Resumo
Entre 1760 e 1840, o mercado mundial do café passou por uma grande transformação. Na segunda metade do século XVIII, o centro da produção global estava no Caribe francês. Na década de 1840, ele se moveu para o Império do Brasil e a colônia holandesa de Java. As modificações entre um momento e outro se deveram em grande parte aos impactos que a Era das Revoluções teve sobre a geopolítica da economia-mundo capitalista. O artigo analisa essas alterações por meio de um exame integrado dos diferentes espaços envolvidos na economia global do café. Seu propósito central é o de entender a natureza da reconfiguração dos regimes de trabalho compulsório no Brasil e em Java, bem como suas articulações globais.
Café; Brasil; Java; Segunda Escravidão; Cultivation System
Abstract
Between 1760 and 1840 the world coffee market went through a great transformation. In the second half of the eighteenth century, the center of the global coffee production was in the French Caribbean. In the 1840s, it has moved to the Empire of Brazil and the Dutch colony of Java. Changes between one moment and the other were largely due to the impacts that the Age of Revolutions has had over the geopolitics of the capitalist world-economy. The article analyzes these changes based on an integrated examination of the different spaces involved in the global coffee economy. Its main goal is to understand the nature of the reshaping of compulsory labor regimes in Brazil and Java, and its global articulations.
Coffee; Brazil; Java; Second Slavery; Cultivation System
Laërne e seu relato cafeeiro
Em 4 agosto de 1883, o agrônomo holandês Karel Frederik Van Delden Laërne, após uma experiência de seis anos como funcionário do Departamento de Interior em Batávia, Java, cidade onde nascera 38 anos antes, recebeu um encargo diretamente emitido pelo Ministro das Colônias. Ele deveria partir imediatamente da Indonésia em direção ao Império do Brasil. A nova era da navegação a vapor, das comunicações telegráficas e da abertura do Canal de Suez permitiu que Laërne chegasse ao Rio de Janeiro, via Lisboa, em apenas cinquenta dias. Se tal circuito de comunicação e deslocamento (normativa de Haia a Batávia [Jacarta], viagem Batávia-Lisboa-Rio de Janeiro) fosse realizado meio século antes, ele tomaria mais de um ano para completá-lo. A era da ferrovia também permitiu que Laërne realizasse em um prazo relativamente curto o escopo de sua missão. Entre os meses de setembro de 1883 e abril de 1884, ele percorreu as zonas cafeeiras das províncias do Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, entrevistando autoridades, exportadores, comissários, banqueiros, cafeicultores. De especial relevo foi sua visita a mais de 40 grandes fazendas, nas quais pôde anotar em detalhes informações relativas à composição da força de trabalho, ao estado financeiro de cada uma delas, aos seus padrões técnicos, à produtividade do solo, enfim, a tudo o que dizia respeito ao processo de trabalho e de produção de café. A capacidade de trabalho de Laërne era realmente impressionante: após regressar à Holanda, em abril de 1884, em menos de seis meses seu relatório já se encontrava finalizado. Em 1885, o livro foi publicado simultaneamente em holandês, inglês e francês (LAËRNE, 1885LAËRNE, C. F. Van Delden. Brazil and Java: Report on Coffee-Culture in America, Asia, and Africa. Trad. ingl. London: W. H. Allen & Co., 1885.).
O objetivo central de toda a empreitada era avaliar os segredos do colosso cafeeiro do século XIX, o único espaço que conseguira sobrepujar a produção javanesa no mercado mundial. A colônia holandesa enfrentava no início da década de 1880 uma conjuntura difícil, marcada tanto pelos impasses em relação à permanência do trabalho compulsório da população nativa nos cultivos governamentais como pela nova praga da ferrugem do café (causada pelo fungo Hemileia vastatrix ) ( McCOOK, 2006McCOOK, Stuart. Global rust belt: Hemileia vastatrix and the ecological integration of world coffee production since 1850. Journal of Global History, v. 1, n. 2, p. 177-195, 2006.). Laërne deveria investigar como o Brasil havia obtido sua posição no mercado e quais suas possibilidades de crescimento futuro, comparando-as passo a passo com o quadro de Java. As perspectivas para a colônia holandesa não eram promissoras: a produtividade do solo era maior no Brasil, os trabalhadores escravizados produziam muito mais café per capita do que os camponeses indonésios e, com a montagem da malha ferroviária no Centro-Sul do Império sul-americano, vastas terras haviam sido abertas para a atividade cafeeira. O único problema estava na crise do trabalho escravo: nas palavras de Laërne, "há muitas minas de prosperidade no Brasil Central, que poderiam produzir grandes retornos se pudessem ser exploradas. Mas todo o progresso está travado pela falta de trabalhadores" (LAËRNE, 1885, p. 372).
Não havia, em 1884, quaisquer prognósticos de como o impasse relativo à continuidade da escravidão brasileira poderia ser resolvido. Na avaliação do agrônomo holandês, dado o obstinado apego dos fazendeiros locais ao trabalho escravo, era bem provável que o Brasil seguisse o caminho da Jamaica pós-1838, isto é, a queda geral das exportações agrícolas como consequência da emancipação. Esta era a janela de oportunidade que Laërne enxergava para a recuperação do espaço holandês no mercado mundial do café. Se a produção camponesa sob a compulsão do estado colonial holandês fora indispensável entre as décadas de 1830 e 1860, agora, na década de 1880, o arranjo prévio representava um obstáculo ao crescimento da cafeicultura javanesa. Para superar o legado das formas vigentes de produção, era preciso estimular o incremento técnico e produtivo da cafeicultura javanesa por meio de incentivos à agricultura de plantation , a cargo de investidores particulares, inclusive estrangeiros (é isso que explica a tradução imediata do livro para o inglês e o francês).
