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Para Maurício Tragtenberg

Editorial

A diretoria do CEDES e o Comitê de Redação da Revista Educação & Sociedade prestam neste número, por intermédio do texto escrito por Evaldo Vieira, a sua homenagem ao Professor Maurício Tragtenberg, que faleceu em São Paulo, em 17 de novembro de 1998.

Lamentamos a perda irreparável do mestre, amigo e colaborador, com o qual convivemos por mais de 20 anos.

É importante lembrar, embora seja este um fato de todos conhecido, a sua presença na fundação do CEDES e no lançamento da Revista Educação & Sociedade.

Esteve ele, também, presente nos diferentes momentos da trajetória desta revista, de cujo Conselho Editorial era membro.

Com o texto de Evaldo Vieira homenageamos Maurício Tragtenberg, deixando aqui registrado o nosso reconhecimento sobre a importância de seu trabalho intelectual, que foi muito significativo no processo de nossa formação.

A melhor forma de prosseguirmos com esta homenagem a Maurício Tragtenberg será incentivarmos a análise e a avaliação crítica de sua obra, que abrange diferentes domínios do conhecimento.

No estudo de sua trajetória intelectual e pessoal, certamente nos lembraremos com saudades de sua presença humana íntegra, de sua generosidade ímpar e, conforme escreve sobre ele Evaldo Vieira, do fato de que foi ele um intelectual que, "além do exercício admirável da inteligência", "viveu a honradez com inteligência".

Para Maurício Tragtenberg * * Texto lido no "Ato Público in memoriam do professor Maurício Tragtenberg", realizado no Instituto Cultural Israelita e na Universidade Popular Livre, no dia 17 de dezembro de 1998, 30 dias após seu falecimento, em São Paulo - SP. Evaldo Vieira

Apresento meus agradecimentos pela lembrança de meu nome na homenagem ao querido amigo Maurício, falecido em 17 de novembro de 1998, com quem muito aprendi em todos os sentidos. Acredito mesmo que foi uma dádiva conhecê-lo.

Cumprimento afetuosamente a família do Maurício e digo-lhes que continuamos juntos. Saúdo seus amigos, para dizer que nós recebemos a oferenda de conviver com ele por todos esses anos, porque ele é daqueles que não passam. Giosue Carducci, em versos, diz: "Olhai as flores que também elas passam, olhai as estrelas que não passam nunca". Maurício representa uma dessas estrelas que não passam e vou lhes mostrar o motivo.

Lembro-me principalmente dos dias e das noites terríveis e solitárias de dezembro de 1968, há 30 anos: em meio a dificuldades de variada natureza, comecei a vislumbrar alguns dos elementos fundamentais na interpretação da vida humana: a lucidez, o conhecimento, a reflexão e os cuidados com os malefícios do poder. Esses elementos estão claramente expressos na existência de Maurício Tragtenberg e acham-se sintetizados em duas epígrafes por ele utilizadas, com destaque em seu primeiro e segundo livros: de Baruch Espinosa: "Ante os fatos nem rir, nem chorar, mas compreender"; de Walter Benjamin: "Só não há poder sobre os mortos".

O perene exercício da inteligência e o gosto pela leitura e pela pesquisa, com retidão, esmero e sinceridade, tornaram por vezes insuportável a sua presença em umas poucas instituições, embora o tenham singularizado em outras tantas, melhores e mais úteis à sociedade brasileira.

Principalmente a partir de 1968, as conversas prolongadas em longas viagens para dar aulas, as suas conferências, as suas palestras e suas outras atividades intelectuais levaram-me a descobrir o verdadeiro método de ensinar praticado por Maurício Tragtenberg.

Em poucas palavras, Maurício ensinava a ensinar, ensinava a ler, ensinava a pensar e ensinava a selecionar obras importantes e obras desimportantes e desnecessárias. Dava pouca ênfase na transmissão de informações e de conteúdos; dava muita ênfase na interpretação crítica e, sobretudo, na indicação das obras primordiais, mais imprescindíveis, conforme o interesse de cada um, independente do campo de estudo. Não existia área de conhecimento em que ele não trouxesse contribuição segura, válida, atual, referente a qualquer época. Tal abrangência relativa a obras, a artigos, a edições raras ou não, em diferentes línguas, vem confirmada nos escritos, especialmente nos livros.

