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Estudo epidemiológico das lesões multiligamentares do joelho* * Trabalho desenvolvido no Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad -INTO/ MS, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo

Objetivo

Descrever e associar as características das lesões multiligamentares de joelho com o perfil do paciente e mecanismo de trauma.

Métodos

Trata-se de um estudo transversal que avaliou 82 pacientes com lesões multiligamentares do joelho de setembro de 2016 até setembro de 2018. As variáveis coletadas foram idade, gênero, eixo mecânico, lateralidade, arco de movimento, mecanismo do trauma, lesões associadas, ligamentos afetados e afastamento do trabalho.

Resultados

A amostra incluiu pacientes de 16 a 58 anos, com média de 29,7 anos, e os homens foram os mais afetados, correspondendo a 92,7% dos casos. O mecanismo de trauma mais comum foi acidente motociclístico (45,1%). O ligamento mais lesado foi o ligamento cruzado anterior (80,5%), seguido do ligamento cruzado posterior (77,1%), do canto posterolateral (61,0%) e do ligamento colateral tibial (26,8%). O tipo de luxação mais frequente era o KD IIIL (30,4%). Apenas 1 paciente apresentou lesão vascular, e 13 (15,9%) apresentaram lesões neurológicas. A maioria das vítimas foi afastada do trabalho (52,4%).

Conclusão

Há grande diferença entre os pacientes que apresentam lesão multiligamentar no Brasil em relação ao encontrado nos estudos internacionais. Desta forma, convém realizar mais estudos específicos sobre o tema com a nossa população, de modo a aperfeiçoar o tratamento destes pacientes.

Palavras-chave
traumatismos do joelho; luxação do joelho; instabilidade articular

Abstract

Objective

The present paper aims to describe multiligament knee injuries and to associate their features with the profile of the patients and trauma mechanisms.

Methods

This is a cross-sectional study evaluating 82 patients with multiligament knee injuries from September 2016 to September 2018. Evaluated parameters included age, gender, mechanical axis, affected side, range of motion, trauma mechanism, associated injuries, affected ligaments, and absence from work.

Results

The sample included patients aged between 16 and 58 years old, with an average age of 29.7 years old; most subjects were males, with 92.7% of cases. The most common trauma mechanism was motorcycle accident (45.1%). The most injured ligament was the anterior cruciate ligament (80.5%), followed by the posterior cruciate ligament (77.1%), the posterolateral corner (61.0%), and the tibial collateral ligament (26.8%). The most frequent type of dislocation was KD IIIL (30.4%). Only 1 patient had a vascular injury, and 13 (15.9%) presented with neurological injuries. Most subjects took medical leave from work (52.4%).

Conclusion

There is a big difference between patients with multiligament lesions in Brazil compared with international studies. Thus, it is advisable to carry out more specific studies on the topic with our population to improve the treatment of these patients.

Keywords
knee injuries; knee dislocation; joint instability

Introdução

As lesões multiligamentares do joelho são patologias complexas, raras e de difícil tratamento, que geralmente resultam de uma luxação traumática do joelho. Após esse evento, comumente ocorrem lesões de múltiplas estruturas, incluindo os estabilizadores do joelho e estruturas neurovasculares. As lesões multiligamentares são caracterizadas pelo acometimento de dois ou mais ligamentos do joelho, como os ligamentos cruzados, colateral tibial e canto posterolateral, gerando grande instabilidade.11 Ferrari MB, Chahla J, Mitchell JJ. et al. Multiligament Reconstruction of the Knee in the Setting of Knee Dislocation With a Medial-Sided Injury. Arthrosc Tech 2017; 6 (02) e341-e350

2 Levy BA, Dajani KA, Whelan DB. et al. Decision making in the multiligament-injured knee: an evidence-based systematic review. Arthroscopy 2009; 25 (04) 430-438
-33 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608

O deslocamento completo da articulação tibiofemoral tem alto potencial para complicações graves, como as lesões neurovasculares (artéria poplítea, nervo fibular e nervo tibial), síndrome compartimental, instabilidade multidirecional e dor crônica.22 Levy BA, Dajani KA, Whelan DB. et al. Decision making in the multiligament-injured knee: an evidence-based systematic review. Arthroscopy 2009; 25 (04) 430-438

As luxações de joelho são classificadas por Schenck,44 Schenck Jr RC. The dislocated knee. Instr Course Lect 1994; 43: 127-136 que leva em consideração a quantidade e quais ligamentos foram afetados, conforme mostra o Quadro 1.