As expectativas de Laërne mostraram-se infundadas no curto prazo. A abolição da escravidão no Brasil veio logo, em 1888, e os cafeicultores brasileiros enfrentaram com sucesso o fim do trabalho escravo, recorrendo a um esquema inédito de imigração em massa de trabalhadores rurais italianos ( HOLLOWAY, 1984HOLLOWAY, Thomas H. Imigrantes para o café. Café e sociedade em São Paulo, 1886-1934. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1984.). A crise cafeeira em Java aprofundou-se, e somente após a Primeira Guerra Mundial a Indonésia recuperaria os patamares produtivos vigentes até 1883 ( DUMONT VILLARES, 1927DUMONT VILLARES, Jorge. O café. Sua produção e exportação. São Paulo: Instituto do Café do Estado de São Paulo, 1927. 2v., p. 31-148). Não se pode afirmar se esse erro de avaliação foi o que determinou o aparente insucesso da obra logo após sua publicação, em 1885. Mas, se o volume fracassou como obra de instrução prática para cafeicultores no fim no século XIX, ele se tornou, no século seguinte, uma das principais fontes históricas sobre a história da escravidão nas zonas cafeeiras do Brasil na sua década terminal. O enorme trabalho estatístico e histórico realizado por Laërne, que compilou múltiplas fontes publicadas em diversos países e línguas, também o converteu em referência obrigatória para todos os que trabalham com a história do café, na América Latina, na Ásia, na África. Arrisco afirmar que o livro de Laërne é uma das obras cruciais para compreender as transferências culturais e a formação da economia global no longo século XIX.
Diante das facilidades dos bancos de dados eletrônicos, o leitor pode encontrar facilmente exemplares do livro na web . As informações disponíveis, contudo, encerram-se por aí. Não se sabe com exatidão qual foi a formação de Laërne. Seu pai fora um importante funcionário do Estado holandês na Indonésia, fundador da colônia da Nova Guiné, residente em Menado. Laërne viveu muito, tendo falecido somente em 1940, também na Indonésia. Qual sua formação intelectual? E sua trajetória profissional antes da viagem ao Brasil? Sua trajetória posterior à experiência brasileira? Essas perguntas, que evidentemente merecem investigação cuidadosa, não serão respondidas aqui. A tarefa cabe a uma sólida edição crítica.
O que interessa neste artigo é a questão mais ampla concernente às origens da cafeicultura no Brasil e em Java, os dois maiores produtores mundiais de café no século XIX, e que levaram Laërne a realizar sua viagem em 1883-1884. Noutros termos, pretendo examinar a profunda reconfiguração da economia global do café ocorrida na passagem do século XVIII para o XIX, transformação que se cristalizou no começo da década de 1840 com a consolidação da posição brasileira e javanesa.
Para tanto, o artigo está dividido em três partes. Na primeira parte, ofereço de forma resumida alguns dados gerais sobre a produção cafeeira global na centúria que vai de 1760 a 1860, procurando identificar as tendências gerais da composição da oferta e do consumo. Na segunda parte, descrevo como a ascensão cafeeira do Brasil e de Java resultou do processo unificado de crise do sistema atlântico do noroeste europeu e do sistema atlântico ibérico, isto é, como elas se prenderam a uma transformação histórica singular, porém contraditória, cujo epicentro está na Revolução Francesa e na Revolução Haitiana. A parte final dá prosseguimento ao argumento da segunda parte, indicando o chão comum das duas soluções de arranjo de trabalho, aparentemente bastante díspares, de Brasil e Java após 1820.
Produção e consumo globais do café, 1760-1860
Vejamos, de início, algumas das principais modificações que ocorreram na economia mundial do café no período assinalado, para depois examinarmos o papel desempenhado pelas forças históricas da Revolução Francesa, da Revolução do Haiti e das Guerras Napoleônicas nessas transformações. A Tabela 1sumaria os dados disponíveis sobre as exportações mundiais de café antes desses eventos.
Como nos adverte Steven Topik (2004)TOPIK, Steven. The Integration of the World Coffee Market. In: CLARENCE-SMITH, W. G.; TOPIK, S. (ed). The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin America, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 21-49., todas as estatísticas relativas ao café anteriores ao final do século XIX são bastante imprecisas. Não há, por exemplo, qualquer estimativa exata sobre o montante produzido no Iêmen, sabendo-se apenas que ele permaneceu estável, em patamares relativamente elevados, girando em torno de 12.000 toneladas ao longo do século XVIII ( TUCHSCHERER, 2003TUCHSCHERER, Michel. Coffee in the Red Sea Area from the Sixteenth to the Nineteenth Century. In: CLARENCE-SMITH, W. G.; TOPIK, S. (ed.). The Global Coffee Economy in Africa, Asia, and Latin America, 1500-1989. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. p. 50-66., p. 55). Neste sentido, o que se apresenta na tabela deve ser tomado apenas como uma simples aproximação da ordem dos números, notadamente o volume total, calculado com base na suposição de que as posições relativas permaneceram invariáveis para o período. A despeito dessa imprecisão, tais números permitem vislumbrar, em primeiro lugar, o rápido crescimento da produção mundial de café nas quatro décadas que antecederam a eclosão da Revolução Francesa e, em segundo lugar, a completa inversão de posições entre a zona escravista de Saint-Domingue e a zona camponesa do Iêmen. Em que pese a crescente produção das zonas escravistas do Suriname e da Martinica após os europeus terem se apossado dos segredos da produção cafeeira, até meados do século XVIII o produto iemenita dominou inconteste a oferta mundial. O crescimento acelerado das exportações da colônia francesa de Saint-Domingue, após o início da Guerra dos Sete Anos, alterou o perfil da economia cafeeira global. Entre 1755 e 1790, enquanto os demais produtores permaneceram relativamente estagnados, a produção de Saint-Domingue decuplicou e, ao fazê-lo, aumentou em duas vezes e meia a oferta mundial total do artigo. Em 1755, Iêmen controlava pouco menos de metade do mercado; em 1790, essa posição era de Saint-Domingue.
O avanço da produção cafeeira da colônia francesa fundou-se na intensificação do tráfico transatlântico de escravos. No período em tela, calcula-se que cerca de 500.000 africanos escravizados foram desembarcados em Saint-Domingue (ELTIS; HALBERTELTIS, David; HALBERT, Martin (dir.). The Trans-Atlantic Slave Trade Database - Voyages. Website. Emory University. Disponível em: <http://www.slavevoyages.org/tast/index.faces>.
http://www.slavevoyages.org/tast/index.f...
