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O sujeito colonizado no discurso colonialista de viajantes europeus

The colonized subject in the colonialist discourse of European travelers

RESUMO

Na busca por compreender o(s) sentido(s) sobre o sujeito colonizado, analisamos, por meio do aparato teórico-metodológico de Pêcheux e Orlandi, o funcionamento do discurso do colonizador em um arquivo constituído por relatos, cartas, diários de viajantes e de missionários europeus, além de tratados de naturalistas do século XV ao XIX. Partindo da designação do sujeito colonizado pelo sujeito colonizador, identificamos, assim, quatro formações discursivas que chamamos de formação discursiva do outro como bárbaro, do outro como cordial, do outro como exótico e do outro como igual. Tais formações embora emerjam ancoradas em diferentes discursos como o do extermínio, o religioso, o científico e o jurídico, fazem parte de uma mesma formação ideológica, a colonialista. Essa formação é marcada pelo eurocentrismo e pelo efeito de superioridade do europeu sobre os demais e controla os sentidos desse sujeito não-europeu, não-branco e não-cristão até os dias de hoje, ainda que de forma diferente, dissimulando tais efeitos de sentido.

Palavras-chave:
discurso colonialista; sujeito colonizado; formação discursiva

ABSTRACT

The aim of this study is to understand the meaning(s) of the colonized subject. To this end, I analyzed documents such as reports, letters, journals of European travellers and missionaries, as well as treaties of naturalists from the fifteenth to the nineteenth century, containing the colonizer’s discourse, using the theoretical-methodological apparatus of Pêcheux and Orlandi. The starting point was the designation of the colonized subject by the colonizing subject, which identified four discursive formations of the Other that could be qualified as barbaric, cordial, exotic or equal. Such discoursive formations figure in different discourses on extermination, religion, science, and law and are part of the same ideological formation, i.e., the colonialist, which is marked by Eurocentrism and by the effect of superiority of the European on others. This ideological formation controls the meanings of the non-European, non-white, and non-Christian subject to this day, although in a different way, hiding such effects of meaning.

Keywords:
colonialist discourse; colonized subject; discursive formation

1. Introdução

O objetivo deste artigo é analisar o funcionamento do discurso sobre o sujeito colonizado, a partir de materialidades do sujeito colonizador que tratam do contato entre povos distintos. De acordo com Mariani (1998Mariani, B. (1998). O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais (1922-1989). Revan & Ed. Unicamp., p. 64),

os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso de (‘discurso-origem’), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja (...) já que o falar sobre transita na correlação entre o narrar/ descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido pelo interlocutor.

Portanto, ao entrar em contato com o sujeito (a ser) colonizado, ao narrá-lo, o colonizador o inscreve em sua(s) memória(a) discursiva(s), considerando sempre os sentidos que já estão lá. Quanto às materialidades analisadas, como nesta pesquisa não nos interessa o tipo do discurso, o gênero, o estilo, a disciplina (Orlandi, 2007Orlandi, E. (2007 [1999]). Análise de discurso: princípios e procedimentos. Pontes. [1999], p. 86), tampouco o tempo puramente cronológico ou o local de publicação da obra, mas sim o modo de funcionamento do discurso a partir de condições ideológicas de produção2 2 Cabe ressaltar que não buscamos desmerecer estudos que se debrucem sobre essas outras características dessas materialidades. O que tentamos mostrar é que sob o ponto de vista da ideologia, que é o que nos interessa nesta pesquisa, elas seriam irrelevantes, pois como afirma Althusser (1985 [1970], p. 84), a ideologia é eterna, “omni-histórica”, estando sempre presente, independentemente do período cronológico, do local de produção, do tipo ou do gênero discursivo. , acabamos, a partir de um gesto próprio de interpretação (Orlandi, 2007Orlandi, E. (2007 [1999]). Análise de discurso: princípios e procedimentos. Pontes. [1999]), construindo um arquivo3 3 Tomamos arquivo, de acordo com Mariani (2003, p. 81): “como uma noção discursiva que permite ao analista operar com a produção dos sentidos a partir de uma diversidade de textos. A noção de arquivo não corresponde a uma mera acumulação de textos institucionais produzidos ao longo da história. Um arquivo nunca está pronto, pré-estabelecido. Ao contrário, seu modo de funcionamento é opaco. Para o analista do discurso, a exploração arquivística permite a construção de um corpus heterogêneo e é a partir desse corpus que ele vai buscar os processos discursivos”. sobre esse outro, composto de relatos, cartas, diários de viajantes e de missionários europeus, além de tratados de naturalistas do século XV ao XIX4 4 Ainda que diversos trabalhos em análise do discurso (Orlandi, 2008 [1990], 2003 [1993], 2002; Horta Nunes, 1994; Mariani, 2004) mostrem as distintas práticas discursivas de missionários, viajantes e naturalistas utilizando parte do mesmo corpus de análise de nossa pesquisa, diferentemente desses trabalhos, buscamos nessas materialidades o efeito de sentido sobre o outro, o olhar europeu sobre o colonizado. .

Desse modo, enunciados aparentemente distantes cronologicamente e/ou geograficamente podem compor uma mesma formação discursiva ou mesmo o contrário, uma mesma materialidade ser atravessada por duas ou mais formações discursivas, como mostraremos neste artigo. Isso é possível, pois “ideologias têm uma história própria”. Por terem existência histórica concreta, “a ideologia em geral não tem história”, na medida em que é “dotada de uma estrutura e funcionamento tais que a tornam uma realidade a-histórica, isto é, uma realidade oni-histórica” (Althusser, 1996Althusser, L. (1996 [1994]). Ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado. In S. Žižek (Ed.), Um mapa da ideologia. Contraponto. [1994], p. 125). Por sua vez, isso acontece porque, de acordo com o aparato teórico-metodológico no qual se insere esta pesquisa “não existe prática, a não ser através de uma ideologia, e dentro dela e não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos” (Pêcheux, 1996Pêcheux, M. (1996). O mecanismo do (Des)conhecimento ideológico. In S. Žižek (Ed.), Um mapa da ideologia. Contraponto. [1994], p. 147).

Como dissemos, nosso arquivo sobre esse outro não-europeu foi construído reunindo materialidades discursivas do colonizador sobre o colonizado. Para Mariani (2004Mariani, B. (2004). Colonização Linguística. Pontes Editores., p. 23-24):

se consideramos o período das descobertas do novo mundo, observa-se que o discurso da História proveniente do colonizador, enraizado na ideologia do eurocentrismo, justifica e valoriza suas próprias ações visando ao povoamento e à defesa de uma terra conquistada, ao mesmo tempo em que silencia sobre as lutas pela imposição e/ou preservação das identidades.

É um discurso, portanto, cujo domínio é exercido pelo europeu colonizador, domínio tão hegemônico que controla os sentidos sobre si mesmo e sobre o colonizado, mesmo após os processos de independência desses territórios. A história oficial e dominante é aquela do colonizador, a partir do descobrimento e da colonização. O sujeito colonizado, desse modo, só diz o que pode e deve ser dito e quando pode ser dito, sob uma formação discursiva (Pêcheux, 2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975]) imposta pelo sujeito colonizador. Isso não significa, no entanto, que não seja possível uma formação discursiva do colonizado. Pelo contrário, Orlandi (2008Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. [1990], p. 136) nos mostra inclusive que

temos assim, de um lado, o índio que não tinha voz no século XVI e que hoje diz que “O Brasil foi invadido”, e, de outro, temos o europeu que afirma, sem cessar, desde o século XVI: “O Brasil foi descoberto”. Duas formações discursivas em confronto que impedem outros discursos de significar, entre eles, o do brasileiro.

Porém, esse discurso de que “o Brasil foi invadido” só é possível a partir da formação ideológica colonialista, em oposição ao discurso e à memória hegemônicos da descoberta. Ele é, portanto, afetado pelo europeu. Orlandi (2002Orlandi, E. (2002). Língua e conhecimento linguístico: Por uma História das Ideias no Brasil. Cortez., p. 302) acrescenta que países colonizados como o Brasil

se encontram em um lugar na história, ao serem falados (escritos) pela memória outra, a memória europeia. Essa será uma clivagem constitutiva da história desses países de colonização, que se marca pelo apagamento da história em função da acentuação das características culturais que lhe são acrescidas com as descobertas.

Desse modo, nem a independência apaga a memória colonialista, pois também é construída sobre a memória, sobre os sentidos e sobre a língua do colonizador.

Mesmo após movimentos pela independência, quando o ex-colonizado dá início à narração oficial de um outro discurso, territorializando política e ideologicamente uma identidade e constituindo uma outra tradição para o que deve ser dito na relação tempo-memória, a força dos sentidos anteriormente institucionalizados permanece porque muitas vezes não há como dizer essa outra história a não ser pelo uso da língua vinda com o colonizador. Mesmo que seja para dizer de um outro jeito, renomear os acontecimentos, por exemplo, há que se passar por uma política de sentidos organizada inicialmente na língua da metrópole. A língua da metrópole, hegemônica, continua produzindo seus efeitos na história da ex-colônia, pois, para descrever e contar essa outra história, é necessário inscrevê-la num universo simbólico que não é outro senão o de práticas significativas já previamente constituídas” (Mariani, 2004Mariani, B. (2004). Colonização Linguística. Pontes Editores., p. 24).

É sobre essa tensão entre colonizador e colonizado, entre povos diversos, com cultura e história diferentes, interpelados por ideologias distintas que reunimos materialidades para o arquivo utilizado nesta pesquisa. Trata-se, portanto, de textos do século XV ao XIX com relatos de europeus sobre diferentes povos colonizados, listados a seguir de acordo com a data de escrita/publicação da primeira edição.

  1. Gomes Eannes de Azurara, Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné, escrito em 1453.

  2. Cristóvão Colombo, Diários da descoberta da América, escrito em entro 1492 e 1504.

  3. Pero Vaz de Caminha, A carta de Pero Vaz de Caminha, escrito em 1500 e publicada em 1817.

  4. Hernan Cortez, A conquista do México, escrito em 1524.

  5. Antonio Pigafetta, A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães, concluído em 1524 e publicado em 1536.

  6. Bartolomeu de Las Casas, O paraíso destruído, escrito em 1552.

  7. Álvar Núñez Cabeza de Vaca, Naufrágios e comentários, escrito em 1555.

  8. Hans Staden, Duas viagens ao Brasil, escrito em 1557.

  9. André Thevet, As singularidades da França Antártica, escrito em 1557.

  10. Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil, escrito em 1578.

  11. Claude D´Abbeville, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas, escrito em 1614.

  12. Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, Viagem do Brasil nos anos de 1815 a 1817, publicado em 1820.

  13. Theodor von Leithold e Ludwig von Rango, O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819, publicado entre 1820 e 1821.

