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Retratos da formação médica nos novos cenários de prática

RESENHAS

Retratos da formação médica nos novos cenários de prática

RETRATOS DA FORMAÇÃO MÉDICA NOS NOVOS CENÁRIOS DE PRÁTICA. Nogueira MI. São Paulo: Editora Hucitec; 2012. 157p. ISBN: 978-85-64806-05-4

O livro de Maria Inês Nogueira vem em boa hora. A despeito de estar acontecendo uma grande discussão na área da epistemologia, capitaneada pelas ciências hard em alguns meios acadêmicos (embora ainda sejam poucos, e tal discussão seja praticamente ignorada nas ciências sociais), muito pouco se vê aqui no Brasil. Este livro trata, na verdade, de uma discussão epistemológica que se coloca por meio da formação do profissional em medicina. Com base no conceito de estilo de pensamento desenvolvido por Fleck, a autora encaminhou seu trabalho para a possibilidade de pensar-se em transformações epistemológicas. Na prática, só por meio dessas poderão verdadeiramente se fazer valer os preceitos constitucionais de 1988 consubstanciados no Sistema Único de Saúde. Palavras suas: "para que se possa modificar um estilo de pensamento médico, há que se modificar a compreensão do processo saúde-doença e o modo de fazer clínica" (p. 16). Isso é epistemologia. Este livro, resultado de estágio pós-doutoral, é leitura obrigatória para todos aqueles preocupados com o tema saúde em geral.

No capítulo 1, A Reorientação da Formação Médica: De um Olhar Anatomoclínico para um Olhar Ampliado, a autora apresenta seu quadro teórico, partindo dos estudos de Michel Foucault. Esse autor chamou de anatomoclínico o olhar que passou a existir quando se deixou de lado a vida para ver a morte, e o hospital passou a ser o centro não só do tratamento de doenças, como também da produção de verdades. No Brasil, aponta a autora, diferentemente do que acontece em outros países, a clínica, por meio da Saúde Coletiva, tornou-se objeto de investigação. O debate que se coloca aqui procura dar conta de compreender a construção de práticas de cuidado integrais no sentido de que o trabalho em saúde seja realmente humanizado. Assim, os conceitos de "tecnologias leves" (que dizem respeito às relações) e "necessidades de saúde" (condições físicas, emocionais e sociais dignas de viver) vão ao encontro de outro olhar, de outra compreensão do processo de adoecimento humano que procura fugir do paradigma cartesiano tão bem representado no modelo flexneriano de organização da formação médica.

No capítulo 2, O Quadro Metodológico da Investigação, é apresentado o campo de pesquisa, a Escola Médica da Universidade Federal Fluminense (UFF). A escolha deveu-se ao processo de mudança curricular desenvolvido por essa instituição desde 1992, cuja intenção era articular as relações entre universidade e sociedade por meio do serviço de saúde. O novo currículo, implantado em 1994, privilegiava a inserção do aluno, desde o início do curso, na rede de serviços e práticas comunitárias, retirando-o, nesse primeiro momento, da estrutura hospitalar. Tal inversão, ao deixar de ver a morte imediatamente – por meio do hospital – e procurar ver a vida, ficou representada principalmente nas disciplinas de Trabalho de Campo Supervisionado (TCS I e II, que aconteciam nos dois primeiros anos), coadjuvadas pelas de Saúde e Sociedade e Epidemiologia. Tendo o princípio da integralidade como arcabouço analítico, a autora elegeu o "olhar" como categoria central de análise, e os conceitos de "estilo de pensamento/coletivo de pensamento" de Fleck para desenvolver a etnografia que se propôs por intermédio das técnicas de análise documental, observação participante e entrevistas. Essas foram feitas com alunos e preceptores/professores dos grupos observados.

