Acessibilidade / Reportar erro

Análise comparativa da acurácia das classificações de Gustilo e Tscherne como preditoras de infecção em fraturas expostas Trabalho desenvolvido na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública; e no Hospital Geral Roberto Santos, Salvador, BA, Brasil.

RESUMO

Objetivo

Analisar comparativamente a acurácia dos dois sistemas para classificação de fraturas expostas mais usados na prática médica atual, Gustilo e Tscherne, como preditores de infecção nas fraturas expostas.

Métodos

Foi feito um estudo observacional retrospectivo com 121 indivíduos acometidos por fratura exposta do esqueleto apendicular atendidos em uma unidade de emergência hospitalar. As fraturas expostas foram classificadas segundo os dois sistemas durante o atendimento inicial; as classificações eram posteriormente confirmadas ou retificadas durante o internamento. Foram calculados sensibilidade, especificidade, valores preditivos positivos e negativos e acurácia, segundo cada classificação adotada.

Resultados

Os resultados demonstraram que ambas as classificações, de Gustilo e de Tscherne, apresentam associação com o desfecho clínico infecção em fraturas expostas. A classificação de Gustilo obteve sensibilidade de 76,7%, especificidade de 53,8% e acurácia de 59,5%. A classificação de Tscherne obteve sensibilidade de 56,7%, especificidade de 82,4% e acurácia de 76,1%.

Conclusão

O sistema de classificação de Tscherne demonstrou maior acurácia, apresentou melhor especificidade como preditor de infecção em fraturas expostas quando comparado com o sistema de Gustilo.

Palavras-chave
Fraturas expostas; Classificação; Confiabilidade dos dados; Avaliação

ABSTRACT

Objective

The aim of this study is to analyze the accuracy of the two classification systems for open fractures most commonly used in current medical practice, Gustilo and Tscherne, as predictors of infection.

Methods

A retrospective observational study was performed, including 121 patients suffering from open fracture of the appendicular skeleton treated at an emergency hospital. The fractures were classified according to Gustilo and Tscherne systems during the initial treatment, and ratings were subsequently confirmed or rectified during hospitalization. Sensitivity, specificity, positive and negative predictive values, and accuracy were calculated according to each classification adopted.

Results

The results of this study demonstrated that both classifications of Gustilo and Tscherne are associated with the clinical outcome of infection in open fractures. The Gustilo classification achieved sensitivity of 76.7%, specificity of 53.8%, and accuracy of 59.5%. Tscherne's classification had a sensitivity of 56.7%, specificity 82.4%, and accuracy of 76.1%.

Conclusion

The Tscherne system showed better accuracy, including specificity as a predictor of infection in open fractures, when compared with the Gustilo system.

Keywords
Open fractures; Classification; Data accuracy; Evaluation

Introdução

Fraturas expostas de ossos longos ocorrem com uma incidência de 11,5 a 30,7 por 100 mil pessoas por ano.11 Court-Brown CM, Bugler KE, Clement ND, Duckworth AD, McQueen MM. The epidemiology of open fractures in adults. A 15-year review. Injury. 2012;43(6):891-7.,22 Gumbel D, Matthes G, Napp M, Lange J, Hinz P, Spitzmuller R, et al. Current management of open fractures: results from an online survey. Arch Orthop Trauma Surg. 2016;136(12):1663-72. Estima-se que nos Estados Unidos da América tais fraturas representem custo anual de 230 milhões de dólares, o que indica o alto impacto socioeconômico dessas lesões.33 Arruda LRP, Silva MAC, Malerba FG, Turíbio FM, Fernandes MC, Matsumoto MH. Fraturas expostas: estudo epidemiológico e prospectivo. Acta Ortop Bras. 2009;17(6):326-30. As fraturas expostas mais frequentes ocorrem na tíbia, a prevalência varia de 20-40% dos casos,11 Court-Brown CM, Bugler KE, Clement ND, Duckworth AD, McQueen MM. The epidemiology of open fractures in adults. A 15-year review. Injury. 2012;43(6):891-7.,44 Müller SS, Sadenberg T, Pereira GJC, Sadatsune T, Kimura EE, Novelli Filho JLV. Estudo epidemiológico, clínico e microbiológico prospectivo de pacientes portadores de fraturas expostas atendidos em hospital universitário. Acta Ortop Bras. 2003;11(3):158-69.77 Giannoudis PV, Papakostidis C, Roberts C. A review of the management of open fractures of the tibia and femur. J Bone Joint Surg Br. 2006;88(3):281-9. seguidas das que ocorrem no fêmur (12%), nos metacarpos e na ulna.11 Court-Brown CM, Bugler KE, Clement ND, Duckworth AD, McQueen MM. The epidemiology of open fractures in adults. A 15-year review. Injury. 2012;43(6):891-7.,44 Müller SS, Sadenberg T, Pereira GJC, Sadatsune T, Kimura EE, Novelli Filho JLV. Estudo epidemiológico, clínico e microbiológico prospectivo de pacientes portadores de fraturas expostas atendidos em hospital universitário. Acta Ortop Bras. 2003;11(3):158-69.