  14. Luiz Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz, Viagem do Brasil 1865-1866, publicado em 1868.

Após a leitura das obras e observando a designação do outro não-europeu pelo colonizador, identificamos quatro formações discursivas (FD) que inscrevem o outro em quatro posições distintas: 1) do outro como bárbaro, 2) do outro como cordial, 3) do outro como exótico e 4) do outro como igual. Tais formações discursivas, como exporemos, fazem parte da mesma formação ideológica colonialista4 6 Para ser mais preciso ainda, estamos falando da Antropologia física ou biológica e também da cultural, que iniciaram seus trabalhos numa perspectiva evolucionista e até os dias de hoje se defronta em refletir sobre o olhar etnográfico sem etnocentrismo, sem pré-conceitos, sem intervenções (cf. Laraia, 2004; Guber, 2011). e, sobretudo, eurocêntrica, marcada por um efeito de superioridade do europeu sobre os demais. Isso se deve, a nosso ver, para melhor dissimular, pois como nos mostra Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975], p. 149): o “próprio de toda formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso”.

Tomamos a designação como forma de entrada no corpus pois de acordo com Guimarães (2003Guimarães, E. (2003). Designação e espaço de enunciação: um encontro político no cotidiano. Letras, 26, UFSM. http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2.2/index.php/letras/article/view/11880 (acesso 16 de novembro, 2015).
http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs-2.2...
, p. 54), a designação é “a significação de um nome enquanto sua relação com outros nomes e com o mundo recortado historicamente pelo nome. A designação não é algo abstrato ao real, mas linguístico e histórico. Ou seja, é uma relação linguística (simbólica) remetida do real, exposta ao real”. Partimos, portanto, da designação do outro não-europeu pelo colonizador para recortar sequências discursivas e identificar essas formações discursivas.

Pelo que pudemos observar, a primeira FD, a do outro como bárbaro, tem como marcas o efeito de sentido do outro como bárbaro, selvagem, cruel, animal, não-humano. Ele tem como contrapartida na posição do colonizador, o medo e o extermínio do colonizado. A segunda FD é a do outro como cordial, o bom selvagem, o ingênuo, o ignorante. Ela produz um efeito de piedade, de compaixão na posição do colonizador, que busca civilizar o colonizado, libertá-lo da ignorância. Ela se ancora, por fim, no discurso religioso. A terceira FD é a do colonizado como exótico, estranho. Ela produziria um efeito na posição do colonizador de curiosidade e se ancora no discurso da ciência, mais precisamente nas ciências sociais6 6 Para ser mais preciso ainda, estamos falando da Antropologia física ou biológica e também da cultural, que iniciaram seus trabalhos numa perspectiva evolucionista e até os dias de hoje se defronta em refletir sobre o olhar etnográfico sem etnocentrismo, sem pré-conceitos, sem intervenções (cf. Laraia, 2004; Guber, 2011). . A quarta FD é a do outro como igual, o não selvagem. Ele produz um efeito de senso de justiça, de igualdade na posição do colonizador e se ancora no discurso dos direitos humanos. Partimos para a análise dos dizeres que compõem essas FDs.

2. O discurso do outro como bárbaro

Como dissemos, nesta formação discursiva, o outro, só pode ser dito e visto como bárbaro, selvagem, mais especificamente como mau selvagem. Vejamos as sequências recortadas dos textos, com grifos nossos em itálico.

SD 1: E-bem mostrarom aquelles moços no cometymento daquelle feito, quejandos homeês ao dyante seryam, ca pero fossem tam alongados de sua terra, nom sabendo quaaes nem quantas gentes acharyam, oü ao menos temor de bestas salvageès, cuja temerosa soombra os devera empachar segundo sua nova idade, ca pouco mais ou menos nom passavam de xvij. annos cada huü; (Azurara, 1841Azurara, G. E. (1841 [1453]). Chronica do Descobrimento e Conquista de Guiné. J. P. Aillaud. [1453], p. 61-62).

SD 2: Os indígenas desta ilha (ilha de Mallua) são selvagens e antropófagos, parecendo-se mais a bestas do que com homens. Como os demais, andam nus, com apenas um pequeno tecido de árvore cobrindo suas partes sexuais, porém, quando vão combater cobrem o tronco com peles de búfalo, adornadas com dente de porco e rabos de cabras (Pigafetta, 2011Pigafetta, A. (2011 [concluído em 1524 - publicado em 1536]). A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães. L&PM. [concluído em 1524 - publicado em 1536], p. 179).

SD 3: Além dos cristãos que aí se estabeleceram depois da chegada de Américo Vespúcio, esta região era e ainda é habitada por estranhíssimos povos selvagens, em fé, lei, religião e sem civilização alguma, vivendo antes como animais irracionais, assim como os fez a natureza, alimentando-se de raízes, andando sempre nus tanto os homens quanto as mulheres, à espera do dia em que o contato com os cristãos lhes extirpe esta brutalidade, para que eles passem a vestir-se, adotando um procedimento mais civilizado e humano. (Thevet, 1978Thevet, A. (1978). As singularidades da França Antártica [Les singularitez de la France Antarctique, 1557]. Itatiaia & EdUSP. [1557], p. 98).

SD 4: O país era totalmente deserto e inculto. Não havia nem casas nem tetos nem quaisquer acomodações de campanha. Ao contrário, havia gente arisca e selvagem, sem nenhuma cortesia nem humanidade, muito diferente de nós em seus costumes e instrução; sem religião, nem conhecimento algum da honestidade ou da virtude, do justo, e do injusto, a ponto de me vir à mente a ideia de termos caído entre animais com figura de homens (Léry, 2007Léry, J. (2007). Viagem à terra do Brasil [Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, 1578]. Itatiaia. [1578], p. 39).

SD 5: Em suma esses diabólicos Uetacá, invencíveis nessa região, comedores de carne humana, como cães e lobos, e donos de uma linguagem que seus vizinhos não entendem, devem ser tidos entre os mais cruéis e terríveis que se encontram em toda a Índia Ocidental (Léry, 2007Léry, J. (2007). Viagem à terra do Brasil [Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, 1578]. Itatiaia. [1578], p. 80).

SD 6: A escola é mantida pela província, mas a dotação do estabelecimento é pequena e o número de alunos muito reduzido. Teríamos trazido daí a mais feliz das impressões, se não tivéssemos sabido que, nesse orfanato, se retêm às vezes, sob pretexto de instrução a ministrar, pobres criaturinhas que ainda tem pai e mãe e que foram subtraídas às tribos selvagens. Uma célula sombria, com grossas grades de ferro, bem semelhante à jaula dos animais ferozes, que aí vimos, confirma ainda essa triste opinião. Procurei certificar-me do que há de verdade nessas formações, e responderam-me que, se semelhante coisa se dá algumas vezes, é tão somente para arrancar a criança a uma condição selvagem e degradada; pois a civilização, mesmo imposta pela força, é preferível à barbaria (Agassiz & Agassiz, 1938Agassiz, L., & Agassiz, E. (1938). Viagem do Brasil 1865-1866 [A Journey in Brazil, 1868]. Companhia Editora Nacional. [1868], p. 250).

SD 7: Índios comedores de terra - Encontrei numa dessas habitações algumas índias que pareciam estar muito doentes, e soube que aí estavam havia já dois meses, presas de febre intermitente. Essa terrível afecção reduzira-as a verdadeiros esqueletos. Na opinião do major Coutinho, a triste condição dessas pobres mulheres provinha sem dúvida do hábito, comum entre os de sua raça, de comer barro e terra: os infelizes não sabem resistir a esse apetite doentio. Essas miseráveis criaturas parecem absolutamente selvagens; tinham vindo da floresta e não sabiam uma palavra de português. Deitadas nas redes, ou estendidas no solo, na sua maioria nuas, elas soltavam gemidos, como presas de profundo sofrimento (Agassiz & Agassiz, 1938Agassiz, L., & Agassiz, E. (1938). Viagem do Brasil 1865-1866 [A Journey in Brazil, 1868]. Companhia Editora Nacional. [1868], p. 288).

Nesses dizeres, observamos que o colonizado é aquele dito como besta (SD1, SD2), selvagem (SD1, SD2, SD3, SD4, SD6, SD7), animal (SD3, SD4, SD6), antropófago (SD2), irracional (SD3), cão (SD5), lobo (SD5), cruel (SD5), terrível (SD5), feroz (SD6), criatura (SD6), miserável (SD7), infeliz (SD7). Já o europeu colonizador nessas mesmas sequências é aquele visto como homem (SD2), civilizado (SD3, SD6), ser humano (SD3), cristão (SD3). Orlandi (2003Orlandi, E. (Org) (2003 [1993]). Discurso Fundador: A formação do país e a construção da identidade nacional. Pontes. [1993], p.17) afirma que

O mundo misterioso que tinha sido descoberto era povoado de fantasias pelos descobridores que não tinham muito claro para si o que haviam descoberto. Imaginemos que impacto para a interpretação não devia ser o aparecimento de um Novo Mundo nos longínquos confins de um “mar tenebroso e inexplorado”. Que terreno fértil esse que confunde a realidade, a imaginação (a ficção, a literatura) e o imaginário (a ideologia, o efeito de evidência construído pela memória do velho mundo).

Esse terreno fértil, de encontro da imaginação europeia com uma realidade desconhecida e consequentemente a necessidade de significar, de nomear, “tornar visível, esclarecer (clarear) e domesticar o acontecimento, (…) tornar familiar a paisagem hostil” (Orlandi, 2003Orlandi, E. (Org) (2003 [1993]). Discurso Fundador: A formação do país e a construção da identidade nacional. Pontes. [1993], p. 15), é o responsável por construir e estimular o imaginário europeu sobre o outro como bárbaro. Essas são as condições ideológicas de produção.

Analisando formas de dizer, Orlandi (2007Orlandi, E. (2007 [1999]). Análise de discurso: princípios e procedimentos. Pontes. [1999]) nos mostra um jogo de força entre dizer o mesmo e dizer o diferente. O funcionamento da linguagem se assenta, dessa maneira, na tensão entre processos parafrásticos e processos polissêmicos.

Os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memória. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espaços de dizer. Produzem-se diferentes formulações do mesmo dizer sedimentado. A paráfrase está do lado da estabilização. Ao passo que, na polissemia, o que temos é deslocamento, ruptura de processos de significação. Ela joga com o equívoco (Orlandi, 2007Orlandi, E. (2007 [1999]). Análise de discurso: princípios e procedimentos. Pontes. [1999], p. 36).

Levantamos, assim, redes parafrásticas em torno das posições do colonizado e do colonizador. De imediato, é possível destacar que dentre todas as FDs que nos deparamos no arquivo constituído como corpora de análise, esta, a do outro como bárbaro, diferentemente das demais, foi a que produziu mais marcas nas materialidades discursivas, o que nos permitiu elaborar extensas redes parafrásticas. Contudo, as redes para o outro colonizado são maiores que a do colonizador, provavelmente pela necessidade de descrever, de nomear e de significar o desconhecido. Horta Nunes (1994Nunes, J. H. (1994). Formação do leitor brasileiro. Editora Unicamp., p. 44) afirma que “a memória discursiva da cultura europeia deparava-se de forma brusca com outros elementos discursivos, resultando daí a produção acentuada de gestos de leitura e releitura”. O europeu para si mesmo já era conhecido e nomeado: ser humano, homem, ser pensante, civilizado. “No confronto com a diversidade tanto no aspecto natural como no das formações sociais, (é) o colonizador (que) torna o Novo Mundo legível, codificável, sociável” (Horta Nunes, 1994Nunes, J. H. (1994). Formação do leitor brasileiro. Editora Unicamp., p. 43).