Quadro 1
Classificação dos tipos de luxação do joelho de acordo com Schenck

Estudos relatam, conforme o trabalho de Arom et al.55 Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, Terrell RD, McAllister DR. The changing demographics of knee dislocation: a retrospective database review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2609-2614 e o de Wilson et al.,33 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608 uma incidência < 0,2% das lesões ortopédicas, variando entre 7/10.000 e 1/100.000 pacientes por ano. Entretanto, é difícil obter dados para identificar a correta incidência de luxação do joelho, visto se tratar de uma lesão rara na qual a metade dos casos encontra-se reduzida no momento do atendimento inicial. Dessa maneira, a luxação do joelho deve ser avaliada em todo paciente que apresenta lesão em dois ou mais ligamentos desta articulação.22 Levy BA, Dajani KA, Whelan DB. et al. Decision making in the multiligament-injured knee: an evidence-based systematic review. Arthroscopy 2009; 25 (04) 430-438,33 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608,55 Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, Terrell RD, McAllister DR. The changing demographics of knee dislocation: a retrospective database review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2609-2614

6 Hegyes MS, Richardson MW, Miller MD. Knee dislocation. Complications of nonoperative and operative management. Clin Sports Med 2000; 19 (03) 519-543

7 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train 2004; 39 (04) 365-369

8 Goyal A, Tanwar M, Joshi D, Chaudhary D. Practice Guidelines for the Management of Multiligamentous Injuries of the Knee. Indian J Orthop 2017; 51 (05) 537-544

9 Fanelli GC, Stannard JP, Stuart MJ. et al. Management of complex knee ligament injuries. J Bone Joint Surg Am 2010; 92 (12) 2235-2246
-1010 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151

O mecanismo de lesão mais frequente é um trauma de alta energia direto ou indireto no joelho, sendo a maior parte causada por acidentes por veículos motorizados. Também estão relacionados com queda de altura e traumas esportivos, geralmente futebol americano, esqui, futebol e rugby. Além disso, pode acometer obesos em lesão de baixa velocidade após entorse do joelho. O mecanismo de trauma mais comum é a hiperextensão do joelho, resultando em luxação anterior.55 Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, Terrell RD, McAllister DR. The changing demographics of knee dislocation: a retrospective database review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2609-2614

6 Hegyes MS, Richardson MW, Miller MD. Knee dislocation. Complications of nonoperative and operative management. Clin Sports Med 2000; 19 (03) 519-543
-77 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train 2004; 39 (04) 365-369,1111 Vaidya R, Roth M, Nanavati D, Prince M, Sethi A. Low-Velocity Knee Dislocations in Obese and Morbidly Obese Patients. Orthop J Sports Med 2015; 3 (04) 2325967115575719

Lesão vascular apresenta uma incidência variada na literatura, entre 5 e 80%, enquanto a incidência de lesão neurológica varia de 16 a 50%. Medina et al.1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629 citam em seu trabalho uma incidência de 18% de lesões vasculares e de 25% de lesões neurológicas.

Essas variações estão relacionadas ao tipo de energia do trauma ao qual a população de cada estudo está exposta. Além disso, a raridade desta lesão dificulta obtenção do número de pacientes (N) suficiente para dados mais precisos, o que causa bastante divergência entre os estudos.22 Levy BA, Dajani KA, Whelan DB. et al. Decision making in the multiligament-injured knee: an evidence-based systematic review. Arthroscopy 2009; 25 (04) 430-438,33 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608,1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629

A rigidez articular secundária e a falha na reconstrução ligamentar são as complicações precoces mais comuns. Grande parte desses pacientes desenvolverá osteoartrite pós-traumática, como demonstrado no estudo de Engebretsen et al.,1313 Engebretsen L, Risberg MA, Robertson B, Ludvigsen TC, Johansen S. Outcome after knee dislocations: a 2-9 years follow-up of 85 consecutive patients. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 2009; 17 (09) 1013-1026 que encontraram presença de osteoartrite no joelho em 34% dos pacientes após 9 anos do trauma. Isso implica grandes limitações ao paciente, que na maioria das vezes é jovem e economicamente ativo. O tratamento dessa lesão complexa envolve um grande investimento da saúde pública e/ou suplementar, além de um longo período de afastamento do trabalho.1010 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151,1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629