A abordagem inicial das fraturas expostas permanece baseada nos mesmos princípios há 60 anos;77 Giannoudis PV, Papakostidis C, Roberts C. A review of the management of open fractures of the tibia and femur. J Bone Joint Surg Br. 2006;88(3):281-9. incluem limpeza cirúrgica e desbridamento, fechamento da ferida, antibioticoterapia e fixação da fratura. Entre os objetivos principais do tratamento estão evitar infecção e reestabelecer a função.11 Court-Brown CM, Bugler KE, Clement ND, Duckworth AD, McQueen MM. The epidemiology of open fractures in adults. A 15-year review. Injury. 2012;43(6):891-7.77 Giannoudis PV, Papakostidis C, Roberts C. A review of the management of open fractures of the tibia and femur. J Bone Joint Surg Br. 2006;88(3):281-9. Na prática clínica, o ortopedista necessita estabelecer protocolos diferentes, ser mais agressivo para fraturas com maior chance de infecção.55 Patzakis MJ, Harvey JP Jr, Ivler D. The role of antibiotics in the management of open fractures. J Bone Joint Surg Am. 1972;5(3):532-41.,77 Giannoudis PV, Papakostidis C, Roberts C. A review of the management of open fractures of the tibia and femur. J Bone Joint Surg Br. 2006;88(3):281-9.1010 Agel J, Evans AR, Marsh JL, Decoster TA, Lundy DW, Kellam JF, et al. The OTA open fracture classification: a study of reliability and agreement. J Orthop Trauma. 2013;27(7):379-84. Dessa forma, a estratificação das diversas fraturas de acordo com seu grau de risco reveste-se de fundamental importância. 77 Giannoudis PV, Papakostidis C, Roberts C. A review of the management of open fractures of the tibia and femur. J Bone Joint Surg Br. 2006;88(3):281-9.,1010 Agel J, Evans AR, Marsh JL, Decoster TA, Lundy DW, Kellam JF, et al. The OTA open fracture classification: a study of reliability and agreement. J Orthop Trauma. 2013;27(7):379-84.

O sistema de classificação de fraturas expostas mais usado na prática clínica é o proposto por Gustilo,1111 Gustilo RB, Anderson JT. Prevention of infection in the treatment of one thousand and twenty five open fractures of long bones: retrospective and prospective analyses. J Bone Joint Surg Am. 1976;58(4):453-8. com sua modificação subsequente por Gustilo et al.1212 Gustilo RB, Mendoza RM, Williams DN. Problems in the management of type III (severe) open fractures: a new classification of type III open fractures. J Trauma. 1984;24(8):742-6. Esse sistema é baseado no tamanho da lesão de pele, no grau de contaminação, na capacidade de cobertura óssea e na lesão vascular do membro. A classificação de Tscherne e Gotzen1313 Tscherne H, Gotzen L. Fraktur und Weichteilschaden. Berlin: Springer Verlag; 1983. foi proposta para fraturas fechadas e expostas e leva em consideração a lesão de partes moles adjacentes, independentemente do tamanho da lesão de pele. Outros sistemas de classificação mais detalhados foram também propostos, tais como o do grupo AO (Arbeitsgemeinschaft für Osteosynthesefragen)1414 Müller ME, Allgöwer M, Schneider R, Willenegger H. Manual of internal fixation. Berlin: Springer Verlag; 1991. e da OTA (Orthopaedic Trauma Association),1515 Evans AR, Agel J, DeSilva GL, DeCoster TA, Dirschl DR, Jones CB, et al. Orthopaedic Trauma Association: open fracture study group. A new classification scheme for open fractures. J Orthop Trauma. 2010;24(8):457-65. contudo ainda não são tão amplamente usados na prática ortopédica.

