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RESENHAS

Alípio Viana Freire

Jornalista

O Último Imperador da China

Autobiografía do Pu Yi

Editora: Marco Zero, São Paulo, 1988.

O Ocidente recorreu freqüentemente à ficção no sentido de perscrutar as inquietações do espírito de figuras hipotéticas (personagens de ficção) que pudessem atravessar ou ter atravessado momentos radicalmente distintos dá história de seus países, de sua cultura, de sua organização social e econômica. Neste sentido, firmaram-se grandes e importantes obras, realizadas por autores de correntes de pensamento diferenciadas.

Talvez o primeiro ensaio moderno a este respeito seja o D. Quixote de Miguel de Cervantes onde, sem conseguir se reciclar, o fidalgo e cavaleiro andante enlouquece, num perpétuo estranhamento da nova ordem que se espalhava pelo mundo.

Na ficção contemporânea, os mais conhecidos desses personagens são, sem dúvida alguma, o Orlando de Virginia Woolf (Orlando), e o conde Fosca de Simone Beauvoir (Todos os homens são mortais). Nestes dois casos - ainda que por vieses diversos - ao contrário de Cervantes, não se trata de expor ou investigar a resistência dos personagens à metamorfose do mundo mas, ao contrário, trata-se da própria metamorfose dos personagens, da sua adaptação às novas situações, à novas relações a serem vivenciadas. E, os espantos e reciclagens de Orlando e Fosca em seus necessários renascimentos em condições tão diversas, remetem-nos freqüentemente a reflexões em torno da finitude da vida enquanto tempero e parâmetro para as aspirações, vontades e desejos de cada indivíduo - ao mesmo tempo em que apontam para a onipotência tediosa da imortalidade.

Também em ambos os casos contemporâneos citados, as autoras (duas mulheres a especular sobre metamorfoses) escolhem para encarnar seus imortais, personagens ligados à mais antiga aristocracia européia (a nobreza de espada) e que, uma vez acostumados a manejar o Poder a partir do direito divino, certamente ficam mais aptos a lidar com a questão da eternidade e da onipotência.

Redimensionando toda essa ficção e reflexão ocidentais, Pequim chega aos leitores brasileiros com O último imperador da China - Autobiografia de Pu Yi, lançado pela Marco Zero (390 páginas, Cz$ 1.490,00), e já em sua segunda edição (chama a atenção a excelente qualidade da tradução).

Melhor dito, Pequim chega aos leitores brasileiros com a autobiografia do cidadão Pu Yi, que viveu em Pequim entre 1960 e 1967, na condição de estudioso e funcionário (jardineiro) do Jardim Botânico de Pequim, e de pesquisador nas áreas de História e Literatura da Comissão de Materiais Históricos da Conferência Consultiva Política da República Popular da China. É desta perspectiva que ele tenta reconstruir sua memória-história, sua autobiografia, ajudado desde os primeiros manuscritos pelo jornalista Li Wenda (autor do posfácio da Marco Zero). É deste ângulo que deve ser lido - sem nos esquecermos, é claro, que cerca de sessenta anos antes ele foi o último imperador chinês.

É tentando ter como chão firme sua condição ainda muito recente de cidadão (o manuscrito inicial é de 1962, e sua primeira edição em Pequim é de 1964, com uma tiragem de 35 mil exemplares) que Pu Yi reinterpreta, às vésperas dos seus 60 anos, os diversos papéis que representou na história de um país que, em menos de quarenta anos, teve que percorrer a distância que separa uma China feudal, dividida pelas disputas dos senhores da guerra e subordinada a (quando não dominada por) grandes impérios capitalistas, da China dos anos 60, um Estado moderno, unificado, independente, com um complexo industrial razoavelmente desenvolvido, e socialista.

Se a nossa ficção dá ao conde Fosca ou ao nobre Orlando cerca de meio milênio de sua(s) imortalidade(s) para amadurecer tantas experiências e transformações, a Pu Yi a História concedeu apenas o tempo de um mortal.

Mas, se o fato de tratarmos de uma autobiografia e não de uma ficção já carrega por si só o colorido dramático da história de Pu Yi, o curto espaço de tempo que lhe foi dado (e a China) para conhecer e se adaptar a mudanças tão repentinas quanto profundas, amplia vertiginosamente a dimensão do drama, bem como a profundidade da reflexão que suscita.

Se nos casos de Orlando e Fosca tratamos com personagens ficcionais, estabelecendo uma relação fundamentalmente intelectual com as narrativas (realizadas por terceiros), aqui, como esquecer que se trata de uma pessoa falando de si própria, e que "as pessoas são - como lembra Li Wenda em seu posfácio - o bem mais valioso"? Como não se comover, por mais contido que seja o autor?

