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APRESENTAÇÃO

PRESENTATION

PRESENTACIÓN

A universidade passa na atualidade por grandes e profundas transformações, incorporando novas funções e complexos desafios. Além de seu papel clássico de investigação (pesquisa) e socialização (ensino) do conhecimento, ela também se torna prestadora de serviços, é instada a incrementar a inovação e a ser fonte de transferência do saber tecnológico. Vê-se forçada a manter-se e a situar-se em face das profundas transformações trazidas pela era da revolução digital e pela hegemonia da visão de mundo neoliberal.

Essas transformações, por um lado, envolvem uma enorme expansão das tecnologias, a ampliação da economia imaterial, bem como o avanço da conectividade global. Por outro, resultam em uma profunda mudança nas próprias instituições, na morfologia do trabalho, no enfraquecimento da democracia e na função pública e cultural da educação. Tais transformações pressionaram a universidade de modo que no seu interior, nas últimas décadas, coincidindo com o avanço do capitalismo neoliberal, o conhecimento crítico-formativo foi progressivamente cedendo lugar para o saber técnico gerenciado (DALBOSCO, 2023DALBOSCO, C. A. A universidade na disputa entre saber gerenciado e conhecimento formativo. Revista de Educação Unisinos, v. 27, p. 1-19, 2023. https://doi.org/10.4013/edu.2023.271.12
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).

A universidade foi deixando de ser, em grande medida, o lugar clássico da produção e socialização do conhecimento, o “centro de saber” – baseado no laço estreito entre ensino e pesquisa e voltado para questões ético-político-sociais –, para adaptar-se às demandas de uma sociedade cada vez mais estruturada de acordo com a lógica da sociedade de mercado. Dessa maneira, tende a descaracterizar-se como campo de disputa e de lutas orientadas pela pluralidade de suas vozes, para ser dirigida pelo saber gerenciado, de perfil autoritário, padronizador e excludente. O reducionismo da linguagem que a cerca é bem expresso pela referência a modelos de universidade que se atribuem uma “terceira missão”, vinculada às do ensino e da pesquisa, em vez de uma “função social”. De modo mais efetivo, essa linguagem genérica tende a deslocar o clássico âmbito da extensão para a relação da universidade com o denominado setor produtivo. É o caso das abordagens acerca da “universidade empreendedora” (GIMENEZ, 2017GIMENEZ, A. M. N. As multifaces da relação universidade-sociedade e a construção do conceito de terceira missão. 2017. 329fs. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017., p. 81), guiadas pela lógica do inovacionismo.

Nesse contexto, a universidade tende a assumir cada vez mais um modelo mercadológico-empresarial, sendo fortemente pressionada a transformar-se em unidade de negócios, voltada a parcerias com governos e empresas, visando quase que exclusivamente ao lucro. Um rápido olhar para a rede de educação superior brasileira, com base no censo de 2020, mostra que 87,6% (2.153) das instituições de educação superior do país são privadas. Além disso, se a maioria das universidades é pública (55,2%), nas instituições privadas predominam as faculdades (81,4%) (BRASIL, 2022BRASIL. Censo da educação superior 2020: notas estatísticas. Brasil: Inep/Ministério da Educação, 2022. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/notas_estatisticas_censo_da_educacao_superior_2020.pdf. Acesso em: 4 abr. 2023.
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). Outro aspecto importante, a título de exemplo, concerne ao ensino a distância e mostra o avanço desse modelo, pressionando as próprias instituições públicas estatais e não estatais. O censo indica que entre 2010 e 2020 as matrículas de cursos de graduação a distância aumentaram 233,9%, enquanto no mesmo período o crescimento foi de apenas 2,3% na modalidade presencial. Como observou Giolo (2018)GIOLO, J. Educação a distância no Brasil: a expansão vertiginosa. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 34, n. 1, p. 73-97, jan./abr. 2018. https://doi.org/10.21573/vol34n12018.82465
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a respeito dessa expansão vertiginosa do ensino a distância, o Estado brasileiro não teve a capacidade de orientá-la com um “mínimo de controle e direcionamento, deixando que se construísse por obra de iniciativas particulares” (GIOLO, 2018GIOLO, J. Educação a distância no Brasil: a expansão vertiginosa. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 34, n. 1, p. 73-97, jan./abr. 2018. https://doi.org/10.21573/vol34n12018.82465
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, p. 94).