O prognóstico das fraturas expostas, em geral e especificamente em relação ao desfecho infecção, melhorou drasticamente desde que os sistemas de classificação de Gustilo e Tscherne foram elaborados. Contudo, esses dois sistemas mais usados atualmente datam de mais de 30 anos. Recentemente a classificação de Gustilo tem sofrido críticas a respeito de sua validade e reprodutibilidade,1616 Brumback RJ, Jones AL. Interobserver agreement in the classification of open fractures of the tibia: the results of a survey of 245 orthopaedic surgeons. J Bone Joint Surg Am. 1994;76(8):1162-6.1919 Horn BD, Rettig ME. Interobserver reliability in the Gustilo and Anderson classification of open fractures. J Orthop Trauma. 1993;7(4):357-60. enquanto que o sistema de Tscherne ainda não teve sua acurácia validada adequadamente.88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.,99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201.

Para ter base científica e justificar o amplo uso, os sistemas de classificação de fraturas expostas devem ser confiáveis, reprodutíveis, clinicamente relevantes e validados. Os dados apresentados, entretanto, demonstram a necessidade de confrontar a acurácia prognóstica dos dois principais sistemas de classificação vigentes, especialmente no que diz respeito ao desfecho infecção.88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.,99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201. Por esse motivo, o presente trabalho tem como objetivo fazer uma análise comparativa entre a acurácia das classificações de Gustilo e Tscherne como preditoras de infecção nas fraturas expostas e discutir o uso dos dois sistemas.

Material e métodos

Foi feito estudo observacional retrospectivo com base em dados de prontuários no Serviço de Ortopedia do hospital. A população alvo foi representada pelos pacientes internados no Serviço, vitimados por fraturas expostas do esqueleto apendicular. O estudo incluiu a avaliação de todos os pacientes internados na enfermaria em 2009 e 2010. O protocolo da pesquisa foi submetido ao e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição (parecer número 121/2009).

Foram incluídos no estudo todos os pacientes que deram entrada via pronto-atendimento adulto do hospital com diagnóstico de fratura exposta que foram tratados conforme protocolo padronizado estabelecido no Serviço. Foram excluídos: fraturas expostas tratadas inicialmente em outras unidades hospitalares; fraturas expostas do esqueleto axial (face, crânio, tórax, coluna vertebral); pacientes que não permaneceram na unidade hospitalar por, no mínimo, oito dias após o procedimento cirúrgico inicial, seja por óbito, alta ou por transferência, o que implicou a perda do seguimento clínico; foram também excluídos pacientes com prontuários incompletos. Pacientes vítimas de politraumatismo ou de mais de uma fratura por segmento anatômico também foram excluídos.

O tamanho amostral calculado foi de 94 pacientes. Essa quantidade foi baseada na prevalência de 28% de infecção em fraturas exposta da tíbia, usou-se valor de alfa de 0,05 e erro amostral de 0,1.88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8. O tamanho amostral obtido de 78 indivíduos foi acrescido em 20% para compensar eventuais perdas, somou o total estimado de 94 pacientes. No presente trabalho, a amostra foi maior do que a estimada necessária, pois contou com 121 indivíduos, o que conferiu maior poder estatístico ao estudo.