). Como vetor de demanda, a cafeicultura parece ter tido mais peso do que a economia açucareira. A população escrava da "pérola das Antilhas" saltou de 265.000 cativos, em 1767, para 480.000, em 1791, sem crescimento de monta na produção açucareira, que nesse mesmo período subiu apenas de 62.000 para 68.000 toneladas anuais ( WATTS, 1992WATTS, David. Las Indias Occidentales. Modalidades de desarrollo, cultura y cambio medioambiental desde 1492. Madrid: Alianza Editorial, 1992., p. 331, 369). Infere-se, portanto, que o número de escravos alocados na produção cafeeira cresceu proporcionalmente bem mais do que o número de escravos destinados aos canaviais. Afora isso, a quantidade proporcional de café colonial reexportado pela França era também mais elevada do que a de açúcar: na segunda metade da década de 1780, cerca de 90% do café proveniente das colônias caribenhas foi reexportado, contra 70% do açúcar. Noutras palavras, o mercado consumidor do café de Saint-Domingue não estava na metrópole, mas sim nos territórios da atual Alemanha, nos países do mar Báltico e na Holanda (a despeito das colônias cafeeiras que esta última possuía na América e na Ásia). Os dados concernentes ao porto de Bordeaux na década de 1780 indicam que essas três regiões importaram respectivamente 50%, 35% e 15% do produto caribenho francês que foi ali desembarcado, posteriormente reexportado ( TARRADE, 1972TARRADE, Jean. Le Commerce Colonial de la France à la fin de L'Ancien Régime. L'évolution du régime de 'l'Exclusif' de 1763 à 1789. Paris: PUF, 1972. 2v., p. 753; DE VRIES, 2008, p. 183; CARMAGANI 2012CARMAGANI, Marcelo. Las islas del lujo: productos exóticos, nuevos consumos y cultura económica europea, 1650-1800. México, DF: El Colegio de México, 2012., p. 191).
Como se lê no Gráfico 1, a produção global pouco cresceu entre 1790 e 1825, a despeito da notável ascensão dos preços que ocorreu com o início da Revolução de Saint-Domingue ( POSTHUMUS, 1946POSTHUMUS, N. Inquiry into the History of Prices in Holland. Leiden: E. J. Brill, 1946. 2v., p. 75-79). No vácuo da rebelião escrava francesa, apareceram no mercado mundial novos produtores da região caribenha, como Jamaica e Cuba, mas as interdições causadas pela guerra e pelos bloqueios militares em escala planetária, somadas à natureza própria da lavoura cafeeira (arbustos recém-plantados demoram cinco anos a entrar em plena produção), impediram que a oferta anterior se recompusesse rapidamente. Na década seguinte ao Congresso de Viena, a produção mundial de café era apenas 20% superior ao que fora em 1790. De 1825 em diante, contudo, verificou-se um crescimento explosivo: em 1840, o montante global era cerca de 200.000 toneladas, um volume que subiu para mais de 330.000 toneladas em 1860. Com duas novidades na composição geográfica da oferta: o aparecimento da colônia holandesa de Java (por razões que serão apresentadas adiante, no século XVIII, sob o comando da Vereenigde Oost-Indische Compagnie (VOC), a ilha fora uma zona cafeeira marginal) e, sobretudo, do Império do Brasil como os grandes produtores mundiais de café. O montante total da macrorregião caribenha, marcado por alterações consideráveis na posição relativa do volume granjeado em cada uma de suas unidades políticas (Haiti, Cuba, Jamaica, Porto Rico, Venezuela, Guianas), permaneceu estável durante todo esse período.
Se Brasil e Java demonstraram curvas de crescimento contínuas, é perceptível a marca distintiva do primeiro espaço. Sua tendência linear de crescimento foi igual à da produção global, o que vale dizer que, após 1825, o Brasil ditou o ritmo da transformação do mercado mundial do café, ocupando um lugar que, entre 1755-1790, fora de Saint-Domingue. De fato, a oferta crescente de café da colônia francesa após a Guerra dos Sete Anos conectou-se diretamente ao que Jan de Vries (2008)DE VRIES, Jan. The Industrious Revolution. Consumer Behaviour and the Household Economy, 1650 to the Present. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. denominou de "revolução industriosa". Nos grandes centros urbanos da Europa ocidental setecentista, houve uma clara popularização do consumo do café, ao ponto de a bebida tornar-se uma espécie de "luxúria dos pobres". Destaca-se, aqui, o caso da Holanda, a região europeia que, antes da eclosão da Revolução Industrial britânica, era a mais urbanizada e com o maior número relativo de assalariados nas classes trabalhadoras. Na década de 1780, a disseminação do consumo do café pelo tecido social holandês (cidade e campo) implicava um consumo anual per capita da ordem de 2,8 quilogramas - volume inferior, é verdade, ao que os vienenses consumiam naquela altura (5 kg per capita ), porém superior ao consumo de Paris (1,9 kg), e bem acima da média europeia (420 gramas) (DE VRIES, 2008DE VRIES, Jan; VAN DER WOUDE, Ad. The First Modern Economy. Success, Failure, and Perseverance of the Dutch Economy, 1500-1815. Cambridge: Cambridge University Press, 1995., p. 152-161).
O elevado padrão de consumo da Holanda (a "primeira economia moderna" segundo o título preciso do livro de Jan de Vries e Ad van der Woude [1995]), dependente da oferta crescente e a baixo custo de zonas escravistas do Novo Mundo, prefigurava o que aconteceria no século XIX. Como há muito os especialistas chamam a atenção, a passagem da economia cafeeira setecentista para a oitocentista envolveu, antes de tudo, a passagem de um mercado consumidor relativamente restrito para um mercado de consumo de massa. Na base dessa transformação, os processos correlatos de crescimento populacional e urbano associados à Revolução Industrial, ainda que a Grã-Bretanha não tenha participado como centro consumidor de relevo do café. Em razão de escolhas políticas tomadas no século XVIII, ditadas pelos interesses da East India Company (EIC), o país tornou-se cativo do chá oriental; suas colônias cafeeiras no espaço asiático - Índia e Ceilão - não conseguiram se transformar em zonas produtoras equiparáveis ao Brasil ou a Java ( SMITH, 1996SMITH, S.D. Accounting for Taste: British Coffee Consumption in Historical Perspective. Journal of Interdisciplinary History, v. 27, n. 2, p. 183-214, Autumn 1996.).