Esse processo reflete um fenômeno mais amplo, o da mercantilização crescente da educação, assim como ocorre com a vida social e cultural contemporânea. Sob a égide da teoria do capital humano, as instituições universitárias tendem cada vez mais a se orientarem à profissionalização baseada em uma visão estreita de aprendizagem e de relação com o saber acadêmico, concebendo-o predominantemente com base nas competências necessárias ao preparo de um tipo de profissional polivalente e flexível, facilmente adaptável às constantes mudanças laborais e às novas morfologias do trabalho.

Com efeito, nesse cenário, a ênfase é deslocada do ensino (como formação) e do espírito investigativo e solidário para a aprendizagem orientada pela linguagem das competências e habilidades, enfraquecendo a linguagem e a natureza da própria educação e, desse modo, debilitando também a ideia de uma formação humana integral. Na medida em que o ensino tende a ser cada vez mais instrumentalizado e voltado para atender aos resultados de avaliações padronizadas de larga escala e por testagem, perde sua dimensão formativa, dinâmica e processual. Somado a esse aspecto, tem-se a separação entre formação técnica e formação geral, assim como o predomínio de uma questionável concepção de qualidade da educação, quando esta passa a ser parametrizada cada vez mais por critérios estranhos e irredutíveis ao campo educacional. Igualmente, a pesquisa tende a pautar-se pela lógica imediatista e produtivista de mercado, bem como pela ditadura do inovacionismo, e a extensão, a converter-se em prestação de serviços e venda de produtos e insumos acadêmicos.

Logo, não deixa de ser preocupante a progressiva destituição da “linguagem da educação” em prol de uma “linguagem da aprendizagem”, no sentido mais estreito possível do termo. Essa linguagem tende aos poucos a impregnar todos os âmbitos educacionais na atualidade, e, como afirma Biesta (2013)BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Tradução: Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., a ela se colocam duas objeções:

  • Tal linguagem facilita uma “compreensão econômica” ou economicista da educação mediante a falsa premissa de que quem aprende supostamente sabe o que deseja e que o provedor se reduz a “satisfazer as necessidades do aprendente” (Biesta, 2013BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Tradução: Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 43, grifo do original);

  • A linguagem da aprendizagem dificulta substancialmente a proposição de questões que concirnam ao conteúdo e ao objetivo da educação afora aquelas formuladas em termos do que “o cliente” ou o “mercado deseja” (Biesta, 2013BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Tradução: Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica, 2013., p. 43).

Não basta apenas desvelar essa nova linguagem da aprendizagem, mas também se requer, como sugere o autor, “reinventar” uma linguagem para a educação, sobretudo, aqui, a de nível superior, no cenário em que nos encontramos na atualidade. O reinventar pressupõe também dialogar com propostas clássicas da educação, buscando reatualizá-las no confronto com o momento presente (DALBOSCO; MÜHL; FLICKINGER, 2019DALBOSCO, C. A.; MÜHL, E. H.; FLICKINGER, H.-G. (org.). Formação humana (Bildung): despedida ou renascimento? São Paulo: Cortez, 2019.).