Todos os pacientes foram abordados de acordo com o protocolo cirúrgico já estabelecido no Serviço de Ortopedia do Hospital. Esse protocolo inclui avaliação inicial do paciente com tratamento operatório o mais imediato possível para desbridamento minucioso e lavagem exaustiva com um mínimo de dez litros de solução fisiológica. No desbridamento, resseca-se de forma criteriosa todo tecido que se apresente desvitalizado, inclusive pele, músculo e osso. A fratura é estabilizada a critério clínico do ortopedista plantonista, dá-se preferência à fixação interna para fraturas Gustilo I, II e fixação externa para as demais fraturas ou para aquelas com demora maior do que 12 horas no tratamento inicial. As lesões Gustilo IIIB ou C eram conduzidas para cobertura cutânea secundária: tardia após second look ou avaliação para cirurgia plástica. Após essa conduta imediata, o paciente é encaminhado para continuidade do tratamento na enfermaria e faz uso de antibioticoterapia venosa por um mínimo de oito dias, a contar do atendimento inicial.

No Serviço de Ortopedia, todos os pacientes encaminhados do centro cirúrgico são avaliados clinicamente e por ficha padronizada com dados clínicos e sociodemográficos. Essa avaliação é complementada e revisada durante a evolução do paciente na enfermaria até sua alta hospitalar. Para finalidade do estudo, os prontuários e suas respectivas fichas padronizadas foram analisadas e as principais variáveis consideradas foram: tempo entre lesão e procedimento cirúrgico; tipo, local e características do trauma; gravidade da fratura exposta, classificada pelos critérios de Gustilo;1111 Gustilo RB, Anderson JT. Prevention of infection in the treatment of one thousand and twenty five open fractures of long bones: retrospective and prospective analyses. J Bone Joint Surg Am. 1976;58(4):453-8.,1212 Gustilo RB, Mendoza RM, Williams DN. Problems in the management of type III (severe) open fractures: a new classification of type III open fractures. J Trauma. 1984;24(8):742-6. gravidade do acometimento de partes moles, classificada pelos critérios de Tscherne;1313 Tscherne H, Gotzen L. Fraktur und Weichteilschaden. Berlin: Springer Verlag; 1983. tipo de estabilização da fratura (externa, interna); fechamento da ferida (primário ou se mantida aberta).

A variável de desfecho foi a presença ou ausência de infecção precoce, superficial ou profunda, durante o período de internamento do paciente ou até em 15 dias da cirurgia inicial, por meio de avaliação ambulatorial. No Serviço, não são feitas culturas rotineiras da ferida de fraturas expostas para diagnóstico de infecção pelo fato de todos esses tipos de trauma terem algum grau de contaminação que necessariamente não evolui para infecção aguda;44 Müller SS, Sadenberg T, Pereira GJC, Sadatsune T, Kimura EE, Novelli Filho JLV. Estudo epidemiológico, clínico e microbiológico prospectivo de pacientes portadores de fraturas expostas atendidos em hospital universitário. Acta Ortop Bras. 2003;11(3):158-69.,88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.,99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201. evitou-se assim possível superestimação do desfecho. As culturas, portanto, somente são feitas nos casos em que há suspeita clínica de infecção e nessa eventualidade sempre foram coletadas durante desbridamento cirúrgico, usaram-se fragmentos de coletados dos tecidos profundos da ferida.99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201.,2020 Willenegger H, Roth B, Ochsner PE. Treatment tactics and results in early infections following osteosynthesis. Unfallchirurgie. 1986;12(5):241-6.,2121 Garner JS. CDC guideline for prevention of surgical wound infections. Infect Control. 1985;7(3):193-200.