No esquema a seguir apresentamos de um lado uma coluna com o que pode e deve ser dito nesta FD, a partir das sequências recortadas, sobre a posição do colonizado e na outra coluna sobre o colonizador. No centro, um dizer retirado da SD2:

Figura 1
Redes parafrásticas do colonizado e do colonizador no discurso do outro como bárbaro.

Levando em consideração as redes parafrásticas, é possível, desse modo, a formulação: Os infelizes são gente sem religião, nem conhecimento algum da honestidade ou da virtude parecendo mais a animais irracionais do que cristãos. Todavia, não é possível a formulação: Os cristãos são bestas salvageès parecendo mais a cães e lobos do que homens. Isso é possível por conta da FD do outro como bárbaro que faz com que apenas o colonizado se inscreva como selvagem, como animal, e não o colonizador.

Quando o outro não-europeu é designado como homens e mulheres (SD3), essa aparece apenas com o sentido biológico para distinguir os seres do sexo masculino e feminino e, logo após se afirma que o contato com os cristãos lhes extirpará a brutalidade (...) adotando um procedimento mais civilizado e cristão. Desse modo, ainda que se designe o outro não-europeu de diferentes maneiras, mantém-se um efeito de superioridade por parte do europeu mesmo quando o outro colonizado é designado como homem.

É um discurso, portanto, sem traços de alteridade, uma vez que o outro não-europeu só comparece pela voz do colonizador. O próprio gesto de nomear o novo não se dá pelo outro. Nas sequências analisadas dessa FD o que prevalece na nomeação é a forma generalizante índios e indígenas, do colonizador. Quando se discursiviza a diversidade, na maioria das vezes, é pelo modo europeu, como Uetacá (SD5) e não pela forma com que os próprios colonizados se autodenominam. O outro não-europeu é, portanto, falado7 7 Esse mesmo efeito de sentido foi observado por nós quando tivemos a oportunidade de analisar o discurso sobre/da diferença na elaboração do Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010) durante os governos do Partido dos Trabalhadores (Barbosa da Silva, 2016). . Não fala. A voz dos povos dominados nesse arquivo comparece, assim pelo equívoco, pelo lapso, pela falha. Como forma de explicação, poder-se-ia afirmar que o silenciamento da voz do outro se deu por causa de uma assimetria entre as línguas europeias e as línguas dos povos dominados. Essas últimas não estariam munidas de instrumentos linguísticos (Auroux, 1992Auroux, S. (1992). A revolução tecnológica da gramatização. Unicamp.), como a escrita, a gramática ou dicionários, exceto as línguas gerais e línguas francas indígenas8 8 As línguas gerais eram línguas de contato, crioulos de base europeia, utilizadas por diversos povos colonizados, por exemplo, no Brasil, no México e no Paraguai. As línguas francas também são línguas de contato, só que servem como língua de comunicação entre povos de línguas diferentes, isto é, são faladas como segunda língua por diversos povos. Muitas dessas línguas na América tiveram instrumentos linguísticos elaborados, sobretudo pelos jesuítas, em época semelhante às línguas europeias, como a Arte de la lengua mexicana y castellana, de Alonso de Molina, publicada em 1571; como a Grammatica y Vocabulario em La lengua general del Peru llamada quichua y en la lengua española, de autoria desconhecida, publicada em 1586; como a Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, de José de Anchieta, publicada em 1595; como a Arte Breve de La Lengva Aymara, de Antonio Bertonio, publicada em 1603; como a Arte de gramática da língua brasílica, de Luís Figueira, publicada em 1621. (cf. Bessa & Rosa, 2003). .

Contudo, não é a falta de instrumentos linguísticos que produz esse efeito, mas sim a formação ideológica colonialista, afinal muitas línguas gerais em todo o continente americano foram gramatizadas na mesma época das línguas europeias, porém isso não garantiu que não fossem silenciadas séculos depois.

Desse modo, torna-se impossível pensar tal efeito fora de uma perspectiva discursiva e, portanto, ideológica. Se a ideologia age sobre o imaginário, é a formação discursiva que define o que pode e deve ser dito e é justamente a(s) formação(ões) discursiva(s) do colonizador, no seu efeito de sentido de superioridade que apaga o outro não-europeu e silencia o seu dizer sobre si mesmo e também sobre o europeu. Como nos mostra Horta Nunes (1994Nunes, J. H. (1994). Formação do leitor brasileiro. Editora Unicamp., p. 57) ao analisar a formação do leitor brasileiro “não nos importa aqui questionar a capacidade de leitura dos índios, mas sim analisar o fato de que no discurso se constrói uma posição para ele, e que essa posição inaugura, por identificação com o colonizado, o espaço de memória para o leitor brasileiro”. E é justamente essa FD do outro como bárbaro que controla de forma hegemônica os primeiros dizeres de europeus sobre o novo mundo e sobre o outro colonizado.

3. O discurso do outro como cordial

A seguir, observamos as sequências discursivas recortadas da FD do outro como cordial, com marcações nossas em itálico.

SD 8: A feição deles é parda, algo avermelhada; de bons rostos e bons narizes. Em geral são bem-feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Não fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso são tão inocentes como quando mostram o rosto. Ambos os dois traziam o lábio de baixo furado e metido nele um osso branco e realmente osso, do comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador (Caminha, 2013Caminha, P. V. (2013 [concluído em 1500 - publicado em 1817]. A carta de Pero Vaz de Caminha. In S. Castro. L&PM. [concluído em 1500 - publicado em 1817], p. 90).

SD 9: Deus criou todas essas gentes infinitas de todas as espécies, mui simples, sem finura, sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fiéis a seus Senhores naturais e aos espanhóis a que servem; mui humildes, mui pacientes, mui pacíficas e amantes da paz, sem contendas, sem perturbações, sem querelas, sem questões, sem ira, sem ódio e de forma alguma desejosos de vingança. São também umas gentes mui delicadas e ternas; sua compleição é pequena e não podem suportar trabalhos; e morrem logo de qualquer doença que seja (Las Casas, 2011Las Casas, B. (2011 [1552]). O paraíso destruído. L&PM. [1552], p. 26-27).

SD 10: Sobre esses cordeiros tão dóceis, tão qualificados e dotados pelo seu Criador como se disse, os espanhóis se arremessaram no mesmo instante em que os conheceram; e como lobos, como leões e tigres cruéis, há muito tempo esfaimados, de quarenta anos para cá, e ainda hoje em dia, outra cousa não fazem ali senão despedaçar, matar, afligir, atormentar e destruir esse povo por estranhas crueldades (como vos farei ver depois); de tal sorte que de três milhões de almas que havia na ilha Espanhola e que nós vimos, não há hoje de seus naturais habitantes nem duzentas pessoas (Las Casas, 2011Las Casas, B. (2011 [1552]). O paraíso destruído. L&PM. [1552], p. 27-28).

SD 11: Primeiramente, sou testemunho ocular e tenho como cousa bem certa que esses índios do Peru são a mais amável das gentes que se tem visto entre os índios, sendo afáveis e amigos dos espanhóis (Las Casas [citando um frei franciscano], 2011Las Casas, B. (2011 [1552]). O paraíso destruído. L&PM. [1552], p. 107-108).

SD 12: Da mesma forma como ocorrera no porto anterior, muitos índios vieram para recebê-los, trazendo mantimentos e mostrando muita cordialidade (Cabeza de Vaca, 2007Cabeza de Vaca, Á. (2007). Naufrágios e comentários [Naufragios y Comentarios, 1555]. L&PM. (Naufragios y Comentarios, 1555). [1555], p. 164).

SD 13: Ficaram os índios tão satisfeitos e tão cheios de admiração diante das belas cerimônias do batismo, que nos afirmaram todos ser uma bela coisa tornar-se filho de Deus; assim o desejo que tinham antes ainda aumentou maravilhosamente com o espetáculo; e lamentaram do fundo do coração não se acharem ainda em estado de receber o que admiravam e desejavam tão ardentemente (D´Abbeville, 1975D´Abbeville, C. (1975). História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e terras circunvizinhas [Histoire de la mission des pères Capucins en l’isle de Maragnan et terres circonvoisines, 1614]. Itatiaia & EdUSP. [1614], p. 79-80).

Nessa formação discursiva o outro não-europeu é o inocente (SD8); o obediente (SD9), o cordial (SD12). Tais sentidos são os opostos aos da FD do outro como bárbaro. Em algumas dessas sequências, inclusive, o bárbaro é o europeu, como na SD10. Da contradição, já apresentada, do outro como selvagem surge o bom selvagem. “O discurso vai dividindo (...) índios, entre submissos (bons) e rebeldes (maus, selvagens)” (Orlandi, 2008Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. [1990] p. 159). Selvagem passa a constituir-se, assim, em um enunciado dividido entre as duas formações discursivas: a do outro como bárbaro e a do outro como cordial.

O conceito de enunciado dividido foi elaborado por Courtine (2009Courtine, J-J. (2009). Análise do Discurso Político: discurso comunista endereçado aos cristãos. Editora UFSCar.) ao analisar duas posições-sujeito antagônicas em um mesmo enunciado compartilhado por comunistas e cristãos. Para ele, “os enunciados divididos formam-se (…) na contradição que liga os processos discursivos inerentes a duas formações discursivas antagônicas” (Courtine (2009Courtine, J-J. (2009). Análise do Discurso Político: discurso comunista endereçado aos cristãos. Editora UFSCar., p. 199). Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009). Prefácio. In J-J. Courtine, Análise do Discurso Político: discurso comunista endereçado aos cristãos. Editora UFSCar., p. 24) ao prefaciar Courtine afirma que o enunciado dividido caracteriza “o fato de que uma formação discursiva é constitutivamente perseguida por seu outro”. A contradição, portanto, não é exterior e nem resulta do choque de enunciados, mas sim constitutiva e neste caso, tornou-se mais evidente permitindo a emergência dessa outra FD que passa a disputar a hegemonia dos sentidos sobre o outro não-europeu.

O que queremos dizer é que no enunciado selvagem da formação discursiva do outro como bárbaro, por contradição, já havia enunciados-outros todos os selvagens são maus/nem todos os selvagens são maus e por consequência, mau selvagem/bom selvagem. Do momento que se tem a emersão do enunciado bom selvagem, o selvagem da formação discursiva do bárbaro é ressignificado para (mau) selvagem.