A “nova linguagem” da aprendizagem encontra um equivalente no discurso da educação baseada em evidências. O argumento dos defensores de tal discurso é o de que somente por meio de “estudos experimentais em larga escala” e pela “mensuração cuidadosa da correlação entre input e out put” (Biesta, 2012BIESTA, G. Boa educação na era da mensuração. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 147, p. 808-825, 2012. https://doi.org/10.1590/S0100-15742012000300009
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, p. 811) seria possível obter-se um avanço bem-sucedido na educação, a exemplo do que já teria ocorrido em esferas como a medicina, a agricultura, a tecnologia etc. Biesta (2007)BIESTA, G. Why “what works” wont’t work: evidence-based practice and the democratic deficit in educational research. Educational Theory, v. 57, n. 1, p. 1-22, 2007. https://doi.org/10.1111/j.1741-5446.2006.00241.x
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aponta que o modelo da educação baseado em evidências prejudica o entendimento do papel da pesquisa no campo educacional, na medida em que não apenas restringe o escopo da tomada de decisão a questões sobre eficácia e eficiência, como também as oportunidades de participação na tomada de decisões educacionais.

No âmbito da universidade, esse modelo parece se configurar muito mais como “uma maneira de burlar o problema do financiamento da educação, da formação crítica do professorado e da melhoria das condições de vida das populações, com a justificativa retórica da mistificação do culto a ‘evidências científicas’” (DEVECHI; TREVISAN; CENCI, 2022DEVECHI, C. P. V.; TREVISAN, A. L.; CENCI, A. V. A abordagem da educação baseada em evidências científicas na formação de professores: recuo da prática. Revista Brasileira de Educação, v. 27, e270106, 2022. https://doi.org/10.1590/S1413-24782022270106
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, p. 19). As “evidências científicas” são apresentadas na forma de um discurso neutro, mas, de fato, completam os autores, elas se aliam “a projetos privatistas, gerencialistas e tecnocráticos”, e sua abordagem “coloca-se como forma de fazer o gerenciamento da educação e a fiscalização do desempenho dos professores em favor da agenda econômica” (DEVECHI; TREVISAN; CENCI, 2022DEVECHI, C. P. V.; TREVISAN, A. L.; CENCI, A. V. A abordagem da educação baseada em evidências científicas na formação de professores: recuo da prática. Revista Brasileira de Educação, v. 27, e270106, 2022. https://doi.org/10.1590/S1413-24782022270106
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, p. 19).

Esse modelo articula-se estreitamente com as premissas da teoria do capital humano. Esta volta-se à educação ao ocupar-se com a maneira como a educação formal, enquanto investimento, impulsiona a produtividade e a eficiência dos trabalhadores. O capital humano constitui o investimento feito para aumentar a produtividade econômica pessoal e implica tanto um conjunto de aptidões e competências quanto uma renda, decorrente de um investimento de capital.

A tendência inerente a essa lógica é a desvalorização da universidade com a introdução da racionalidade mercadológica no âmbito educativo. Os objetivos clássicos de justiça social, da emancipação política e da expansão pessoal são substituídos pela lógica da eficácia produtiva e da inserção profissional, e os valores da educação e da ciência são reduzidos ao econômico. O sistema universitário, colocado à serviço da competitividade econômica, traduz-se como educação para a renda pessoal e para o lucro das empresas, sustentado em um modelo de desenvolvimento focado exclusivamente no incremento do produto interno bruto das nações (NUSSBAUM, 2010NUSSBAUM, M. Not for profit: why democracy needs the humanities. Princeton: Princeton University Press, 2010.). Em síntese, como alguns ensaios deste dossiê procuram argumentar, a economicização (financeirização) reduz a educação à linguagem da aprendizagem, fazendo desaparecer com isso a ideia crítica de formação humana, indispensável à cidadania global e democrática.

Com efeito, grosso modo, a visão neoliberal considera a educação como um bem essencialmente privado, acessado individualmente e reduzido a seu valor econômico. Com ela, passa a haver uma mudança fundamental. A lógica privada atinge tanto o sentido do saber – afetando as instituições transmissoras de valores e conhecimentos – quanto as relações sociais. Desse modo, não é mais a sociedade que deve garantir a todos os seus membros os direitos à cultura e à educação superior, mas são os próprios indivíduos imbuídos da ideologia do empreendedorismo que devem buscá-los individualmente na forma de capital humano. Uma das consequências decorrentes dessa compreensão é que a universidade cede cada vez mais lugar de seu papel educador-formativo para o de treinamento de certas competências e habilidades dirigidas à preparação técnica do profissional para atuar no mercado de trabalho.

