Acessibilidade / Reportar erro

Fratura-descolamento epifisário medial da articulação esternoclavicular com desvio posterior em atleta de judô - equivalente de luxação esternoclavicular posterior

Resumos

A luxação esternoclavicular posterior é uma lesão traumática rara que apresenta risco potencial de lesão de estruturas mediastínicas. O diagnóstico é fundamentalmente clínico e o seu tratamento é urgente. Os autores apresentam o caso clínico de um jovem atleta de judô com uma fratura-descolamento epifisário medial pós-traumático, com desvio posterior (lesão equivalente da luxação esternoclavicular posterior em idade pediátrica). Foi submetido à redução aberta e reparação ligamentar com recurso a miniâncora. O resultado clínico e radiológico é excelente, tendo o atleta retomado a sua atividade desportiva sem limitações. Discutem-se as particularidades dessa patologia, assim como as diferentes abordagens terapêuticas e as suas complicações.

Articulação esternoclavicular/lesões; Articulação esternoclavicular/cirurgia; Atletas


Posterior sternoclavicular dislocation is a rare traumatic injury that presents a potential risk of injury to mediastinal structures. The diagnosis is fundamentally clinical and treatment is done on an emergency basis. The authors report the clinical case of a young judo athlete with post-traumatic medial epiphyseal fracture-detachment, with posterior displacement (lesion equivalent to posterior sternoclavicular dislocation at pediatric ages). He underwent open reduction and ligament repair by means of a mini-anchor.The radiological and clinical outcome was excellent, and the athlete returned to his sports activity without limitations. We discuss the particular features of this pathological condition, along with the different therapeutic approaches and their complications

Sternoclavicular Joint/injuires; Sternoclavicular Joint/surgery; Athletes


Introdução

As luxações posteriores da articulação esternoclavicular são raras e o diagnóstico e o tratamento representam um desafio para o ortopedista. A estabilidade dessa articulação é conferida pela cápsula articular, pelo ligamento esternoclavicular anterior (mais forte), pelo ligamento costoclavicular e pelo disco articular. Nas luxações esternoclaviculares posteriores ocorre rotura da cápsula articular e dos ligamentos esternoclaviculares anterior e posterior, assim como do ligamento costoclavicular. Em idade pediátrica, é possível o descolamento epifisário medial com desvio posterior, uma vez que o núcleo de ossificação se desenvolve no fim da adolescência e até aos 25 anos. Clinicamente os doentes apresentam dor espontânea agravada pela palpação local e impotência funcional do ombro homolateral, podendo apresentar uma depressão mais ou menos acentuada no nível da face medial da clavícula. Sintomas como a disfagia e a dispneia podem estar presentes e indiciam compressão do mediastino. O diagnóstico é clínico, contudo a radiografia (RX) e principalmente a tomografia computadorizada (TC) são cruciais para uma melhor caracterização da lesão. A redução urgente, cruenta ou incruenta, é mandatória.

Relato do caso

Atleta do sexo masculino, com 17 anos, praticante de judô, vítima de traumatismo direto do ombro direito após projeção ao solo durante um combate. Deu entrada no Serviço de Urgência com dor no hemitórax superior direito e impotência funcional do membro superior direito. Apresentava ao exame objetivo dor à palpação da extremidade medial da clavícula direita, sem deformidade evidente, com disfagia associada e sem déficits neurovasculares. O RX inicial (Fig. 1) não evidenciava com clareza qualquer lesão, e, perante a suspeição clínica de luxação esternoclavicular posterior, procedeu-se à realização de TC, a qual confirmou tratar-se de uma fratura-descolamento epifisário medial com desvio posterior (Fig. 2).

Fig. 1
- RX inicial.

Fig. 2
- TC (corte axial) evidenciando incongruência da articulação esternoclavicular direita, com desvio posterior da clavícula.

Método

O doente foi operado de seguida, e, sob anestesia geral, procedeu-se à tentativa de redução da fratura-descolamento de forma incruenta: tração, abdução do braço e manipulação da extremidade medial da clavícula com auxílio de uma pinça de roupa. Apesar de conseguida a redução fechada, dada a sua instabilidade posterior procedeu-se a uma redução aberta e reconstrução ligamentar com miniâncora e pontos transósseos (Figs 3 -7).

