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Mário Domingues, Ferreira de Castro e a “linha de cor” nas letras portuguesas

Mário Domingues, Ferreira de Castro and the “Color Line” in Portuguese Writings

RESUMO

O escritor e jornalista Mário Domingues (1899-1977) vem sendo lentamente redescoberto, sobretudo pela sua faceta de articulista no jornal anarquista A Batalha, no qual torna-se o primeiro intelectual português a defender publicamente a independência das colônias africanas, nos anos de 1920. Suas posições declaradamente antirracistas e anticolonialistas refletem-se também em sua produção ficcional, nomeadamente nos romances O Preto do Charleston (1929)DOMINGUES, Mário. O Preto do Charleston. Lisboa: Guimarães & Ca., 1929. e O Menino entre gigantes (1960)DOMINGUES, Mário. O Menino entre gigantes. Lisboa: Prelo, 1960., e em obras censuradas pelo Estado Novo, como Má raça (1938). Analiso as tendências do discurso antirracista de sua prosa em comparação com Sangue Negro (1923), de Ferreira de Castro, um dos únicos exemplos de ficção antirracista de autoria branca neste período em Portugal, procurando entender o alcance e os limites do antirracismo durante a expansão do poder colonial português na África, e a afirmação dos movimentos modernista e neorrealista nas letras portuguesas.

Palavras-chave:
Mário Domingues; Ferreira de Castro; antirracismo; anticolonialismo; anos 20

ABSTRACT

The writer and journalist Mário Domingues (1899-1977) has been slowly rediscovered, especially for his writing for the anarchist newspaper A Batalha, in which he became the first Portuguese intellectual to publicly defend the independence of the African colonies in the 1920s. His openly anti-racist and anti-colonialist positions are also reflected in his fictional production, namely in the novels O Preto do Charleston (1929)DOMINGUES, Mário. O Preto do Charleston. Lisboa: Guimarães & Ca., 1929. and O Menino entre Gigantes (1960)DOMINGUES, Mário. O Menino entre gigantes. Lisboa: Prelo, 1960., and in books censored by the Estado Novo, such as Má raça (1938). I analyze the tendencies of the antiracist discourse of his prose in comparison with Ferreira de Castro’s Sangue Negro (1923), one of the only examples of antiracist fiction by white authors in this period in Portugal, seeking to understand the scope and limits of antiracism during the expansion of Portuguese colonial power in Africa and the affirmation of the modernist and neorealist movements in Portuguese writings.

Keywords:
Mário Domingues; Ferreira de Castro; Antiracism; Anticolonialism; 1920’s

Eu não dizia que falar de pretos e brancos implicava falar da colonização e que colonização significa crime?

(Domingues, 1919DOMINGUES, Mário. Colonização. A Batalha, n.p., 9 set. 1919.)

Neste ensaio, pretendo dar relevo ao papel de Mário Domingues na configuração e na consciência de uma Modernidade Negra Portuguesa, e mostrar como a ideia de justiça racial, assente no ideal de independência das colônias africanas (que Mário Domingues foi das primeiras pessoas a expressar em letra de forma em Portugal) e no ideal da igualdade foi uma constante, quer nos seus escritos de intervenção política, quer nas obras de ficção literária que publicou na primeira fase de sua carreira, que coincidiu com os anos finais da Primeira República. Para tal, analisarei alguns dos artigos publicados no jornal A Batalha, órgão do movimento anarcossindicalista que, apesar de interrupções durante o Estado Novo, ainda hoje se publica1 1 Fundado em 1919, o jornal viu suspensa a sua circulação diária quando as suas instalações foram invadidas e destruídas pela polícia, em 26 de maio de 1927. Chegou a ser o terceiro jornal diário mais vendido em Lisboa, depois de O Século e do Diário de Notícias. Tendo ressurgido várias vezes com periodicidades diferentes ao longo dos anos, a sua publicação foi retomada após o 25 de Abril de 1974, por iniciativa de velhos militantes. Ressurgiu em 2017 com o título A Batalha: Jornal de Expressão Anarquista, tendo como diretor João Santiago. Para mais informações, consultar Tavares (2019) e A Batalha (s.d.). , e passagens do romance O Preto do Charleston, publicado no final da década de 1920, quando já eram perceptíveis os sinais de uma deriva totalitária no horizonte, no rescaldo do golpe militar de 28 de maio de 1926. Com o intuito de perceber um pouco melhor qual possa ter sido o impacto da questão racial na cultura portuguesa do tempo, isto é, de que forma a “linha de cor” deixa nessa cultura uma marca, comentarei também passagens da novela Sangue Negro (1923), do romancista Ferreira de Castro (1898-1974), amigo de longa data e correligionário de Mário Domingues no movimento anarcossindicalista português. A amizade entre os dois escritores ter-se-á formado na redação do jornal A Batalha, onde ambos escreveram durante muitos anos, e terá durado várias décadas, como sugere alguma correspondência consultável em arquivo2 2 Em pesquisa realizada na Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra, localizei 16 cartas de Mário Domingues endereçadas a Ferreira de Castro. A primeira data de 11 de janeiro de 1936, e é endereçada de Lisboa, e a última não está datada. A antepenúltima data de 24 de maio de 1973. Deste conjunto fazem parte cartas datilografadas, manuscritas, cartões de visita, telegramas, etc. Para além de notas de circunstância, encontram-se nestes exemplares da correspondência comentários de recepção crítica a obras de Ferreira de Castro, sendo o melhor exemplo uma carta de 18 de abril de 1968, em que Mário Domingues felicita o seu confrade pela publicação da obra Instinto Supremo e pelo tratamento que nela se faz da temática do colonialismo e do ideal da fraternidade universal. Num telegrama datado de 4 de agosto de 1970, felicita Ferreira de Castro pelo “teu justo triunfo internacional”; o uso do possessivo sugerindo uma familiaridade entre ambos os escritores que não se encontra habitualmente noutros exemplares de correspondência ou mesmo nas dedicatórias endereçadas por Mário Domingues a Ferreira de Castro. Espero em breve poder cruzar esses dados com os que eventualmente conseguir obter na Casa-Museu Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis. .

Normalmente atribuída a W. E. B. Du Bois, que a definiu como “the problem of the Twentieth Century”3 3 “o problema do século XX” (Traduzimos). (Du Bois, 1986, p. 359DU BOIS, W. E. B.; HUGGINS, Nathan Irvin. The Souls of Black Folk. In: DU BOIS, W. E. B. Writings. 1st s.l.: Library of America College ed.; Library of America, 1986. pp. 357-546.), a expressão “linha de cor” foi primeiro usada em 1881 pelo abolicionista negro norte-americano Frederick Douglass, num artigo da revista The North American Review com o mesmo nome4 4 Agradeço a Flávio Almada pela referência sobre Douglass. . Aí analisa a questão racial nos EUA, estabelecendo a sua filiação histórica na escravidão e associando-a a uma doença cujos sintomas descreve, não obstante contribua também para destacar a sua dimensão estrutural, visível por meio das suas manifestações em diversas esferas da vida pública: “In nearly every department of American life they are confronted by this insidious influence. It fills the air. It meets them at the workshop and the factory, when they apply for work. It meets them at church, at the hotel, at the ballot box, and worst of all, it meets them at the jury box”5 5 “Em praticamente todos os departamentos da vida americana eles são confrontados com esta influência insidiosa. Ela empesta o ar. Ela encontra-se com eles na oficina e na fábrica, quando procuram emprego. Encontra-se com eles na igreja, no hotel, na cabine de voto e, pior do que tudo, na banca do júri” (Douglass, 1881, p. 568. Traduzimos). . Um detalhe importante neste artigo é a analogia literária que Douglass faz em seguida, apelando assim aos conhecimentos dos seus leitores e procurando uma referência que seja comumente partilhada: “without crime of offense against law or gospel, the colored man is the Jean Valjean of American society. He has escaped from the galleys, and hence all presumptions are against him”6 6 “sem crime de ofensa à lei ou ao Evangelho, o homem de cor é o Jean Valjean da sociedade americana. Como escapou às galés, todas as presunções são contra si” (Douglass, 1881, p. 568. Traduzimos). . Até que ponto estas questões repercutiram na sociedade portuguesa das primeiras décadas do século XX? Como foram contextualizadas de acordo com as especificidades históricas e sociais de um país como Portugal, num período marcado pela memória recente da humilhação pública do último rei de Gaza, conhecido como Gungunhana, ou pela publicação de uma narrativa racista sobre uma figura pública como Fernanda do Vale, conhecida como “A Preta Fernanda” (cf. Totta; Machado, 1912TOTTA, A.; MACHADO, F. Recordações d’uma colonial (Memórias da Preta Fernanda). Lisboa: Off. da Ilustração Portugueza, 1912.)? E por que razões a “linha de cor” não foi, no país, “a questão do século XX”, como predicou Du Bois - que visitou Lisboa em 1923, a convite da Liga Africana, visita da qual há um registo fotográfico -, tendo praticamente desaparecido até os nossos dias7 7 Du Bois publicou, em 1924, um artigo intitulado “Pan-Africa in Portugal”, no qual partilha breves pontos de vista sobre a sua visita a Lisboa e a sua participação no Congresso Pan-Africano. ? Estas são questões a que este ensaio oferece respostas provisórias, baseadas no estado atual da investigação.