A universidade delineada pelas políticas neoliberais é caracterizada pela submissão aos imperativos econômicos e pela dependência da lógica própria ao mercado. Nessas circunstâncias e sob a lógica do capital humano, o saber acadêmico tende a reduzir-se instrumentalmente a um mero meio para obter-se êxito profissional pessoal e social, ou seja, a capital individual para aumentar a renda futura e adaptar-se à sociabilidade de mercado.

Com efeito, nesse cenário, a ênfase é deslocada do ensino (como formação) e do espírito investigativo para a aprendizagem orientada pela linguagem das competências e habilidades, enfraquecendo a linguagem e a natureza da própria educação e, desse modo, debilitando também a ideia de formação humana integral. No limite, a absolutização da avaliação no discurso, nas políticas e nas práticas educacionais gera uma espécie de “miragem” que, quando tomada como chave universal de produtividade, “leva a avaliar escolas, universidades, sistemas educacionais a partir de operações que utilizam critérios que não foram objeto de debate e cuja pertinência é, por vezes, contestável” (CHARLOT, 2020CHARLOT, B. Educação ou bárbarie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020., p. 75).

A universidade passa a ser gerida conforme os moldes empresariais, o que acentua a introdução de mecanismos de mercado no gerenciamento, mecanismos por vezes estranhos à sua natureza formativa e completamente incongruentes com ela. De forma bastante lógica, resulta daí que as demais capacidades humanas, como as relacionadas às dimensões éticas, políticas, afetivas e estéticas, tendem a ser enfraquecidas ou simplesmente ignoradas, perdendo a razão de ser por sua aparente “inutilidade”.

Vale aqui, em relação à universidade, a mesma consideração que Christian Laval (2004)LAVAL, C. A escola não é uma empresa. Londrina: Planta, 2004. faz no que se refere à escola ao argumentar que a lógica mercantil nega o princípio da finalidade pública da educação. Isso ocorre na medida em que dificulta “a apropriação por todos de formas simbólicas e de conhecimentos necessários ao julgamento e ao raciocínio e que promete, no seu lugar, aprendizados dóceis às empresas e voltados para a satisfação do interesse privado” (LAVAL, 2004LAVAL, C. A escola não é uma empresa. Londrina: Planta, 2004., p. XXI). Essa lógica subtrai a ideia da educação superior como direito e a própria necessidade de se criar condições a todos ao acesso não apenas à preparação profissional, mas também “amplamente a uma vida intelectual, estética e social tão rica e variada quanto possível” (LAVAL, 2004LAVAL, C. A escola não é uma empresa. Londrina: Planta, 2004., p. XXI).

Por outro lado, há que se chamar a atenção para a “ideologia da excelência”, que tende a converter-se em cultura acadêmica. A noção de world class university, entre outras,

[...] vem sendo utilizada como um arquétipo indutor de condições para expansão do capital, no Brasil e no mundo, a partir da promoção de uma nova cultura institucional pautada pelos fundamentos empresariais, pela seleção de áreas estratégicas para inovação e, especialmente, pela promoção da internacionalização

(THIENGO; BIANCHETTI; DE MARI, 2018THIENGO, L. C.; BIANCHETTI, L.; DE MARI, C. L. A obsessão pela excelência: universidades de classe mundial no Brasil? Revista Internacional de Educação Superior, v. 4, n. 3, p. 716-745, 2018. https://doi.org/10.20396/riesup.v4i3.8652528
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, p. 739).