Infecção precoce foi considerada segundo Willeneger et al.2020 Willenegger H, Roth B, Ochsner PE. Treatment tactics and results in early infections following osteosynthesis. Unfallchirurgie. 1986;12(5):241-6. e Matos et al.,88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.,99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201. que classificaram as infecções pós-traumáticas em precoces como aquelas que se manifestam até duas semanas após o trauma inicial e como tardias aquelas que se manifestam após esse período. Segundo esses critérios, foram consideradas infectadas as lesões que apresentavam características inflamatórias com presença de tecido necrótico com secreção purulenta (superficial ou profunda), associada ou não com febre, leucocitose e aumento da velocidade de hemossedimentação.88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.,99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201.,2121 Garner JS. CDC guideline for prevention of surgical wound infections. Infect Control. 1985;7(3):193-200.

Como rotina do Serviço de Ortopedia do HGRS, todos os pacientes em tratamento para fraturas expostas que evoluem sem infecção recebem alta após uma semana de internamento, quando há manifestação de sinais de infecção os indivíduos são mantidos para tratamento por tempo indefinido. Por esse motivo, a última reavaliação dos pacientes que tiverem alta antes de 16 dias foi feita no ambulatório após uma semana da alta hospitalar, conforme protocolo rotineiro do Serviço.

A parte analítica do estudo consistiu em classificar os pacientes atendidos de acordo com os escores de Gustilo e Tscherne. Ambas as classificações eram feitas pelos ortopedistas plantonistas que conduziram o atendimento inicial e o primeiro procedimento cirúrgico do paciente. A informação constava de prontuário e da ficha padronizada anexa ao prontuário. Após visita de enfermaria acompanhada pelo chefe do Serviço, as classificações eram confirmadas ou retificadas de acordo com no mínimo dois ortopedistas da enfermaria. Após classificados, os pacientes foram novamente analisados segundo a variável de desfecho, a saber, presença ou não de infecção. No grupo 1 ficaram os pacientes que evoluíram sem infecção e no grupo 2 foram colocados pacientes que apresentaram infecção.

Os dados globais foram apresentados em tabelas de distribuição por frequência para variáveis discretas ou apresentados em média e desvio padrão para variáveis contínuas. O cruzamento entre as classificações de Gustilo e Tscherne para cada paciente com o desfecho infecção permitiu inferir a capacidade que cada classificação tem de predizer o desfecho. Foram calculados sensibilidade, especificidade, valores preditivos positivos e negativos, acurácia e valor de kappa segundo a classificação adotada. A diferença estatística entre os grupos foi verificada pelos testes do qui-quadrado ou Fisher para dados discretos ou teste t para dados contínuos, sempre se adotou 5% como nível de significância.

Resultados

Foram avaliados 213 prontuários, dentre os quais, após a aplicação dos critérios de exclusão, foram rejeitados 92 (17,9%). A amostra do estudo somou 121 pacientes com fraturas expostas; 78 (64,5%) sofreram fraturas no membro inferior, 37 na perna (30,6%), 27 no pé, seis no fêmur, quatro no tornozelo e quatro na patela. As fraturas do membro superior totalizaram 43 casos (35,5%), 25 no antebraço (20,7%), 16 no úmero e dois na clavícula.

Os resultados percentuais do desfecho de infecção na amostra estudada demonstram que as fraturas classificadas como Tscherne IV e V tiveram alta taxa de infecção (50 e 67% respectivamente), o que também ocorreu nas fraturas Gustilo IIIA, IIIB e IIIC (26, 41 e 50% respectivamente). Esses dados podem ser visualizados na tabela 1.

Tabela 1
Percentual de desfechos (infecção) de acordo com as classificações de Gustilo e Tscherne

Ambas as classificações têm boa capacidade de predizer o desfecho infecção nos extratos mais graves. No caso de Tscherne, observa-se 52% de infecção e no caso de Gustilo, observa-se 35% nas lesões mais graves. Os valores referentes à capacidade de cada classificação predizer infecção estão na tabela 2.

Tabela 2
Classificação de Gustilo e Tscherne de acordo com a capacidade de predizer infecção

Na tabela 3 estão os parâmetros de acurácia obtidos em cada classificação. Nesse caso observa-se que a classificação de Gustilo obteve sensibilidade de 76,7%, especificidade de 53,8% e acurácia de 59,5%. A classificação de Tscherne obteve sensibilidade de 56,7%, especificidade de 82,4% e acurácia de 76,1%.