Fig. 3
- Visível a depressão do bordo medial da clavícula direita.

Fig. 4
- Abordagem cirúrgica.

Figs. 5 e 6
- Imagens intraoperatórias mostrando fraturadescolamento epifisário cominutiva da porção medial da clavícula.

Fig. 7
- Reparação ligamentar com miniâncora e pontos transósseos.

Resultados

No pós-operatório imediato houve remissão completa da disfagia. O atleta foi seguido em consulta de ortopedia, tendo ficado imobilizado com tipoia durante seis semanas. Iniciou movimentos pendulares à quarta semana e fisioterapia com reabilitação funcional intensiva à sexta semana, sendo a abdução o último movimento a ser trabalhado. Alcançou a mobilidade total do membro superior direito por volta das oito semanas, tendo retomado a sua atividade desportiva ao nível pré-lesional aos quatro meses. Um ano depois o atleta encontra-se assintomático.

Discussão

As luxações esternoclaviculares posteriores são lesões raras, muito menos frequentes do que as luxações anteriores, apresentando uma taxa de incidência que varia entre 5% e 27%.11. Bucholz RW, Heckman JD, Court-Brown CM, Tornetta P. In: Rockwood and Green's, Fractures in adults. 6th ed. Philadelphia: Lippincott Williams Wilkins; 2006. p. 1365-97. Encontram-se muitas vezes associadas a modalidades desportivas de contato, como o rugby e o judô, ou na sequência de acidentes de trânsito. São normalmente causadas por traumatismo direto sobre a clavícula ou por traumatismo indireto com compressão lateral dos ombros (homolateral ou contralateral). A fratura concomitante da primeira costela é comum. Nos casos de traumatismo violento em torno do ombro, de forma direta ou indireta, devem ser sempre excluídas lesões da articulação gleno-umeral e da acromioclavicular, uma vez que, sendo essas articulações muito mais frequentemente lesadas, podem mascarar a existência de uma lesão a nível da articulação esternoclavicular.22. Chaudhry FA, Killampalli VV, Chaudhry M, Holland P, Knebel R. Posterior dislocation of the sternoclavicular joint in a young rugby player. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(5):376-8.

No ser humano, a última cartilagem de crescimento a completar o seu processo de ossificação localiza-se na extremidade medial da clavícula. O seu núcleo de ossificação persiste até os 23-25 anos, altura em que a epífise medial se funde com a diáfise. Os ligamentos esternoclaviculares inserem-se ao nível da epífise, deixando a fise em posição extracapsular e vulnerável a descolamentos epifisários. Esse fato, aliado à hiperfrouxidão e à vasta amplitude de movimentos do membro superior, torna os jovens mais expostos a fraturas-descolamentos epifisários, em vez das tradicionais luxações puras da articulação esternoclavicular. Dessa forma, as fraturas-descolamentos epifisários podem ser identificadas de acordo com a classificação de Salter-Harris, sendo a sua grande maioria lesão tipo I e II. Essas lesões podem apresentar um desvio anterior ou posterior, de acordo com a força deformante, sendo o desvio posterior menos frequente, mas muito mais grave,33. Sarwark JF, King EC, Janicki JA. Proximal Humerus, Scapula, and Clavicle. In: Rockwood and Wilkin's, Fractures in children. 7th ed. Philadelphia: Lippincott Williams Wilkins; 2010. p. 1873-89. apresentando como potenciais complicações a compressão de estruturas vitais a nível do mediastino superior - nomeadamente a traqueia e laringe, o esôfago, plexo braquial, os grandes vasos (veia braquiocefálica, artéria aorta, duto torácico) e pulmões.44. Pearson MR, Leonard RB. Posterior sternoclavicular dislocation: a case report. J Emerg Med.1994;12(6):783-7. Por esse motivo a redução da fratura-luxação é uma emergência para evitar sequelas graves que podem até levar à morte do paciente. O seu diagnóstico é fundamentalmente clínico e a presença de disfagia, dispneia ou alterações da voz é sintoma crucial, representando gravidade pela compressão de estruturas do mediastino.