Thiengo, Bianchetti e De Mari (2018)THIENGO, L. C.; BIANCHETTI, L.; DE MARI, C. L. A obsessão pela excelência: universidades de classe mundial no Brasil? Revista Internacional de Educação Superior, v. 4, n. 3, p. 716-745, 2018. https://doi.org/10.20396/riesup.v4i3.8652528
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destacam que esse modelo é preocupante por várias razões. Uma delas é a de radicalizar o “corte de classe” na oferta de vagas à universidade, mediante uma visão elitista do ensino superior, sobretudo da pesquisa na universidade, mas os autores também aprofundam a diferenciação e a concorrência entre as próprias universidades que possuem o status de universidade de pesquisa, uma vez que estas competem por resultados nas avaliações dos rankings nacionais e internacionais.

Por sua vez, esses rankings cada vez mais se convertem em diretrizes adotadas pelos próprios Estados para avaliar as instituições e, pois, para a distribuição de verbas para elas e o financiamento de pesquisas. Nesse caso, o país coloca-se em consonância com as tendências das políticas globais relacionadas à educação superior, sendo levado a “normatizar-se e adequar-se ao mercado educacional mundial, o que configura uma cultura da excelência que passa a operar no âmbito da gestão, da docência e da pesquisa a partir da noção de competitividade” (THIENGO; BIANCHETTI; DE MARI, 2018THIENGO, L. C.; BIANCHETTI, L.; DE MARI, C. L. A obsessão pela excelência: universidades de classe mundial no Brasil? Revista Internacional de Educação Superior, v. 4, n. 3, p. 716-745, 2018. https://doi.org/10.20396/riesup.v4i3.8652528
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, p. 741).

No limite, como alerta Ball (2005)BALL, S. J. Profissionalismo, gerencialismo e performatividade. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 126, p. 539-564, set.-dez. 2005. https://doi.org/10.1590/S0100-15742005000300002
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, isso leva os pesquisadores a desenvolverem uma performance moldada pela lógica do empenho para corresponderem aos imperativos da competição e da efetivação de metas. Os profissionais passam cada vez mais a serem avaliados por sua contribuição em relação ao desempenho organizacional expresso em resultados mensuráveis. A prevalência da eficácia sobre a ética faz com que corram o risco de perder de vista os próprios compromissos éticos da profissão. Visto o problema pela ótica da filosofia da educação, há desequilíbrio na tensão entre formação profissional e formação humana a favor da primeira, conduzindo ao desaparecimento perigoso da pergunta pelo sentido social e solidário da escolha profissional e de seu respectivo exercício.

Esse quadro desafia a busca por aspectos que recuperem uma concepção democrática e republicana da educação pública e uma visão mais ampla de universidade, em condições de lidar equilibradamente com a tensão inesgotável entre formação por competências (profissional) e formação humana. Trata-se de tomar como parâmetro do conhecimento acadêmico não um tipo de formação centrada exclusivamente no saber técnico, dirigido pelo saber gerenciado e restrito à lógica do mercado, mas um saber de tipo formativo, que tanto precisa incluir quanto ampliar crítica e criativamente o próprio saber especializado.

Concedendo a palavra a Anísio Teixeira (1988)TEIXEIRA, A. Educação e universidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1988.,

[...] faz-se necessário compreender que a função da universidade é “única e exclusiva”, pois “não se trata, somente, de difundir conhecimentos”, “conservar a experiência humana” e “preparar práticos ou profissionais, de ofícios ou artes”. “Trata-se de manter uma atmosfera de saber pelo saber para se preparar o homem que serve e o desenvolve. [...] Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva”

(TEIXEIRA, 1988TEIXEIRA, A. Educação e universidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1988., p. 17).

Na ótica da filosofia da educação, não se trata de uma utopia, mas de uma referência normativa para continuar-se a pensar a universidade como instituição articulada à vida social, mas sem perder seu princípio diretriz de “centro de saber”. Com esse enfoque orientado pela filosofia da educação de John Dewey, Teixeira (1988)TEIXEIRA, A. Educação e universidade. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1988. permite reintroduzir, no debate universitário atual, a noção de conhecimento baseada no sentido amplo de experiência humana que foge ao reducionismo calculista da evidência e do desempenho imposto pelo neoliberalismo à educação.