13 Engebretsen L, Risberg MA, Robertson B, Ludvigsen TC, Johansen S. Outcome after knee dislocations: a 2-9 years follow-up of 85 consecutive patients. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 2009; 17 (09) 1013-1026

14 Levy BA, Fanelli GC, Whelan DB. et al. Knee Dislocation Study Group. Controversies in the treatment of knee dislocations and multiligament reconstruction. J Am Acad Orthop Surg 2009; 17 (04) 197-206

15 Howells NR, Brunton LR, Robinson J, Porteus AJ, Eldridge JD, Murray JR. Acute knee dislocation: an evidence based approach to the management of the multiligament injured knee. Injury 2011; 42 (11) 1198-1204
-1616 LaPrade RF, Muench C, Wentorf F, Lewis JL. The effect of injury to the posterolateral structures of the knee on force in a posterior cruciate ligament graft: a biomechanical study. Am J Sports Med 2002; 30 (02) 233-238

Na fase aguda, o objetivo é a redução e estabilização da articulação, as quais devem ser realizadas imediatamente. A avaliação neurovascular é fundamental e não deve ser retardada. O exame físico vascular é realizado através da palpação dos pulsos periféricos, aferição da temperatura do membro, perfusão capilar e índice tornozelo-braquial (o qual, quando < 0,9, representa alta suspeição de lesão arterial). A gravidade dessas lesões vasculares está enfatizada pelo fato de que, independentemente do tratamento, a incidência de amputações nesses pacientes é de 12% dos casos.33 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608,66 Hegyes MS, Richardson MW, Miller MD. Knee dislocation. Complications of nonoperative and operative management. Clin Sports Med 2000; 19 (03) 519-543,88 Goyal A, Tanwar M, Joshi D, Chaudhary D. Practice Guidelines for the Management of Multiligamentous Injuries of the Knee. Indian J Orthop 2017; 51 (05) 537-544,99 Fanelli GC, Stannard JP, Stuart MJ. et al. Management of complex knee ligament injuries. J Bone Joint Surg Am 2010; 92 (12) 2235-2246,1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629,1414 Levy BA, Fanelli GC, Whelan DB. et al. Knee Dislocation Study Group. Controversies in the treatment of knee dislocations and multiligament reconstruction. J Am Acad Orthop Surg 2009; 17 (04) 197-206

Dessa forma, é necessário conhecer as características demográficas dos pacientes que apresentam essas lesões do joelho para otimizar o tratamento e traçar estratégias preventivas. Com isso, foi realizada, no primeiro momento, uma busca na bibliografia nacional por meio de bancos de dados (PubMed e Scielo) e revistas (RBO) sobre o assunto lesões multiligamentares e luxação do joelho. Após essa análise, foi identificada escassez de estudos nacionais abordando o tema em questão. Dentre eles, o mais relevante é o de Kupczik et al.,1010 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151 no qual foram analisados 23 pacientes.

Diante disso, o presente estudo transversal tem como objetivo a análise epidemiológica das lesões multiligamentares do joelho e suas associações com patologias neurovasculares e fraturas, além de correlacionar estes dados com mecanismo de trauma, gênero, idade e tempo de afastamento do trabalho.

Materiais e Métodos

Trata-se de um estudo transversal que avaliou 82 casos de instabilidade no joelho em pacientes atendidos no ambulatório de Lesões Multiligamentares do Joelho durante o período de setembro 2016 até setembro de 2018. Foram coletados dados de idade no trauma, gênero, eixo mecânico do joelho, lado, arco de movimento (ADM), mecanismo do trauma, lesões associadas (neurológicas, vasculares, luxações e fraturas), ligamentos afetados, marcha e afastamento do trabalho pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Foram incluídos no estudo os pacientes que apresentaram instabilidade multiligamentar do joelho com lesão de dois ou mais ligamentos. Foram excluídos os pacientes que apresentaram lesão de apenas um ligamento e os pacientes que não realizaram exame físico completo, fosse por dor, fosse por presença de fixador externo.