Indubitavelmente, a grande novidade em termos de consumo no século XIX esteve no mercado norte-americano. Importadores insignificantes de café no momento da fundação do país, em meados do século XIX os Estados Unidos foram responsáveis por 25% da demanda global do produto. Tal transformação foi impulsionada por quatro fatores. Em primeiro lugar, o fato de o café ter sido associado, desde o nascimento da República, ao novo ethos nacional em construção. Basta lembrarmos o papel que a rejeição à política mercantilista da EIC, favorável ao chá, desempenhou na catalisação dos sentimentos dos patriotas a partir de 1773. Dessa oposição, mas também do profundo envolvimento prévio dos mercadores das praças norte-americanas com o comércio no Caribe, derivou o crescente papel que os Estados Unidos ocuparam como compradores do café caribenho na virada do século XVIII para o XIX (fosse para reexportação, fosse para consumo próprio) ( McDONALD; TOPIK, 2013McDONALD, Michelle Craig; TOPIK, Steven. Why Americans Drink Coffee: The Boston Tea Party or Brazilian Slavery? In: THURSTON, Robert W.; MORRIS, Jonathan; STEIMAN, Shawn (orgs.). Coffee. A Comprehensive Guide to the Bean, the Beverage, and the Industry. New York: Rowman & Littlefield, 2013. p. 234-247.). Em segundo lugar, o fato de o mercado cafeeiro norte-americano ser isento de tarifas de importação a partir de 1832, resultado direto da plataforma econômica livre-cambista advogada pelos interesses escravistas algodoeiros dos estados sulistas ( PARRON, 2015PARRON, Tâmis. A política da escravidão no Império do Brasil, 1826-1865. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.). Livre de direitos de importação, o café tornou-se mais barato aos consumidores norte-americanos, para o que foi decisiva (terceiro fator) a crescente oferta brasileira ( MARQUESE, 2013MARQUESE, Rafael de Bivar. Feitores do Corpo, Missionários da Mente. Senhores, letrados e o controle dos escravos nas Américas, 1660-1860. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.a). Por fim (quarto fator), o crescimento demográfico acelerado (fundado tanto em elevadas taxas de fecundidade como no fluxo massivo de imigrantes) e a renda igualmente crescente ampliaram constantemente o mercado doméstico ao longo do século XIX (MARQUESE; TOMICH, 2009TOMICH, Dale. Through the Prism of Slavery: Labor, Capital, and World Economy. Boulder, Co: Rowman & Littlefield, 2004.).
A estrutura da demanda europeia, posto que igualmente crescente, foi menos elástica que a norte-americana. Em termos comparativos, os consumidores europeus eram mais exigentes no que se refere à qualidade final do produto. Nesses mercados, Java saiu-se relativamente melhor que o Brasil. Do ponto de vista dos consumidores europeus, a antiga posição da ex-colônia francesa foi herdada antes por Java do que pelo Brasil. Reputado como de melhor qualidade e, portanto, mais caro, o produto javanês reexportado pela Holanda tendeu a controlar os mercados do continente europeu (em especial o alemão), ao passo que o produto de baixa qualidade e mais barato do Brasil dominou inconteste o mercado norte-americano, o que mais cresceu em números absolutos (importação total) e relativos (consumo per capita ). Em 1851, 45% das exportações brasileiras foram remetidas para os EUA, sendo que 90% do café por eles importado provieram do Brasil ( THURBER, 1884THURBER, Francis Beatty. Coffee, from Plantation to Cup. A Brief History of Coffee Production and Consumption. 6thed. New York: American Grocer Publishing Association, 1884.; CARVALHO FRANCO, 1983CARVALHO FRANCO, Maria Sylvia de. [1969] Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Kairós, 1983.; SCHIVELBUSCH, 1993SCHIVELBUSCH, Wolfgang. Tastes of Paradise. A Social History of Spices, Stimulants, and Intoxicants. New York: Vintage, 1993.; SCHNEIDER, 1992SCHNEIDER, Jürgen. The Effects on European Markets of Imports of Overseas Agriculture: The Production, Trade and Consumption of Coffee (15th to late 18th Century). In: PARDO, José Casas (ed.). Economic Effects of the European Expansion, 1492-1824. Stuttgart: Franz Steiner Verlag, 1992. p. 283-306.; TOPIK, 2003TOPIK, Steven. The World Coffee Market in the Eighteenth and Nineteenth Centuries, from Colonial To National Regimes. London School of Economics: Working Papers of the Global Economic History Network, n. 4, May 2004.; CUNHA, 1992CUNHA, Mauro Rodrigues da. Apêndice Estatístico. In: BACHA, Edmar; GREENHILL, Robert (ed.). 150 anos de café. Rio de Janeiro: Marcellino Martins and E. Johnston, 1992. p. 283-391.).
A Era das Revoluções e a ascensão cafeeira de Brasil e Java
Na conjuntura imediata de 1790-1815, as forças históricas liberadas pelo vendaval revolucionário atlântico foram absolutamente cruciais para a modificação no mercado cafeeiro global. Como é evidente, o colapso de Saint-Domingue, o maior produtor do século XVIII, foi um resultado direto do processo revolucionário unificado da França e do Caribe na década de 1790, e do fracasso de Napoleão Bonaparte em reinstituir a escravidão negra e o colonialismo francês em Saint-Domingue após 1802 ( DUBOIS, 2004DUBOIS, Laurent. Avangers of the New World The Story of the Haitian Revolution. Cambridge: Harvard University Press, 2004.). Mas, por outro lado, a ascensão dos dois maiores centros produtores de café do século XIX também resultou em grande parte desses mesmos eventos. Noutros termos, o aparecimento do Brasil e de Java como as grandes zonas cafeeiras oitocentistas tem seus fundamentos na reorganização da economia e da política globais da Era Napoleônica e do mundo pós-Congresso de Viena. Vejamos a matéria a partir de sua face "local", isto é, a partir das trajetórias históricas do império português e holandês entre as décadas de 1790 e 1820.
1808 representou o ponto de inflexão na formação da cafeicultura brasileira. O reordenamento econômico e político em torno da praça do Rio de Janeiro, nova sede do Império luso, ativou notavelmente o fluxo das atividades mercantis em toda a região centro-sul, desde o século XVIII a mais dinâmica da América portuguesa. No contexto do fechamento dos mercados continentais europeus em razão da política napoleônica, a abertura dos portos às "nações amigas" - o que vale dizer a Grã-Bretanha - deu saída ao produto colonial português e, mais importante, estabeleceu de uma vez por todas o livre intercâmbio do Brasil com o mercado mundial. Se a medida, antes de 1815, poucos resultados trouxe em termos de incremento das exportações cafeeiras brasileiras, com a volta à paz na Europa ela demonstrou ser crucial para estimular os produtores locais. A outra face do impulso à cafeicultura trazida pela conversão do Rio de Janeiro em cabeça do Império português reside no tráfico transatlântico negreiro. Desde o encerramento das guerras seiscentistas contra os holandeses, o negócio era controlado a partir dos portos americanos. No século do ouro, o Rio de Janeiro destacou-se - secundado pela Bahia - como a principal porta de entrada dos africanos escravizados destinados às terras altas das Minas Gerais. A diversificação agrícola ocorrida no centro-sul da América portuguesa ao final dos Setecentos manteve a demanda por escravos em patamares elevados. Todavia, com a mudança de 1808, ela quase dobrou: na década anterior à chegada da família real, foram desembarcados cerca de 117.000 africanos no Rio de Janeiro e em seus entornos; na década de 1810, esse número saltou para 225.000 (MARQUESE; TOMICH, 2009MARQUESE, Rafael de Bivar. A ilustração luso-brasileira e a circulação dos saberes escravistas caribenhos: a montagem da cafeicultura brasileira em perspectiva comparada. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, v. 16, n. 4, p. 855-880, out.-dez. 2009a.).