Numa obra recente, o sociólogo brasileiro Antônio Sérgio Alfredo Guimarães estuda a formação, durante a década de 1920, daquilo a que chamou “Modernidades Negras”, e oferece uma tipologia básica para enquadrar os diversos modelos de formação:

Na verdade, podemos, grosso modo, seguir três trilhas diferentes para essa modernidade: a norte-americana, cuja primeira contração foi o New Negro Movement (ou Harlem Renaissance); a franco-africana, que tem também início nos anos 1920, mas se consolida apenas nos 1940; e a latino-americana, que também se inicia nos 1920 e se cristaliza no pós-guerra (Guimarães, 2021GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021., p. 78).

Descreve, em seguida, algumas das características mais salientes destas distintas feições de modernidade negra, terminando por, duas páginas depois - e seguindo sugestão de Jean-Loup Amselle -, chamar a atenção para a necessidade de levar em conta as diferenças de processo de formação, relacionadas que estão com processos de desenvolvimento histórico distintos: “Mas é preciso distinguir cada uma dessas formações em separado. O que se passa em cada nação europeia, africana ou americana marca-as de modo particular e influencia o desenvolvimento histórico das demais. A temporalidade é diferente, assim como cada uma das imbricações culturais” (Guimarães, 2021GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021., p. 80). Considero esta chamada de atenção duplamente pertinente, pois, como terão notado os leitores de Antônio Sérgio Guimarães, nenhuma menção é feita a uma modernidade negra portuguesa, sendo as referências a Portugal meramente indiretas e devidas à formação da modernidade negra brasileira; ademais, estou convencido de que esta conspícua ausência se deve precisamente a particularidades da temporalidade portuguesa e das imbricações culturais a que deu azo: é que, sem dúvida devido ao tardio processo de colonização portuguesa no continente africano8 8 A rigor, trata-se de um processo colocado em marcha na sequência da Conferência de Berlim (1884-5), mas cujas etapas decisivas em termos de consolidação territorial apenas se sucedem já no final do período monárquico e da primeira República (1910-1926). O povoamento das principais colônias com população branca oriunda da então metrópole europeia apenas se dá em números expressivos a partir das décadas de 1930 e 1940. A este respeito, ver Alexandre (2017, pp. 432-441). e aos mecanismos de repressão sobre intelectuais negros que não se assumissem como apoiadores do regime, sobretudo após o advento do Estado Novo (1933-1974), o silenciamento produzido sobre a existência no país de um fenômeno sociocultural merecedor do nome de “modernidade negra” foi de tal forma eficaz ao ponto de ser possível excluir-se a consideração de um país com diásporas africanas conhecidas desde pelo menos o século XV.

Com efeito, tem razão Antônio Sérgio Guimarães em sua ressalva, pois apesar de exibir características comuns aos três padrões de modernidade negra por si descritos, o caso português não pode enquadrar-se em nenhum dos três. Em Portugal, o momento de incorporação dos negros na cultura nacional coincide com o projeto de ocupação e desenvolvimento econômico das colônias africanas, ancorado num sistema político que estabeleceu categorias muito estanques e praticamente inacessíveis de cidadania. A coincidência no tempo da consolidação do projeto colonial português, com a afirmação e a cristalização de um sistema político ditatorial - refiro-me ao Estado Novo de António de Oliveira Salazar -, diferente do que se passa em todos os outros países europeus com impérios coloniais africanos, fez com que a modernidade negra portuguesa fosse efetiva e radicalmente silenciada e, portanto, inapelavelmente interrompida. Na verdade, estou convencido de que o caráter coercivo e consequente dessa interrupção, que durou praticamente até o nosso tempo, e fez com que tenham permanecido esquecidos durante décadas os seus protagonistas, é a razão pela qual Alfredo Guimarães e outros estudiosos que o precederam não pensaram ser pertinente a sua consideração como um padrão distinto, cujas interseções com o padrão americano coevas da sua afirmação, por um lado, e os fluxos e refluxos do espaço colonial português durante a sua consolidação militar, administrativa e social, por outro, marcam a sua diferença. A amnésia causada pelo silenciamento forçado foi tal que, para a maioria das pessoas em Portugal, a única cultura negra moderna reconhecida até há pouco tempo era a norte-americana.

Esta amnésia começou a dar de si em anos recentes, com o recrudescimento da ação política de movimentos sociais antirracistas, mais visíveis no rescaldo do assassinato de George Floyd e do movimento Black Lives Matter, e com a afirmação de figuras carismáticas associadas aos movimentos negros e grupos de afrodescendentes. Por sua vez, esta atividade tem estimulado a investigação acadêmica sobre os primeiros movimentos negros em Portugal, a publicação de obras de autores esquecidos com ligações e/ou protagonismo nesses movimentos e a divulgação, na imprensa, de matérias relacionadas com estes assuntos9 9 São exemplos, entre outros, a publicação do artigo acadêmico de Varela e Pereira (2020), que teve versão jornalística publicada na plataforma online Buala em 2019. Com a colaboração da socióloga Cristina Roldão, os mesmos autores ainda realizaram a publicação comemorativa do 110° aniversário do jornal O Negro (2021), um órgão da Associação dos Estudantes Negros e da Liga Acadêmica Internacional dos Negros, e que teve apenas três números. . É neste contexto que se dá a publicação, em 2022, do volume A Afirmação negra e a questão colonial. Textos 1919-1928, uma antologia de crônicas e ensaios do jornalista, cronista e escritor negro português Mário Domingues (1899-1977), organizada pelo sociólogo José Luís Garcia, estudioso que, desde 1995GARCIA, José Luís; CASTRO, José. A Batalha e a Questão Colonial. Ler História. Lisboa: Fim de Século, n. 27-28, pp. 125-146, 1995., vem publicando trabalho científico sobre este autor (Cf. Garcia; Castro, 1995GARCIA, José Luís; CASTRO, José. A Batalha e a Questão Colonial. Ler História. Lisboa: Fim de Século, n. 27-28, pp. 125-146, 1995.). Nunca inteiramente esquecido pelos estudiosos, sobretudo aqueles que antecipam em Portugal uma linha de pensamento pós-colonial como Alfredo Margarido e, mais recentemente, pelos sociólogos, Mário Domingues nunca foi alvo de estudos de fundo na área dos Estudos Literários, e a importância da sua obra permanece ainda desconhecida do grande público. A antologia de José Luís Garcia, antecipada por um artigo no jornal Público, assinala o momento em que o conhecimento sobre a vida e a obra de Mário Domingues transita do foro acadêmico para a esfera pública, em que um público desconhecedor trava conhecimento com uma personalidade vincada e com o tratamento de temas que se pensava estarem circunscritos à atualidade, ou então dizerem exclusivamente respeito a outras sociedades, tais como o da conexão entre escravidão, colonialismo e racismo, aludida na epígrafe. Por outro lado, a expressão “linha de cor” justifica-se enquanto ferramenta analítica, atendendo ao papel que o recrudescimento das lutas emancipatórias das populações negras dos EUA, no rescaldo do falhanço do projeto de “Reconstruction”, teve no pensamento e na escrita de Mário Domingues.

Nascido na Roça Infante D. Henrique, na ilha do Príncipe, filho de uma angolana deportada para o trabalho forçado e de um português branco oriundo da classe média lisboeta, Mário Domingues foi enviado a Lisboa aos dezoito meses para ser educado pelos avós paternos. Como dramatizará mais tarde no romance autobiográfico O Menino entre gigantes (1960)DOMINGUES, Mário. O Menino entre gigantes. Lisboa: Prelo, 1960., dedicado à memória de sua mãe, durante muitos anos a família ocultou-lhe a verdade sobre a origem e o destino de sua mãe, que nunca chegou a conhecer, bem como as circunstâncias de sua ida para Lisboa. A descoberta dessa realidade é um dos momentos fortes de uma narrativa em que é possível ao leitor conhecer o percurso de um jovem negro no seio de uma família burguesa na Lisboa das primeiras décadas do século XX, e, a partir de seu olhar, reconstituir a experiência possível da negritude - apesar do privilégio social inegável da realidade familiar - num país então apostado em consolidar o seu domínio territorial e político no continente africano. Divulgador pioneiro da sua obra, o sociólogo José Luís Garcia afirma, na introdução ao recente volume antológico dos textos de intervenção política de Mário Domingues, que, “por experiência própria, não desconhecia que, mesmo quando os negros conseguiam vencer os obstáculos de classe e se recusavam a aceitar um lugar subordinado na sociedade, isso assomava como ameaça para quem se imaginava hierarquicamente superior pela cor da pele” (Domingues, Garcia, 2022, p. 12DOMINGUES, Mário; GARCIA, José Luís. A Afirmação negra e a questão colonial. Textos, 1919-1928. Lisboa: Tinta-da-China, 2022.), e oferece uma útil visão de conjunto desta produção da primeira fase da carreira de jornalista político, com incidência especial mas não exclusiva no jornal A Batalha:

A partir do artigo “Colonização” [1919], Mário Domingues escreveu muitos outros até sensivelmente 1928DOMINGUES, Mário. Os desenhadores de café. ABC: Revista Portuguesa de Actualidades . Lisboa, n.p., 12 jul. 1928. [...]. Neles revelou uma compreensão aguda dos aspetos quer sociológicos, quer ideológicos e políticos do racismo. Denunciou as crenças, atitudes e comportamentos de preconceito e discriminação social relativamente aos negros assente na ideia de raça que atravessavam a sociedade e as instituições portuguesas; acusou o empreendimento colonialista português (e o de outras potências coloniais) e as políticas de extermínio do mundo social e cultural dos povos nativos dos territórios colonizados; patenteou e combateu as formas dissimuladas de escravatura que continuavam a subjugar, sob o disfarce de trabalho forçado, seres humanos cujas vidas estavam reduzidas ao estatuto de corpos produtivos para o extrativismo dos recursos naturais e expôs uma argumentação precoce favorável às independências africanas” (Domingues, Garcia, 2022, pp. 12-13DOMINGUES, Mário; GARCIA, José Luís. A Afirmação negra e a questão colonial. Textos, 1919-1928. Lisboa: Tinta-da-China, 2022.).