Tabela 3
Parâmetros de acurácia das classificações de Gustilo e Tscherne

Discussão

Os resultados do presente estudo demonstraram que ambas as classificações, de Gustilo e Tscherne, apresentam associação com o desfecho clínico infecção em fraturas expostas. Entretanto, os achados comparativos de sensibilidade, especificidade e acurácia apontaram que, em termos de predição de infecção, o esquema proposto por Tscherne se mostrou mais acurado e superior ao esquema de Gustilo para avaliação do desfecho infecção em fraturas expostas.

Os achados indicam que quando se usa o sistema de Tscherne o ortopedista superestimará prováveis infecções e tratará mais agressivamente mesmo alguns pacientes que não evoluirão para infecção; contudo, tratará menos agressivamente quase que somente pacientes que evoluirão sem infecção. Na classificação de Gustilo há pouca superestimação, porém quase metade daqueles que evoluiriam com infecção seria tratada menos agressivamente e, portanto, de forma inadequada.

Apesar de o sistema de Tscherne ter apresentado acurácia superior ao de Gustilo, esse último se mostrou mais linear quanto à prevalência do desfecho infecção, quando considerado cada subtipo isoladamente. A classificação de Tscherne apresentou prevalência de infecção muito semelhante quando comparados os tipos I e II (13,5% e 15,7% respectivamente) e os tipos III e IV (50% e 66,7% respectivamente), enquanto a de Gustilo obteve desfecho de infecção com percentual crescente em intervalos mais regulares, como demonstrado na tabela 1. Isso pode ter sido ocasionado pelo baixo número de indivíduos classificados como tipos IIIC de Gustilo e IV de Tscherne. Por outro lado, quando dividida a classificação de Tscherne em apenas dois grupos (I/II e III/IV), se obteve desfecho de infecção em 14,77% no primeiro grupo e 51,51% no segundo (p < 0,001). Distribuindo-se os tipos da classificação de Gustilo em dois grupos (I/II e IIIA/B/C), obteve-se desfecho infecção em 12,5% no primeiro grupo e 35,38% no segundo (p = 0,004). Desse modo, o sistema de Tscherne também pareceu ser mais eficiente quando casos mais leves são comparados com os mais graves.

A classificação de Gustilo tem boa validade para o prognóstico infecção, não união e outras complicações.2222 Lenarz CI, Watson JT, Mood BR, Isreal H, Mullen JD, MacDonald JB. Timing of wound closure in open fracture based on cultures obtained after debridement. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(10):1921-6. A boa associação com infecção foi usada ao longo de décadas para ajudar na melhoria dos protocolos de tratamento, antibioticoterapia, tipo de fixação e cobertura cutânea.2323 Kim PH, Leopold SS. Gustilo-Anderson classification. Clin Ortop Relat Res. 2012;470(11):3270-4.,2424 Okike K, Bhattacharyya T. Trends in the management of open fractures: a critical analysis. J Bone Joint Surg Am. 2006;88(12):2739-48. A despeito disso, duas características são fundamentais para a adoção de uma classificação como padrão-ouro para definir o tipo adequado da fratura e a predição de infecção. A primeira é a confiabilidade e a segunda é a acurácia da classificação.

Outro fator importante a ser considerado é que a classificação de Gustilo não tem uma confiabilidade considerada excelente. Brumback e Jones,1616 Brumback RJ, Jones AL. Interobserver agreement in the classification of open fractures of the tibia: the results of a survey of 245 orthopaedic surgeons. J Bone Joint Surg Am. 1994;76(8):1162-6. com imagens de fraturas expostas apresentadas para 245 ortopedistas, encontraram concordância interobservador de apenas 60%, ou seja, de moderada a fraca. Em outro importante estudo, a concordância foi de 53%, ortopedistas experientes e residentes apresentaram a mesma capacidade de discriminação do sistema.1919 Horn BD, Rettig ME. Interobserver reliability in the Gustilo and Anderson classification of open fractures. J Orthop Trauma. 1993;7(4):357-60. O fato de a classificação de Gustilo apresentar concordância apenas moderada põe sérias dúvidas sobre ser esse o melhor modelo para prever o prognóstico de infecção em fraturas expostas.