Assim, a fratura-descolamento epifisário medial da articulação esternoclavicular com desvio posterior representa um equivalente de luxação esternoclavicular posterior pura, com abordagem e tratamento idêntico.

Inicialmente deve ser feita uma radiografia simples antero-posterior (AP) e de perfil das clavículas. Contudo, devido à dificuldade técnica de obter uma imagem de perfil corretamente executada e dada a sua difícil interpretação causada pela sobreposição óssea, a radiografia em AP e a radiografia em AP com inclinação do raio cranialmente assumem grande importância. A TC (idealmente com contraste para averiguar a integridade das estruturas vasculares) permite diagnosticar corretamente a luxação (ou fratura-luxação), assim como avaliar a compressão de estruturas mediastínicas. Em casos especiais o uso de arteriografia pode ser útil, caso se suspeite de lesão arterial, permitindo averiguar a extensão dela.55. Mirza AH, Alam K, Ali A. Posterior sternoclavicular dislocation in a rugby player as a cause of silent vascular compromise: a case report. Br J Sports Med. 2005;39(5):e28.

Nos casos de luxação esternoclavicular posterior, a redução incruenta sob anestesia geral é normalmente conseguida em 80% dos casos,55. Mirza AH, Alam K, Ali A. Posterior sternoclavicular dislocation in a rugby player as a cause of silent vascular compromise: a case report. Br J Sports Med. 2005;39(5):e28. aplicando-se, de forma combinada, tração, abdução e extensão do braço. A colocação de um apoio posterior (barra de silicone, por exemplo) sob o dorso do doente na região interescapular auxilia a manobra, promovendo uma hiperabdução e extensão da cintura escapular. Por vezes é necessário usar uma pinça de campo para reduzir a luxação. Da mesma forma, em doentes jovens com fraturas-descolamentos epifisários com desvio posterior, torna-se fundamental avaliar a estabilidade da redução, com recurso de intensificador de imagem por meio de incidências oblíquas.2 2. Chaudhry FA, Killampalli VV, Chaudhry M, Holland P, Knebel R. Posterior dislocation of the sternoclavicular joint in a young rugby player. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(5):376-8.Uma vez conseguida a redução, a imobilização deve ser feita com imobilização "em 8" (igual à usada nas fraturas da clavícula) durante quatro semanas, permitindo a cicatrização ligamentar, seguido de um programa de fisioterapia com vistas à reabilitação funcional do membro afetado.

Nos doentes com luxações irredutíveis ou instabilidade franca após redução, seja por diagnóstico tardio em lesões subagudas ou crônicas, ou por interposição de tecidos moles nos casos traumáticos agudos, deve-se proceder à redução aberta associada à fixação. Nesses casos a reconstrução ligamentar pode ser suficiente. Contudo, por vezes é necessária a fixação com material de osteossíntese com uso de fios de Kirschner, parafusos66. Brinker MR, Bartz RL, Reardon PR, Reardon MJ. A method for open reduction and internal fixation of the unstable posterior sternoclavicular joint dislocation. J Orthop Trauma. 1997;11(5):378-81. ou placa.77. Hecox SE, Wood GW 2nd. Ledge plating technique for unstable posterior sternoclavicular dislocation. J Orthop Trauma. 2010;24(4):255-7. Dada a raridade da patologia e a escassez de trabalhos publicados, não existe ainda consenso acerca do melhor método de fixação dessas lesões. A cleidectomia parcial (exérese de parte da clavícula) com remoção ad minimum da sua porção medial é admissível nos casos de luxações crônicas dolorosas.44. Pearson MR, Leonard RB. Posterior sternoclavicular dislocation: a case report. J Emerg Med.1994;12(6):783-7.

Apesar da estabilidade normalmente conseguida após redução e fixação cirúrgica da articulação esternoclavicular, é importante manter o seguimento desses pacientes até a idade adulta, uma vez que sequelas como instabilidade recorrente ou perda de redução podem ocorrer, levando ao posicionamento da extremidade medial da clavícula dentro do mediastino e consequente compressão de estruturas locais.