Com efeito, Domingues mostra-se, nesses textos, atento às realidades políticas no terreno e também sintonizado com as lutas dos negros nos EUA, na sequência de graves episódios de violência racial verificados quando do fim do projeto da chamada “Reconstruction”, que incluíram massacres e linchamentos. Mostra-se também em sintonia com os movimentos artísticos que do Harlem irradiarão para a Europa imperialista, como o da chamada Harlem Renaissance. Num artigo de 2019, o antropólogo Pedro Varela e o historiador José Duarte mostram como Domingues não era um meteoro no Portugal republicano, enquadrando o seu percurso político e jornalístico no âmbito da afirmação de diversos movimentos negros que se posicionavam de formas diferentes perante os projetos pan-africanistas que marcaram a época. Estes movimentos incluíam homens e mulheres nas suas fileiras, e ancoravam-se em publicações que tiveram ampla circulação, nomeadamente o jornal O Negro, de cujo primeiro número os mesmos investigadores, em parceria com Cristina Roldão, publicaram, em 2021ROLDÃO, Cristina; PEREIRA, José; VARELA, Pedro. Jornal “O Negro”. Edição Comemorativa do 110º Aniversário. Lisboa: Falas Afrikanas , 2021., uma versão fac-similada, comemorativa do seu primeiro centenário. A par de uma carreira jornalística que se afirmou no órgão oficial do movimento anarcossindicalista A Batalha, Mário Domingues cedo apostou na escrita literária, tendo publicado, na primeira fase de sua carreira, vários romances, contos e teatro. Posteriormente, quando a censura do Estado Novo apertou, a sua vocação literária foi obrigada a seguir outras vias para poder sobreviver, apostando então na tradução, na autoria de novelas populares do gênero Western e detetivesco sob pseudonímia10 10 Esta fase da produção literária de Mário Domingues, marcadamente comercial e orientada para um público das classes populares, foi estudada por Alexandra Lopes (2016) e Maria Lin de Sousa Moniz (2003), que avaliam este corpus a partir dos estudos da tradução. e na produção de uma série de biografias de personalidades da história de Portugal, que lhe asseguraram a sobrevivência econômica a partir dos anos de 1950. José Luís Garcia considera que estas tendências não se devem apenas ao contexto censório e repressor do Estado Novo, vendo Mário Domingues como um autor-charneira atuando num momento da história em que o jornalismo de massas se desenvolvia, a par com gêneros literários populares, ambos contribuindo para - e refletindo - o aumento da literacia entre as classes populares: “Mário Domingues foi um ator deste universo: escrever notícias para servir de apelo às paixões e seguir semelhante princípio para a literatura” (Domingues, Garcia, 2022, p. 14DOMINGUES, Mário; GARCIA, José Luís. A Afirmação negra e a questão colonial. Textos, 1919-1928. Lisboa: Tinta-da-China, 2022.). De acordo com a pesquisa que pude efetuar em arquivo no verão de 2022, esta ideia faz sentido: se é verdade que após o golpe militar de 1926 e, sobretudo, a partir da consolidação do Estado Novo na década seguinte, os gêneros da literatura popular serão os únicos disponíveis para alguém como Mário Domingues poder continuar a investir numa carreira literária, também é necessário reconhecer que o autor cultivou esses gêneros ainda na primeira fase da sua carreira, quando a censura e a perseguição política não eram ainda um fator preponderante da vida social e política do país. Entre 1922 e 1931, Mário Domingues publicou na revista ABC mais de uma dezena de textos (eventualmente mais, tendo em conta que vários artigos não assinados ao longo dos anos versam sobre temas que Domingues dominou, tornando ao menos plausível a sua autoria), entre contos, artigos de crítica e opinião. Entre estes, destacam-se textos como o conto “O escravo”, de 1921, que é de temática marcadamente antirracista e antecipa, de alguma maneira, o drama contado em Sangue Negro, de Ferreira de Castro, e crônicas como “Os desenhadores de café”, de 1928, em que o escritor exercita os seus conhecidos dotes de descrição de tipos sociais e de ambientes urbanos, com destaque para esse espaço de convivialidade por excelência e de criação cultural no período modernista que foi o café, tema a que o autor regressaria num livreto de 1959 intitulado Recordações do Café RoyalDOMINGUES, Mário. Recordações do Café Royal. Lisboa: s.n., 1959., e que foi composto para assinalar a efeméride do encerramento do café com o mesmo nome e para acompanhar uma exposição de pintura de seu filho António Domingues. Interessa destacar que a revista ABC permitiu a Mário Domingues atingir um público socialmente mais heterogêneo, que incluía as classes burguesas que não liam A Batalha, e que, nas páginas desta publicação, ele cruzou com condiscípulos como o já referido Ferreira de Castro e Reinaldo Ferreira, mais conhecido pelo nome da sua persona, o “Repórter X”. Os contos que publica nesta revista, e a exemplo da restante ficção deste período, cujo inventário exaustivo está ainda por ser feito, incidem sobre temas de atualidade social e/ou de intervenção moral a partir de um ponto de vista crítico, como o incesto, a loucura, a crítica religiosa, vinhetas do quotidiano, o suicídio e a singularidade das personalidades artísticas, temas que foram e/ou serão versados também por uma panóplia de escritores associados a correntes tão díspares como o primeiro e segundo modernismos, ou o neorrealismo. Por outro lado, a ABC destacou-se também por conferir visibilidade aos temas relacionados com a modernidade negra, com recensões a espetáculos de teatro e dança de companhias negras em visita a Portugal, artigos sobre a influência da arte africana no modernismo europeu ou sobre desenvolvimentos políticos em países como a Libéria ou as colônias portuguesas, os novos ritmos musicais como o Charleston, ou mesmo reportagens sobre a vida das comunidades negras na cidade de Lisboa, como acontece no número de 5 de março de 1931, sob o título “O triunfo da raça negra: como vivem os pretos de Lisboa?”O TRIUNFO DA RAÇA NEGRA. COMO VIVEM OS PRETOS DE LISBOA? ABC: Revista Portuguesa de Actualidades. Lisboa, n.p., 5 mar. 1931., em que o próprio Mário Domingues é referido e fotografado, e que poderá ser de sua autoria, apesar de o texto não surgir assinado. Por fim, importa mencionar que, nas páginas desta revista, surgem também caricaturas e publicidade a lojas e produtos que investem em representações estereotipadas e racistas de pessoas negras, atestando assim as contradições da época e de uma modernidade que coincidia com a relação colonial que Portugal mantinha então com os seus espaços ultramarinos.

Mesmo após o silenciamento forçado da sua escrita ativista - ou de “rebelião negra” (Domingues, Garcia, 2022DOMINGUES, Mário; GARCIA, José Luís. A Afirmação negra e a questão colonial. Textos, 1919-1928. Lisboa: Tinta-da-China, 2022., p. 63) como lhe chama José Luís Garcia; Richard Cleminson chama-lhe “his most overt anarchist period”11 11 “o período mais abertamente anarquista” (Traduzimos). (Cleminson, 2019, p. 450CLEMINSON, Richard. Anarchism and Anticolonialism in Portugal (1919-1926): Mário Domingues, A Batalha and Black Internationalism. Journal of Iberian and Latin American Studies, v. 25, issue 3, pp. 441-465, 2019. ) -, e que não se restringiu ao gênero jornalístico, já que a sua peça de teatro Má Raça foi alvo de censura12 12 Publicada nas páginas de África Magazine em 1932, a peça foi censurada em 1938. -, Mário Domingues mostrar-se-á a par dos movimentos negros internacionais e do seu significado histórico, cultural e político no contexto da cultura ocidental sua contemporânea. Num texto intitulado “A mensagem poética dos negros” (s.d.)DOMINGUES, Mário. A Mensagem poética dos negros. Arquivo Mário Pinto de Andrade. Lisboa (Fundação Mário Soares). s.d. Disponível em: Disponível em: http://casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04354.005.004 . Acesso em: 25 jan. 2023.
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, que ele preparou para ser apresentado ao Primeiro Congresso dos Escritores e Artistas Negros, o qual se reuniu em Paris em 1952, sob solicitação de Mário Pinto de Andrade, ainda em forma manuscrita, Mário Domingues apresenta os movimentos poéticos negros que acompanharam a formação e a expansão do pan-africanismo, da diáspora negra nas Américas e no Caribe às poéticas africanas em línguas europeias, mas faz também a recensão das recensões de que foram alvo esses movimentos e seus promotores presentes e futuros um pouco por todo o mundo: de raridade irrepetível a representante de uma espécie pertencente a um mundo à parte, o paternalismo das classificações e o deslumbramento obsidiado alternam como resposta dos meios literários ocidentais à escrita negra. Sugerindo a sua sintonização com esses movimentos, bem como evidenciando a sua familiaridade com a cena literária internacional, Domingues dirá dos poetas negros que “a princípio, confundiram-se um pouco, ante os olhares menos atentos e superficiais, com os poetas surrealistas. Mas não eram surrealistas, eram negros” (Domingues, 1942, p. 2). E distinguirá os dois fenômenos de uma forma surpreendente, atribuindo à poesia negra a organicidade e o automatismo de um inconsciente coletivo que em uníssono celebra o ato de cantar como exercício de libertação, enquanto ao surrealismo atribui um artificialismo narcisista. A necessidade de estabelecer esta distinção é em si mesma interessante, mas o que para mim sobressai nesta leitura é a inversão afoita e desassombrada dos papéis: a literatura de autoria branca ser objeto de análise, no discurso de um intelectual negro que marca reiteradamente o seu estatuto de sujeito. Na entrevista que deu a Michel Laban em Paris em meados dos anos 80 (e publicada em volume em 1997ANDRADE, Mário Pinto de; LABAN, Michel. Mário Pinto de Andrade: Uma Entrevista. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1997.), Pinto de Andrade afirma que foi ele mesmo quem leu este texto no Congresso, e que o mesmo foi publicado no número que a revista Présence Africaine dedicou ao Congresso. Curiosamente, Mário de Andrade refere-se já a Mário Domingues como a alguém já esquecido enquanto jornalista e ativista político nos anos de 1950, em que a geração da Casa dos Estudantes do Império afirmou o seu protagonismo, devido à forma como ocupava o tempo para assegurar a sobrevivência pela escrita. Diz Andrade sobre Domingues:

era um homem encantador, com grande sentido de humor, mas completamente devorado pela tarefa da sobrevivência através da escrita, e fazendo evidentemente coisas em que não pensava. Contava a história de Portugal para os portugueses colocando-se em cena como português, exaltando os grandes valores, as grandes figuras, tal como elas eram vistas pelos historiadores clássicos portugueses. Não fazia um trabalho de historiador, de crítica: punha no romance o que a história oficial tinha dito sobre os portugueses. É um desvio do seu talento. Ele não podia viver em Portugal enquanto jornalista independente: era preciso escolher, e isso era muito difícil. Fez a escolha do compromisso (Andrade, 1955ANDRADE, Mário Pinto de. Qu’est-ce que c’est le “lusotropicalismo”?. Presence Africaine: Revue culturelle du monde noir, v. 165-166, n. 1-2, pp. 37-45, 1955., p. 85)13 13 Agradeço a Cláudia Castelo pela referência que me levou ao texto de Mário Domingues e ao trecho da entrevista de Mário Pinto de Andrade sobre o mesmo. .

É uma pesada ironia que um autor que publicou dos mais contundentes e precoces textos anticoloniais terminasse por ocupar a parte mais substancial da sua carreira com a produção textual em que reproduz o olhar do colonizador sobre a sua própria história, é uma forma particularmente automutiladora de silenciamento, plasmada no juízo de Pinto de Andrade, segundo o qual “é um desvio do seu talento”. Por outro lado, é possível depreender que o estatuto de desconhecido, que Mário de Andrade associa a Mário Domingues nesta entrevista, não se devesse exclusivamente à sua condição de escritor de gêneros populares com grande sucesso - ao contrário das suas obras da primeira fase, que são muito difíceis de se encontrar hoje no mercado de livros usados, as biografias e os romances populares encontram-se com grande facilidade e em vários exemplares -, mas também à autocensura a que o autor se reduziu. Isso mesmo se torna patente numa curiosa carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre, de 15 de março de 1952DOMINGUES, Mário. Carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre. 15 mar. 1952. Arquivo Documental Gilberto Freyre, ficha de recolha 46. Recife (Fundação Gilberto Freyre). 1952., em que aquele lamenta não lhe ter sido possível oferecer em pessoa exemplares dos seus livros ao sociólogo pernambucano no momento do encontro de ambos em Lisboa, quando Freyre regressava da viagem que tinha feito às colônias a convite do Governo português (e de que resultou no livro Aventura e Rotina), e diz: “e confesso, sem desdouro para outros confrades brasileiros dos mais ilustres que nos têm visitado, que de entre todos foi V. Ex.ª o único que procurei, rompendo uma espécie de muralha de isolamento que há muitos anos levantei à minha volta”14 14 Cf. a carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre de 15 de março de 1952 (Domingues, 1952). Agradeço à historiadora Cláudia Castelo pela partilha desta referência. , acrescentando:

Disse-me V. Ex.ª, se bem se lembra, de que esperava ver-me e à minha esposa no Brasil. Creia que é esse o meu maior desejo. Gostaria até de proferir algumas palestras sobre a nossa Literatura, a nossa História e sobre Arte Negra ou dos Negros (este assunto aprece-me de grande interesse num país que tão facilmente resolveu o seu problema rácico); mas que iria eu fazer num meio onde sou inteiramente desconhecido? (Domingues, 1952DOMINGUES, Mário. Carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre. 15 mar. 1952. Arquivo Documental Gilberto Freyre, ficha de recolha 46. Recife (Fundação Gilberto Freyre). 1952.).

A carta é curiosa também por esta admissão que Domingues faz da afinidade que julga encontrar com o lusotropicalismo, sugerindo que, nesta época, e apesar da recepção crítica que recebeu precocemente15 15 Entre outros, é importante destacar o artigo de Mário Pinto de Andrade “Qu’est-ce que le ‘luso tropicalismo’?” (1955). , o pensamento freyreano se afigurava ainda como inovador e/ou o Brasil como um país que, ao contrário de Portugal, teria já resolvido a questão racial, o que nos permite levantar a hipótese de que o autoisolamento a que havia recorrido poderá também tê-lo afastado das correntes mais radicais do pensamento político negro as quais então começavam a se manifestar em Portugal, nas publicações de autores associados à Casa dos Estudantes do Império (cf. Mata, 2015MATA, Inocência. A Casa dos Estudantes do Império e o lugar da literatura na consciencialização política. Lisboa: União das Cidades Capitais de Língua Portuguesa, 2015. ). Por outro lado, há que se levantar ainda a hipótese de Mário Domingues não ter tido, em relação ao Brasil e à sua história negra, um conhecimento aprofundado, e à luz dos conhecimentos atuais é uma incógnita que tenha tido qualquer contato com representantes dos movimentos negros brasileiros, um tema que decerto merece futuro escrutínio.

Logo no primeiro texto antologiado por José Luís Garcia, publicado em A Batalha em 9 de setembro de 1919, com o sugestivo título de “Colonização” (1919), o jovem jornalista de vinte anos reflete sobre a relação entre os acontecimentos traumáticos verificados nos EUA - quando a população branca reage com massacres e linchamentos às reivindicações dos veteranos negros de guerra que regressavam dos campos de batalha na Europa no final da Primeira Guerra Mundial esperando melhor tratamento - e a amnésia europeia, e propõe uma aproximação comparativa com a realidade do colonialismo europeu (e português em particular) no continente africano. Isto é, procurando entender as razões do aparente alheamento europeu perante os acontecimentos americanos, Domingues propõe uma correção de óptica, estabelecendo uma analogia com a realidade do colonialismo na África, em que o colonialismo europeu é denunciado como a barbárie da civilização:

Há dias, na América, os negros e os brancos amotinaram-se; houve mortos e houve feridos; correu o sangue pelas ruas. Que disse a Europa sobre o caso? Pouco, muito pouco; alguns telegramas lacónicos e nada mais. Porque não falou ela; porque não se ocuparam os jornais do assunto e não patentearam aos povos de que lado estava a razão? Seria por alguns mortos e feridos a mais não merecerem a atenção de quem assistiu à queda de 15 milhões de vidas, ou haverá conveniência em não se mexer na verdade? [...] Analisando atentamente as revoltas atuais, vê-se que elas tendem para um esforço grandioso no sentido da Igualdade e da Justiça - ou nele degeneram. E a dos negros na América não fica por aqui. A imprensa burguesa da Europa não se referiu com mais largueza de vistas a esta questão, dando-lhe o aspecto de simples incidente, porque falar-se de pretos e de brancos implica falar-se de colonização, e colonização, até hoje, ainda não se pôde traduzir senão por uma palavra - crime. Os governos de um país civilizado, a título de exportarem a civilização para os povos selvagens, levam-lhes o canhão que os mata e o comércio que os rouba. Se colonizar é isto, a colonização é indubitavelmente um crime (Domingues, Garcia, 2022DOMINGUES, Mário; GARCIA, José Luís. A Afirmação negra e a questão colonial. Textos, 1919-1928. Lisboa: Tinta-da-China, 2022., pp. 89-90)16 16 Sublinhados do autor. .