Essa oferta crescente de trabalho foi canalizada em grande parte para a expansão da fronteira cafeeira. A região onde isso se deu era até então relativamente desocupada, em razão da política de terras proibidas imposta por Portugal durante o auge da mineração. Com efeito, os fundos territoriais do Vale do Paraíba, relativamente próximos ao porto do Rio de Janeiro, permaneceram por muito tempo travados à conversão para a agricultura mercantil. A virada veio justamente nas duas primeiras décadas do século XIX, quando a coroa bragantina promoveu uma agressiva política de ocupação dessa zona, por meio da concessão de amplas sesmarias e da redução dos grupos indígenas que lá viviam. Dadas as condições geoecológicas da região do Vale do Paraíba, o café logo provou ser o produto ideal a ser explorado pelos senhores de escravos que lá investiram (MARQUESE; SALLES, 2015SALLES, Ricardo. Nostalgia imperial. Escravidão e formação da identidade nacional no Brasil do Segundo Reinado. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Ponteio, 2013.).
As transformações políticas pelas quais o Brasil passou após a volta da paz à Europa sedimentaram as condições institucionais para o arranque definitivo da cafeicultura. Contrariando grande parte das expectativas dos plenipotenciários europeus reunidos em Viena desde 1814, no ano seguinte a corte de D. João optou por permanecer no Brasil, elevando-o a Reino Unido a Portugal e Algarves, o que traduzia sem meios tons o compromisso da coroa com o projeto escravista do senhoriato local. No momento da crise imperial de 1820-1822, esse pacto entre os Bragança e a nascente classe dos fazendeiros de café foi mais uma vez reafirmado, agora sob a moldura de um novo império independente, regido por um regime constitucional. Em que pesem os percalços da década de 1820, que em pouco tempo levariam à renúncia de D. Pedro I ao trono brasileiro, pode-se afirmar que o Império do Brasil nasceu sob o signo de uma aliança estreita entre o novo Vale do Paraíba cafeeiro e a nova monarquia constitucional (MARQUESE; SALLES, 2015MARQUESE, Rafael de Bivar. African Diaspora, Slavery, and the Paraiba Valley Coffee Plantation Landscape: Nineteenth Century Brazil. Review. A Journal of the Fernand Braudel Center, v. 31, n. 2, p. 196-216, Spring 2008.).
Ora, se o ponto de partida de todas essas transformações - a fuga da família real portuguesa para o Brasil - deve ser entendido a partir de tendências de mais longa duração, iniciadas ainda em meados do século XVII (como a fragilidade estrutural de Portugal no concerto europeu, as hesitações quanto à aliança diplomática com a Grã-Bretanha, os planos prévios de deslocamento para o Brasil em caso de ameaça à coroa dos Bragança na Europa), suas razões imediatas se encontram na conjuntura europeia pós-1789. Entre 1793-1796, Portugal fez parte do amplo leque de alianças da Europa do Antigo Regime contra a França revolucionária, para, em 1796, diante do acordo entre o Diretório e a Espanha bourbônica, voltar à sua secular política de neutralidade. Em 1801, após curta guerra contra a Espanha, condensaram-se na corte lisboeta duas plataformas distintas para enfrentar os desafios colocados pela política agressiva de Napoleão Bonaparte, uma partidária do alinhamento com os Bourbons espanhóis e o imperador francês, outra defensora do alinhamento com a Grã-Bretanha. O Bloqueio Continental e o ultimato dado ao regente D. João fizeram o prato pender para a solução britânica e, portanto, para a rota de fuga em direção ao Brasil ( SLEMIAN; PIMENTA, 2008SLEMIAN, Andréa; PIMENTA, João Paulo. A corte e o mundo. Uma história do ano em que a família real portuguesa chegou ao Brasil. São Paulo: Alameda, 2008.).
Enfim, todos esses processos que ajudam a explicar o take off cafeeiro do Vale do Paraíba nasceram justamente da cadeia de eventos aberta pelos processos revolucionários atlânticos, que se desdobrariam na Revolução do Haiti, na ascensão e queda de Napoleão Bonaparte, e na ordem econômica e política mundial pós-Congresso de Viena. Essa mesma cadeia de eventos, ainda que com ritmos distintos, resultaria na ascensão cafeeira da ilha indonésia. No processo que transformou a Java do século XVIII, com poderes locais relativamente sólidos e autônomos em relação à VOC (ela própria um corpo político e empresarial com grande autonomia em relação à República das Províncias Unidas dos Países Baixos), em um novo tipo de colônia no século XIX, submetida diretamente a jugo duro e estrito do novo Reino da Holanda, a Era das Revoluções teve um papel absolutamente central.
Holanda, França, Inglaterra e seus prolongamentos ultramarinos formaram um bloco histórico articulado, com ritmos temporais comuns e múltiplas determinações recíprocas, desde a passagem do século XVI para o XVII. Em outro lugar e em parceria com dois colegas meus, denominamos essa estrutura histórica como o sistema atlântico do noroeste europeu, cuja crise se iniciou a partir dos resultados da Guerra dos Sete Anos ( BERBEL; MARQUESE; PARRON, 2010BERBEL, Márcia; MARQUESE, Rafael; PARRON, Tâmis. Escravidão e Política. Brasil e Cuba, 1790-1850. São Paulo: Hucitec, 2010., p. 54-93). Não cabe aqui examiná-la em detalhes, apenas apontar muito brevemente como os episódios-chave da dissolução da República das Províncias Unidas dos Países Baixos e da VOC estiveram diretamente associados ao quadro mais amplo de quebra das relações coloniais britânicas no Atlântico Norte e à dinâmica da Revolução Francesa.