Esse discurso do outro como cordial emerge, todavia, ancorado no discurso religioso missionário. Em 1537, o papa Paulo III emitiu a bula Sublimus Dei9 9 A bula afirmava: “o inimigo da espécie humana, que se opõe a todas as boas obras de modo a levar o homem à destruição, isso vendo e invejando, inventou uma maneira inédita com a qual pôde impedir a pregação da palavra da salvação de Deus ao povo: inspirou seus asseclas que, para agradá-lo, não têm hesitado em afirmar que os índios ocidentais e meridionais, e outros povos de que temos conhecimento recente, devem ser tratados como animais estúpidos criados para nosso serviço, sob o pretexto de que são incapazes de receber a fé católica, e os reduzem à servidão, afligindo-os como se faz com as bestas. Nós que, embora indignamente, exercemos na terra o poder de Nosso Senhor e nos esforçamos ao máximo para trazer aquelas ovelhas de Seu rebanho que estão fora para dentro do redil confiado aos nossos cuidados, consideramos, contudo, que os índios são verdadeiramente homens e que são não apenas capazes de entender a fé católica, como também, segundo sabemos, anseiam fervorosamente por recebê-la. (...) Nós definimos e declaramos por estas palavras, ou por qualquer tradução delas assinada por qualquer notário público e selada com o selo de qualquer dignitário eclesiástico, à qual igual crédito deve ser dado como ao original, que os ditos índios e outros povos devem ser convertidos à fé em Jesus Cristo pela pregação da palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida boa e santa” (grifos nossos) (Paulo III, 1537). , opondo-se à escravização e à eliminação dos indígenas e, reconhecendo a existência de suas almas e a possibilidade de serem salvos. Ao invés do extermínio físico, o indígena deveria ser cristianizado e civilizado. Dessas condições de produção advêm dizeres como os da SD13, do discurso religioso, de pregação em catequese, em que o outro ao tomar contato com a palavra de Deus ficaria admirado, em silêncio, conscientizando-se como homem e vivenciando um momento espiritual. Entretanto, essa é a percepção do sujeito colonizador sobre o não-europeu, como se ele, o colonizador fosse o centro do dizer, como se pudesse perceber o que acontece em sua volta com a certeza da fé. Apaga-se novamente a alteridade.

O outro colonizado, dessa maneira, é posto, por essa formação discursiva na posição de inocência, como se as suas crenças fossem ilusões. Horta Nunes (1994Nunes, J. H. (1994). Formação do leitor brasileiro. Editora Unicamp., p. 82) afirma, “atribuindo aos índios a ‘ignorância’ da escrita, os colonizadores dão um estatuto aos conhecimentos deles, classificando-os como ‘superstições’, ‘falsidades’”. Novamente tem-se o europeu ocupando a posição de superioridade sobre a posição do outro colonizado. Só que desta vez sustentado pelo discurso religioso, em que o outro colonizado não é irracional, mas inocente. E, de acordo com essa FD, se o índio não tem consciência, se é imaculado, é porque não teve a oportunidade de conhecer a palavra de Deus. O europeu, desse modo, tem o dever de ensiná-lo, de despertá-lo conscientemente, de transmitir-lhe a razão, a civilidade e a fé cristã.

Como vemos, a racionalidade já é parte dos desígnios da Europa cristã. E ela entra em nosso imaginário pela colonização. É o que devemos ser: racionais e civis. Essa imagem de racionalidade pesará ao longo da nossa história. A conversão supõe a “civilidade” (todos os homens são capazes de fé). Para ser convertido, é preciso estar na vida reacional e civil. A nação de Deus supõe a nação dos homens. Mesmo porque o índio convertido à força não é índio convertido (Orlandi, 2008Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. [1990] p. 157).

Se, por um lado, é dever do europeu ensinar, por outro, é dever do indígena ser grato e submisso. Vejamos o funcionamento do dizer de Las Casas na SD9, em que afirma: Deus criou todas essas gentes infinitas de todas as espécies, mui simples, sem finura, sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fiéis a seus Senhores naturais e aos espanhóis a que servem. Observamos nessa sequência efeitos de causalidade como se os indígenas fossem simples, sem finura, sem astúcia, sem malícia por serem obedientes aos espanhóis. O mesmo efeito pode ser observado na SD11, como se, os indígenas fossem a mais amável das gentes por serem amigos dos espanhóis. A felicidade e a amabilidade desses povos passam, portanto, pela submissão e obediência ao espanhol, ao cristão.

Esse apagamento da alteridade por meio do silenciamento do dizer da posição-sujeito indígena também se dá pela substituição da palavra conquista por descobrimento. Em 1556, o rei Filipe II da Espanha (e a partir de 1580, também de Portugal) proibiu o uso das palavras conquista e conquistadores sendo substituídas por descobrimentos e colonos10 10 Sobre a decisão do rei Filipe II, Romano (2007 [1972], p. 56) comenta: “Em primeiro lugar, poderia indicar que o Estado espanhol talvez pensasse que não era caso para vangloriar-se da conquista e de seus atores... A confissão é enorme. Mas isso não é tudo. Correu o boato, durante os anos 70 do século XVI, segundo o qual Carlos V teria decidido, por volta de 1540, abandonar o Peru (e até mesmo toda a América), considerando que os soberanos cujos territórios ele acabava de ocupar eram soberanos legítimos, e que ele, Carlos V, se encontrava na posição de usurpador. Ficou aprovado que tais arrependimentos nunca preocuparam realmente Carlos V, mas é importante assinalar que semelhante boato pôde se espalhar: acaso não traduzia a “má fé” que lentamente se introduzia entre os grupos mais sensíveis aos problemas de toda espécie criados pela conquista? Outro aspecto importante do texto de 1556 está no fato de parecer indicar, quase ordenar, o fim da conquista: o essencial da América está ocupado, inserido num sistema. A partir desse momento, não há mais nada para conquistas, apenas terras descobertas para colonizar. A pax hispanica triunfa”. . A substituição de conquista por descobrimento apaga os povos indígenas da América, pois enquanto conquista pressupõe um ou mais povos a serem derrotados ou uma natureza selvagem a ser dom(in)ada, descobrimento pressupõe chegar primeiro a uma terra nunca antes vista ou habitada. Os indígenas não teriam, assim, consciência sequer para ocupar terras e constituir um território politicamente organizado aos moldes europeus, visto que devido a sua inocência não respondiam por seus atos.

E como a ideologia é a-histórica (Althusser, 1996Althusser, L. (1996 [1994]). Ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado. In S. Žižek (Ed.), Um mapa da ideologia. Contraponto. [1994], p. 125), essa memória do indígena como inocente permanece até os dias de hoje no Brasil, produzindo enunciados, inclusive no discurso jurídico, como pode ser observado no Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/1973), ainda em vigor:

Dos Direitos Civis e Políticos

CAPÍTULO I

Dos Princípios

Art. 5º Aplicam-se aos índios ou silvícolas as normas dos artigos 145 e 146, da Constituição Federal, relativas à nacionalidade e à cidadania.

Parágrafo único. O exercício dos direitos civis e políticos pelo índio depende da verificação das condições especiais estabelecidas nesta Lei e na legislação pertinente. (...)

CAPÍTULO II

Da Assistência ou Tutela

Art. 7º Os índios e as comunidades indígenas ainda não integrados à comunhão nacional ficam sujeito ao regime tutelar estabelecido nesta Lei. (...)

§ 2º Incumbe a tutela à União, que a exercerá através do competente órgão federal de assistência aos silvícolas.

Art. 8º São nulos os atos praticados entre o índio não integrado e qualquer pessoa estranha à comunidade indígena quando não tenha havido assistência do órgão tutelar competente.

Parágrafo único. Não se aplica a regra deste artigo no caso em que o índio revele consciência e conhecimento do ato praticado, desde que não lhe seja prejudicial, e da extensão dos seus efeitos (Brasil, 1973Brasil (1973). Lei nº 6.001, de 19 dez. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm (acesso 15 de novembro, 2020).
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
, grifos nossos).

De acordo com a legislação brasileira, o indígena tem direitos políticos, mas sob condições, devendo, portanto, ser tutelado, caso não seja integrado à comunhão nacional, ainda que se afirme na Constituição de 1988 que todos são iguais.

Chama-nos atenção nessa lei o uso da expressão comunhão nacional para se referir à comunidade nacional brasileira, pois, como sabemos, a organização social de muitos povos indígenas se dá por meio da comunidade, do coletivo, isto é, por meio de uma forma-sujeito-coletivo e não pela forma sujeito-de-direito individua(liza)da. Os indígenas estariam, assim, fora da nação, fora do único coletivo possível, até, pelo menos serem integrados de forma individual, como se não fossem brasileiros/brasileiras por vivenciarem outra cultura ou integrarem outra coletividade. Tais regras se justificariam pela falta de consciência do indígena, pois de acordo com o artigo 8º da Lei nº 6.001/1973 se for comprovada consciência, os atos dos indígenas não seriam considerados nulos e sob o aspecto penal, de acordo com o artigo 56º, a mesma lei, a pena poderá ser reduzida proporcionalmente à integração do índio à comunhão nacional. Não se menciona a existência de outra cultura, de diferentes regras de convívio social. Apaga-se a diferença. Apaga-se a alteridade. Há, portanto, um apagamento do indígena enquanto indígena. O indígena permanece sendo o inocente e só deixará de sê-lo quando integrado, civilizado. O discurso do outro como cordial encontra sustentação também no discurso jurídico.

Isso é possível com o transbordamento da FD do outro como cordial. E não apenas para o discurso jurídico (direito civil, direitos humanos), mas também para o discurso filosófico (em Montaigne e em Rousseau) e para o literário (no Romantismo, por exemplo, de Herman Melville em Taipi (1846) e de José de Alencar em O Guarani (1857), depois de emergir, por meio do discurso religioso, a partir da contradição do mau selvagem na FD do outro como bárbaro.

Porém, embora essa contradição constitutiva proporcione a emergência de outra FD, a do outro como cordial, mantém-se o efeito de superioridade, pois ainda que indígena nesta FD se desloque de animal para homem, o europeu também se desloca de homem civilizado para homem civilizador. Se antes silencia-se a voz do outro colonizado reduzindo-o a animal, depois silencia-se a voz do indígena enquanto indígena, que passa a ocupar a posição de inocência.

4. O discurso do outro como exótico

Nessa formação discursiva, o outro não-europeu é significado como exótico, como estranho. Vejamos as sequências recortadas, todas com grifos nossos em itálico.

SD 14: Sábado, 13 de outubro. - Assim que amanhece veio até à praia uma porção desses homens, todos jovens, como já disse, e todos de boa estatura. É gente muito bonita: os cabelos não são crespos, mas lisos e grossos, como cerdas de cavalo, e todos de rosto e cabeça bem mais largos que qualquer geração que tenha visto até agora, com olhos muito bonitos e nada pequenos, e entre ele não há nenhum negro (Colombo, 1998Colombo, C. (1998 [1492-1504]). Diários da descoberta da América. L&PM. [1492-1504], p. 48).