A miséria e a humilhação em que viveu o povo chinês até 1959 é o pano de fundo (e às vezes o pano de boca) para as metamorfoses do Pu Yi imperador, coroado antes dos três anos de idade, deposto aos seis e vivendo em seguida mais 15 anos isolado na Cidade Proibida de Pequim, onde sua corte o tratava como um deus vivo, ao mesmo tempo que o esvaziava de sua humanidade, transformando-o apenas num símbolo emblemático que manipulava para sua própria (da corte) sobrevivência; o Pu Yi expulso da Cidade Proibida, tentando comprar a ajuda dos senhores da guerra, das potências ocidentais e, por fim, do Japão para a reconquista do Poder, e transformando-se em vassalo dos japoneses que o tomam como imperador fantoche da colônia nipônica instalada na Manchúria; o Pu Yi prisioneiro dos soviéticos no final da II Guerra e, enfim, o Pu Yi entregue ao governo de Mao Tsé-Tsung e Chu En-Lai. nos campos de reeducação dos criminosos de guerra.

As dúvidas sobre a sinceridade das metamorfoses de Pu Yi (particularmente da última, que o leva a escrever sua autobiografia) levantadas por comentadores do livro ainda que irrespondíveis, parecem infundadas (frente a uma identidade dilacerada que busca avidamente uma definição) e são particularmente irrelevantes na perspectiva de leitura que propomos.

Por outro lado, se em todo esse percurso as ambições e ilusões de poder podem saltar para um primeiro plano enquanto elementos catalizadores das várias metamorfoses - que implicam em constantes reconstruções de valores, e em jogo ininterrupto de apagar e reacender a memória em seleções (des) contínuas de lembranças - que pensar, num corte mais profundo, dos demônios interiores que teve que enfrentar Pu Yi, em sua irremediável solidão, para a sobrevivência de sua emoção e razão? E depois, mantidas estas, como se colocar frente à consciência do preço pago? Sim, talvez seja um poço sem fundo para nossa reflexão. Mas, como leitores, somos apenas sujeitos de tais reflexões. E, como fica para aquele que não foi apenas sujeito, mas também objeto?

Tentemos realizar uma aproximação maior da questão, relatando o que nos contou certa feita um amigo que esteve preso por motivos políticos durante a recente ditadura militar no Brasil:

De acordo com os procedimentos da época, o suspeito de atividade contra o regime era detido e encaminhado ao DOI-CODI e/ou ao Deops, onde era submetido a interrogatórios - sempre sob tortura. Passada essa fase de inquérito policial, durante a qual o preso era mantido incomunicável (quando não clandestino), em sobrevivendo era denunciado e mantido sob responsabilidade pública de alguma auditoria militar, sendo então enviado para um presídio onde aguardaria o correr do processo. Pois bem, nosso amigo se encontrava nesta última situação, recolhido com centenas de outros detidos no Presídio Tiradentes (São Paulo-SP). Já "veterano", ele via chegar diariamente ao Tiradentes presos vindos dos centros de tortura. Como não podia deixar de ser, uma das primeiras perguntas dos "veteranos" aos que chegavam era "Como é que foi a barra?". Para grande espanto do nosso amigo, um dia ele percebeu que vários dos que chegavam, costumavam responder com frases do tipo: "Não, nada demais. Não fui torturado não, apenas urnas porradas e uns choques" (choques elétricos, bem entendido). Mais que isso, essas frases eram acompanhadas por um ar de satisfação tão grande - geralmente realçado por sorrisos abertos que diziam de uma sinceridade que nosso amigo pode comprovar ao perceber que, embora já ouvisse tal tipo de frase há tantos meses, só então se dera conta da dimensão trágica que encerrava. Ou seja, ele próprio - na qualidade de interlocutor/ouvinte - vinha sendo um parceiro sincero neste jogo, ao qual o contexto conferia certa "lógica" que alimentava a razão e ajudava a manter um equilíbrio da emoção (por mais precário que possamos supor).

Certamente não temos respostas para essas questões que nos suscitam os abismos e labirintos da psique humana. Mas, ainda que através de experiências outras, é exatamente em abismos e labirintos semelhantes que nos lança a autobiografia desse jardineiro e pesquisador de história e literatura.

E, como não refletir sobre o assunto? Como não nos comovermos, sobretudo quando em seu posfácio Li Wenda nos dá conta de que, ao lhe pedir em 1962 que escrevesse uma introdução esclarecendo ás finalidades do livro, Pu Yi lhe teria dito: "(...) ao escrever este livro, manifesto um desejo que não posso esconder: quero dizer às pessoas que hoje eu passo dias alegres como conseqüência do meu renascimento..."?

Arremata Li Wenda:

"Uma frase do Livro das Odes diz: 'Para procurar o eco do seu amigo é que um pássaro canta'. Essa é a expressão de Pu Yi naquele momento".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jan 2011
  • Data do Fascículo
    Out 1988
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