Depois de longo período de enorme sucesso financeiro e militar (1602-1680), no qual chegou de certo modo a corporificar o poder e a opulência da Holanda, na virada do século XVII para o XVIII, a VOC entrou em nova fase, na qual a abundância de capitais na metrópole permitiu a manutenção de taxas contínuas de crescimento de suas operações na Ásia, porém sem retornos adicionais substantivos. O que ocorreu com o café é bastante significativo desse segundo momento da VOC. Nas décadas de 1700-1710, a forte alta dos preços e as dificuldades para a aquisição do produto no Iêmen estimularam os poderes no noroeste europeu a se apossarem dos segredos da produção do café. Os resultados iniciais foram muito promissores, pois rapidamente a VOC montou seu parque produtivo no oeste de Java. Porém, esse sucesso, somado à montagem simultânea da produção escravista do Suriname e da Martinica, fez os preços do café despencar nos mercados europeus entre 1725-1738 (POSTHUMUS, 1946, p. 75). A resposta dada pelos gestores da VOC foi conservadora: tratando o café como se fosse especiaria, o conselho de administração em Amsterdã forçou o rebaixamento artificial dos preços pagos aos regentes javaneses em Batávia, proibiu novos plantios, mandou destruir os arbustos excedentes (KNAPP, 1986, p. 46). A lucratividade comparativa dos produtos carreados pela VOC ao longo do século XVIII - sempre desfavorável ao café - indicava o limite estrutural à expansão da cafeicultura javanesa sobre o antigo regime holandês. Em realidade, as dificuldades encontradas com o café expressavam a entrada da VOC em uma nova situação, caracterizada por uma contínua estagnação, na qual os dividendos pagos aos seus muitos investidores na Holanda a descapitalizaram progressivamente. Nas palavras dos historiadores Jan de Vries e Ad van der Woude (1995, p. 449), a quem sigo nesta análise, "a era do crescimento sem lucros dera lugar à era do gigante dispendioso".
A despeito do enorme estoque de capital da VOC, no quarto final do século XVIII ela não mais funcionava com eficiência. Os preços de suas ações vinham caindo continuamente, porém os investidores continuavam a botar fé na companhia ao compreendê-la como o esteio financeiro da República. Tudo mudou com a eclosão da 4a Guerra Anglo-Holandesa, diretamente motivada pelas tensões da Revolução Americana. Nos primeiros anos do conflito imperial britânico, a Holanda procurou manter-se oficialmente neutra, porém comerciando com os patriotas norte-americanos e abrindo sua carteira de crédito para os gastos militares franceses. A resposta da Grã-Bretanha foi duríssima. Na guerra de 1780-1784, o poder naval britânico impôs pesadas derrotas à Holanda. A VOC foi a principal vítima: sua frota foi reduzida à metade, seu poder na Ásia diminuiu notavelmente e, sobretudo, sua situação financeira tornou-se insolvível. Entre 1784 e 1790, em meio à chamada "Revolução Patriótica" de 1785-1787 - diretamente inspirada pelo sucesso da Revolução Americana ( PALMER, 2014PALMER, Robert R. The Age of Democratic Revolution. A Political History of Europe and America, 1760-1800. Princeton: Princeton University Press, 2014., p. 318-333; SCHAMA, 1977SCHAMA, Simon. Patriots and Liberators. Revolution in the Netherlands, 1780-1815. New York: Oxford University Press, 1977.) -, a República das Províncias Unidas dos Países Baixos socorreu a VOC com subsídios diretos e garantias de empréstimos. Sem quaisquer possibilidades de sucesso para essa operação financeira, os destinos de uma e de outra ficaram indissoluvelmente ligados (DE VRIES; VAN DER WOUDE, 1995, p. 456; ISRAEL, 1995ISRAEL, Jonathan. The Dutch Republic: Its Rise, Greatness and Fall, 1477-1806. Oxford: Oxford University Press, 1995., p. 1098-1130; BOXER, 1965BOXER, Charles R. The Dutch Seaborne Empire, 1600-1800. London: Penguin, 1965., p. 124-125).
Com a vitória da República na França, os líderes patriotas de 1785-1787 que lá haviam se exilado retornaram como libertadores, derrubando o regime que vigorara nos Países Baixos desde o final do século XVI. A nova unidade política que então surgiu, a República da Batávia, fundada em 1795, responsável pela dissolução da VOC em 1800 e pela incorporação formal de todos seus territórios asiáticos, foi uma aliada de primeira hora do Diretório e, na sequência, de Napoleão Bonaparte. Isso se deu, no entanto, em um contexto de erosão das posições holandesas no espaço do Índico. Ainda em 1795, em resposta à nova aliança de Batávia com a França, a Grã-Bretanha conquistou a colônia do Cabo, no sul da África, e a ilha de Ceilão, no subcontinente indiano ( SCHIRKKER, 2007SCHIRKKER, Alicia. Dutch and British colonial intervention in Sri Lanka, 1780-1815: Expansion and Reform. Leiden: Brill, 2007., p. 129-158). Em um primeiro momento, Java ficou fora da órbita britânica, mas ela logo entraria nos cálculos imperiais de Londres, quando Bonaparte interveio mais diretamente nos assuntos holandeses.
Em 1806, como parte da estratégia mais ampla do Bloqueio Continental (os portos holandeses eram uma das entradas dos produtos ingleses na Alemanha), a mesma que forçaria a família real portuguesa a fugir para o Brasil, a República da Batávia foi dissolvida e, em seu lugar, impôs-se a monarquia constitucional do Reino da Holanda, tendo por soberano Luis Bonaparte, irmão do imperador francês. O novo regime traçou novas diretrizes para Java. Tal como no Brasil, 1808 também representou inflexão decisiva para a construção da cafeicultura naquela região. A incorporação do Reino da Holanda ao império napoleônico iniciou a cadeia de eventos que transformariam as relações da metrópole com o espaço indonésio. O primeiro governador-geral dessa nova etapa, Herman Willem Daendels, era o único marechal de campo do exército napoleônico que não nascera na França. Fundado nos princípios da ordem revolucionária francesa, em seu curto governo (1808-1811) ele alterou profundamente a natureza das relações políticas entre os poderes coloniais holandeses e as cortes javanesas de Surakarta e Yogyakarta ( RICKFELS, 2001RICKFELS, M.C. A History of Modern Indonesia since c.1200. London: Palgrave-Macmillan, 2001., p. 145-146; CAREY, 2010CAREY, Peter. Revolutionary Europe and the Destruction of Java's Old Order, 1808-1830. In: ARMITADGE, David; SUBRAHMANYAM, Sanjay (ed.). The Age of Revolutions in Global Context, c.1760-1840. London: Palgrave-Macmillan, 2010. p. 167-188., p. 172-176).