Suas exposições revelavam sua pessoa, durante as aulas, as conferências, os debates ou as rápidas trocas de idéias: continham humor, erudição, clareza e simplicidade. Maurício falava para qualquer público, alheio aos rituais, aos encômios e à pompa. Visava, acima de tudo, manter conversação com qualquer pessoa bem intencionada, desde o porteiro do Tribunal até os fundamentalistas de todo gênero, mas previa os destinos da arrogância intelectual, do dogmatismo, dos assessores do poder e de seus senhores.

A docência no ensino secundário e no ensino superior, por décadas, significou para Maurício Tragtenberg um lugar de trabalho e de estudo, mas não significou seu único lugar, talvez não tenha sido sequer o principal lugar de ação intelectual. Falou em muitos recintos deste país, tendo apenas como recompensa a convicção ética e política de mudá-lo, tirando-o do domínio das oligarquias, das tecnoburocracias e dos salvacionistas. Maurício Tragtenberg não cultivou discípulos, mas dividiu seus conhecimentos com outras pessoas; não se ligou a grupos de qualquer tipo, mas manteve sua opção política de vanguarda; não se sujeitou aos esquemas e aos modismos acadêmicos, mas procurou expor suas análises com originalidade; não se preocupou em conceder entrevistas capazes de arrumar sua vida e sua trajetória política e intelectual, o que não é comum nos dias que correm.

A obra de Maurício Tragtenberg precisa ser reunida e organizada: aí está um desafio para seus leitores. Conheço muitos de seus ensaios publicados em revistas e jornais, dos quais destaco um sobre Max Weber. Antonio Cândido cita, no prefácio do primeiro livro de Maurício Tragtenberg, o ensaio denominado "A importância da literatura para o homem de sua cultura universitária, qualquer que seja a sua especialização". Segundo pude verificar quando revisei os originais da tese de doutorado, o estilo de Maurício aparece propriamente em seu segundo livro, Burocracia e ideologia, ao abandonar aos poucos uma sintaxe baseada em declinações, substituindo-a pela sintaxe portuguesa unida ao tom coloquial.

Para ficar unicamente nos livros que chegaram a mim, apesar dos desamores do autor por seu primeiro livro (Planificação: Desafio do século XX. São Paulo: Senzala, 1967), contra minha opinião manifestada muitas vezes a ele, afirmo com segurança que muitos dos capítulos ("A formação do espírito burguês na França"; "O espírito puritano"; "Concentração da produção" e "A rebelião de Crondstad"), a que acrescento a bibliografia consultada, constituem um tributo ao conhecimento dessas questões no Brasil, estando assim bem vivos.

Em geral, seu segundo livro (Burocracia e ideologia. São Paulo: Ática, 1974, com diversas edições) é mais conhecido e mais lido: coloca-se, no meu entender, como obra definitiva sobre o assunto, merecedora de tradução para outras línguas, pois não conheço outro escrito ao menos similar em análise, em erudição e em criatividade. Embora o texto componha uma totalidade, realço a segunda parte ("A crise da consciência liberal alemã"; "Max Weber"; "Burocracia: Da mediação à dominação").

Quanto a seu terceiro livro (Administração, poder e ideologia, publicado pela Editora Moraes, de São Paulo, em 1980), chamo a atenção para a fineza do exame da "ideologia administrativa", da "co-gestão", do "participacionismo", além do testemunho histórico de uma época.

Maurício Tragtenberg não se empenhava na divulgação de sua obra. Ela deve ser reunida, tanto os livros e os ensaios em revistas especializadas quanto os artigos e as entrevistas em jornais e outras publicações. Será, com certeza, uma tarefa de várias pessoas, porque Maurício também pesquisou profundamente este país, sendo um especialista em história política, econômica e cultural do Brasil.

Não existe exagero em dizer que foi o intelectual mais completo que conheci nesta segunda metade do século XX. Costumam dizer que há intelectuais que são admiráveis no exercício de sua inteligência. No caso de Maurício Tragtenberg, além do exercício admirável da inteligência, digo ainda que ele viveu a honradez com inteligência.

  • *
    Texto lido no "Ato Público
    in memoriam do professor Maurício Tragtenberg", realizado no Instituto Cultural Israelita e na Universidade Popular Livre, no dia 17 de dezembro de 1998, 30 dias após seu falecimento, em São Paulo - SP.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Maio 2000
    • Data do Fascículo
      Abr 1999
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