Compreender as grandes e profundas transformações do mundo contemporâneo e o que elas significam para o perfil e o papel da universidade demanda um trabalho exigente e cooperativo de repensar essa universidade. O presente dossiê propõe-se, pois, deixando-se orientar pela noção de formação em sentido ampliado e contando com a participação de autores do Brasil, da Europa e da América Latina, a apresentar artigos que aprofundem a problemática da universidade na atualidade e que lancem perspectivas a ela para além dos limites impostos pelo modelo neoliberal. Nesse sentido, há que se pensar modelos de universidade que possam guiar-se não apenas pelas demandas de mercado, mas também, e sobretudo, a favor da finalidade pública da educação e dos valores de uma sociedade democrática, alicerçados no espírito cooperativo e solidário.

Nesse contexto, o eixo temático do dossiê busca construir, por um lado, um diagnóstico crítico de época, mostrando o quanto a mercantilização crescente das relações humanas, sociais e culturais (educacionais) provoca, na forma neoliberal atual, o enfraquecimento (esquecimento) da formação humana e de seus respectivos enfoques críticos e plurais, oriundos da filosofia e das ciências humanas e sociais. De outra parte, o dossiê pretende problematizar uma noção ampliada de formação humana, reconstruindo-a por meio do diálogo crítico com alguns aspectos da tradição educacional clássica, vinculada sobretudo aos ideais da Bildung moderna e contemporânea. Dessa reconstrução crítica, resultam algumas referências teóricas que podem ser vertidas normativamente contra a noção reduzida de educação à linguagem da aprendizagem. Com base nessas diretrizes gerais, no presente número apresentamos oito artigos para apreciação dos leitores de Educação & Sociedade.

Referências

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  • BIESTA, G. Why “what works” wont’t work: evidence-based practice and the democratic deficit in educational research. Educational Theory, v. 57, n. 1, p. 1-22, 2007. https://doi.org/10.1111/j.1741-5446.2006.00241.x
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  • BIESTA, G. Boa educação na era da mensuração. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 42, n. 147, p. 808-825, 2012. https://doi.org/10.1590/S0100-15742012000300009
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  • BIESTA, G. Para além da aprendizagem: educação democrática para um futuro humano. Tradução: Rosaura Eichenberg. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
  • BRASIL. Censo da educação superior 2020: notas estatísticas. Brasil: Inep/Ministério da Educação, 2022. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/notas_estatisticas_censo_da_educacao_superior_2020.pdf Acesso em: 4 abr. 2023.
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  • CHARLOT, B. Educação ou bárbarie? Uma escolha para a sociedade contemporânea. São Paulo: Cortez, 2020.
  • DALBOSCO, C. A. A universidade na disputa entre saber gerenciado e conhecimento formativo. Revista de Educação Unisinos, v. 27, p. 1-19, 2023. https://doi.org/10.4013/edu.2023.271.12
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  • DALBOSCO, C. A.; MÜHL, E. H.; FLICKINGER, H.-G. (org.). Formação humana (Bildung): despedida ou renascimento? São Paulo: Cortez, 2019.
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  • GIMENEZ, A. M. N. As multifaces da relação universidade-sociedade e a construção do conceito de terceira missão 2017. 329fs. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2017.
  • GIOLO, J. Educação a distância no Brasil: a expansão vertiginosa. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, v. 34, n. 1, p. 73-97, jan./abr. 2018. https://doi.org/10.21573/vol34n12018.82465
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  • LAVAL, C. A escola não é uma empresa Londrina: Planta, 2004.
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    » https://doi.org/10.20396/riesup.v4i3.8652528
Editora de seção: Ana Maria Fonseca Almeida https://orcid.org/0000-0002-4504-0423

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Abr 2023
  • Aceito
    24 Jul 2023
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