A partir dos dados coletados, foi construído um banco de dados em planilha eletrônica, o qual foi analisado pelo programa IBM SPSS Statistics for Windows, versão 22.0 (IBM Corp., Armonk. NY, EUA) e pelo aplicativo Microsoft Excel 2007 (Microsoft Corp., Redmond, WA, EUA). Para caracterização da amostra e análise descritiva do comportamento das variáveis, os dados foram sintetizados por meio de estatísticas descritivas (média, mediana, mínimo, máximo, desvio padrão [DP], coeficiente de variação [CV] e proporções de interesse das variáveis quantitativas), distribuições de frequências simples e em tabelas cruzadas para as variáveis qualitativas.1717 Medronho R, Bloch KV, Luiz RR, Werneck GL. editores. 2 a. ed.. São Paulo: Atheneu; 2009,1818 Pagano M, Gauvreau K. Princípios de Bioestatísitca. São Paulo: Pioneira Thomson Learning; 2004

Resultados

Conforme os resultados exibidos na Tabela 1, a partir dos 82 casos desta amostra, observa-se o seguinte perfil típico dos pacientes que apresentam lesões multiligamentares no joelho: paciente do sexo masculino (92,7%), com idade entre 20 e 40 anos (75,6%), com sobrepeso ou obeso (71,4%), o lado esquerdo mais acometido (52,4%), e o eixo mecânico genuvaro (34,1%) é mais frequente do que genuvalgo (18,3%). Durante a marcha, observou-se presença de marcha escarvante em 10 paciente (12,2%) e flambagem lateral em 12 pacientes (14,6%).

Tabela 1
Características dos pacientes e dos joelhos lesionados

A incidência de fratura associada foi de 26,8% e a de lesão neurológica associada foi de 15,9%. Um total de 18 pacientes (22,8%) apresentaram luxação do joelho que necessitou de manobra de redução, e apenas 1 paciente (1,2%) apresentou lesão vascular da artéria poplítea. O tipo de lesão mais frequente foi o KD IIIL (30,4%). Um total de 40 pacientes (48,8%) apresentaram ADM < 110° e 43 pacientes (52,4%) estão afastados do trabalho pelo INSS devido à lesão multiligamentar no joelho.

Observa-se que os pacientes com lesão multiligamentar do joelho tinham idades no intervalo de 16 a 58 anos, média de 29,7 anos, mediana de 28 anos, DP de 8,9 anos, o que resultou em um CV igual a 0,30, evidenciando moderada variabilidade da idade dos pacientes que apresentam lesão multiligamentar no joelho, conforme disposição da distribuição da idade dos pacientes exibida na Figura 1. O diagrama de caixa mostra que as duas maiores idades, 52 e 58 anos, são idades atípicas para portadores de lesões multiligamentares no joelho, marcados com o símbolo ° no gráfico.

Fig. 1
Diagrama de caixa da distribuição de idade dos pacientes portadores de lesões multiligamentares no joelho.

A Tabela 2 traz a distribuição do mecanismo gerador das lesões. Tanto no global quanto para os grupos definidos segundo as idades dos pacientes (< 30 anos e ≥ 30 anos), o principal mecanismo gerador das lesões foi o acidente motociclístico em 45,1% dos casos, com 51,1% desses pacientes < 30 anos de idade. Destacam-se também o acidente de carro, o futebol e a luta como mecanismos de trauma importantes. Agrupando o acidente de motocicleta, o acidente automobilístico e o atropelamento, tem-se que o acidente de trânsito foi o responsável por 61,0% dos casos de lesões multiligamentares no joelho. As lesões relacionadas à prática esportiva ocorreram em 23,2% dos casos; os demais traumas representam somente 15,8%, incluindo quedas, acidentes de trabalho, coice de boi e trauma torcional.

Tabela 2
Distribuição do mecanismo gerador das lesões multiligamentares no joelho

A Tabela 3 demonstra que o ligamento mais afetado, independente da faixa etária, foi o ligamento cruzado anterior (LCA) (80,5%), seguido do ligamento cruzado posterior (LCP) (77,1%). Os ligamentos do canto posterolateral são lesionados mais frequentemente que o LCM, com 61,0 e 26,8%, respectivamente. Os meniscos mediais foram lesionados mais frequentemente que os meniscos laterais, com 25,6 e 14,6%, respectivamente. Os valores-p exibidos na tabela, todos > 5%, mostram que nenhuma das lesões está associada ao grupo etário, pois não há diferença significativa entre as incidências das lesões dos 2 grupos etários.