A contundência e a frontalidade que caracterizam a linguagem empregada, bem como o olhar atento à interseção da questão racial com questões de classe, caracterizará a escrita de Mário Domingues durante toda a primeira fase da sua carreira: “Quem quiser compreender profundamente a situação dos negros americanos que repare na analogia tremenda da luta dos pretos espoliados dos seus direitos contra os brancos que lhos negam e a luta dos trabalhadores enganados contra a burguesia que os engana” (Domingues, Garcia, 2022, p. 89DOMINGUES, Mário; GARCIA, José Luís. A Afirmação negra e a questão colonial. Textos, 1919-1928. Lisboa: Tinta-da-China, 2022.). O descrédito da ideia de “missão civilizadora”, com que os governos da República e depois o Estado Novo procuraram justificar a sua ação colonizadora na África, é total a partir deste texto, e será aprofundado em textos subsequentes publicados em A Batalha ou noutras publicações em que participou ocasionalmente, como a revista ABC, destinada a um público mais amplo e burguês do que o muito popular (em ambos os sentidos da palavra) órgão do movimento anarcossindicalista: “Exterminar um povo, enfraquecê-lo e bestializá-lo com o álcool; obrigá-lo a crer num Deus inverosímil; fornicar-lhes as mulheres e as filhas; viciar o meio puro dos sertões: eis que tem sido a missão civilizadora da Europa, eis a sua cultura!” (Domingues, 1922, p. 90). Muito antes da divulgação do ideário freyreano em Portugal, que o Estado Novo de Salazar iria eleger como ideologia colonial oficial do estado português a partir do pós-guerra e no rescaldo da Conferência de Bandung (1955), já se entrevê, nestes textos de juventude, a refutação da ideia de miscigenação como empresa harmoniosa, por meio da tônica colocada na violência sexual. Atenção especial será prestada a São Tomé e Príncipe, arquipélago de onde o autor era natural, e que, na época em que publica estes artigos, era alvo de suspeição e denúncia internacional devido ao trabalho escravo clandestino nas roças de cacau, destino que foi o de sua mãe; mas também a Angola, colônia a que o autor dedica uma série de dezessete artigos nos quais denuncia a brutalidade da política colonial de Norton de Matos e do então novo alto-comissário da colônia, Rego Chaves. Sobre São Tomé, também Ferreira de Castro escreverá, alguns anos mais tarde, um contundente artigo intitulado “Justiça Colonial”, publicado em 1925, no qual, para além de denunciar o colonialismo português, fará referência à sua novela Sangue Negro, de 1923.

Todas estas questões repercutem na sua escrita de ficção deste período, embora seja possível encontrar nesses textos outros matizes que vale a pena registrar. Apesar das dificuldades apontadas no seu jornalismo político, relacionadas que estavam com o contexto de expansão colonial e concomitante esvaziamento democrático, dá-se, na década de 1920, uma inclusão cultural e simbólica das populações negras nos países ocidentais, sem que se aprofunde a sua integração política e/ou se altere a hierarquia racial pré-existente, o que facilitará a manutenção de velhos e o aparecimento de novos estereótipos difundidos por uma indústria cultural em expansão17 17 Caso paradigmático é o já referido da publicação, em 1912, do livro Recordações d’uma colonial. Memórias da Preta Fernanda, que, entre outras coisas, é um compêndio dos estereótipos raciais em circulação na sociedade portuguesa do tempo. . Como defensor e como divulgador, Mário Domingues acompanhava as tendências artísticas do tempo, quer elas fossem as do modernismo vanguardista ou as do pan-africanismo, ou mesmo a antecipação do que viria a ser mais tarde o neorrealismo. Por isso procurará, na sua ficção desta fase, escrever sobre as peripécias e os dilemas existenciais suscitados por essa crescente presença de artistas e personalidades negras em sociedades que construíram um imaginário etnicamente homogêneo. Em 1921, publica, na revista ABC (para a qual contribuirá com assiduidade durante mais de dez anos com artigos e contos), o conto “O escravo”, no qual antecipa tópicas fanonianas, como a das relações amorosas entre o homem negro e a mulher branca. Como José Luís Garcia mostra na introdução do volume antológico, o conto é “um bom ponto de partida para uma reflexão sobre a construção identitária do negro, a liberdade e a problemática do reconhecimento nas relações humanas” (Domingues, 1921, p. 64DOMINGUES, Mário. “O escravo”. ABC: Revista Portuguesa de Actualidades , Lisboa, pp. 8-9, 6 jan. 1921.), incidindo sobre a natureza neurótica dos relacionamentos construídos sobre assimétricas posições de poder. Mais tarde, já em 1932 e em plena ascensão do Estado Novo, publicará ainda a peça Má Raça. Comédia em 3 actosDOMINGUES, Mário. Má Raça. Comédia em 3 Atos. Lisboa: Falas Afrikanas, 2018., que foi censurada e apreendida sete dias após a sua publicação. Num registro mais melodramático, inverte aqui o ângulo de observação em relação a “O escravo”, pois o alvo do ódio racista é agora uma jovem mulher negra recém-casada com um português branco, que trabalha numa colônia africana e que a traz para Portugal, onde, nos primeiros tempos, irá viver na companhia da sogra e da sua filha de uma anterior relação. Aí é vítima constante de abusos de toda a ordem, sofrendo injúrias raciais, mas também pela asfixia de uma ordem social enquistada e parada no tempo.

Em O Preto do Charleston (1930), Domingues escreve sobre a Lisboa dos loucos anos 20, das femmes fatales e dos clubes de jazz e cabarés onde pontuam personagens como o protagonista Tomé, um bailarino negro de origem angolana que trabalha no Roma Club, o qual, segundo o narrador, constituía a “alma” do local: “Tomé era absolutamente necessário à vida do clube. Dava-lhe um caráter moderno, bizarro, e dava-lhe uma permanente nota de alegria esquisita, plena de humorismo” (Domingues, 1929, p. 47DOMINGUES, Mário. O Preto do Charleston. Lisboa: Guimarães & Ca., 1929.). Neste romance, hoje completamente esgotado mesmo no mercado de segunda mão, que é dos primeiros publicados em Portugal a ter como protagonista um negro, Tomé surge aprisionado entre a sua consciência da liberdade e da dignidade possíveis, cultivada ao longo de uma vida de viagem e sintonia com os movimentos negros nos EUA, e a visão estereotipada que a sociedade em que vive lhe volta constantemente. Segundo um artigo sem autoria assinalada publicado no jornal Correio da Manhã, a inspiração para esta personagem terá Mário Domingues obtido a partir da sua própria experiência temporária como porteiro do Clube Ritz (Quando Lisboa se perdeu, 2003QUANDO LISBOA SE PERDEU. 18 mai. 2003. Disponível em: Disponível em: https://www.cmjornal.pt/domingo/detalhe/quando-lisboa-se-perdeu . Acesso em: 25 jan. 2023.
https://www.cmjornal.pt/domingo/detalhe/...
). Porém, na biografia que publicou do escritor, Luís Dantas faz referência a um episódio em que, trabalhando como jornalista sob disfarce numa reportagem sobre a mendicidade em Lisboa, Mário Domingues cruzou um dia com um luandense conhecido seu de nome Pedro, cuja história de vida se assemelha à da protagonista de O Preto do Charleston:

Mas eu conhecera muito aquele conterrâneo, o Pedro, natural de Luanda, embarcadiço, que sofrera misérias por falta de trabalho, e que chegara a fazer bailados modernos, em algumas revistas teatrais no Parque Mayer. O Pedro, ante o meu aspecto sórdido, mostrava-se confrangido. [...]

Aceitei a oferta. Pedro é um coração pleno de generosidade. Muito orgulhoso da sua raça, ele tem a preocupação de demonstrar que os pretos são tanto ou mais susceptíveis de praticar a solidariedade como os brancos. A escola de sofrimento nesse mundo sem fim, tem-lhe lapidado o espírito, de onde se desprendem, por vezes, fulgores de nova beleza. Eu sentia nesse momento um estranho prazer em tornar-me muito desgraçado aos seus olhos só para verificar até onde iria o seu espírito fraternal. [...]

Aquele repasto reconfortante foi absorvido em silêncio porque na presença dos outros convivas não tínhamos coragem de falar das nossas desventuras (Dantas, s.d., pp. 40-2DANTAS, Luís. Mário Domingues. S.l.: Edição de autor, s.d.).

Uma vez mais o tema é o da neurose dos relacionamentos inter-raciais numa sociedade com hierarquias raciais rígidas, com a diferença de que Tomé não é um escravo como o Jan de “O escravo”, mas sim um sobrevivente e um “self-made man”. Na verdade, o fulcro do dilema existencial de Tomé é o fato de, apesar de não se encontrar numa literal condição servil, o seu destino não poder ser senão trágico, uma vez que se envolve emocionalmente num relacionamento com uma mulher branca, Odette, uma espécie de femme fatale que o descarta quando descobre a natureza sincera dos sentimentos que o dançarino negro nutre por si. Mais além desta trama, e da reconstituição dos ambientes dos meios boêmios lisboetas do período, o romance oferece um olhar sobre o perfil de artista que era possível a um homem negro então assumir, quando as novas formas musicais da diáspora negra chegavam também a Lisboa, cidade capital de um império africano, mas cujo interesse pelo exótico africano era moldado por tendências que chegavam da Europa ou dos EUA:

Não tardou que Tomé, o preto dançarino, executasse o seu primeiro “charleston” dessa noite, ante o olhar atento e assombrado de alguns mirones que tentavam apreender por artes mágicas, ao tan-tan rítmico do jazz, ele conseguia, sem uma falha na cadência, movimentar as suas pernas bambas, as pernas de trapo, conjugando-as com o balancear desconexo dos braços de pêndula. Era um boneco desarticulado que, movido por um mecanismo oculto, adquiria a flexibilidade de um farrapo abandonado ao vendaval impetuoso daquelas músicas de sertão africano, que floresceram por estranha afirmação da raça nessa Norte América intransigente e severa para com os negros (Domingues, 1929DOMINGUES, Mário. O Preto do Charleston. Lisboa: Guimarães & Ca., 1929., p. 24)18 18 Atualização da ortografia de minha responsabilidade. .