SD 15: Os indígenas desta ilha (ilha de Mallua) são selvagens e antropófagos, parecendo-se mais a bestas do que com homens. Como os demais, andam nus, com apenas um pequeno tecido de árvore cobrindo suas partes sexuais, porém, quando vão combater cobrem o tronco com peles de búfalo, adornadas com dente de porco e rabos de cabras. Usam os cabelos levantados sobre a cabeça por meio de uma espécie de pente de bambu, com longos dentes que passam de lado a lado. Uma de suas modas que nos fez rir muito é referente à sua barba, que envolvem em folhas e prendem em estojos de bambu. Em resumo, são os homens mais feios que encontramos em nossa viagem (Pigafetta, 2011Pigafetta, A. (2011 [concluído em 1524 - publicado em 1536]). A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães. L&PM. [concluído em 1524 - publicado em 1536], p. 179).

SD 16: As pessoas que habitam esta terra, desde a Ilha de Cozumel até a ponta de Yucatán, onde nos encontramos, são de estatura mediana, de corpos e gestos bem proporcionados, diferenciando-se apenas pelos ornamentos que distribuem por seus corpos. Alguns furam as orelhas, colocando nelas grandes e feias coisas, outros furam o nariz, e outros mais esticam o lábio inferior, colocando grandes rodelas de pedra ou de ouro (Cortez, 2011Cortez, H. (2011 [1524]). A conquista do México. L&PM. [1524], p. 30).

SD 17: Durante aquele tempo em que estava com eles vi uma coisa extraordinária, um homem casado com outro homem. Estes são homens muito afeminados, apesar de serem altos e fortes. Vestem-se como mulheres, trabalham como mulheres carregando muita carga e possuem o membro maior que os dos outros homens (Cabeza de Vaca, 2007Cabeza de Vaca, Á. (2007). Naufrágios e comentários [Naufragios y Comentarios, 1555]. L&PM. (Naufragios y Comentarios, 1555). [1555], p. 75).

SD 18: Os escravos negros, que no Rio de Janeiro chamam de moleques, vêm de Angola, possessão portuguesa na África. São muito pretos de cor - ambos os sexos - e de traços tão feios que parecem caricaturas (Leithold & Rango, 1966Leithold, T., & Rango, L. (1966 [1820 e 1821]). O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819. Companhia Editora Nacional. [1820 e 1821], p. 33).

SD 19: Este extravagante costume dá-nos uma prova evidente da extraordinária extensibilidade da fibra muscular, porquanto o lábio inferior adquire a aparência de um estreito anel em torno da placa, o mesmo acontecendo com os lobos das orelhas, que caem quase até os ombros. O batoque pode ser tirado quantas vezes o queiram, a orla do lábio ficando então caída e os dentes inferiores inteiramente a descoberto. A abertura cresce incessantemente com o correr dos anos, a ponto de os lobos das orelhas ou o lábio se romperem; neste caso as duas partes são atadas por meio de um “cipó”, reconstituindo-se assim o anel (Maximiliano, 1940Maximiliano, P. (1940 [1820]). Viagem do Brasil nos anos de 1815 a 1817 [Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817, 1820]. Companhia Editora Nacional. [1820], p. 275).

SD 20: Perfuram as orelhas e os lábios inferiores introduzindo no orifício um pedaço cilíndrico de pau, que vão substituindo por outros cada vez mais grossos, de modo a adquirirem um aspecto estranho e repulsivo. Como essa deformação lhes confere uma característica tão frizante, parece-me vantajoso dar informações pormenorizadas sobre esse assunto, baseando-me já nas minhas próprias observações, já no que, a seu respeito, disseram escritores de fé (Maximiliano, 1940Maximiliano, P. (1940 [1820]). Viagem do Brasil nos anos de 1815 a 1817 [Reise nach Brasilien in den Jahren 1815 bis 1817, 1820]. Companhia Editora Nacional. [1820], p. 276).

De imediato, nessas sequências, o outro não-europeu é visto como o estranho, o feio, o caricato, o bizarro. Para essa formação discursiva, não há mais o selvagem, tanto o mau que deveria ser eliminado, quanto o bom que deveria ser salvo pela cristianização. Há, assim, uma “passagem do imaginário fantástico para o imaginário científico” (Orlandi, 2008Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. [1990], p. 118), do selvagem para o exótico, do temor para a curiosidade, ainda que esse outro estranho possa continuar causando nojo, espanto (SD18) ou mesmo riso (SD15). Na SD14, esse outro não-europeu comparece como belo, contudo, sua beleza é aquela possível, comparada, quando não depreciada ou negada, ao se afirmar que o outro colonizado é gente muito bonita: (pois) os cabelos não são crespos. Esse outro colonizado só pode ser bonito em relação a um outro colonizado negro que, por ter cabelos crespos, não é.

Nessas materialidades encontramos também marcas de sentido de surpresa do europeu sobre o não-europeu: os olhos que deveriam ser pequenos, mas não são (SD14); o fato de não haver negros onde se esperava vê-los (SD14); a barba que faz rir (SD15); o extraordinário em ver um homem casado com outro homem (SD17) ou as dimensões de uma mulher (SD19).

Além disso, nas sequências discursivas recortadas, notamos da mesma forma o uso frequente da fórmula “eles são...” (SD14, SD15, SD16, SD17 e SD18). O emprego da terceira pessoa seguido pelo verbo ser produz um efeito de objetividade, como se o europeu apenas constatasse o que já está posto na realidade, de forma neutra e não ideológica. Tal efeito de objetividade, próprio do discurso científico, ademais da necessidade de descrever o desconhecido, apaga a subjetividade da qualificação, afinal uma boca enorme, um nariz grosso e seios grandes para um sujeito (interpelado por uma FD) podem ser pequenos e finos para outro (interpelado por outra FD). Tem-se a ilusão, assim, de que tais critérios deixam de ser relativos para se tornarem verdades científicas, verdades reais. Além desta marca, outras podem ser observadas que também produzem esse mesmo efeito, como, por exemplo, na SD19 quando se fala na extraordinária extensibilidade da fibra muscular. Nariz, boca, pernas, braços saem de cena para a entrada de fibra muscular. Traços de um discurso naturalista, biológico.

Orlandi (2002Orlandi, E. (2002). Língua e conhecimento linguístico: Por uma História das Ideias no Brasil. Cortez., p. 307) ao analisar o discurso naturalista, observa uma regularidade semelhante no funcionamento desse dizer: “há um efeito de objetividade produzido por esta escrita que se dá ao nível do pré-construído: os rios, as localidades, as características geográficas aparecem já nomeados, mostrando um país já estabelecido de fato”. Isso também pode ser observado em nosso corpus quando se diz ilha de Mallua (SD15), ilha de Cozumel (SD16), ponta de Yucatán (SD16).

Tal efeito de objetividade igualmente é observado em enunciados como todos de rosto e cabeça bem mais largos que qualquer geração que tenha visto até agora (SD14), são os homens mais feios que encontramos em nossa viagem (SD15). Desse modo, além de comprovar a feiura de forma objetiva, torna-se possível fazer comparações e gradações de feiura e consequentemente de beleza, além de estranheza. Temos, assim, um efeito do discurso evolucionista que marcou o início da Antropologia11 11 De acordo com o Evolucionismo, cujos principais expoentes foram Henry Morgan (1818-1881), Edward Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941), todos os povos passavam por estágios de evolução até à civilização, à formação do Estado e à urbanização. .

Nessa FD, assim, prevalece a descrição de lugares e de corpos, enquanto forma de relato, sobre a narração12 12 Essa passagem da narração para a descrição ocorre de forma tão radical que segundo Orlandi (2008 [1990]:119), afeta até a maneira de nomear essa tipologia de discurso: “No século XVII utilizava-se a palavra “relation” ou “rapport” para significar “relato daquilo que alguém viu pessoalmente”. Mas podem-se observar já aí os começos de uma diferenciação progressiva entre ficção (narrativa) e ciência (relatório). O “rapport”, sabe-se, especializa-se pouco a pouco para trabalhos técnicos e científicos: relatório (rapport) de atividades, de pesquisas. Há disciplinarização dessa forma de escrita. O relatório (rapport) de pesquisa supõe hoje o domínio das regras de observação e de escritas científicas. O relato (relation) se faz em outro lugar, na literatura. Essa separação de formas não era, no entanto, produtiva no século XVII”. de FDs anteriores. Para Orlandi (2002Orlandi, E. (2002). Língua e conhecimento linguístico: Por uma História das Ideias no Brasil. Cortez., p. 304),

Se, no século XVI, é o discurso sobre a cultura, os costumes, a religião, que ocupa a frente da cena da cientificidade, no século XIX é antes o inventário das espécies que desempenhará este papel. Os longos relatos (em que a narrativa simula a dissertação) e os relatórios dos viajantes e missionários cederão seu espaço às exaustivas descrições e aos diários de campo, assim como às classificações dos objetos, seja da fauna, da flora ou das línguas, seja dos habitantes, das raças”.

E acrescenta: “se a narração, nos séculos XVI e XVII, serve à inscrição do Novo Mundo na história, ainda que esta seja a história outra, a do colonizador, com tudo que isto implica de apagamento, a descrição, no discurso naturalista dos séculos XVIII e XIX, serve para produzir o efeito da cientificidade da observação” (Orlandi, 2002Orlandi, E. (2002). Língua e conhecimento linguístico: Por uma História das Ideias no Brasil. Cortez., p. 312). É, portanto desse olhar do exótico que advém o olhar científico. Orlandi (2002Orlandi, E. (2002). Língua e conhecimento linguístico: Por uma História das Ideias no Brasil. Cortez., p. 312) afirma ainda que:

o lugar menos dado à descrição, na tradição acadêmica, é enganador. A descrição “teoriza” a objetividade, a nossa capacidade de referir a um ser no mundo. Ela trabalha o fato de que a palavra não é a coisa. É uma forma de pôr o sujeito na relação com a objetividade do mundo, com o sentido da referência, ou seja, o de que a palavra não é a coisa mas tem o poder de simular, de parecer ser. Ela faz funcionar a separação entre interior/exterior”

Daí advém a ilusão de que essa objetividade deriva da ciência, de que é possível, a partir de uma observação cuidadosa, descrever o real e encontrar uma verdade, a verdade científica. Nessa busca pela verdade (do) real, é a diferença que chama a atenção, que desperta a curiosidade, que pode fornecer respostas científicas. E nessa descrição do diferente, o efeito de superioridade do colonizador sobre o colonizado se mantém. O diferente só pode e deve ser o estranho, o feio, o caricato, o bizarro e quando belo é em comparação, sendo depreciado13 13 É desse olhar sobre o diferente que surge para nós, inclusive, a Antropologia, da passagem do selvagem para o exótico e do exótico para o científico, já no século XX. . Tal FD tornou-se hegemônica no final do século XIX quando o discurso religioso perde a capacidade de assujeitar sujeitos para o discurso científico na forma de explicar e significar as questões humanas, inclusive esse outro não-europeu.