Ao ser formalmente incorporada ao império francês em 1810, com a dissolução do Reino da Holanda, Java tornou-se alvo prioritário para a Grã-Bretanha no palco de guerra do Índico. Uma grande expedição desembarcou em Batávia em 1811, sob o comando civil de Thomas Raffles, cuja plataforma de reorganização dos poderes javanaeses era bastante próxima à de Daendels. Yogyakarta foi conquistada pelos britânicos em 1812, e muitas das terras dos sultanatos vizinhos foram diretamente expropriadas. A administração de Raffles, seguindo as diretrizes gerais de Daendels, introduziu um sistema de "renda da terra" (em realidade, uma taxa fundiária) que lançou as bases para a posterior monetarização da economia javanesa; converteu as vilas camponesas em unidade primária da administração colonial; passou a tratar os oficiais javaneses como parte da máquina burocrática governamental. Muitas dessas reformas ficaram apenas no papel, mas seus princípios guiaram o colonialismo holandês posterior. Em 1816, Java retornou às mãos holandesas, como resultado das deliberações do Congresso de Viena, no mesmo movimento que levou à criação do novo Reino Unido dos Países Baixos sob o regime de uma monarquia constitucional. No outro lado do mundo, a profunda alteração do modo de vida camponês e aristocrático no interior de Java já estava a produzir grande descontentamento, sem que o Estado holandês conseguisse obter, naquele momento, uma colheita fiscal significativa (RICKFELS, 2001, p.147-154; CAREY, 2010, p. 176-180).
Residem aí, nas administrações de Daendels e Raffles e na ordem europeia pós-Viena, os fundamentos da guerra intestina que eclodiria em Java em 1825. Este conflito violentíssimo, que em cinco anos acarretou a morte de cerca de 200.000 pessoas, representou, simultaneamente, o ponto de chegada de uma crise que se iniciara na década de 1780, e o ponto de partida do novo colonialismo holandês oitocentista, cujos dois eixos foram a imposição do chamado Cultivation System , no espaço colonial, com a "periferização" definitiva de Java ( FASSEUR, 1992FASSEUR, Cornelis. The Politics of Colonial Exploitation. Java, the Dutch, and the Cultivation System. Ithaca, Ny: Southern Asia Program-Cornell University, 1992., p. 13-55; WALLERSTEIN, 1989WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System III. The Second Era of Great Expansion of the Capitalist World-Economy, 1730-1840s. New York: Academic Press, 1989., p. 130-131) e a consolidação da nova ordem monárquica liberal no espaço metropolitano, em grande parte lastreada na exploração econômica intensiva da Indonésia (VAN ZANDEN; VAN RIEL, 2004VAN ZANDEN, Jan Luiten; VAN RIEL, Arthur. The Strictures of Inheritance: The Dutch Economy in the Nineteenth Century. Princeton: Princeton University Press, 2004., p. 121-187). Em resumo, os eventos ocorridos com o império português no Brasil e com o império holandês em Java, aparentemente muito distantes uns de outros, prenderam-se em realidade ao processo histórico unificado de crise do sistema atlântico ibérico e do sistema atlântico do noroeste europeu, ele próprio parte da crise geral do Antigo Regime acelerada pela Revolução Francesa e pelas Guerras Napoleônicas. Do mesmo modo, as construções dos novos arranjos de trabalho na cafeicultura do Brasil e de Java também responderam a um feixe unificado de forças. É disso que trata a parte subsequente deste artigo, que o encerra.
Segunda Escravidão e Cultivation System
Na nova ordem cafeeira mundial que se desenhou a partir de 1815, sob o regime de livre mercado global, de rápida industrialização e urbanização no Atlântico Norte e na Europa Continental e de criação de padrões de consumo de massa, o avanço produtivo do Brasil e de Java dependeu inteiramente da recriação, inovada, de formas pretéritas de trabalho compulsório. A "segunda escravidão", conceito originalmente proposto por Dale Tomich (2004) e que muito tenho utilizado para iluminar a dinâmica da produção cafeeira no Vale do Paraíba (MARQUESE, 2004MARQUESE, Rafael de Bivar. Estados Unidos, Segunda Escravidão e a Economia Cafeeira do Império do Brasil. Almanack, v. 5, p. 51-60, maio de 2013a., p. 259-298; MARQUESE, 2008MARQUESE, Rafael de Bivar. Capitalismo, escravidão e a economia cafeeira do Brasil no longo século XIX. Saeculum, João Pessoa, v. 29, p. 289-321, 2013b.; MARQUESE, 2010MARQUESE, Rafael; TOMICH, Dale. O Vale do Paraíba escravista e a formação do mercado mundial do café no século XIX. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo (orgs.). O Brasil Imperial. Volume II - 1831-1870. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. p. 339-383.; MARQUESE, 2013bMARQUESE, Rafael; SALLES, Ricardo. A cartografia do poder senhorial: cafeicultura, escravidão e formação do Estado nacional brasileiro, 1822-1848. In: MUAZE, Mariana; SALLES, Ricardo (orgs.). O Vale do Paraíba e o Império do Brasil nos Quadros da Segunda Escravidão. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2015. p. 100-129.), é uma clara manifestação disso. Segunda escravidão cafeeira que, em notável sincronia com a experiência colonial holandesa, foi o esteio da construção de uma nova ordem monárquica liberal no Brasil (PARRON, 2011PARRON, Tâmis. A política da escravidão na era da liberdade. Brasil, Estados Unidos e Cuba, 1787-1846. 2015. Tese (Doutorado em História Social) - FFLCH, Universidade de São Paulo, 2015.; SALLES, 2013).