Mas a expressão corporal do dançarino negro não serve apenas os propósitos descritivos do narrador, ou mesmo apenas para evidenciar a plasticidade da linguagem do autor; ela adquire também um valor diegético quando desperta reações no público, e especialmente reações de ordem mimética na sua futura amante, que sugerem o espelhismo distorcido como condição do convívio inter-racial numa sociedade colonial: “Enquanto perturbado e cambaleante, César tomava o caminho da saída, Odete, numa loucura nervosa, torcendo os braços e pernas, numa caricatura quase obscena, seguia o preto bailarino, que todo se contorcia nos esgares lúbricos e destrambelhados de um charleston diabólico” (Domingues, 1929DOMINGUES, Mário. O Preto do Charleston. Lisboa: Guimarães & Ca., 1929., p. 29).

Neste romance, escrito no final da década de 20 e publicado quatro anos após o golpe militar que abriu o caminho à instauração do Estado Novo, a deriva totalitarista da sociedade portuguesa já é detectável em algumas cenas em que surgem personagens sinistras, como os “quatro homens mascarados, empunhando pistolas” (Domingues, 1929DOMINGUES, Mário. O Preto do Charleston. Lisboa: Guimarães & Ca., 1929., p. 117) que invadem momentaneamente o Roma Club e intimam o dono para uma conversa a sós no escritório, cujo conteúdo nunca é revelado. A consolidação do novo regime nos anos seguintes imporá um fim prematuro ao desenvolvimento pela escrita das temáticas relacionadas com a emancipação negra, o anticolonialismo e o antirracismo, e ao tom contundente e à linguagem frontal que foram a sua imagem de marca durante os anos finais da República. Apesar de viver para assistir ao fim do colonialismo e da ditadura de Salazar e Marcelo Caetano, e de, como vimos, demonstrar ainda uma enorme lucidez na sua compreensão do contributo dos movimentos negros de segunda geração (os movimentos do eixo África-Caribe-Paris, como o da “Négritude”, que se geram em torno da revista Présence Africaine), palpável no texto que redigiu nos anos 50 sobre “A mensagem poética dos negros”, para Mário Pinto de Andrade ler no Congresso dos Escritores e Artistas Negros de Paris, podemos apenas imaginar o que teria sido a obra de Mário Domingues se a Modernidade Negra portuguesa não tivesse sido interrompida. Viria a ter algum impacto palpável sobre escritores portugueses brancos, de forma a desestabilizar o consenso colonial que depois se gerou? E que diferença teria feito no acesso de outras pessoas negras ao mercado literário e à visibilidade mediática? Não podemos senão especular, porque, com o seu silenciamento compulsivo (imposto pela censura do estado ou pela autocensura inerente à escrita de sobrevivência que caracteriza a segunda fase da sua carreira, durante a qual se transforma num escritor popular de enorme sucesso comercial), a “linha de cor” teria de aguardar várias décadas até haver de novo condições para ser pensada. E então, com o fim do colonialismo convencional em 1975, no rescaldo das guerras de libertação nacional, chegou até a alimentar-se a esperança, depois transformada em ilusão, de que o problema que Du Bois havia diagnosticado ao século talvez terminasse com ele.

Ferreira de Castro escreve no mesmo período, e com uma visão dos processos históricos que não destoa do que encontramos em Mário Domingues. Não por acaso, este dedica O Preto do Charleston a Ferreira de Castro. Sobre Sangue Negro, é preciso lembrar que se trata de uma obra posteriormente repudiada pelo autor, que a excluiu das suas Obras Completas, publicadas a partir dos anos 50. Talvez por esta razão se trate de uma obra praticamente impossível de se encontrar no mercado livreiro, sendo muito raros os exemplares ainda em circulação. As razões desse repúdio, creio, depreendem-se da feição da obra que Ferreira de Castro publicou nas décadas seguintes, começando logo com A Selva, em 1930, marcada por um forte cunho de realismo social, mas no estado atual da minha investigação não tive ainda oportunidade de confirmar documentalmente informações que circulam e segundo as quais a rejeição se deveria ao fato de tratar-se de obra de juventude, em que o autor não teria ainda logrado definir os princípios norteadores da sua escrita19 19 No verão de 2019, tive a oportunidade de desenvolver alguma investigação de arquivo no Museu Ferreira de Castro em Sintra, que depois pretendia cruzar com dados que eventualmente obtivesse na Casa-Museu Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis, terra natal do escritor. Infelizmente, a eclosão da pandemia de Covid-19, no outono desse ano, impediu a continuidade desse estudo, que pretendo retomar no verão de 2023. . Trata-se, em todo o caso, do único exemplo que conheço de uma obra assinada por um autor branco em Portugal em que a temática do racismo é tratada de forma frontal e constitui o cerne da narrativa. Quaisquer que tenham sido as razões da rejeição posterior da obra, a verdade é que, durante os anos 20, o autor irá se referir a ela e citá-la nos textos mais panfletários que escreveu durante esse período, nos quais se refere à questão colonial de forma clara e, em alguns passos, com uma linguagem tão contundente como a do seu correligionário. Assim, no artigo “Justiça colonial”, publicado no Suplemento Literário Ilustrado (publicação quinzenal de A Batalha) de 16 de março de 1925, podemos ler:

Nas selvas africanas, eu já o escrevi uma vez há sangue humano que clama há séculos una implacável vingança contra os colonizadores portugueses. Todo o bandido que no continente não teria saciado seus instintos sem se candidatar a hóspede da Penitenciaria, demanda as colónias e ali, em nome da lei, em nome da supremacia do branco, em nome do “poder colonizador de Portugal” assassina, castiga e martiriza, impunemente, a pobres seres indefesos, a pobres negros, cujo único crime é terem-se sujeitado a muitos séculos de escravidão. E esta “justiça”, bem conhecida em Portugal, merece da maioria um silêncio cúmplice e até a chancela de indivíduos que se dizem intelectuais. Por isso não me surpreende que em S. Tomé a “justiça” entrasse no caminho da violência, da parcialidade e do despotismo. Mas também não me surpreenderei se um dia os “justiçados” abandonarem a sua letargia e resolverem executar aos justiçadores... (Castro, 1925cCASTRO, Ferreira de. Justiça colonial. Suplemento Literário Ilustrado de A Batalha, n. 99, 19 out. 1925c.).

Em “A causa negra”, artigo de outubro do mesmo ano, o articulista denuncia a participação de delegados do Partido Africano na Conferência de Genebra (como o fez também Mário Domingues), como estando ao serviço do projeto colonial português, por isso não passar de um ato de traição: “O papel desses negros, cuja vaidade e interesses políticos os levaram a afirmar que os seus irmãos vivem felizes na África, que não são martirizados, que não são explorados, iguala-se ao dos próprios espoliadores.” (Castro, 1925aCASTRO, Ferreira de. A causa negra. Suplemento Literário Ilustrado de A Batalha, n. 99, 19 out. 1925a.). Por outro lado, em “o culto da literatura branca” encontramos a defesa, por antonomásia, de um projeto literário em contraciclo com o gosto que Ferreira de Castro entendia como sendo dominante na época em que escrevia, projeto que consistiria em parte na valorização do legado do realismo naturalista do século anterior:

As conquistas do realismo, do naturalismo? Derrotá-las, exterminá-las, eis o lema! O esforço dos escritores do século passado em meter, dentro de relativas possibilidades, a Verdade da Literatura? Esforço de infiéis, de hereges, de homens dissolventes e imorais - esforço que deve ser aniquilado! A luta para que a Arte tivesse uma intenção progressiva e fosse um pendão desfraldado na própria vanguarda da Humanidade? Uma ameaça perigosa, que é necessário destruir! (Suplemento Literário Ilustrado, 1926SUPLEMENTO LITERÁRIO ILUSTRADO, n. 124, 12 abr. 1926.).

Sangue Negro narra a viagem que o jovem negro Raimundo, proveniente de uma família bem colocada na hierarquia social da colônia africana em que nasceu, empreende a uma estância termal não identificada, demandando “um refúgio até onde não chegassem os velados sarcasmos com que costumavam acolhê-lo, por ele ser de cor preta” (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 9). Como rapidamente Raimundo e o leitor descobrem, essa demanda é inútil, visto que a estância termal acolhe também pessoas que têm por prática social emitir esses mesmos sarcasmos, velados e descarados. Logo na primeira manhã, quando se dirige à sala de refeições para tomar o café da manhã, diz-nos o narrador

Servido o café, ia Raimundo para levantar-se quando notou que das senhoras recém-chegadas a mais idosa, sorrindo ironicamente, o assinalava à mais nova: - através dum dos espelhos que lhe refletia a imagem:

- Estava ali um preto... (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 10).

Também na descrição física e psicológica que faz do protagonista, o narrador nos deixa saber que Raimundo conhecia em seu âmago o “problema do século” de que falava Du Bois:

Novo: - de corpo esbelto - de gesto elegante, não encontrara, contudo, o amor em nenhuma das mulheres que desejara; e antes, no olhar de todas elas, ele descobrira sempre, escondido como um objeto imoral, o manto deprimente da Piedade. Apesar do seu espírito culto e da sua palavra fluente e sugestiva, onde dir-se-ia existir o ritmo da selva de que ele era oriundo, não conseguia apaixonar nenhuma alma feminina, a não ser aquelas almas que vivem encarceradas num corpo disforme, num corpo aleijado. Só as feias [...] lhe dava, por vezes a torrente do seu incompreendido carinho, e davam-lhe esse carinho como se o dessem a um companheiro da Fatalidade: a um irmão, cuja cor, constituía também um defeito, uma enorme deformidade (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 14).