A classificação de Tscherne para fraturas expostas, por sua vez, não teve ainda sua confiabilidade avaliada na literatura ortopédica. A validade do esquema de Tscherne, semelhantemente, foi poucas vezes abordada. Gaston et al.2525 Gaston EW, Elton RA, McQueen MM, Curt-Brown CM. Fractures of the tibia. Can their outcome be predicted?. J Bone Joint Surg Br. 1999;81(1):71-6. avaliaram múltiplas classificações para fraturas de tíbia em busca de bons preditores para prognóstico; nesse estudo a classificação de Tscherne não se relacionou com infecção profunda, mas teve associação com o prognóstico funcional. Matos et al.88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8. apresentaram estudo no qual a classificação de Gustilo teve associação com o prognóstico infecção com razão de chance de 4,3. A classificação de Tscherne, entretanto, demonstrou ser o mais forte fator associado ao desfecho infecção, apresentou razão de chance de 8,1. No referido estudo, as fraturas Tscherne I tiveram taxa de infecção de 0%, as Tscherne II tiveram taxa de 20,7%, as Tscherne III apresentaram 63,6% dos casos e, finalmente, as Tscherne IV tiveram prevalência de 100% de infecção. Esses dados, embora necessitem de confirmação por outros estudos, apontam que a classificação de Tscherne pode ser uma opção promissora e talvez até mais eficiente do que a classificação de Gustilo.88 Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.,99 Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201.

Uma possível limitação do presente estudo foi o fato de que os indivíduos da amostra sofreram fraturas expostas em diferentes regiões do esqueleto. O comportamento de cada lesão varia de acordo com múltiplas características e uma delas é a região anatômica acometida. Outra limitação é o fato de tratar-se de estudo retrospectivo com coleta de dados de prontuários. Estudos com essa característica tendem a perder informações importantes e muitas variáveis que poderiam interferir no resultado não puderam ser incluídas nas análises. Pelo mesmo motivo, as classificações também não puderam ser revisadas pelos autores. Estudos adicionais seriam necessários para avaliar o comportamento de fraturas anatomicamente similares, inclusive novo conjunto de variáveis clínicas para confirmar nossos achados.

Conclusão

O sistema de classificação de Tscherne mostrou maior acurácia, apresentou melhor especificidade como preditor de infecção em fraturas expostas quando comparado com o sistema de Gustilo.

  • Trabalho desenvolvido na Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública; e no Hospital Geral Roberto Santos, Salvador, BA, Brasil.