A Construção de um Olhar Ampliado, o capítulo 3, relata as falas dos alunos entrevistados em relação ao novo currículo da UFF, especialmente no que se refere à ausência de Anatomia no primeiro semestre – disciplina presente senão em todos, mas em quase todos os cursos de medicina no Brasil. Trabalho de Campo Supervisionado I e Saúde e Sociedade I foram as disciplinas que mais chamavam a atenção dos alunos pelo fato de serem as mais diferentes, as que não existiam em outras escolas de medicina. Assim, nesse primeiro semestre já ficava clara a opção pelo polo ético-humanístico. O olhar ampliado se dava pelo acréscimo da incorporação de saberes não biomédicos.

Um Olhar sobre o Sujeito: Aprendizagem em Cenários da Vida Real, o capítulo 4, relata a experiência dos alunos em transporem o aprendizado feito em sala de aula para os cenários da vida real. Isso foi possível pela inclusão de Trabalho de Campo Supervisionado I (no primeiro e no segundo semestres). À época da pesquisa, foram trabalhados os temas do envelhecimento no primeiro semestre e aids para o segundo período, assuntos escolhidos entre tantos outros. A disciplina de TCS desenvolve-se da seguinte forma: inicialmente são feitas discussões sobre metodologia da pesquisa social, seguidas por trabalho com textos voltados para cada temática específica. Assim, referindo-se apenas ao primeiro semestre, foram desenvolvidas as seguintes atividades: discussões de texto sobre o tema, apresentação de entrevistas realizadas pelos alunos com idosos próximos, preparação de roteiro de entrevista com idosos nas visitas aos asilos, visitas a espaços que oferecem cursos e atividades para idosos, discussão do tema sexualidade na terceira idade (com dramatização final desenvolvida pelos alunos) e visita a um centro de convivência que oferece atividades artísticas para idosos.

Um Olhar sobre a Produção do Cuidado em Saúde na Atenção Básica, o capítulo 5, relata a experiência dos alunos em Trabalho de Campo Supervisionado II, que ocorre no terceiro e no quarto semestres. A proposta, em acordo com TCS I, é proporcionar contato, vivência e reflexão dos estudantes de medicina nos espaços institucionais voltados para a produção do cuidado de saúde na Atenção Básica. Nesse segundo ano do curso de medicina, o aluno está dentro de uma unidade de saúde, em contato com a complexidade do ato de cuidar, fazendo rodízio para conhecer sua demanda e seu funcionamento, desde a sala de curativos até o sistema de informação.

O capítulo 6, Discussão dos Resultados, trata das conclusões que puderam ser tiradas da inclusão das disciplinas de Trabalho de Campo Supervisionado I e II. Sobre a primeira, embora no dizer da autora tenha se ampliado o olhar sobre o adoecimento humano, proporcionado pelo referencial das ciências humanas, críticas foram apontadas pelos alunos, como o excesso de carga horária. Em relação à TCS II, observou-se que os objetivos foram alcançados, já que se entendia o sujeito em seu contexto social numa ampliação da clínica por meio da construção de vínculos e trabalho em equipe multidisciplinar. Uma crítica à disciplina se destacava entre os alunos: o número reduzido de preceptores.

Integração Curricular: Limites e Possibilidades, o capítulo 7, relata as dificuldades enfrentadas para a implantação do novo currículo. Entre outras, destacam-se a tripla cisão na formação por conta de uma divisão do corpo docente: professores da área da Saúde Coletiva, professores do Instituto Biomédico (responsáveis pelas disciplinas básicas) e professores das áreas clínicas. Essa divisão praticamente invalida os esforços para mudanças efetivas. Por outro lado, há possibilidades de melhoria mediante investimento no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva.

Nas considerações finais, a autora pontua sobre o modelo de formação profissional do médico inserido no estilo de pensamento biomédico, e o desafio de toda ordem que se coloca para quem deseja ampliar a ideia de clínica. Pode-se concluir com a autora que sementes foram plantadas. O tempo será de fundamental importância para que frutos/flores venham a ser colhidos/as pela sociedade. Não há como fazer colheita sem o ato de plantar. Este foi feito.

Fátima Cristina Vieira Perurena

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, Brasil.

perurena@terra.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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