5. O discurso do outro como igual

Durante a análise do corpus, observamos uma quarta formação discursiva que comparece de forma menos frequente em relação às demais e que chamamos de FD do outro como igual. Separamos algumas sequências, a seguir, com grifos nossos em itálico:

SD 21: Os homens e as mulheres são fortes e bem conformados como nós. Comem algumas vezes carne humana, porém, somente a de seus inimigos (Pigafetta, 2011Pigafetta, A. (2011 [concluído em 1524 - publicado em 1536]). A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães. L&PM. [concluído em 1524 - publicado em 1536], p. 54).

SD 22: Esses ilhéus se entregam apaixonadamente ao prazer e à ociosidade. Fazem suas casas com vigas, tábuas e bambus e têm habitações como nós. São construídas sobre estacas, de modo que debaixo fique um espaço que sirva para criação de galinhas, porcos e cabras (Pigafetta, 2011Pigafetta, A. (2011 [concluído em 1524 - publicado em 1536]). A primeira viagem ao redor do mundo: o diário da expedição de Fernão de Magalhães. L&PM. [concluído em 1524 - publicado em 1536], p. 105).

SD 23: Esses índios pertencem a tribo dos guaranis; são lavradores que semeiam o milho e a mandioca duas vezes por ano, criam galinhas e patos da mesma maneira que nós na Espanha, possuem muitos papagaios, ocupam uma grande extensão de terra e falam uma só língua (Cabeza de Vaca, 2007Cabeza de Vaca, Á. (2007). Naufrágios e comentários [Naufragios y Comentarios, 1555]. L&PM. (Naufragios y Comentarios, 1555). [1555], p. 118).

SD 24: Preparam, ainda, escudos com casca de árvores e peles de animais selvagens. Enterram espinhas pontiagudas, como as armadilhas para os pés que usamos em nossas terras (Staden, 2011Staden, H. (2011 [1557]). Duas viagens ao Brasil. L&PM. [1557], p. 159).

SD 25: Tanto os nativos das Índias Orientais quanto os da América saem do ventre materno tão bonitinhos e lisos quanto as crianças europeias. E se os pêlos lhes surgem com o passar do tempo, aliás acontece também conosco, arrancam-nos à unha, de todas as partes do corpo, deixando que cresçam apenas os cabelos da cabeça, tal é o horror que lhes inspiram os outros cabelos, tanto aos homens quanto às mulheres (Thevet, 1978Thevet, A. (1978). As singularidades da França Antártica [Les singularitez de la France Antarctique, 1557]. Itatiaia & EdUSP. [1557], p. 107).

SD 26: Não são como alguns imaginam e outros o querem fazer crer, cobertos de pelos ou cabeludos. Ao contrário. Têm pêlos como nós, mas apenas lhes repontam pêlos em qualquer parte do corpo, mesmo nas pálpebras e sobrancelhas, arrancam-nos com as unhas ou pinças que lhes dão os cristãos, e tal como fazem, ao que se diz, os habitantes da ilha de Cumuna, no Peru. (Léry, 2007Léry, J. (2007). Viagem à terra do Brasil [Histoire d’un voyage faict en la terre du Brésil, 1578]. Itatiaia. [1578], p. 112).

De início, em tais materialidades destacamos o uso da expressão como nós encontrada nos enunciados são fortes e bem conformados como nós (SD21) ou têm pêlos como nós (SD26) como possível marca de igualdade entre colonizador e colonizado. Dizer como nós, no entanto, não é dizer igual a nós, mas sim que apesar de serem diferentes, os colonizados em algum aspecto se parecem com os europeus. Há, portanto, a permanência da memória sobre a diferença. Além disso, ainda que se afirmasse que o outro colonizado fosse igual ao europeu, se, de fato, fossem iguais não haveria nenhuma necessidade de dizer isso. Tal necessidade advém justamente do sentido de serem diferentes. A impossibilidade do dizer torna-se mais evidente quando tentamos representar esse enunciado por meio da fórmula eles = nós, em que o eles é impossível de ser igual ao nós. Nessa FD, desse modo, só é possível dizer a igualdade a partir da diferença e só se diz a igualdade porque há a diferença. Essa é a sua contradição constitutiva. Torna-se impossível, assim, apagar outras memórias discursivas que como pré-construído (Pêcheux, 2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975]) se ancoram no dizer, ou seja, para dizer que o outro é igual ao europeu, é preciso retomar a memória do outro como bárbaro, como cordial, como exótico, como diferente e consequentemente como inferior.

Essa formação discursiva tornou-se hegemônica no discurso da política após a II Guerra Mundial ao se ancorar no discurso dos direitos humanos, quando o discurso de ódio à diferença passou a ser interditado14 14 Quando dizemos interditado, não significa que não pudesse ser dito, mas que a partir da II Guerra Mundial tais discursos como o antissemitismo ou o racismo passaram a ser abominados ou proibidos por leis em diversos países. . Observamos funcionamento semelhante ao levantado em nosso corpus, ao analisarmos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, elaborada no âmbito da então recém-criada Organização das Nações Unidas, portanto, bem depois dos textos que compõem nosso arquivo15 15 Acreditamos que por isso não encontramos muita materialidade dessa FD em nosso arquivo. Contudo, ainda que consigamos perceber a hegemonia atual dessa FD no discurso da política, como “a ideologia em geral não tem história” (Althusser, 1996 [1994], p. 125), conseguimos, mesmo assim, reunir materialidades em séculos anteriores. . Eis dois artigos da referida declaração:

Artigo I - Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade.

Artigo II - Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

O primeiro artigo afirma que todos são iguais, porém se todos são iguais e se todos são pessoas é necessário dizer que são dotados de razão e consciência? Ora, se todos são iguais, é necessário dizer que não se devem fazer distinções de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição ou ainda dizer que é direito ser reconhecido como pessoa perante a lei?

Essa formação discursiva do outro como igual tenta produzir a ilusão de que todos são iguais. Mas não há como apagar a memória e a contradição do real da história. Para dizer, assim, que todos são iguais, é necessário acrescentar na Declaração que são independentemente de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição e ao acrescentar, afirma-se a diferença e por fim, a existência da desigualdade. O mesmo pode ser observado pela aprovação de uma série de declarações no âmbito da ONU posteriores à Declaração de 1948 que (re)afirmam que crianças, pessoas com deficiência, minorias étnicas, estrangeiros, presidiários, mulheres e indígenas são iguais e detentores de direitos humanos, como se antes não estivessem incluídos na Declaração Universal, questão, inclusive, já analisada por nós em outra oportunidade (Barbosa da Silva, 2013Barbosa da Silva, D. (2013). A contradição discursiva no processo de universalização do sujeito de direitos humanos. Entretextos, 13(2), 415-430. http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/entretextos/article/view/15047 (acesso 15 de novembro, 2020).
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php...
).

Ademais, dizer que todos são iguais por meio do sintagma todos também não apaga as condições desiguais de produção entre os homens. De acordo com Azeredo (2010Azeredo, J. C. (2010). Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. Publifolha., p. 245), os determinantes de quantidade têm funções discursivo-textuais realizadas por diversos traços, entre eles, o quantificador. Essa quantificação pode ser universal no caso do todo/todos/toda/todas, global no caso de todo o, dual no de ambos ou parcial para vários/pouca/alguns. Azeredo (2010Azeredo, J. C. (2010). Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. Publifolha., p. 245) acrescenta que no plural “todo precede obrigatoriamente de artigo definido ou pronome demonstrativo e é sempre quantificador universal”. Isso ocorre porque o todos indica a quantificação universal de algo, logo, exige de certa forma um referente, que pode estar expresso no texto, implícito, contextualizado, e/ou ainda, para nós, ancorado em um pré-construído.

Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975]), p. 99) retoma o conceito pré-construído, proposto por Henry para designar algo exterior e anterior ao enunciado, algo que já está lá, pré-existente ao enunciado, mas que pelo encaixe sintático pode ser percebido pelo analista do discurso. Para Maldidier (2003Maldidier, D. (2003). A inquietação do discurso: (re)ler Michel Pêcheux hoje. Pontes., p. 35), “certas construções autorizadas pela sintaxe das línguas ‘pressupõem’ a existência de um referente, independentemente da asserção de um sujeito”. Entendemos, assim que no enunciado todos são..., da Declaração de 1948 ou mesmo da Constituição de 1988, por exemplo, existe um pré-construído que garante o sentido do todos. Muito mais que um simples encaixe sintático, marcado pela necessidade de um artigo ou pronome demonstrativo, como nos mostra Azeredo (2010Azeredo, J. C. (2010). Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. Publifolha.), temos também um encaixe semântico, uma necessidade de referir a quem o todos remete, que se dá a partir do pré-construído.

Se considerarmos tanto a necessidade discursivo-textual de um referente do todos, apresentada por Azeredo (2010Azeredo, J. C. (2010). Gramática Houaiss da Língua Portuguesa. Publifolha., p. 245), quanto esse pré-construído levantado por nós, fica difícil pensar que esse todos da Declaração de 1948 ou da Constituição de 1988 discursivamente possa incluir todos os sujeitos. Entretanto, pensar na existência de um todos de fato universal, como uma verdade absoluta ou mesmo um ideal a ser seguido é desconsiderar e anular as diferenças em/entre culturas e sociedades, como se isso fosse possível.

Desse modo, ainda que a Declaração de 1948 possa ser considerada como um enunciado fundador (Orlandi, 2003Orlandi, E. (Org) (2003 [1993]). Discurso Fundador: A formação do país e a construção da identidade nacional. Pontes. [1993], p. 12-13), ressignificando os dizeres anteriores e construindo uma outra discursividade sobre a igualdade e sobre os direitos humanos, não há como apagar discursivamente a desigualdade real das condições de produção sem deixar marcas. Esse todos não basta e em seu pré-construído traz um não-todos16 16 Pudemos também comprovar isso em uma experiência que tivemos ao participar da III Conferência Nacional de Cultura entre 27 de novembro e 1º de dezembro de 2013, em Brasília, já relatado por nós em outra oportunidade (Barbosa da Silva, 2016). Na etapa nacional, os delegados de todo o país deveriam analisar, selecionar, fazer junções, de propostas cadastradas advindas de vários estados. Era, portanto, um trabalho de disputa entre FDs que por meio de sujeitos assujeitados deveriam garantir o que poderia e deveria ser dito sobre cultura do/no Brasil. Participamos de um grupo que reunia propostas sobre a diversidade cultural e que logo foi dominado pela discussão sobre a necessidade de se especificar quais eram os povos e expressões culturais ou de se generalizar, pois designá-los produziria um efeito afirmativo e garantidor de direitos. Entre as propostas estavam a de generalizar em nomenclaturas como povos tradicionais, sem distinguir se são afro-descendentes, indígenas, imigrantes; em citar alguns e no final colocar entre outros; abrir um parêntese e colocar o (entre eles...) ou citar o maior número possível de expressões culturais e grupos. Como não houve consenso, a decisão foi tomada pelo voto e dependendo das propostas essas opções se alternavam como vencedoras. Como sabemos, a legislação trabalha na ordem da evidência, da transparência dos sentidos. Por isso o todos bastaria, mas naquele espaço ideológico de disputas entre povos e expressões culturais, a contradição da evidência apareceu com toda a sua polêmica. O que queremos mostrar com isso é que discursivamente não há como apagar a desigualdade e a língua não tem como dar conta de enunciar toda a diferença. Isso é uma ilusão. .