As complicações cirúrgicas mais frequentes são o pneumotoráx e a migração de material de osteossíntese, mais comum no caso de fixação com fios de Kirschner ou pinos, podendo ser fatais para o doente.66. Brinker MR, Bartz RL, Reardon PR, Reardon MJ. A method for open reduction and internal fixation of the unstable posterior sternoclavicular joint dislocation. J Orthop Trauma. 1997;11(5):378-81.

As sequelas mais comuns relacionadas com o tratamento incorreto dessa patologia são a instabilidade posterior recorrente e a dor quando da mobilização do membro contralateral.88. Battaglia TC, Pannunzio ME, Chhabra AB, Degnan GG. Interposition arthroplasty with bone-tendon allograft: a technique for treatment of the unstable sternoclavicular joint. J Orthop Trauma. 2005;19(2):124-9.

No nosso caso clínico não se verificou comprometimento de estruturas vizinhas nem a presença de hematoma intramediastínico, graças ao diagnóstico e tratamento cirúrgico precoce no serviço de urgência. A redução e a estabilidade articular conseguidas foram excelentes, como se pode verificar na TC de controle efetuado sete meses depois da cirurgia (Fig. 8).

Fig. 8
- TC de controle feita aos sete meses pós-operatório (corte coronal).

As luxações esternoclaviculares posteriores e as fraturas-descolamentos epifisários mediais da articulação esternoclavicular com desvio posterior são lesões raras e equivalentes. Por causa do encerramento tardio do núcleo de ossificação medial da clavícula, o jovem adulto encontra-se mais vulnerável à ocorrência de fraturas-descolamento epifisário medial. O desvio posterior da parte medial da diáfise da clavícula é potencialmente grave e pode acarretar complicações sérias e até levar à morte do doente. Embora o alto índice de suspeição clínica seja importante, a TC é fundamental para confirmação diagnóstica e avaliação das lesões associadas. O seu tratamento deve ser agressivo e efetuado de forma urgente.

REFERENCES

  • 1
    Bucholz RW, Heckman JD, Court-Brown CM, Tornetta P. In: Rockwood and Green's, Fractures in adults. 6th ed. Philadelphia: Lippincott Williams Wilkins; 2006. p. 1365-97.
  • 2
    Chaudhry FA, Killampalli VV, Chaudhry M, Holland P, Knebel R. Posterior dislocation of the sternoclavicular joint in a young rugby player. Acta Orthop Traumatol Turc. 2011;45(5):376-8.
  • 3
    Sarwark JF, King EC, Janicki JA. Proximal Humerus, Scapula, and Clavicle. In: Rockwood and Wilkin's, Fractures in children. 7th ed. Philadelphia: Lippincott Williams Wilkins; 2010. p. 1873-89.
  • 4
    Pearson MR, Leonard RB. Posterior sternoclavicular dislocation: a case report. J Emerg Med.1994;12(6):783-7.
  • 5
    Mirza AH, Alam K, Ali A. Posterior sternoclavicular dislocation in a rugby player as a cause of silent vascular compromise: a case report. Br J Sports Med. 2005;39(5):e28.
  • 6
    Brinker MR, Bartz RL, Reardon PR, Reardon MJ. A method for open reduction and internal fixation of the unstable posterior sternoclavicular joint dislocation. J Orthop Trauma. 1997;11(5):378-81.
  • 7
    Hecox SE, Wood GW 2nd. Ledge plating technique for unstable posterior sternoclavicular dislocation. J Orthop Trauma. 2010;24(4):255-7.
  • 8
    Battaglia TC, Pannunzio ME, Chhabra AB, Degnan GG. Interposition arthroplasty with bone-tendon allograft: a technique for treatment of the unstable sternoclavicular joint. J Orthop Trauma. 2005;19(2):124-9.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Abr 2013

Histórico

  • Recebido
    08 Fev 2012
  • Aceito
    08 Maio 2012
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br