Raimundo dedica-se a estudos de Antropologia, por meio dos quais “pretendia provar que a raça negra não era uma raça inferior” (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 19), mas nem mesmo a sua autoridade científica o poupa em relação ao destino que o espera: a estância termal será o lugar onde essa “enorme deformidade” contribuirá para um desfecho fatídico, quando a paixão por Berenice, a mais nova das duas mulheres cuja conversa Raimundo escuta ao café da manhã, se revela fatal, não tanto por não ser correspondida mas por ser proibida. Por outro lado, a própria autoridade científica de Raimundo é ridicularizada num dos jornais matutinos em que se faz a resenha do seu último livro. Numa tarde em que regressa ao seu quarto, após deambulação intempestiva pelo parque termal, decide abrir os jornais e depara-se com o seu nome. Diz o narrador:

O jornal, evidenciando notáveis dotes de ignorância, ridicularizava a obra; rebatia sarcasticamente as afirmações científicas que ela continha, e terminava insinuando que o autor era um negro pretensioso, que tentava encobrir com falsos e risíveis argumentos a indiscutível inferioridade da raça a que pertencia (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 44).

Dois livros de poemas que Raimundo publicara anos antes sofreram a mesma recepção hostil: “Versos sonoros, perfeitos, que por irradiarem um requintado sensualismo foram acusados de selvagens, de afrontosos para a moral da civilização” (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 45).

Curiosamente, o sensualismo que o narrador atribui à linguagem poética de Raimundo pode detectar-se nas próprias páginas de Sangue Negro. Na verdade, não me surpreenderia que fosse essa uma das razões da posterior rejeição da obra pelo seu autor. Num desfecho que me parece muito pouco convincente, Raimundo acabará por encontrar no suicídio a saída para o seu drama existencial, caracterizado pelo conflito entre o acesso aparentemente livre ao consumo e ao luxo, que o seu desafogo econômico lhe permite enquanto herdeiro de uma família colonial, e a impossibilidade de uma relação amorosa com uma mulher branca e, assim, do verdadeiro reconhecimento social, motivada pela força que o preconceito racial assume numa sociedade marcada por um projeto de poder imperial sobre pessoas consideradas inferiores na escala humana e seus territórios. A questão da raça em Sangue Negro não é apenas um tema versado de forma inédita na literatura portuguesa do tempo, ela interpela a própria forma literária, marcada por um comprazimento plástico pela nota melodramática. Quando, numa cedência ao impulso, decide cortar os pulsos, Raimundo é assaltado por uma consciência emancipadora do futuro, e do papel que os intelectuais africanos deveriam assumir na libertação efetiva das populações africanas sob jugo colonial. Quando compreende que essa consciência é afinal uma manifestação da sua covardia, tenta em vão suster o fluxo sanguíneo. Os parágrafos finais de Sangue Negro são uma homenagem ao decadentismo literário:

E lentamente a própria tortura de Raimundo se foi tenuisando: - e ele sentia agora uma volúpia estranha invadi-lo: - como se adormecesse entre algodão em rama: - como se submergisse num mar cálido de espuma.

E o seu coração palpitava já mais espaçadamente: - as pálpebras iam-se descerrando: - e tornando vítreo, lustroso, o branco dos olhos: - e o seu rosto desenrugava-se e adquiria essa serenidade pungente que têm os quadros das “mater dolorosas”. E até ao quarto negro: - onde o cinamomo e o incenso continuavam a espiralar-se: - chegavam agora mais pungentes: - mais lentos e sentimentais: - os sons duma estranha sinfonia, que sob os resplendores do crepúsculo prestes a agonizar: - os violinos executavam no parque silencioso (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., p. 61).

Este sentido estetizado da desistência contrasta fortemente, é certo, com a mensagem trazida pela consciência agonizante de Raimundo, que se assemelha muito ao conteúdo dos artigos de cariz antirracista e anticolonialista que o autor (juntamente com Mário Domingues) foi publicando em A Batalha ao longo da década de 20:

O sangue negro fora prodigamente e indiferentemente derramado: fora vertido sem vingança através o verde da selva africana, sobre o azul dos oceanos e sob o sol tropical do continente africano formava crostas suporejantes onde as aves carnívoras iam saciar a sua fome rapineira. E quando os gritos dos ablucionistas perturbaram a marcha dos traficantes da carne humana, e quando os impiedosos senhores foram impossibilitados de escriturarem em seus livros comerciais as cifras que representavam os escravos, a raça deixou de ser vendida; não deixou, porém, de ser escravizada. E Raimundo via legiões de estrangeiros, como bandos de corvos, cruzarem e escurecerem agora o céu da sua pátria, e em nome da civilização e do progresso, de que se dizem emissários, alugarem por risíveis salários aqueles braços robustos que outrora compravam por risíveis moedas. E via seus irmãos perlados de suor, maltrapilhos, a rasgarem o solo da pátria. Não em seu proveito, mas sim em benefício do invasor, de todas essas coortes de exploradores que fizeram da África um mar adormecido, onde é possível conquistar todos os corais e todas as pérolas da ambição (Castro, 1923CASTRO, Ferreira de. Sangue Negro. Lisboa: Bibliotheca “A Hora”, 1923., pp. 57-8).

Em A SelvaCASTRO, Ferreira de. A Selva. Romance. 19ª Ed. Lisboa: Guimarães & C.a, 1960., Ferreira de Castro irá parcialmente redimir o protagonista de Sangue Negro, quando, no final do romance, ao negro Tiago cabe a responsabilidade de provocar a conflagração que matará Seu Juca, o dono da exploração seringueira na Amazônia em que a escravatura, sob outro nome, era praticada já em pleno século XX, poucos anos volvidos da emancipação dos negros do Brasil. O altruísmo de Tiago em benefício dos companheiros de infortúnio contrasta com a morte violenta que parece ser a única solução vislumbrável para uma civilização moderna assente sobre práticas ancestrais de opressão racial e econômica. Por sua vez, a morte de Raimundo em Sangue Negro contrasta com a de Tiago, não apenas por se tratar de um suicídio com uma nota de autocomplacência, mas porque a consciência política e a ação emancipadora surgem em A Selva num homem de condição social inferior, sem acesso à literacia. Seja como for, o destino sacrificial parece ser o único possível para os homens negros com propensões emancipatórias em ambas as obras, como, de resto, já o era para os protagonistas negros na obra do seu correligionário Mário Domingues. Curiosamente, a criação do personagem Tiago e do final redentor de A Selva é antecipada num conto publicado no número 65 do Suplemento Literário Ilustrado, de 23 de fevereiro de 1925, intitulado “O escravo redimido”CASTRO, Ferreira de. O escravo redimido. Suplemento Literário Ilustrado de A Batalha, n. 65, n.p., 23 fev. 1925b., e em que o protagonista tem já o mesmo nome, o que sugere que o autor terá, no espaço de dois anos, superado a estética decadentista que ainda está presente em Sangue Negro, e logrado imaginar uma narrativa em que a negritude é associada à possibilidade da redenção política.

Nenhum outro movimento literário português do século XX irá pensar o lugar do homem negro numa sociedade hegemonicamente branca, embora as questões da desigualdade econômica e social venham a adquirir proeminência naquele que será o movimento estético-literário dominante até à década de 70, o neorrealismo. Como lembrou Alfredo Margarido em 1980MARGARIDO, Alfredo. Das Várias maneiras de ver e de não ver a colonização. In: MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980. pp. 5-31., o consenso colonial teve em Portugal um peso definitivo:

A direita escreveu sempre sobre a África, desaguadouro de muitos aristocratas e de muitos burgueses arruinados, como já sabemos desde A Ilustre Casa de Ramires, a esquerda nem sempre foi capaz de compreender a estrutura do facto colonial. Incapaz, por isso mesmo, de pôr a nu as várias formas da dominação. Basta pensar num certo número de escritores neo-realistas que, tendo trabalhado e vivido em África, não puderam descrever, menos ainda denunciar, a brutalidade da colonização. [...] Qual a razão desta impossibilidade? Não pretendo responder, mas compreende-se que esta dificuldade se deve a uma ausência de teoria sobre o colonialismo português. Desarmados, os escritores da denúncia são incapazes de denunciar. A situação seria paradoxal se não pusesse em evidência o peso definitivo do colonialismo (Margarido, 1980MARGARIDO, Alfredo. Das Várias maneiras de ver e de não ver a colonização. In: MARGARIDO, Alfredo. Estudos sobre literaturas das nações africanas de língua portuguesa. Lisboa: A Regra do Jogo, 1980. pp. 5-31., p. 28).

Não foram apenas os escritores portugueses que se alhearam dos temas da opressão colonial em contexto metropolitano, também os estudiosos da literatura trabalharam num regime de não-inscrição desses temas e da escrita de autoria negra, que continuam até hoje a não marcar presença na grande maioria dos currículos acadêmicos. Seria preciso aguardar a chegada dos estudos pós-coloniais para que se aprofundassem as brechas no consenso que autores como Alfredo Margarido e Eduardo Lourenço foram abrindo a partir da década de 60, para que se operassem as correções de óptica que permitiram a redescoberta, ainda em grande parte por fazer, da linha de cor nas letras portuguesas.