O que buscamos mostrar é que na tentativa de incluir o outro não-europeu e de enunciar a igualdade, não é possível apagar a contradição da diferença, que é constitutiva, seja por meio da expressão como nós ou por meio da designação todos ou ainda por qualquer outra forma de designar. O discurso da igualdade só é possível porque existe a diferença, afinal, se esse todos se referisse de fato a toda a humanidade não seria necessário elaborar posteriores declarações à Declaração Universal dos Direitos Humanos e afirmar nelas que mulheres e crianças também estão incluídos no todos, deslocando pré-construídos ao longo da história, como mencionamos.

Tal formação discursiva do outro como igual na ilusão da igualdade traz consigo a diferença e consequentemente a memória da superioridade do europeu sobre o outro não-europeu. Zoppi-Fontana (2003Zoppi-Fontana, M. (2003). Identidade (In)formais: contradições, processos de designação e subjetivação na diferença. Revista Organon, 17(35), 245-282., p. 257) ao estudar o processo de universalização na designação dos camelôs e sua relação com o espaço urbano afirma:

a contradição constitutiva dos processos de universalização no funcionamento da forma-sujeito de direito, que ao mesmo tempo em que constroem a imagem de um TODOS homogêneo e sem falha, produzem como resíduo um outro exterior, a partir de cuja exclusão se define o todos.

Para a autora isso se deve pelo efeito da continuidade individual/universal que Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975], p. 127), retomando Fuchs, denominou

mito continuísta empírico-subjetivista” e que definiu como o efeito de sentido “que pretende que, a partir do sujeito concreto individual em situação (ligado a seus preceitos e a suas noções), se efetue um apagamento progressivo da situação por uma via que leva diretamente ao sujeito universal, situado em toda parte e em lugar nenhum, e que pensa por meio de conceitos.”

O mesmo pode ser observado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, cuja memória passa pela FD do outro como igual, quando o sujeito concreto individual europeu e capitalista é apagado para se tornar o sujeito universal. Tal contradição constitutiva do processo de universalização, a partir do “mito continuísta empírico-subjetivista” de Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975]) produz um efeito por ora perverso.

Dessa forma, no todos sempre caberá um não todos, o excluído. Nessa busca de enquadrar um universo de diferenças, de distintas culturas em um sentido único e universal, o sujeito universalizante de direitos humanos age de suposta conquista de direito à suposta conquista de direito, igualando facilmente a todos, ao mesmo tempo em que se amplia o seu exército de excluídos, pois, para existir, o sujeito universalizante necessita apagar as heterogeneidades, os (efeitos de) sentidos do outro enquanto outro, mantendo apenas aqueles sentidos europeus, do sujeito colonizador. O sentido universal do sujeito-de-direito é construído, portanto, na contradição e no apagamento da diferença tornando universal apenas os sentidos europeus, do sujeito colonizador sobre o homem e sobre o sujeito17 17 Em paralelo, indicamos a leitura de Viveiros de Castro (2002), que para nós apresenta o que seria uma formação discursiva do sujeito colonizado. .

6. Considerações finais

Neste artigo nos propomos analisar o discurso sobre o outro não-europeu por meio de um corpus heterogêneo, formado por relatos, cartas, diários de viajantes e de missionários, além de tratados de naturalistas europeus de um vasto período cronológico e uma variedade de origens geográficas. Nele nos deparamos com quatro formações discursivas - controlando diferentes modos se significar esse outro colonizado - que chamamos de FD do outro como bárbaro, FD do outro como cordial, FD do outro como exótico e FD do outro como igual. Partindo da afirmação de Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975], p. 148-149) de que “toda formação discursiva dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, sua dependência com respeito ao ‘todo complexo com dominante’”, podemos dizer que todas essas formações discursivas se propõem universais, seja pelo discurso civilizatório, pelo discurso religioso, pelo discurso científico ou pelo discurso jurídico (direitos humanos).

Sendo assim, tais formações continuam produzindo sentidos, pois como afirma Orlandi (2008Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. [1990], p. 117) “a história não se define em relação ao tempo, mas ao poder”. As memórias dessas FDs, desse modo, ecoam e ressoam significando até os dias de hoje. Como exemplos disso temos os enunciados comuns ultimamente: “direitos Humanos são para seres humanos” ou ainda “bandido bom é bandido morto” que remete à formação discursiva do outro como bárbaro; “eles não tem o que comer, mas são tão felizes” da FD do outro como cordial; “eu quero uma roupa étnica” ou “que penteado exótico!” da FD do outro como exótico, atualmente bastante positivado; e por fim, “somos todos iguais” da FD do outro como igual. Elas dissimulam o efeito de superioridade do discurso colonialista pelo efeito de objetividade, pelo silenciamento do outro, pelo apagamento do outro e também do outro enquanto outro, pelo apagamento da diferença, pelo efeito de igualdade.

Entretanto, essas formações discursivas apresentam uma historicidade e condições de produção específicas. Ainda que suas memórias continuem produzindo efeitos de sentidos, não podemos afirmar que é da mesma forma que anteriormente. Provavelmente estaremos de acordo, que nos dias de hoje uma delas pode deixar menos traços nos discursos que outra, mas todas deixam marcas na materialidade até os dias de hoje, afinal, a ideologia é a-histórica (Althusser, 1996Althusser, L. (1996 [1994]). Ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado. In S. Žižek (Ed.), Um mapa da ideologia. Contraponto. [1994], p. 125). Sabemos também que afirmar aqui que a formação discursiva do outro como igual que hoje se ancora no discurso dos direitos humanos também remete a uma formação ideológica colonialista é polêmico. Entretanto, como afirma Pêcheux (2009Pêcheux, M. (2009 [1975]). Semântica e Discurso. Editora Unicamp. [1975], p. 139):

o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidência “subjetivas”, devendo entender-se este último adjetivo não como “que afetam o sujeito”, mas “nas quais se constitui o sujeito”: “[...] tanto para vocês como para mim, a categoria de sujeito é uma ‘evidência’ primeira (as evidências são sempre primeiras): está claro que vocês, como eu, somo sujeitos (livres, morais etc.).

Desse modo, quanto mais polêmica for essa afirmação de que a formação discursiva do outro como igual também faz parte de uma formação ideológica colonialista, maior a sua própria dissimulação. Eis a contradição. O todos são iguais é uma resposta às memórias do outro como diferente. Dizer que todos são iguais é como não dizer que alguns são selvagens e outros homens, que alguns são inocentes e outros conscientes, que alguns são exóticos e outros normais. Diz-se, portanto, que todos são iguais a partir da memória do colonizador e não a partir da memória Macuxi, Iorubá ou LGBTQIAP+.

O outro, o indígena, o colonizado, o não-europeu fora silenciado. E se a própria posição do indígena é aquela construída em relação à posição do colonizador europeu, como nos mostra Horta Nunes (1994Nunes, J. H. (1994). Formação do leitor brasileiro. Editora Unicamp.), por que os efeitos de sentido do homem dos direitos humanos estariam de fora? Se as formações discursivas do mau e do bom selvagem não dissimulam tão bem quanto outrora, ainda que suas memórias continuem significando, é a formação discursiva do outro como igual que atualmente cumpre essa função. Dissimula, sobretudo quando ao se constituir na base da forma-sujeito-de-direito, afirma que direitos se conquistam, criando uma história de lutas, de encadeamento de conquistas de movimentos sociais, de direitos, em oposição à ideia de concessão de direitos pela classe dominante, como se a classe dominante não continuasse dominando e a dominada continuasse dominada, mesmo com tantos direitos conquistados.

Todas essas formações fazem parte, portanto, de uma mesma formação ideológica, a colonialista, que se aliou à formação capitalista, compondo uma poderosa cena de dissimulação, apagando as reais condições de produção dos sentidos. Assim, se a formação discursiva do outro como bárbaro não consegue interpelar o sujeito, promovendo a sua identificação e o seu assujeitamento, uma outra, assim, o fará. E até pouco tempo não restavam dúvidas de que a formação discursiva do outro como igual era hoje a que cumpre melhor esse papel interpelativo ilusório, pois ao se tornar hegemônica após a II Guerra Mundial, após os horrores do Holocausto e após as independências da África, da Ásia e da Oceania produz efeitos de sentidos de que todos são iguais18 18 Dizemos até pouco tempo em consideração a atual onda de direita que emerge no mundo - sinalizada pelas eleições de Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil) - e que parece chocar com sentidos até então estabilizados como o de direitos humanos, de democracia ou mesmo de verdade. . Os discursos da igualdade e da diversidade se impõem fortemente. Quem hoje em dia se colocaria contrário a Declaração Universal dos Direitos Humanos ou ao discurso da diversidade?