REFERENCES

  • 1
    Court-Brown CM, Bugler KE, Clement ND, Duckworth AD, McQueen MM. The epidemiology of open fractures in adults. A 15-year review. Injury. 2012;43(6):891-7.
  • 2
    Gumbel D, Matthes G, Napp M, Lange J, Hinz P, Spitzmuller R, et al. Current management of open fractures: results from an online survey. Arch Orthop Trauma Surg. 2016;136(12):1663-72.
  • 3
    Arruda LRP, Silva MAC, Malerba FG, Turíbio FM, Fernandes MC, Matsumoto MH. Fraturas expostas: estudo epidemiológico e prospectivo. Acta Ortop Bras. 2009;17(6):326-30.
  • 4
    Müller SS, Sadenberg T, Pereira GJC, Sadatsune T, Kimura EE, Novelli Filho JLV. Estudo epidemiológico, clínico e microbiológico prospectivo de pacientes portadores de fraturas expostas atendidos em hospital universitário. Acta Ortop Bras. 2003;11(3):158-69.
  • 5
    Patzakis MJ, Harvey JP Jr, Ivler D. The role of antibiotics in the management of open fractures. J Bone Joint Surg Am. 1972;5(3):532-41.
  • 6
    Reis FB, Fernandes HJA, Belloti JC. Existe evidência clínica, baseada em estudo de metanálise, para a melhor opção de osteossíntese nas fraturas expostas da diáfise da tíbia? Rev Bras Ortop. 2005;40(5):223-8.
  • 7
    Giannoudis PV, Papakostidis C, Roberts C. A review of the management of open fractures of the tibia and femur. J Bone Joint Surg Br. 2006;88(3):281-9.
  • 8
    Matos MA, Castro-Filho RN, Pinto da Silva BV. Risk factors associated with infection in tibial open fractures. Rev Fac Cien Med Univ Nac Cordoba. 2013;70(1):14-8.
  • 9
    Matos MA, Lima LG, de Oliveira LA. Predisposing factors for early infection in patients with open fractures and proposal for a risk score. J Orthop Traumatol. 2015;16(3):195-201.
  • 10
    Agel J, Evans AR, Marsh JL, Decoster TA, Lundy DW, Kellam JF, et al. The OTA open fracture classification: a study of reliability and agreement. J Orthop Trauma. 2013;27(7):379-84.
  • 11
    Gustilo RB, Anderson JT. Prevention of infection in the treatment of one thousand and twenty five open fractures of long bones: retrospective and prospective analyses. J Bone Joint Surg Am. 1976;58(4):453-8.
  • 12
    Gustilo RB, Mendoza RM, Williams DN. Problems in the management of type III (severe) open fractures: a new classification of type III open fractures. J Trauma. 1984;24(8):742-6.
  • 13
    Tscherne H, Gotzen L. Fraktur und Weichteilschaden. Berlin: Springer Verlag; 1983.
  • 14
    Müller ME, Allgöwer M, Schneider R, Willenegger H. Manual of internal fixation. Berlin: Springer Verlag; 1991.
  • 15
    Evans AR, Agel J, DeSilva GL, DeCoster TA, Dirschl DR, Jones CB, et al. Orthopaedic Trauma Association: open fracture study group. A new classification scheme for open fractures. J Orthop Trauma. 2010;24(8):457-65.
  • 16
    Brumback RJ, Jones AL. Interobserver agreement in the classification of open fractures of the tibia: the results of a survey of 245 orthopaedic surgeons. J Bone Joint Surg Am. 1994;76(8):1162-6.
  • 17
    Faraj AA. The reliability of the pre-operative classification of open tibial fractures in children: a proposal for a new classification. Acta Orthop Belg. 2002;68(1):49-55.
  • 18
    Peterson N, Stevenson H, Sahni V. Size matters: how accurate is clinical estimation of traumatic wound size? Injury. 2014;45(1):232-6.
  • 19
    Horn BD, Rettig ME. Interobserver reliability in the Gustilo and Anderson classification of open fractures. J Orthop Trauma. 1993;7(4):357-60.
  • 20
    Willenegger H, Roth B, Ochsner PE. Treatment tactics and results in early infections following osteosynthesis. Unfallchirurgie. 1986;12(5):241-6.
  • 21
    Garner JS. CDC guideline for prevention of surgical wound infections. Infect Control. 1985;7(3):193-200.
  • 22
    Lenarz CI, Watson JT, Mood BR, Isreal H, Mullen JD, MacDonald JB. Timing of wound closure in open fracture based on cultures obtained after debridement. J Bone Joint Surg Am. 2010;92(10):1921-6.
  • 23
    Kim PH, Leopold SS. Gustilo-Anderson classification. Clin Ortop Relat Res. 2012;470(11):3270-4.
  • 24
    Okike K, Bhattacharyya T. Trends in the management of open fractures: a critical analysis. J Bone Joint Surg Am. 2006;88(12):2739-48.
  • 25
    Gaston EW, Elton RA, McQueen MM, Curt-Brown CM. Fractures of the tibia. Can their outcome be predicted?. J Bone Joint Surg Br. 1999;81(1):71-6.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018

Histórico

  • Recebido
    11 Jan 2017
  • Aceito
    28 Mar 2017
  • Publicado
    04 Abr 2018
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br