seu desfinanciamento, simultâneos à reprodução de marcas de sua trajetória que não foram inteiramente superadas, além da perspectiva cruel de que há de se fazer o mínimo com um mínimo, em que critérios de acesso são endurecidos e diferentes limitações são impostas na procura por reduzir o contingente de usuários de benefícios e serviços, conformando ameaças notórias à - já muito frágil - democracia brasileira e aos pactos civilizatórios e sociais firmados a partir da CF/88, sobretudo os que afirmam a PAS enquanto política (Araújo; Araújo; Carneiro, 2019ARAÚJO, C. C.; ARAÚJO, M. S. S; CARNEIRO, A. M. F. Política de Assistência Social no período 1988-2018: construção e desmonte. SER Social, Brasília, v. 21, n. 44, jan./jun. 2019. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/23479 . Acesso em: jan. 2023.
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).

A pandemia escancarou essa descontinuidade das breves conquistas logradas e a disputa pelo fundo públicoSALVADOR, E. S. O desmonte do financiamento da seguridade social em contexto de ajuste fiscal. Serviço Social & Sociedade , São Paulo, n. 130, p. 426- 46, set./dez. 2017. ganha contornos centrais perante o menosprezo dispensado pelo Governo Federal aos efeitos da covid-19 (Salvador, 2020SALVADOR, E. S. Disputa do fundo público em tempos de pandemia no Brasil. Textos & Contextos, Porto Alegre, v. 19, n. 2, p. 1-15, jul./dez. 2020. Disponível em: Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/39326 . Acesso em: mar. 2023.
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). Recursos insuficientes foram destinados para as restritas medidas tomadas - como é ilustre o Auxílio Emergencial - e simultaneamente revelam-se as prioridades no manejo do orçamento público no país: ainda durante os primeiros casos de contágio, o Banco Central aprovou medidas que destinaram em média 1,2 trilhão de reais para o capital financeiro e que reverberaram no lucro de 24,3 bilhões de reais aos maiores brancos do país. O pagamento de juros, encargos e amortização da dívida também foi levado adiante sem interrupções no período: traduziu-se em 26,85% do orçamento de 2020, de modo que a destinação do fundo público ao capital totaliza um montante 40,22% superior ao que foi repassado para ações de enfrentamento à pandemia.

O desfinanciamento contínuo da PAS desde 2016 e acentuado em período pandêmico acarretou na restrição - e, por vezes, eliminação - das condições adequadas para o funcionamento do SUAS. Em suma, as tendências para a política nesse período são a de expansão do assistencialismo direcionado ao pauperismo completo, executado via ações pontuais e esporádicas, em contraposição à sua perspectiva de direito.

O breve ciclo da cidadania aparenta coerência se analisada a PAS no Brasil: historicamente a política tem sido materializada e interpretada sob perspectivas assistencialistas e filantrópicas, aspectos que são potencializados em um país cuja cultura política é alicerçada em bases clientelistas. Não de modo espontâneo, isolado da realidade e livre de pressões, a PAS ganha novos contornos a partir da CF/88, e seu avanço normativo, jurídico e ideológico nos anos 2000 é inegável em distintas esferas. Todavia, verifica-se facilidade na interrupção desse processo de construção pós-2016, o que inclusive permite questionar se, de fato, ela tornou-se política de Estado, ou se tratou-se de política característica de determinado governo - se o alcance de novos patamares orçamentários, no âmbito dos recursos humanos, gestão e concepção, foram específicos de determinado momento histórico; e se esses diferem do padrão de políticas sociais forjado em realidades de capitalismo dependente.

6. Considerações finais

Ao partir da TMD para buscar delinear um padrão de funcionamento das políticas sociais na América Latina, e com maior ênfase no Brasil, verifica-se que a dinâmica própria do capitalismo dependente incide massivamente na expropriação de fundo público e, por consequência, rebate estruturalmente no investimento dessas políticas. Somadas ao fato de que a classe trabalhadora do país é vítima de superexploração da força de trabalho, além de ser submetida a um mercado precarizado e informal de trabalho que não viabiliza sua subsistência diante de salários rebaixados, permitem concluir que em uma região cujas políticas sociais são historicamente precárias, seletivas e subfinanciadas, simultaneamente sua população tem condições de sobrevivência aquém de suas necessidades. Processos interligados regem essa realidade: a expropriação do fundo público é intensificada, de modo a suavizar as transferências de valor operadas, e a classe trabalhadora superexplorada se depara com restritas possibilidades de acessar determinadas garantias via políticas sociais - parcas diante do comprometimento do orçamento público para interesses das classes dominantes nacionais e internacionais.

Ao centrar a análise na PAS, constata-se que até os dias atuais perseveram lacunas entre seu plano legal e seu plano real, ainda que avanços tenham sido possíveis. Não se desconsideram aqui os ganhos materiais que esses representaram para a população usuária, entretanto, verifica-se que esse seu ciclo breve de construção e as tentativas de alteração de seus paradigmas tradicionais para o de uma política pública de direito, possível a partir das normativas propostas nos anos 2000, perdem força e legitimidade pós-2016, momento em que se nota a facilidade com que se interrompeu seu processo de construção e a levaram gradativamente para patamares anteriores à CF/88.

Referências

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  • 1
    A contradição entre produção e consumo, bem como a contradição entre produção e circulação, inerentes ao capitalismo, são agudizadas na realidade dependente.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2023
  • Aceito
    25 Out 2023
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