REFERÊNCIAS

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  • TOTTA, A.; MACHADO, F. Recordações d’uma colonial (Memórias da Preta Fernanda). Lisboa: Off. da Ilustração Portugueza, 1912.
  • VARELA, Pedro; PEREIRA, José Augusto. As Origens do movimento negro em Portugal (1911-1933): uma geração pan-africanista e antirracista. Revista de História, v. 179, n. 179, pp. 1-36, 2020.
  • 1
    Fundado em 1919, o jornal viu suspensa a sua circulação diária quando as suas instalações foram invadidas e destruídas pela polícia, em 26 de maio de 1927. Chegou a ser o terceiro jornal diário mais vendido em Lisboa, depois de O Século e do Diário de Notícias. Tendo ressurgido várias vezes com periodicidades diferentes ao longo dos anos, a sua publicação foi retomada após o 25 de Abril de 1974, por iniciativa de velhos militantes. Ressurgiu em 2017 com o título A Batalha: Jornal de Expressão Anarquista, tendo como diretor João Santiago. Para mais informações, consultar Tavares (2019TAVARES, Rui. A Batalha dos 100 anos. 22 fev. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.publico.pt/2019/02/22/opiniao/opiniao/batalha-100-anos-1862944 . Acesso em: 25 jan. 2023.
    https://www.publico.pt/2019/02/22/opinia...
    ) e A Batalha (s.d.)A BATALHA. s.d. Disponível em: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Batalha . Acesso em: 25 jan. 2023.
    https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Batalha...
    .
  • 2
    Em pesquisa realizada na Casa-Museu Ferreira de Castro, em Sintra, localizei 16 cartas de Mário Domingues endereçadas a Ferreira de Castro. A primeira data de 11 de janeiro de 1936, e é endereçada de Lisboa, e a última não está datada. A antepenúltima data de 24 de maio de 1973. Deste conjunto fazem parte cartas datilografadas, manuscritas, cartões de visita, telegramas, etc. Para além de notas de circunstância, encontram-se nestes exemplares da correspondência comentários de recepção crítica a obras de Ferreira de Castro, sendo o melhor exemplo uma carta de 18 de abril de 1968DOMINGUES, Mário. Carta a Ferreira de Castro de 18 abr. 1968. Arquivo de Correspondência. Sintra (Museu Ferreira de Castro). 1968. , em que Mário Domingues felicita o seu confrade pela publicação da obra Instinto Supremo e pelo tratamento que nela se faz da temática do colonialismo e do ideal da fraternidade universal. Num telegrama datado de 4 de agosto de 1970DOMINGUES, Mário. Telegrama a Ferreira de Castro de 04 ago. 1970. Arquivo de Correspondência. Sintra (Museu Ferreira de Castro). 1970. , felicita Ferreira de Castro pelo “teu justo triunfo internacional”; o uso do possessivo sugerindo uma familiaridade entre ambos os escritores que não se encontra habitualmente noutros exemplares de correspondência ou mesmo nas dedicatórias endereçadas por Mário Domingues a Ferreira de Castro. Espero em breve poder cruzar esses dados com os que eventualmente conseguir obter na Casa-Museu Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis.
  • 3
    “o problema do século XX” (Traduzimos).
  • 4
    Agradeço a Flávio Almada pela referência sobre Douglass.
  • 5
    “Em praticamente todos os departamentos da vida americana eles são confrontados com esta influência insidiosa. Ela empesta o ar. Ela encontra-se com eles na oficina e na fábrica, quando procuram emprego. Encontra-se com eles na igreja, no hotel, na cabine de voto e, pior do que tudo, na banca do júri” (Douglass, 1881DOUGLASS, Frederick. The Color Line. The North American Review, n. 132, pp. 567-577, 1881., p. 568. Traduzimos).
  • 6
    “sem crime de ofensa à lei ou ao Evangelho, o homem de cor é o Jean Valjean da sociedade americana. Como escapou às galés, todas as presunções são contra si” (Douglass, 1881DOUGLASS, Frederick. The Color Line. The North American Review, n. 132, pp. 567-577, 1881., p. 568. Traduzimos).
  • 7
    Du Bois publicou, em 1924, um artigo intitulado “Pan-Africa in Portugal”DU BOIS, W. E. B. Pan Africa in Portugal. New York, NY: Crisis Publishing Co., 1924., no qual partilha breves pontos de vista sobre a sua visita a Lisboa e a sua participação no Congresso Pan-Africano.
  • 8
    A rigor, trata-se de um processo colocado em marcha na sequência da Conferência de Berlim (1884-5), mas cujas etapas decisivas em termos de consolidação territorial apenas se sucedem já no final do período monárquico e da primeira República (1910-1926). O povoamento das principais colônias com população branca oriunda da então metrópole europeia apenas se dá em números expressivos a partir das décadas de 1930 e 1940. A este respeito, ver Alexandre (2017ALEXANDRE, Valentim. Fomento e povoamento. In: ALEXANDRE, Valentim. Contra o Vento. Portugal, o império e a maré anticolonial (1945-1960). Lisboa: Círculo de Leitores, 2017. pp. 432-441., pp. 432-441).
  • 9
    São exemplos, entre outros, a publicação do artigo acadêmico de Varela e Pereira (2020VARELA, Pedro; PEREIRA, José Augusto. As Origens do movimento negro em Portugal (1911-1933): uma geração pan-africanista e antirracista. Revista de História, v. 179, n. 179, pp. 1-36, 2020.), que teve versão jornalística publicada na plataforma online Buala em 2019PEREIRA, José; VARELA, Pedro. As origens do movimento negro e da luta antirracista em Portugal no século XX: a geração de 1911-1933. Buala. 8 jan. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.buala.org/pt/mukanda/as-origens-do-movimento-negro-e-da-luta-antirracista-em-portugal-no-seculo-xx-a-geracao-de-1 . Acesso em: 25 jan. 2023.
    https://www.buala.org/pt/mukanda/as-orig...
    . Com a colaboração da socióloga Cristina Roldão, os mesmos autores ainda realizaram a publicação comemorativa do 110° aniversário do jornal O Negro (2021), um órgão da Associação dos Estudantes Negros e da Liga Acadêmica Internacional dos Negros, e que teve apenas três números.
  • 10
    Esta fase da produção literária de Mário Domingues, marcadamente comercial e orientada para um público das classes populares, foi estudada por Alexandra Lopes (2016LOPES, Alexandra. Invisible Man: Sketches for a Portrait of Mário Domingues , Intellectual and (Pseudo)Translator. In: WOODS, Michelle (Ed.). Authorizing Translation: The IATIS Yearbook. London: Routledge, 2016. pp. 61-79.) e Maria Lin de Sousa Moniz (2003MONIZ, Maria Lin de Sousa. A Case of Pseudotranslation in the Portuguese Literary System. In: SERUYA, Teresa (Ed.). Estudos de tradução em Portugal: novos contributos para a história da Literatura Portuguesa. Amesterdão: Target, 2003. pp. 201-209.), que avaliam este corpus a partir dos estudos da tradução.
  • 11
    “o período mais abertamente anarquista” (Traduzimos).
  • 12
    Publicada nas páginas de África Magazine em 1932, a peça foi censurada em 1938.
  • 13
    Agradeço a Cláudia Castelo pela referência que me levou ao texto de Mário Domingues e ao trecho da entrevista de Mário Pinto de Andrade sobre o mesmo.
  • 14
    Cf. a carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre de 15 de março de 1952DOMINGUES, Mário. Carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre. 15 mar. 1952. Arquivo Documental Gilberto Freyre, ficha de recolha 46. Recife (Fundação Gilberto Freyre). 1952. (Domingues, 1952DOMINGUES, Mário. Carta de Mário Domingues a Gilberto Freyre. 15 mar. 1952. Arquivo Documental Gilberto Freyre, ficha de recolha 46. Recife (Fundação Gilberto Freyre). 1952.). Agradeço à historiadora Cláudia Castelo pela partilha desta referência.
  • 15
    Entre outros, é importante destacar o artigo de Mário Pinto de Andrade “Qu’est-ce que le ‘luso tropicalismo’?” (1955ANDRADE, Mário Pinto de. Qu’est-ce que c’est le “lusotropicalismo”?. Presence Africaine: Revue culturelle du monde noir, v. 165-166, n. 1-2, pp. 37-45, 1955.).
  • 16
    Sublinhados do autor.
  • 17
    Caso paradigmático é o já referido da publicação, em 1912, do livro Recordações d’uma colonial. Memórias da Preta Fernanda, que, entre outras coisas, é um compêndio dos estereótipos raciais em circulação na sociedade portuguesa do tempo.
  • 18
    Atualização da ortografia de minha responsabilidade.
  • 19
    No verão de 2019, tive a oportunidade de desenvolver alguma investigação de arquivo no Museu Ferreira de Castro em Sintra, que depois pretendia cruzar com dados que eventualmente obtivesse na Casa-Museu Ferreira de Castro em Oliveira de Azeméis, terra natal do escritor. Infelizmente, a eclosão da pandemia de Covid-19, no outono desse ano, impediu a continuidade desse estudo, que pretendo retomar no verão de 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2023
  • Aceito
    21 Mar 2023
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