Porém, o que quero destacar é como o Cultivation System foi ele próprio uma recomposição, em escala muitíssimo ampliada, das formas de extração de sobretrabalho do campesinato javanês concebidas pela VOC para a zona ocidental de Java, sobre a qual ela tinha controle estável (Priangan e Ciberon, mas não o reino de Mataram). Após aclimatar com sucesso o cafeeiro na ilha, nas décadas de 1710-1720 a VOC logrou que os poderes locais que haviam se submetido à sua soberania ofertassem o produto a preços fixos, bem abaixo dos valores correntes na Europa, e cuja revenda gerava ganhos vultosos à companhia. Essas autoridades autóctones obrigavam seus súditos a cultivarem o artigo em pequena escala, retendo grande parte da renda camponesa a título de impostos. A dimensão de toda operação, como se pode observar pela Tabela 1, sempre foi reduzida, e Java - pelas razões que expus no item anterior - não foi capaz de produzir ao longo do século XVIII volume superior a 2.500 toneladas/ano de café (RICKFELS, 2001, p. 100-111; ELSON, 1994ELSON, Robert. Village Java under the Cultivation System, 1830-1870. Sydney: Asians Studies Association of Australia in association with Allen and Unwin, 1994., p. 24-25; CLARENCE-SMITH, 1994CLARENCE-SMITH, William Gervase. The impact of forced coffee cultivation on Java, 1805-1917. Indonesia Circle, n. 64, p. 241-264, 1994., p. 241-243).
O modelo, porém, frutificaria notavelmente no século XIX. O Kultuur Stelsel, ou Cultivation System , consistia simplesmente em uma readaptação das práticas pretéritas da VOC às novas circunstâncias existentes em Java após a derrota dos poderes nativos para o Estado colonial holandês durante a guerra de 1825-1830, e do domínio efetivo que a Holanda passou a exercer sobre a totalidade da ilha. Nesse novo padrão de exploração colonial, desenhado por Johannes van den Bosch e implantado assim que ele assumiu o cargo de governador-geral de Java em 1830, os camponeses indonésios seriam compelidos a pagar o tributo sobre a terra em espécie, e não em dinheiro. As políticas de Daendels (1808-1811) e Raffles (1811-1816) finalmente começariam a dar resultados. Para tanto, os camponeses deveriam alocar uma dada área das terras de suas comunidades para o granjeio de artigos determinados pelo governo colonial, fornecendo-os a preços fixos aos armazéns oficiais. Em vista de sua fácil articulação ao modo de vida camponesa (as unidades familiares não eram supervisionadas no processo de produção: a parte agrícola e o beneficiamento eram geridos de forma completamente autônoma), o café se tornou a espinha dorsal do sistema e a principal fonte de renda para o Estado colonial. A Holanda contava ainda com os ganhos das operações da Nederlandsche Handelmaatschappij , uma companhia semimonopolista que remetia para vendas a leilão, na metrópole, o artigo obtido localmente a valores muito abaixo dos correntes no mercado mundial (FASSEUR, 1992, p. 26-55).
As distinções de fundo entre a segunda escravidão no Brasil e o Cultivation System em Java são inegáveis. A produção brasileira foi altamente elástica durante todo o século XIX; a javanesa, após atingir um patamar em torno de 70.000 toneladas em 1840, não mais cresceu. O fundamento dessa elasticidade do Brasil residiu, até 1850, no processo de escravização massiva de africanos (um milhão e 200 mil desembarcados nos portos do centro-sul entre 1808 e 1850) e, após aquela data, em um volumoso tráfico interno de escravos (220.000 deslocados para as províncias cafeeiras entre 1850-1881), empregados em plantations que ampliaram em muito a escala espacial de operação em relação às suas congêneres caribenhas do século XVIII, tecnificando sempre que possível o beneficiamento do artigo (MARQUESE, 2009aMARQUESE, Rafael de Bivar. Espacio y poder en la caficultura esclavista de las Américas: el Valle del Paraíba en perspectiva comparada, 1750-1850. In: PIQUERAS, José Antonio (ed.). Trabajo libre y trabajo coactivo en sociedades de plantación. Madrid: Siglo XXI, 2009b. p. 215-252., 2009bMARQUESE, Rafael de Bivar. O Vale do Paraíba cafeeiro e o regime visual da segunda escravidão: o caso da fazenda Resgate. Anais do Museu Paulista, v. 18, n. 1, p. 83-128, jan.-jun. 2010.). A produção inelástica de Java derivava da própria lógica de funcionamento do Cultivation System , que contou com a base demográfica preexistente da ilha e jamais interferiu diretamente no processo de trabalho e de produção, inteiramente a cargo das unidades familiares camponesas. Ao contrário do Brasil, o beneficiamento do café em Java era feito manualmente. Para sintetizar em uma frase essas diferenças, pode-se dizer que a planta produtiva do Vale do Paraíba foi uma reinvenção em ponto gigante de Saint-Domingue e, a de Java, uma reinvenção do Iêmen.
O mais relevante, contudo, está no fato de que foi o sucesso fulgurante do Vale do Paraíba no começo da década de 1820 que estabeleceu uma das condições imediatas para a criação do Cultivation System em Java. Recompor as rendas do Estado Holandês era tarefa urgente na virada dos anos vinte para os anos trinta. As experiências liberais de exploração econômica de Java, implantadas em 1816 após o retorno do território indonésio ao domínio holandês, haviam sido incapazes de aumentar o produto colonial; a guerra de conquista consumira uma enormidade de dinheiro entre 1825 e 1830 e, ao término dela, o Reino da Holanda se viu frente à secessão da Bélgica, que combateu inutilmente pelo restante da década de 1830. Java era vista, naquela conjuntura, como a "rolha sobre a qual a Holanda flutua", isto é, como a única solução possível para o estado falimentar da monarquia - e Java era basicamente a economia cafeeira. Entre 1827 e 1829, quando foi comissário geral na colônia escravista do Suriname, van den Bosch observou que, empregando trabalho livre e diante da distância dos mercados consumidores do Atlântico norte, Java jamais seria capaz de competir com as zonas escravistas do Novo Mundo. A eficácia dessas últimas era evidente pelas safras cada vez mais volumosas do Brasil, que derrubaram os preços do café no mercado mundial na década de 1820. Em memorial apresentado ao rei Guilherme em 1829, antes de seguir para Java como seu novo governador-geral, van den Bosch afirmava que somente com trabalho compulsório, conforme o antigo modelo da VOC, seria possível reerguer a economia cafeeira da ilha nas condições adversas do mercado mundial criadas pelo produto brasileiro (FASSEUR, 1992, p. 23-25). Ao fim e ao cabo, portanto, a escravidão do Vale do Paraíba determinou as condições de operação do mercado mundial do café na era pós-napoleônica.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Jul-Dec 2015
Histórico
-
Recebido
30 Jul 2015 -
Aceito
02 Out 2015