Tabela 3
Frequência das lesões multiligamentares no joelho identificadas por exame clínico e/ou ressonância magnética, global e comparação por faixa etária

A Tabela 4 demonstra que 18 pacientes (22%) apresentaram luxação do joelho que necessitou de manobra de redução e que 22 pacientes (26,8%) apresentaram fraturas associadas. Também foi verificado se a ocorrência de luxação e fraturas registradas no incidente de trauma estavam associadas ao grupo etário. Os valores-p exibidos na tabela, todos > 5%, mostram que a ocorrência de luxação, de fratura ou de qualquer tipo de fratura individualmente não está associada ao grupo etário e que não há diferença significativa entre as incidências das luxações e fraturas entre os 2 grupos.

Tabela 4
Frequência de luxação e fraturas ocorridas conjuntamente às lesões multiligamentares no joelho

A prevalência de lesões neurológicas foi de 15,9% (13 pacientes), sendo que 12 casos apresentaram lesão do nervo fibular, sendo 2 casos com lesão dos nervos fibular e tibial, e um paciente apresentou lesão neurológica do nervo radial, não relacionada ao trauma específico do joelho. Os valores-p exibidos na Tabela 5, todos > 5%, mostram que a ocorrência de lesões neurológicas, global ou por tipo, não está associada ao grupo etário e que não há diferença significativa entre as incidências das lesões neurológicas entre os 2 grupos.

Tabela 5
Frequência de lesões neurológicas ocorridas conjuntamente às lesões multiligamentares no joelho, global e comparação por faixa etária

A luxação do joelho está significativamente associada a lesão neurológica. A luxação do joelho foi observada em 15,9% dos casos sem lesão neurológica e em 53,8% dos casos com lesão neurológica. A lesão neurológica ocorreu em 9,4% dos casos sem luxação do joelho e em 38,9% dos casos com luxação no joelho. A diferença entre estas proporções é significativa sob o ponto de vista estatístico (p= 0,006; teste exato de Fisher). A razão de chances é igual a 6,2, com intervalo de confiança (IC) de 1,7 a 21,8. Estima-se que a chance de um paciente que tem luxação do joelho apresentar lesão neurológica é 6,2 vezes a chance de um paciente que não tem luxação do joelho apresentar lesão neurológica.

Foi investigado se a obesidade estava associada a alguma variável do estudo. Nenhuma associação com significância estatística foi encontrada.

Discussão

Foi observado que a lesão multiligamentar é mais frequente em homens (92,7%). Essa diferença entre os gêneros é esperada, uma vez que os homens estão, em sua maioria, mais expostos a lesões de alta energia, como pelo uso de motocicleta e pela prática de esportes de maior intensidade. Os estudos que corroboram este achado são o de Wilson et al.33 Wilson SM, Mehta N, Do HT, Ghomrawi H, Lyman S, Marx RG. Epidemiology of multiligament knee reconstruction. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2603-2608 e de Medina et al.,1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629 que identificaram em suas populações uma porcentagem de 72 e 78%, respectivamente, de pacientes do sexo masculino, enquanto no estudo de Kupczik et al.1010 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151 apenas 65% dos casos eram homens, talvez devido a características culturais locais e ao tamanho da amostra.

O mecanismo de trauma mais comum é o acidente de trânsito, acometendo 61,0% dos pacientes. Dentre esses, o mais prevalente é o acidente de moto (45,1%), seguido de acidentes de carro (11,0%) e atropelamento (4,9%). As lesões relacionadas à prática esportiva são responsáveis por 23,2% dos casos, sendo que as principais atividades físicas são futebol (11,0%) e lutas (9,8%). Esses dados assemelham-se com os resultados do estudo nacional de Kupczik et al.1010 Kupczik F, Shiavon ME, Vieira L, Genius D, Fávaro R. Luxação do joelho: Estudo descritivo das lesões. Rev Bras Ortop 2013; 48 (02) 145-151 que relatam 60% dos casos associados a acidente motociclístico. Entretanto, esses dados divergem da literatura internacional.

O ligamento mais acometido foi o LCA (80,5%) seguido do LCP (77,1%), enquanto os ligamentos do canto posterolateral foram lesionados mais frequentemente que o LCM, com 61,0 e 26,8%, respectivamente. O padrão de lesão mais comum foi o KD III-L (30,4%) pela classificação de Schenck, o qual representa lesão de ambos os ligamentos cruzados associada à lesão dos ligamentos do canto posterolateral. Acreditamos que a baixa prevalência de lesão do LCM encontrada seja devido à cicatrização deste ligamento, o que é possível após o tratamento conservador adequado na fase inicial. Como a maioria dos pacientes do presente estudo chegou na fase crônica ao ambulatório de lesões multiligamentares, isso explica o achado, sendo esta uma das limitações do estudo.