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  • 2
    Cabe ressaltar que não buscamos desmerecer estudos que se debrucem sobre essas outras características dessas materialidades. O que tentamos mostrar é que sob o ponto de vista da ideologia, que é o que nos interessa nesta pesquisa, elas seriam irrelevantes, pois como afirma Althusser (1985 [1970]Althusser, L. (1985 [1970]). Aparelhos ideológicos de Estado. Graal., p. 84), a ideologia é eterna, “omni-histórica”, estando sempre presente, independentemente do período cronológico, do local de produção, do tipo ou do gênero discursivo.
  • 3
    Tomamos arquivo, de acordo com Mariani (2003Mariani, B. (2003). Políticas de Colonização Linguística. Letras, 27, 73-82. https://periodicos.ufsm.br/letras/article/view/11900 (acesso 8 de janeiro, 2019).
    https://periodicos.ufsm.br/letras/articl...
    , p. 81): “como uma noção discursiva que permite ao analista operar com a produção dos sentidos a partir de uma diversidade de textos. A noção de arquivo não corresponde a uma mera acumulação de textos institucionais produzidos ao longo da história. Um arquivo nunca está pronto, pré-estabelecido. Ao contrário, seu modo de funcionamento é opaco. Para o analista do discurso, a exploração arquivística permite a construção de um corpus heterogêneo e é a partir desse corpus que ele vai buscar os processos discursivos”.
  • 4
    Ainda que diversos trabalhos em análise do discurso (Orlandi, 2008 [1990]Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. , 2003 [1993]Orlandi, E. (Org) (2003 [1993]). Discurso Fundador: A formação do país e a construção da identidade nacional. Pontes., 2002Orlandi, E. (2002). Língua e conhecimento linguístico: Por uma História das Ideias no Brasil. Cortez.; Horta Nunes, 1994Nunes, J. H. (1994). Formação do leitor brasileiro. Editora Unicamp.; Mariani, 2004Mariani, B. (2004). Colonização Linguística. Pontes Editores.) mostrem as distintas práticas discursivas de missionários, viajantes e naturalistas utilizando parte do mesmo corpus de análise de nossa pesquisa, diferentemente desses trabalhos, buscamos nessas materialidades o efeito de sentido sobre o outro, o olhar europeu sobre o colonizado.
  • 5
    Vale ressaltar que apesar de optarmos por nomear essa formação ideológica de colonialista, cujas marcas são efeitos de sentido de superioridade da posição do colonizador, ocupada principalmente pelo europeu, sobre a posição do colonizado, ocupada pelos povos historicamente de outros continentes, essa memória de efeito de superioridade não se inicia com o colonialismo no século XV, mas é anterior e pode remontar os tempos da Antiguidade (Egito, Grécia e Roma), quando o bárbaro também era o inferior (cf. Todorov, 1993Todorov, T. (1993). Nós e os Outros: a Reflexão Francesa sobre a Diversidade Humana 1. Jorge Zahar.; Kristeva, 1994Kristeva, J. (1994). Estrangeiros para nós mesmos. Rocco.).
  • 6
    Para ser mais preciso ainda, estamos falando da Antropologia física ou biológica e também da cultural, que iniciaram seus trabalhos numa perspectiva evolucionista e até os dias de hoje se defronta em refletir sobre o olhar etnográfico sem etnocentrismo, sem pré-conceitos, sem intervenções (cf. Laraia, 2004Laraia, R. (2004 [1986]). Cultura: um conceito antropológico. Zahar. ; Guber, 2011Guber, R. (2011). La etnografía: método, campo y reflexividad. Siglo Veintiuno Editores.).
  • 7
    Esse mesmo efeito de sentido foi observado por nós quando tivemos a oportunidade de analisar o discurso sobre/da diferença na elaboração do Plano Nacional de Cultura (Lei nº 12.343/2010) durante os governos do Partido dos Trabalhadores (Barbosa da Silva, 2016Barbosa da Silva, D. (2016). Dizer na cultura para dizer da diferença: o discurso da diversidade no discurso da política no Brasil. [Tese de doutorado]. Universidade Federal Fluminense. https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/9994/1/Dizer_na_cultura_para_dizer_da_diferenca%283%29.pdf (acesso 15 de novembro, 2020).
    https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/999...
    ).
  • 8
    As línguas gerais eram línguas de contato, crioulos de base europeia, utilizadas por diversos povos colonizados, por exemplo, no Brasil, no México e no Paraguai. As línguas francas também são línguas de contato, só que servem como língua de comunicação entre povos de línguas diferentes, isto é, são faladas como segunda língua por diversos povos. Muitas dessas línguas na América tiveram instrumentos linguísticos elaborados, sobretudo pelos jesuítas, em época semelhante às línguas europeias, como a Arte de la lengua mexicana y castellana, de Alonso de Molina, publicada em 1571; como a Grammatica y Vocabulario em La lengua general del Peru llamada quichua y en la lengua española, de autoria desconhecida, publicada em 1586; como a Arte de gramática da língua mais usada na costa do Brasil, de José de Anchieta, publicada em 1595; como a Arte Breve de La Lengva Aymara, de Antonio Bertonio, publicada em 1603; como a Arte de gramática da língua brasílica, de Luís Figueira, publicada em 1621. (cf. Bessa & Rosa, 2003Bessa, J., & Rosa, M. (Eds.) (2003). Línguas gerais: política lingüística e catequese na América do Sul no período colonial. EdUERJ.).
  • 9
    A bula afirmava: “o inimigo da espécie humana, que se opõe a todas as boas obras de modo a levar o homem à destruição, isso vendo e invejando, inventou uma maneira inédita com a qual pôde impedir a pregação da palavra da salvação de Deus ao povo: inspirou seus asseclas que, para agradá-lo, não têm hesitado em afirmar que os índios ocidentais e meridionais, e outros povos de que temos conhecimento recente, devem ser tratados como animais estúpidos criados para nosso serviço, sob o pretexto de que são incapazes de receber a fé católica, e os reduzem à servidão, afligindo-os como se faz com as bestas. Nós que, embora indignamente, exercemos na terra o poder de Nosso Senhor e nos esforçamos ao máximo para trazer aquelas ovelhas de Seu rebanho que estão fora para dentro do redil confiado aos nossos cuidados, consideramos, contudo, que os índios são verdadeiramente homens e que são não apenas capazes de entender a fé católica, como também, segundo sabemos, anseiam fervorosamente por recebê-la. (...) Nós definimos e declaramos por estas palavras, ou por qualquer tradução delas assinada por qualquer notário público e selada com o selo de qualquer dignitário eclesiástico, à qual igual crédito deve ser dado como ao original, que os ditos índios e outros povos devem ser convertidos à fé em Jesus Cristo pela pregação da palavra de Deus e pelo exemplo de uma vida boa e santa” (grifos nossos) (Paulo III, 1537Paulo III (Papa) (1537). Bula Sublimus Dei. http://speminaliumnunquam.blogspot.com.br/2010/05/sublimus-dei.html (accesso 31 de janeiro, 2019).
    http://speminaliumnunquam.blogspot.com.b...
    ).
  • 10
    Sobre a decisão do rei Filipe II, Romano (2007 [1972]Romano, R. (2007). Os mecanismos da conquista colonial. Perspectiva., p. 56) comenta: “Em primeiro lugar, poderia indicar que o Estado espanhol talvez pensasse que não era caso para vangloriar-se da conquista e de seus atores... A confissão é enorme. Mas isso não é tudo. Correu o boato, durante os anos 70 do século XVI, segundo o qual Carlos V teria decidido, por volta de 1540, abandonar o Peru (e até mesmo toda a América), considerando que os soberanos cujos territórios ele acabava de ocupar eram soberanos legítimos, e que ele, Carlos V, se encontrava na posição de usurpador. Ficou aprovado que tais arrependimentos nunca preocuparam realmente Carlos V, mas é importante assinalar que semelhante boato pôde se espalhar: acaso não traduzia a “má fé” que lentamente se introduzia entre os grupos mais sensíveis aos problemas de toda espécie criados pela conquista? Outro aspecto importante do texto de 1556 está no fato de parecer indicar, quase ordenar, o fim da conquista: o essencial da América está ocupado, inserido num sistema. A partir desse momento, não há mais nada para conquistas, apenas terras descobertas para colonizar. A pax hispanica triunfa”.
  • 11
    De acordo com o Evolucionismo, cujos principais expoentes foram Henry Morgan (1818-1881), Edward Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-1941), todos os povos passavam por estágios de evolução até à civilização, à formação do Estado e à urbanização.
  • 12
    Essa passagem da narração para a descrição ocorre de forma tão radical que segundo Orlandi (2008 [1990]Orlandi, E. (2008 [1990]). Terra à vista. Discurso do Confronto: Velho e Novo Mundo. Editora Unicamp. :119), afeta até a maneira de nomear essa tipologia de discurso: “No século XVII utilizava-se a palavra “relation” ou “rapport” para significar “relato daquilo que alguém viu pessoalmente”. Mas podem-se observar já aí os começos de uma diferenciação progressiva entre ficção (narrativa) e ciência (relatório). O “rapport”, sabe-se, especializa-se pouco a pouco para trabalhos técnicos e científicos: relatório (rapport) de atividades, de pesquisas. Há disciplinarização dessa forma de escrita. O relatório (rapport) de pesquisa supõe hoje o domínio das regras de observação e de escritas científicas. O relato (relation) se faz em outro lugar, na literatura. Essa separação de formas não era, no entanto, produtiva no século XVII”.
  • 13
    É desse olhar sobre o diferente que surge para nós, inclusive, a Antropologia, da passagem do selvagem para o exótico e do exótico para o científico, já no século XX.
  • 14
    Quando dizemos interditado, não significa que não pudesse ser dito, mas que a partir da II Guerra Mundial tais discursos como o antissemitismo ou o racismo passaram a ser abominados ou proibidos por leis em diversos países.
  • 15
    Acreditamos que por isso não encontramos muita materialidade dessa FD em nosso arquivo. Contudo, ainda que consigamos perceber a hegemonia atual dessa FD no discurso da política, como “a ideologia em geral não tem história” (Althusser, 1996 [1994]Althusser, L. (1996 [1994]). Ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado. In S. Žižek (Ed.), Um mapa da ideologia. Contraponto. , p. 125), conseguimos, mesmo assim, reunir materialidades em séculos anteriores.
  • 16
    Pudemos também comprovar isso em uma experiência que tivemos ao participar da III Conferência Nacional de Cultura entre 27 de novembro e 1º de dezembro de 2013, em Brasília, já relatado por nós em outra oportunidade (Barbosa da Silva, 2016Barbosa da Silva, D. (2016). Dizer na cultura para dizer da diferença: o discurso da diversidade no discurso da política no Brasil. [Tese de doutorado]. Universidade Federal Fluminense. https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/9994/1/Dizer_na_cultura_para_dizer_da_diferenca%283%29.pdf (acesso 15 de novembro, 2020).
    https://app.uff.br/riuff/bitstream/1/999...
    ). Na etapa nacional, os delegados de todo o país deveriam analisar, selecionar, fazer junções, de propostas cadastradas advindas de vários estados. Era, portanto, um trabalho de disputa entre FDs que por meio de sujeitos assujeitados deveriam garantir o que poderia e deveria ser dito sobre cultura do/no Brasil. Participamos de um grupo que reunia propostas sobre a diversidade cultural e que logo foi dominado pela discussão sobre a necessidade de se especificar quais eram os povos e expressões culturais ou de se generalizar, pois designá-los produziria um efeito afirmativo e garantidor de direitos. Entre as propostas estavam a de generalizar em nomenclaturas como povos tradicionais, sem distinguir se são afro-descendentes, indígenas, imigrantes; em citar alguns e no final colocar entre outros; abrir um parêntese e colocar o (entre eles...) ou citar o maior número possível de expressões culturais e grupos. Como não houve consenso, a decisão foi tomada pelo voto e dependendo das propostas essas opções se alternavam como vencedoras. Como sabemos, a legislação trabalha na ordem da evidência, da transparência dos sentidos. Por isso o todos bastaria, mas naquele espaço ideológico de disputas entre povos e expressões culturais, a contradição da evidência apareceu com toda a sua polêmica. O que queremos mostrar com isso é que discursivamente não há como apagar a desigualdade e a língua não tem como dar conta de enunciar toda a diferença. Isso é uma ilusão.
  • 17
    Em paralelo, indicamos a leitura de Viveiros de Castro (2002Viveiros de Castro, E. (2002). A inconstância da alma selvagem. Cosac Naif.), que para nós apresenta o que seria uma formação discursiva do sujeito colonizado.
  • 18
    Dizemos até pouco tempo em consideração a atual onda de direita que emerge no mundo - sinalizada pelas eleições de Donald Trump (Estados Unidos) e Jair Bolsonaro (Brasil) - e que parece chocar com sentidos até então estabilizados como o de direitos humanos, de democracia ou mesmo de verdade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2020
  • Aceito
    14 Abr 2021
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