Foi encontrado apenas 1 paciente com lesão da artéria poplítea (1,2%), o que está abaixo dos achados na literatura. Medina et al.1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629 observaram uma prevalência 15% de lesão da artéria poplítea, e 17% desses pacientes evoluíram para amputação do membro. Tal diferença pode ter ocorrido devido à característica do ambulatório de lesões multiligamentares, que é um local referenciado e não uma emergência. Com isso, muitos dos casos que evoluem mal clinicamente, como amputações, não são indicados ao tratamento cirúrgico no local de referência, e sim solucionados no hospital de emergência durante o atendimento inicial, diminuindo, portanto, a prevalência das lesões da artéria poplítea em nossa população.

Foi identificada uma associação entre instabilidade multiligamentar do joelho e lesão neurológica de 14,6%. Desse grupo de pacientes, todos apresentavam lesão do nervo fibular, e apenas dois destes pacientes apresentaram lesão do nervo tibial associada, enquanto Medina et al.1212 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res 2014; 472 (09) 2621-2629 encontraram associação de 25% de lesão neurológica com a luxação do joelho. Uma das possíveis explicações para tal achado é que alguns pacientes podem ter melhorado dos seus sintomas de neuropraxia antes de chegar ao ambulatório de referência ou podem ter evoluído com complicações que contraindicam cirurgia e, portanto, não foram encaminhados ao serviço de referência.

A prevalência de pacientes afastados do trabalho com benefícios do governo pelo INSS foi de 52,4% dos casos. Tal dado está acima dos valores internacionais, como no estudo de Levy et al.,1414 Levy BA, Fanelli GC, Whelan DB. et al. Knee Dislocation Study Group. Controversies in the treatment of knee dislocations and multiligament reconstruction. J Am Acad Orthop Surg 2009; 17 (04) 197-206 que demonstra o retorno de 50% ao trabalho após tratamento conservador e de 72% após tratamento cirúrgico. Isso pode ser explicado devido às características socioeconômicas do Brasil, que contém um alto índice de desemprego, o que pode favorecer a simulação pelos pacientes do agravo da clínica das lesões com intuito de manter o benefício financeiro. Além disso, ainda há déficit de acessibilidade no ambiente de trabalho para pessoas com dificuldade de locomoção. Neste contexto, a lesão multiligamentar do joelho tem impacto financeiro, uma vez que o grupo mais afetado são jovens economicamente ativos.

O presente estudo apresentou limitações durante a sua realização, sendo uma delas o viés de seleção, pois o trabalho avaliou os pacientes encaminhados para o ambulatório de lesões multiligamentares do joelho, que é um local referenciado para o tratamento deste tipo de agravo. São encaminhados para este ambulatório os casos com indicação cirúrgica, o que pode excluir pacientes com contraindicações para reconstrução ligamentar, como os pacientes que evoluíram com complicações graves, como amputações e outras lesões neurovasculares. Além disso, outra limitação do presente estudo é que muitos pacientes já apresentavam a doença na fase crônica, podendo apresentar uma cicatrização parcial dos ligamentos colateral tibial e cruzado posterior.

Conclusão

Há uma diferença significativa entre os gêneros, sendo o sexo masculino mais afetado do que o feminino na proporção de 13:1. Já em relação à dinâmica do trauma, os acidentes de trânsito são responsáveis por 61,0% dos casos; traumas motociclísticos são os mais prevalentes, compreendendo 45,1% dos casos.

Com isso, há uma grande diferença entre as características dos pacientes que apresentam lesão multiligamentar do joelho no Brasil quando comparadas com o perfil dos pacientes encontrado nos estudos internacionais. Dessa forma, devemos realizar mais estudos específicos sobre o tema com a população brasileira de modo aperfeiçoar o tratamento dos nossos pacientes.

  • Suporte Financeiro
    Não houve suporte financeiro de fontes públicas, comerciais, ou sem fins lucrativos.
  • *
    Trabalho desenvolvido no Centro de Atenção Especializada ao Joelho, Instituto Nacional de Traumatologia Jammil Haddad -INTO/ MS, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2020
  • Aceito
    08 Mar 2021
  • Publicado
    11 Mar 2022
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